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“O Leopardo”, de Tomasi di Lampedusa, a obra…

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“O Leopardo”, de Tomasi
di Lam​pedusa, a obra-
prima que imortalizou a
Sicília

POR EULER DE FRANÇA BELÉM


EM ENSAIOS

O escritor siciliano, que morreu em


1957, deixou uma obra-prima que
obteve sucesso entre o público
exigente sem deixar de ser popular.
Biografia revela que tinha um amigo
no Brasil, o engenheiro Guido Lajolo

“O Leopardo”, de Giu​sep​pe Tomasi di


Lam​pedusa (1896-1957), é um dos mais
importantes romances da Itália. Não
deixa de surpreender que tenha se
tornado best seller e suas frases,
principalmente “se quisermos que tudo
continue como está, é preciso que tudo
mude”, tenham caído no linguajar
popular. A prova de sua vitalidade é que
no Brasil há cinco traduções do livro: a
de Maurício Santana Dias (Com​panhia
das Letras, 381 páginas, de 2017), a de
Leonardo Codignoto (Nova Cultural, 318
páginas, de 2003), a de Marina
Colasanti (Record, 300 páginas, de
2000), a de José Antonio Pinheiro
Machado (L&PM, 206 páginas, de 1983)
e a de Rui Cabeçadas (Difel, 220
páginas, de 1963). O filme do diretor
Luchino Visconti, conde italiano, é uma
adaptação tão perfeita que parece ter
sido dirigida pelo “espírito” do escritor
siciliano. Fica-se com a impressão de
que a película contém toda a história,
ainda que condensada.
Giu​sep​pe Tomasi di Lampedusa, um dos mais
importantes autores do século 20

O posfácio de Maurício Santana Dias


elucida parte da vida e analisa a obra e
sua crítica. Há, claro, a tendência de se
apresentar Giuseppe Maria Fabrizio
Salvatore Stefano Vittorio Tomasi, o
duque de Palma e príncipe de
Lampedusa, como antifascista. Segundo
“El Último Gattopardo — Vida de
Giuseppe di Lampedusa” (Siruela, 242
páginas, tradução de Javier Lacruz), de
David Gilmour, formado por Oxford, não
é bem assim: “Nunca se opôs realmente
a [Benito] Mussolini, sobretudo no
princípio. De fato, foi menos antifascista
do que vários de seus parentes. A
precoce admiração de Giuseppe Palma
[depois, Lampedusa] pelo fascismo,
como a de muitos suboficiais, provinha
do medo da revolução e do
ressentimento contra os fracassos dos
liberais. Reconhecia que os fascistas
não eram inocentes, mas, ‘com todos
seus excessos e seus defeitos’, ao
menos queriam melhorar o país,
enquanto que os liberais se deixaram
levar por uma inércia viciada e
autocomplacente. Ademais, acreditava
que o fascismo podia ‘domesticar o
bolchevismo’. (…) Grande parte de sua
atitude parecia dever-se a um ‘amargo
ressentimento’ contra as classes médias
liberais”.

David Gilmour apresenta duas pessoas


que mantiveram forte ligação com
Lampedusa: o poeta Lucio Piccolo e o
engenheiro Guido Lajolo. Lucio Piccolo
era seu primo e um intelectual de
formação enciclopédica. Um congresso
literário em San Pellegrino Terme, em
1954, no qual Lucio Piccolo ganhou
apresentação de Eugenio Montale (era
fascinado pelo livro “Canti Barocchi”, de
Piccolo), parece ter despertado o
escritor que estava adormecido.
Sublinhe-se que há uma família Piccolo
no Brasil, parte dela dedicada à
medicina em Goiânia. Guido Lajolo
mudou-se para o Brasil, em 1930, e
manteve correspondência com
Lampedusa, que lhe informava sobre os
passos de sua literatura, notadamente
“O Leopardo”. Talvez tenha algum grau
de parentesco com a crítica literária e
escritora Marisa Lajolo, professora
aposentada da Unicamp. Na edição da
Companhia das Letras (página 353) há
menção ao seu endereço — Rua
Everlândia, 1147, São Paulo, Brasil — e a
informação de que ele e Lampedusa
foram prisioneiros no campo de
Szombaghely durante a Primeira Guerra
Mundial. Eles eram militares. Lampedusa
chegou ao posto de cabo.

O aristocrata

Lampedusa era casado com a


psicanalista Alexandra (ou Alessandra)
Wolff, Licy, filha de um barão alemão
com uma cantora lírica italiana, Alice
Barbi. Ler (e, depois, escrever) era,
digamos, o seu trabalho. “Uma vez
passou quatro horas numa pastelaria”,
em Palermo, “e leu um romance de
Balzac numa sentada”. Ficou tão
inebriado que escreveu para Licy, que
estava em Roma: “Que talento, meu
Deus! E não só de romancista, mas
também de grande historiador”. David
Gilmour conta “que comprar livros era
sua única extravagância autêntica.
Sentia-se culpado por comprar tantos e,
por isso, dizia a Licy que estavam em
promoção”.

Alexandra Wolff, a Licy, com o escritor


Giuseppe Tomasi di Lampedusa, na década de
1930; ela era uma psicanalista consagrada e
ele, um escritor refinado

O capítulo “O consolo da literatura”


registra a história das aulas que
Lampedusa dava para alguns jovens.
Ele escreveu mais de mil páginas para
explicar basicamente as literaturas
inglesa e francesa. Era apaixonado por
Stendhal, Dickens e Tolstói e lia Goethe,
James Joyce e T. S. Eliot com prazer.
Tudo indica que uma competição
“saudável” com Lucio Piccolo e as lições
literárias para Gioacchino Lanza —
sobrinho que adotou como filho — e
Francesco Orlando foram decisivas
para Lampedusa perceber que já tinha
cabedal suficiente para escrever um
romance.

Ao amigo Guido Lajolo, Lampedusa


escreveu uma carta, em 1955: “Tenho
certeza matemática que não sou mais
tolo [que Lucio Piccolo]. Assim, sentei-
me no meu escritório e escrevi um
romance”. David Gilmour frisa que suas
motivações para escrever eram mais
profundas. Além da decadência
financeira, ele era o último de sua
linhagem — como dom Fabrizio, príncipe
Salina, o personagem principal de “O
Leopardo”. Escrever a respeito era uma
forma de resgatar parte da história de
sua família e eternizá-la.

A venda da casa de campo de Santa


Margherita e a destruição do palácio
Lampedusa (na Segunda Guerra
Mundial) abalaram Lampedusa. A
reconstrução de parte da história do
que lá se passou, por meio da literatura,
parece ter reduzido a frequente
depressão do escritor. A proximidade da
velhice — com pouco mais de 50 anos
parecia ter 70 anos —, sinalizando que
poderia morrer, apressou-o a escrever o
romance. Quando o tio Pietro Tomasi
della Torretta, diplomata que havia sido
perseguido por Mussolini, perguntou-lhe
o que estava fazendo, Lampedusa
sumarizou: “Me divirto”. Escrevia quase
todos os dias, na biblioteca de sua casa
ou no café Mazzara. Há indícios de que
escrevia melhor em francês —
dominava ao menos meia dúzia de
idiomas —, mas a obra precisava ser
escrita em italiano, para capturar a
alma da Sicília. David Gilmour assinala
que “seu italiano às vezes dá a
impressão de ser uma tradução”.

Apesar da dificuldade na formulação do


romance, pela falta de experiência
como escritor, Lampedusa saiu-se muito
bem. “As frases e as imagens são muito
originais, e sua linguagem tem uma
intensidade que às vezes lembra
[Joseph] Conrad. O tradutor inglês de ‘O
Leopardo’ disse que o romance é ‘tão
cheio de sutis jogos de palavras e
dotado de uma ironia tão delicada
quanto grandiosa’ que acabou por
considerá-lo ‘uma das prosas mais
cheias de alusões da literatura desde
Manzoni.”
A biografia escrita pelo inglês David Gilmour,
formado por Oxford, mostra profunda
conexão entre realidade e imaginação literária
no romance “O Leopardo”, de Giuseppe
Tomasi di Lampedusa, e indica a autonomia
da arte em relação à história

Licy contou que Lampedusa pretendia


que fosse “um romance histórico,
ambientado na Sicília no tempo do
desembarque de [Giuseppe] Garibaldi
em Marsala, e baseado no seu bisavô, o
astrônomo Giulio di Lampedusa”. Ele
queria contar 24 horas da vida de seu
bisavô, no caso dom Fabrizio, mas
desistiu. Disse que não sabia como
escrever como James Joyce, o do
romance “Ulysses”.

Em junho, interrompeu a escritura do


romance para, influenciado pelo
Stendhal de “Vida de Henry Bru​lard”,
escrever sua autobiografia, mas só
terminou a parte da infância, publicada
como “Recordações da Infância” (ou “Os
Lugares da Minha Primeira Infância”,
publicado com este título no Brasil no
livro “O Senador e a Sereia”). Logo
retomou o romance.

O jovem Francesco Orlando percebeu


uma mudança em Lampedusa quando
começou a escrever “O Leopardo”. Ele
retomou seu “ar aristocrático”. “‘O
Leopardo’ havia se convertido numa
projeção de seu eu.” Parece que queria
ser como dom Fabrizio — aristocrata e
dotado de humor, de irreverência. Nos
momentos de folga, ia ao cinema, ouvia
música (era um crítico corrosivo de
óperas; sugeria que a ópera havia
contribuído para o senso
melodramático dos italianos) e lia. Ao
escrever seu romance, leu “Guerra e
Paz”, de Liev Tolstói, ao qual
considerava gênio, e vários documentos
sobre a presença de Garibaldi na Sicília
e deu aulas sobre a literatura de
Graham Greene, Saki, Henry James, T. S.
Eliot, Rabelais, Calvin, Racine, Molière,
Gide, Joyce, Heine, Goethe e
Shakespeare (que, como Harold Bloom,
considerava como o suprassumo da
cultura ocidental).

“O Leopardo” surgiu inicialmente como


um projeto secreto. Depois de escrever
e reescrever várias vezes, deu os
originais para Francesco Orlando ler e,
em seguida, leu trechos com (e para)
Gioacchino. Francesco Orlando
datilografou o manuscrito.

Recusa das editoras

Em maio de 1956, Lucio Piccolo envia


quatro capítulos ao conde Federico
Federici, editor da Monda​do​ri. A editora
decide não publicá-lo, com uma
desculpa esfarrapada. Na ver​dade, o
escritor siciliano Elio Vit​torini,
conselheiro da editora e integrante da
esquerda, avaliou o romance como
“antiquado” e “reacionário”. Lampedusa
retomou a obra e acrescentou novas
histórias, notadamente sobre o palácio
de Donnafu​ga​ta. Ele ditava e Francesco
Orlando da​tilografava. Ao amigo Guido
La​jo​lo, que seguia morando no Brasil, o
es​critor se dizia satisfeito com os “mé​-
ritos do livro”. Explicou que o romance
era “irônico, amargo” e não lhe faltava
“malícia”. Advertia que era necessário
“lê-lo com grande atenção porque havia
sopesado cada palavra e todos os
episódios têm um sentido oculto”.
Informou que, além das “recordações
pessoais”, a descrição de alguns lugares
era “absolutamente autêntica”.

À espera de editora para “O Leopardo”,


Lampedusa escreve contos, como “A
felicidade e a lei” e “O senador e a
sereia” — que figuram no livro “O
Senador e a Sereia”, de Lampedusa,
Editora L&PM, 141 páginas, tradução de
José Antonio Pinheiro Machado. Depois,
em 1957, escreve o primeiro capítulo do
romance “Os Gatinhos Cegos”. No
mesmo ano, acrescenta capítulos a “O
Leopardo” e faz uma revisão completa
dos originais. O livreiro Fausto Flaccovio
envia o romance mais uma vez para Elio
Vittorini, diretor da editora Einaudi. E um
analisando da psicanalista Licy manda
uma cópia para a gente literária Elena
Croce, filha do filósofo Benedetto Croce.

Elio Vittorini, “um profeta do


neorrealismo e da experimentação”,
rejeitou “O Leopardo” pela segunda vez,
por considerar o romance como
“reacionário” e “regressivo”. O escritor
não soube entender que o que parecia
defeito, o caráter antiquado da história
— dada a decadência da nobreza e a
ascensão da burguesia, com aquela
precisando desta, pelo dinheiro, e esta
precisando daquela, pelo caráter
aristocrático —, era, na verdade, virtude.
Eram forma e conteúdo em profunda
conexão. Até o estilo ensaístico, hoje
visto como moderno, chocou o marxista
Elio Vittorini. O pior crítico não é o que
critica duramente uma obra, e sim o que
não a compreende.

David Gilmour estranha o fato de não


terem enviado o livro para o poeta
Eugenio Montale, que, mais tarde, se
tornou um dos primeiros grandes
defensores do trabalho de Lampedusa.

Há duas cópias de “O Leopardo” — uma


manuscrita e uma datilografada. “As
diferenças entre as duas versões têm
um certo interesse erudito, mas não são
realmente importantes”, sustenta o
biógrafo.

Morte do escritor

Com pouco menos de 60 anos,


Lampedusa era um homem doente
(enfisema, bronquite, dores reumáticas,
depressão). “Não luto mais”, dis​se a
Francesco Orlando. Mas estava tran​-
quilo. Gioacchino acredita que “‘O
Leopardo’ preparou-o para uma boa
morte”. O romance representou “uma
reconciliação entre a vida e a morte”.
David Gilmour sugere que o livro
“proporcionou-lhe um propósito à sua
existência e, portanto, uma razão para
retardar seu final. A tragédia de
Lampedusa foi a coincidência de sua
decadência física com seu breve
período de criatividade artística”.

No final de abril de 1957, Lampedusa


começou a cuspir sangue. Era um
câncer no pulmão direito que acabou
transformando-se em metástase.
Mesmo muito doente, o escritor leu a
carta na qual Elio Vittorini rechaçava
seu romance como “antiquado e
desequilibrado”.
Giu​sep​pe Tomasi di Lam​pedusa deixou uma
obra-prima que obteve sucesso entre o
público exigente sem deixar de ser popular

Ao perceber que ia morrer, Lampedusa


escreveu cartas para sua mulher e para
Gioacchino. Na carta ao filho adotivo,
disse: “Gostaria que publicassem o meu
romance, mas não às expensas da
família”. No dia 23 de julho de 1957, sua
cunhada Olga-Lolette o encontra morto.
Tinha 60 anos.

No início de março de 1958, Giorgio


Giargia telefona para Licy e informa que
a editora Feltrinelli (cujo editor era
ligado ao guerrilheiro brasileiro Carlos
Marighella) havia decidido publicar “O
Leopardo”. O escritor Giorgio Bassani,
seguindo indicação de Elena Croce,
havia lido e apreciado o romance:
“Desde a primeira página, me dei conta
de que me encontrava ante a obra de
um verdadeiro escritor. Ao avançar,
estava convencido que o verdadeiro
escritor também era um verdadeiro
poeta”.

Ao terminar a leitura do romance,


Giorgio Bassani perguntou a Elena
Croce quem era seu autor. Ela disse que
não sabia, mas “que imaginava que
havia sido escrito por alguma solteirona
siciliana”. Ao conversar com a viúva Licy,
Giorgio Bassani disse que a obra era
muito boa, mas havia um problema com
o final. Então, ela informou que havia
um capítulo sobre um baile.

Na pressa de publicar o romance, Licy


não negociou os direitos autorais de
maneira realista. “O romance que
estava a ponto de converter-se no
primeiro best seller da história da
literatura italiana aportou escassos
benefícios para a família do autor.”
Giorgio Bassani mais uma vez
perguntou a Licy se não havia mais
partes “perdidas” do romance e
Gioacchino informou que estava de
posse do manuscrito. Ao folheá-lo, o
escritor-editor descobriu que havia mais
um capítulo, “As férias do padre
Pirrone”.

Licy vetou a inserção do capítulo sobre


o padre Pirrone no romance, mas
Giorgio Bassani acabou incluindo-o.
Outro problema da Feltrinelli era saber
se publicava a cópia datilografada ou a
manuscrita, ou uma combinação dos
dois textos. O editor e sua assistente
decidiram pela publicação de “uma
síntese”.

A primeira edição de “O Leopardo” foi


publicada em novembro de 1958, em
Milão. “Era um novela excepcional,
escreveu Bassani no prólogo, uma
dessas obras que requeriam toda uma
vida de preparação”, anota David
Gilmour. Em julho de 1959, o romance
ganhou o Strega, prêmio de narrativa
mais importante da Itália. Até março de
1960, foram publicadas 52 edições.

Quem é quem

Dom Fabrizio “é” Lampedusa? Licy dizia


que o nobre “não era um retrato
autobiográfico de seu marido”. Os
personagens eram imaginados, frisava,
exceto dom Fabrizio, inspirado no
bisavô do escritor, Giulio, e nas suas
filhas, baseadas nas tias do autor de “O
Leopardo”. Numa carta a Guido Lajolo,
Lampedusa revelou que dom Fabrizio
era baseado no bisavô, mas ponderou:
“Os amigos que leram o romance dizem
que o Príncipe de Salina se parece,
malditamente, comigo”. Noutra carta,
enfatizou: “No fundo, o protagonista sou
eu mesmo, e o personagem chamado
Tancredi é meu filho adotivo”. Guido
Lajolo recebeu uma terceira carta mais
contundente: “Dom Fabrizio expressa
completamente minhas ideias, e
Tancredi, seu sobrinho, é o retrato de
Giò [Gioacchino Lanza], no que diz
respeito ao seu aspecto e aos seus
costumes; e, quanto à moral, Giò,
afortunadamente, é muito melhor do
que ele”.
O Leopardo, de Giu​sep​pe Tomasi di
Lampedusa (Tradução de Maurício Santana
Dias, Com​panhia das Letras, 381 páginas)

David Gilmour afirma que a explicação


de Lampedusa é mais apropriada do
que a de Licy, mas sugere que ele
também exagera. “Dom Fabrizio e
Tancredi devem muito a duas figuras
histórias, o príncipe Giulio di Lampedusa
e seu sobrinho Corrado Valguarnera di
Niscemi. Não são retratos de nenhuma
dessas pessoas, porque o autor não
sabia o suficiente do caráter e da
personalidade dos parentes, mas parte
de seus atos e das circunstâncias
históricas que os guiaram são as
mesmas. Os problemas de dom Fabrizio
podem ter sido os mesmos que
atormentaram Lampedusa, mas seus
problemas políticos, seus interesses e
suas propriedades pertencem ao
príncipe Giulio. O encanto de Tancredi e
seu senso de humor eram os de
Gioacchino, e a relação que tinha com
dom Fabrizio se parecia à existente
entre o escritor e seu filho adotivo:
quando Lampedusa relata a
incapacidade de dom Fabrizio de
enfadar-se com Tancredi, ou a
impossibilidade de se aborrecer em sua
companhia, está descrevendo de fato
sua própria atitude com Gioacchino.
Mas as condições da época que
inspiraram o comportamento de
Tancredi são as que dizem respeito a
Corrado Valguarnera e seus amigos”,
afirma o biógrafo.

Personagens literárias quase sempre


resultam de compósitos, de junção de
características de duas ou mais pessoas
para formar um ou mais indivíduos
(personagens). Por isso, David Gilmour
postula que “Tancredi não é Brancaccio
[amigo de Corrado Valguarnera) nem
Valguarnera. Era, sim, uma mescla de
todos, com o acréscimo de outras
características inventadas por
Lampedusa. A composição de dom
Fabrizio é mais complicada. Há
similitudes óbvias entre ele e o príncipe
Giulio, especialmente sua obsessão pela
astronomia, mas parece que o bisavô
do autor foi menos autocrata que o
príncipe de Salina. (…) Dom Fabrizio é
mais autobiográfico que inventado, mas
é um personagem autobiográfico
convertido noutra pessoa: a pessoa que
o escritor queria ter sido. Lampedusa
não tinha a segurança arrogante de
Salina, nem sua sensualidade manifesta,
nem sua superioridade sobre os demais:
a própria personalidade do autor, em
grande parte moldada por sua mãe
[Beatrice], e a decadência de sua
família, iniciada pelo príncipe Giulio,
fizeram dele uma pessoa muito
diferente. Lampedusa compartilhava as
ideias e opiniões do Leopardo, tinha
muitos de seus pensamentos íntimos e
de seus sentimentos secretos, mas seu
comportamento era o de um animal
mais manso”. Lampedusa era,
sobretudo, um homem tímido. Quanto à
obra de arte, resultado do trabalho de
imaginação literária, não se trata de
uma reprodução da realidade. A arte
guarda autonomia em relação ao real,
mas, por vezes, potencializa sua
compreensão. Mimese não é cópia.

Assim como Lampedusa, dom Fabrizio,


um nobre dos mais charmosos e cultos
— o que torna a decadência da nobreza
ainda mais bela e lamentável —, intuía a
extinção de sua classe, mas nada fazia
para evitá-la. David Gilmour ressalva
que “não é um reacionário”, pois “não
faz do passado um paraíso”.
“Desagradam-lhe a cobiça e a falta de
idealismo dos ‘progressistas’ liberais,
mas não é um defensor da velha ordem
nem da monarquia borbonica [de
Bourbon]. (…) Como Lampedusa, dom
Fabrizio critica o passado, ainda que ele
mesmo faça parte dele em tal medida
que não tem ilusão sobre o futuro”. O
nobre admite que pertence a uma
geração perdida e que sobrevive,
desgostoso, em (e entre) dois tempos —
o velho e o novo.

Alain Delon e Claudia Cardinale no filme “O


Leopardo” dirigido por Luchino Visconti, em
1963

Dom Fabrizio é um homem bonito e


inteligente — do tipo que se admira e
respeita. Mas é, como Lampedusa, um
homem triste. David Gilmour assinala
que “a causa de sua tristeza” é menos a
culpa e mais a consciência “do caráter
transitório dos sentimentos. O amor não
dura para sempre — ‘chamas um ano,
cinzas trinta’ — e outros sentimentos
ainda duram menos”. Num mundo que
muda rápido, reduzindo a importância
do que é essencial, porque nem se sabe
mais o que é essencial, o príncipe de
Salina apega-se “às velhas coisas
familiares”, como Donnafugata. De
acordo com o biógrafo, “Donnafugata é
amada menos por si mesma que pela
‘sensação de tradição e perpetuidade
expressada em pedra e água, do tempo
congelado’. As pessoas, os objetos, as
instituições que não lhe preocupavam
antes se tornam importantes para ele
na medida que desaparecem”.
Paradoxalmente, embora seja uma
figura do passado, que está
desaparecendo nos novos tempos, dom
Fabrizio é moderno e perceptivo.

“O Leopardo”, ainda que trate da Sicília


e da Itália, é, na concepção de David
Gilmour, “um romance contemporâneo
sobre os problemas e as angústias do
protagonista, os problemas de um ser
marginal que perdeu seu caminho e não
sabe qual direção tomar”. A história
“também é universal — ao expressar a
alienação e o desassossego de um
indivíduo que vaga sem propósito
algum por um mundo sem valores
fixos”. O crítico Massimo Ganci
comparou a “Sicília irredimível” de “O
Leopardo” com “a aridez do homem
moderno… suspenso no vazio existente
entre um passado definitivamente
morto, ainda que evocado em chave de
nostalgia, e um futuro ainda mais cheio
de alienação”. O biógrafo acrescenta
que “a morte ou o esquecimento
proporciona o único alívio a este
vagabundeio interminável por uma
paisagem não mapeada. (…) A morte
está presente na primeira página do
livro e impregna o restante do
romance”. Fulco di Verdura, primo de
Lampedusa, disse: “A morte está como
em sua casa na Sicília”.

Um dos aspectos mais destacados do


romance é a união entre o nobre
decadente Tancredi — feito por Alain
Delon no cinema — e a bela, rica e nada
classuda Angelica Sedàra (Claudia
Cardinale, belíssima, no filme de
Visconti). Apesar da juventude e da
beleza de ambos, trata-se de um
casamento de conveniência. A burguesa
Angelica Sedàra, filha de um grosseirão
rico, é a salvação do nobre Tancredi. As
classes fazem um intercâmbio e o amor,
nada nobre, se torna um negócio. Dom
Fabrizio, irritado, diz: “Nós fomos os
Gattopardos, os leões, os que nos
substituirão serão os chacais, as hienas”.
Lampedusa e dom Fabrizio eram
implacáveis com os defeitos de
sua própria classe social, a
nobreza

Dom Fabrizio é o principal personagem


de “O Leopardo”, mas a frase mais
citada do romance é de Tancredi, seu
sobrinho: “Se não nos envolvermos
nisso, os outros implantam a República
[trata-se da unificação italiana, que
acabou se dando sob domínio na
monarquia]. Se quisermos que tudo
continue como está, é preciso que tudo
mude. Fui claro?”

David Gilmour diz que a frase tem sido


mal interpretada. Muitos apostam que
reflete o ponto de vista de Giuseppe
Tomasi de Lampedusa, seria sua
filosofia. Mas frise-se que é, tão logo
dita, rechaçada por dom Fabrizio.
“Certamente”, afirma o biógrafo,
“Lampedusa acreditava que o passado
estava composto de intermináveis
mudanças superficiais e de um
recorrente uso de distintas etiquetas
para o mesmo objetivo. Mas também
sabia, como Salina, que a época do
Risorgimento era distinta de suas
predecessoras. Em si mesma não
supunha uma grande mudança, mas
anunciava mudanças reais (na estrutura
social e na economia) que
paradoxalmente não conseguiram
alterar muitas coisas ou solucionar
muitos problemas da ilha”. A
modernidade não havia reduzido a
violência e a corrupção política em
Palermo, capital da Sicília. O escritor
Leonardo Sciascia, antes um crítico
severo de Lampedusa, pela sua
interpretação corrosiva da Sicília, mais
tarde concordou com o criador de “O
Leopardo”. A Sicília não era a oitava
maravilha da Itália nem do mundo. Ao
mostrá-la, de maneira presente e, ao
mesmo tempo, distanciada, longe de
contribuir para “destruí-la”, Lampedusa
ampliou sua compreensão.

Ao contrário do que havia entendido Elio


Vittorini, que não soube ler o romance,
Lampedusa, com sua crítica ao presente
e pessimismo em relação ao futuro, não
era um reacionário. Além de um grande
escritor, era um crítico social que não
compactuava com nenhum poder, seja
político, empresarial ou religioso.
“Lampedusa era um monarquista capaz
de criticar a monarquia.” Ele, como
certamente dom Fabrizio, era um
aristocrata que “podia ser implacável
com os defeitos de sua própria classe”.
O Risorgimento não era, para
Lampedusa, o acontecimento sagrado
da história italiana. O Risorgimento
siciliano era, na sua concepção, “pouco
mais que uma mudança de dinastia e a
substituição de uma classe por outra”.
Seus compatriotas sicilianos não
queriam uma “mudança real”.

O escritor “compartilhava a crença de


Gobetti de que ‘o fracasso do
Risorgimento, ao não obter o apoio das
massas e não produzir uma classe
dominante responsável, havia tornado
quase inevitável o fascismo”.

Eugenio Montale, Aragon e Forster


contribuíram para consolidar “O
Leopardo” como obra-prima

“O Leopardo”, sustenta David Gilmour, é


o livro que mais provocou e provoca
polêmica na Itália. O livro persiste
despertando paixões e discussões
acaloradas. A primeira resenha sobre o
romance, escrita por Carlo Bo, em “La
Stampa”, de novembro de 1959, era
francamente elogiosa.

O poeta Eugenio Montale “foi um dos


primeiros a reconhecer os méritos de ‘O
Leopardo’”. Lampedusa era um escritor
nato. Geno Pampaloni soube perceber
como o escritor captou com mestria a
transição de épocas e classes sociais.
Luigi Barzini corroborou.

Gioacchino Lanza (filho adotivo de


Lampedusa e modelo para o personagem
Tancredi de “O Leopardo”), Lucio Piccolo,
poeta elogiado por Eugenio Montale, e
Giuseppe Tomasi de Lampedusa; os dois
últimos eram primos e mantinham discussões
eruditas sobre vários assuntos, notadamente
literatura

Se a crítica mais categorizada, a que


valoriza aspectos literários, incluiu o
romance no cânone da literatura da
Itália, os críticos de esquerda, os
católicos e os apologistas sicilianos,
mais do que interpretar a obra,
decidiram atacá-la. A prova de sua
vitalidade é que, próximo de completar
60 anos, em 1958, o romance persiste
firme, sólido como uma rocha.
Enquanto os marxistas italianos
apontavam “O Leopardo” como um
romance “reacionário” e “retardatário”, o
escritor francês Louis Aragon, comunista
de carteirinha, leu-o mais
cuidadosamente. Ele o considerava “um
dos grandes romances deste século [o
20], um dos grandes romances de todos
os tempos, e talvez… o único romance
italiano”. O marxista do país de Stendhal
frisou, com todas as letras, que “era um
insensatez qualificá-lo como um livro de
direita”. O escritor italiano Alberto
Moravia escreveu que a obra
expressava “as ideias e a concepção de
vida” da classe dominante. Pelo
contrário, Louis Aragon “via ‘O
Leopardo’ como uma crítica de
Lampedusa à sua própria classe que
não só lhe parecia ‘desapiedada’ como
também de ‘esquerda’”. A esquerda
italiana quase infartou.

Publicado na França em 1959, “O


Leopardo” teve “uma acolhida
entusiasmada”. Em seguida, saiu na
Inglaterra, com ampla exaltação da
crítica especializada. Eles notaram a
influência da prosa de Stendhal. E. M.
Forster escreveu que o livro, que avaliou
como “nobre”, não era um “romance
histórico”, e sim “um romance que
passará à história”. Os franceses
mencionaram tanto Stendhal quanto
Proust. “As resenhas francesas e
britânicas, especialmente as de Aragon
e Forster, tiveram um efeito moderador
sobre os críticos italianos.” O escritor
siciliano Leonardo Sciascia, que havia
sido duro com o livro, retratou-se
publicamente.

Os nobres sicilianos não apreciaram “O


Leopardo”, sem entender, por certo, que
o romance fez mais por eles do que a
própria história: tornou-os mais
interessantes do que, possivelmente,
eram. Eles ficaram especialmente
“horrorizados com os personagens de
Tancredi e Angelica”. Eram, por assim
dizer, excessivamente despudorados e,
devido o casamento por interesse
evidente, sem nuances. De fato, há certa
vulgaridade na nobreza, ao querer o
dinheiro dos burgueses, e há certa
vulgaridade da burguesia ao tentar
absorver, pelo casamento, a classe dos
nobres.

O Leopardo é um clássico porque


não se tornou servo das modas
literárias
Que um romance de alta qualidade,
sofisticado, tão stendhaliano quanto
proustiano, tenha obtido sucesso
literário e comercial não deixa de ser
uma grata surpresa. “Vinte anos depois
de sua publicação”, informa David
Gilmour, “O Leopardo” havia vendido
cerca de 1 milhão de exemplares, com
121 edições e havia sido traduzido para
23 idiomas.

Em 1985, uma enquete de um jornal


italiano concluiu que era o romance
“mais amado, assim como o mais
importante” do século 20.

“O Leopardo”, postula David Gilmour,


“tem envelhecido melhor do que seus
detratores, e são os próprios
neorrealistas e experimentalistas os que
agora parecem superados. A razão
principal do êxito da obra estriba, em
última instância, em sua
atemporalidade. Não é um livro de uma
determinada época ou de uma moda,
nem se apoia em estruturas linguísticas,
ou de outro tipo, desta ou de outra era.
‘O Leopardo’ é um clássico porque não
leva em conta as manias [modas] de
uma geração de escritores e se
concentrou em preocupações eternas.
Lampedusa disse uma vez que Londres
nunca morreria porque Dickens a havia
tornado imortal e, para muita gente, ele
fez o mesmo pela Sicília”.

A obra permanece viva porque


Lampedusa “escreveu sobre os
problemas essenciais da condição
humana”, escreve David Gilmour.

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