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Ensino | A crise do ensino jurídico


Sergio Gurgel
10-14 minutos

A crise do ensino jurídico

Muito antes de ingressar na faculdade de Direito, eu já havia me


acostumado a ouvir os mais variados discursos de pesar sobre a
situação do ensino no país. De todas as críticas, a mais frequente era
aquela que atribuía toda a responsabilidade aos governos militares,
tragicamente marcados pelos sucessivos atos institucionais.

Segundo os seus opositores, a política instaurada visava o


desmantelamento dos movimentos estudantis por intermédio da
proibição de certas agremiações, infiltração de agentes dos órgãos de
repressão em sala de aula, além do famigerado sistema de créditos, que
fragmentava o corpo universitário, dificultando ainda mais qualquer tipo
de articulação de ordem subversiva.

Quando entramos nos anos oitenta do século anterior, nos tornamos


expectadores da derrocada das obsoletas ditaduras instauradas no
período da Guerra Fria, não somente na América, mas também no leste
europeu.

Na ocasião, não foram poucos os que imaginavam estar vivenciando


uma nova era de prosperidade, à imagem e semelhança ao movimento
das Luzes, que abalou tronos e altares no século XVIII. As autocracias
deveriam expiar todos os pecados de nossa época.

Entretanto, não foi preciso muito tempo para que a realidade viesse à
tona. Fomos aprendendo que não apenas as ditaduras têm a ignorância
como aliada. A obscuridade favorece aos governos que colocam seus

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interesses acima dos seus súditos ou eleitores, independente da


roupagem modernista de que possam se valer.

Manter a maior parte do povo alheio à cultura significa se proteger tanto


das suaves críticas quanto das mais sangrentas insurreições. E assim
agiram aqueles que foram legitimados pelo sufrágio direto.

O magistério foi deixando de ser uma opção para os que ainda


buscavam uma melhoria nas condições de vida pelo estudo. Certa vez,
durante uma aula em um curso pré-vestibular, o professor perguntou aos
duzentos alunos presentes quais gostariam de atuar na área de
educação, e ninguém se apresentou disposto a enfrentar esta sina,
apesar de vários possuírem todas as virtudes indicadas para a área.

Foi quando eu ouvi que a geração seguinte ficaria sem professor. Hoje,
compreendo o significado desta lição, ou seja, meus filhos ficarão nas
mãos de professores despreparados.

Tudo conspirou para que a profecia se materializasse. As políticas


públicas sempre colocavam a questão da educação em último plano ou
em lugar nenhum.

Com o passar do tempo, os salários foram se tornando cada vez mais


aviltantes, sendo superados pelas ofertas do mercado para as atividades
puramente braçais, o que, aliás, diga-se de passagem, tal fato
corresponde ao bulling mais doloroso criado pelos alunos contra os seus
mestres.

E como se não bastasse a ausência do mínimo para a subsistência,


muitos professores são expostos à hostilidade de um alunado desprovido
de regras básicas de educação, gerando frequentes conflitos que os
retiram da sala de aula e os conduzem às salas de audiência dos
tribunais.

Por falar em tribunais, o ensino jurídico não ficou imune ao caos. As


universidades não aboliram o sistema de créditos, pelo contrário,
proliferaram, como forma de escamotear o preço final, entre outras
estratégias inerentes ao mercado, e não para desmantelar movimento

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estudantil, que sequer existe mais, salvo aqueles voltados para organizar
eventos festivos.

Esta é a prova mais contundente de que os planos para a América Latina


durante os Anos de Chumbo, pelo menos nesse sentido, deram muito
certo. Os vestibulares foram se tornando uma mera formalidade,
principalmente para o ingresso na maioria das faculdades particulares,
fazendo com que até os analfabetos passassem a sonhar com o título de
doutor. O que poderia ser mais grave?

A crise econômica, que se aprofundou ainda mais com o projeto liberal


dos anos 90, fez com que uma massa de desempregados se
aventurasse na busca de um cargo na administração pública. Ocorre que
muitos editais exigem formação em Direito para o preenchimento das
melhores vagas, ou outros certificados da área jurídica para uma melhor
remuneração. E assim, fomentou-se a indústria da titulação.

Neste clima, as faculdades de Direito se espalharam por todos os cantos


do território nacional, o que antes era quase restrito às universidades
públicas, sendo que algumas ainda tiveram de sofrer intervenção federal
em razão de inúmeros relatos divulgados pela imprensa sobre suposta
venda de diplomas.

Lembro-me dos tempos de faculdade que raríssimos eram aqueles que


almejavam o funcionalismo público. A maioria ainda pretendia se
enveredar para a advocacia, e assim o fizeram. Hoje, a situação é bem
diferente.

O concurso é a única opção, e o curso de Direito é visto por alguns como


um mal necessário. E esse contato do aluno com o mundo acadêmico,
paralelamente ao ambiente dos cursos preparatórios, faz com que outros
problemas de grande relevância fiquem tão expostos, que até um leigo é
capaz de constatá-los.

Os acadêmicos costumam tecer duras críticas aos cursos preparatórios,


sob o fundamento de que os professores não fazem nada além de
reproduzir o texto legal, em detrimento do raciocínio jurídico. Talvez por

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este motivo, as instituições que se dedicam a atividade em questão


acabaram ficando conhecidas como “cursinhos”, no sentido mais
pejorativo da palavra.

Em contrapartida, aqueles que se especializam na área dos concursos


costumam se mostrar chocados com as inúmeras deficiências
apresentadas pelos bacharéis em Direito, carentes de noções
fundamentais sobre a própria carreira. O mais triste de tudo que foi dito é
que, nesta guerra silenciosa, todos têm razão em suas observações.

Atualmente, as faculdades não querem exatamente o professor, mas sim


o título que carrega. Se esse profissional tem a didática e a cultura
necessárias, tais condições tornaram-se secundárias, para não dizer
desprezíveis. O aluno vai para a faculdade com a certeza de que terá
aula com um profissional que possui um bom currículo, mas sem a
garantia de que também o terá.

O mestre em Direito Civil, por exemplo, poderá estar ministrando aula de


Direito Penal, bem como o doutor em Direito Tributário poderá assumir a
cadeira do Direito do Trabalho. Se tiverem o título, isso é o que importa.
É o Ministério da Educação, dizem os técnicos, que exige o
preenchimento desses requisitos; é o lucro, dizem os esclarecidos, que
impõe este critério acima de qualquer outro.

A instituição cumpre as regras do jogo, e o aluno, o maior prejudicado,


sem saber muito bem como expressar sua frustração, acaba eternizando
o clichê mais contraditório da história: “ele é bom, só não sabe passar.”.

Nos cursos preparatórios a promiscuidade jurídica transcendeu o


imaginável. Como não há análise de nenhum documento capaz de servir
de presunção quanto à capacidade de lecionar, qualquer um pode subir
ao tablado e discursar. Para isso basta dominar a arte do blefe, como
fazem os jogadores de pôquer, e proclamar a superficialidade como o
atalho para se atingir o sucesso.

Se puder ostentar um cargo público, qualquer que seja, poderá dele se


valer para intimidar sua clientela, que, por seu intermédio, pretende se

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olhar no espelho. Mais felizes são aqueles que conseguem transformar a


aula em um verdadeiro stand up para que o Direito se torne um completo
escárnio, uma pornochanchada sobre a nossa decadência.

Entretanto, apesar dos aspectos estarrecedores que foram destacados,


reluto em aceitar que a causa esteja perdida. Diversos países passaram
da miséria total para figurar como referência no sistema educacional.
França e Inglaterra, por exemplo, não se constituíram Estados Nacionais
por meio de uma revolução cultural.

Nem mesmo quando, por ocasião do movimento iluminista, as classes


populares puderam usufruir dos seus benefícios, pois sua grande maioria
continuava a viver em completa ignorância e totalmente alheia ao novo
pensamento filosófico. Somente depois de muitos anos é que os ideais
revolucionários puderam ser difundidos na proporção dos dias atuais,
tanto naqueles países quanto no resto do planeta.

No Brasil, e não poderiam ser diferente, as mudanças devem começar


pelo ensino básico, restaurando-se a ideia do professor como educador.
A língua portuguesa precisa voltar a ter o prestígio dos tempos remotos.
Não foram raras as vezes em que ouvi críticas no sentido de que a
maioria dos advogados não sabia escrever.

Fico me perguntando se apenas os advogados devem ser julgados por


este infortúnio. Em nosso país, que profissão se destaca pela nobreza
das letras? Contudo, deve-se admitir que, no ensino do Direito, a
dificuldade da maioria na compreensão do texto legal está muito mais
ligada ao domínio do vernáculo do que propriamente aos seus aspectos
jurídicos.

Além disso, os critérios para a seleção dos professores universitários


precisam mudar. É evidente que os títulos são válidos, e louváveis são
aqueles que os conquistam. Porém, presumir a plena capacidade de
ensinar unicamente sob o aspecto curricular é querer negar o óbvio. Mais
absurdo ainda é adotar o modelo no qual se delega ao aluno a tarefa de
avaliar o professor, e isso tem ocorrido também em certos cursos
preparatórios para concurso público.
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Com exceção das questões alheias à disciplina ministrada, como, por


exemplo, o tratamento desrespeitoso para com os alunos, ou o
cumprimento do horário, bem como do conteúdo programático proposto,
fico pensando de que outra forma poderiam avaliar os seus mestres. As
funções não estariam trocadas? E se o professor não tem conteúdo,
quem lhe confiou a tarefa de ensinar?

Em relação aos cursos preparatórios, defendo a fiscalização e a


intervenção da Ordem dos Advogados do Brasil. Há de se criar um
mecanismo de controle externo para impedir que qualquer pessoa,
atraída pelo retorno financeiro que o mercado possa proporcionar, venha
se apresentar como profissional do Direito para quem quer que seja.

A regulamentação se faz necessária, não apenas em prol da segurança


do consumidor na prestação de serviço que lhe é oferecido, mas também
na defesa e preservação da imagem dos especialistas do mundo jurídico.

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