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SOLER, Colette A Psicanálise na civilização. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998 p.

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A LITERATURA COMO SINTOMA*

Em seu Seminário, livro 23: o sinthoma sobre Joyce (1975-6),


Lacan escreveu a palavra sintoma na forma em que esta era grafada
em francês - sinthome - introduzindo portanto o enigma da
equivocação translingüística. Em inglês, nela escutamos as palavras
sin (pecado) e bom e (casa), assim como as palavras francesas saint
(santo) e ho111111e (homem) . 1 Este jogo com a língua materna dá o
tom. Devemos tentar avaliar a importância dos efeitos possíveis
desta forma de manejar a letra 2 , mas não pensemos que isto é uma
questão literária; nisto vemos uma questão analítica. Além disso,
não causa surpresa que esta questão se refira ao psicanalista, pois a
instância da letra pode ser encontrada no inconsciente, como Lacan
o estabeleceu cm I 9 5 6. i De fato, temos a<.]Lii uma <.Juestão: como é
permitido à psicanálise falar sobre uma obra de arte, a<.1ui sobre a
literatura?
De sua parte, Freud provavelmente não diria "Joyce o sintoma",
mas sim "Goethe Í ou Jansen] a fantasia". Implicam estas frases um
menosprezo da obra de arte? Conhecemos o <.1ue Freud fez com a
literatura. Nos artistas ele viu seus precursores e nos textos literá­
rios, a oportunidade de validar o método analítico. De Sófocles a
Goethe, passando por Jansen e Dostoiévski, Freud encontrou na
ficção uma antecipação da descoberta do inconsciente. Portanto,

* "Literature as symptom". Conferência pronunciada na Kent Universiry em


maio de 1988.
l. N. do E. Em português, encontramos as grafias simptôma e symptoma, desig­
nando "accidente produzido pela doença, do qual se tira algum presagio ou
consequencia ". Cf. MoRAES SILVA, Antonio de. Diccionario da Língua Portuguesa. Lis­
boa, Typographia Lacerdina, l 813, p. 70 l e 7 46. Neste sentido, poderíamos
escutar as palavras "sim", "toma".
2. N. do T. No original letter; como o francês ltttre, significa tanto "carta" como
"letra".
3. N. do E. Trata-se do texto de Lacan "A instância da letra no inconsciente ou
a razão desde Freud" (1957). Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1988, p. 496-53 3.

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COLETTE SOLER.

para Freud, o n eurótico é aquele que parece copiar a fábula ao nar­


rar sua história familiar, a qual chama de o "romance familiar",
para dizer que �ua fantasia é estruturada _como um romance. De
todo modo, Freulent:�ou na p·s\canálise aplicada ao tratar o -savoir­
faire do artista con10 eqüivalente do que ele próprio chamou de o
trabalho do inconsciente, colocando as obras artísticas e literárias
no mesmo nível dos sonhos, dos lapsos, dos atos falhas e dos sin­
tomas, todos estes intcrprcdveis.
Neste ponto Lacan inverte a posiçfo freudiana: o texto escrito
não deve ser psicanalisado; antes é o psicanalista l]Ue deve ser bem
lido. A psican;Hise não se aplica à literatura. As tentativas de fazê-lo
sempre manifestaram sua futilidade, seu desajuste em fundamentar
mesmo o mais tosco julgamento litedrio. Por l]uê? Porque ostra­
balhos artísticos não são produtos do inconsciente. Ú bem possível
interpretar um romance ou poema - isto é, compreendê-lo -
porl:m este sentido não tem nada a ver com a criação do próprio
trabalho. Este sentido não tem uma medida comum com a existên­
cia do trabalho e 11111 rnigma permanece do lado da existência da
obra de artl'. Isto inclusive poderia ser uma definição possível do
trabalho cm sua relação ao sentido: o trabalho ao mesmo tempo
resiste e se presta� interpretação. No entanto, ainda que a psicaná­
lise não se aplilJUe ;\ literatura, ill]Uela pode aprender uma lição des­
ta, tirando uma p;1gina de seu livro, se assim o fosse. Mais precisa­
mente, o ensino d.e Lacan mostra lJUe podemos aprender não só a
partir de sua obra, como também de sua pessoa e de sua vida, sem
que seja neccss,írio subtrair um ao outro. Ou seja, a psicobiografia
é possível, porém ela nfo explica a obra de arte, impossível de ser
deduzida da vida do autor. Ainda assim, seguindo numerosas refe­
rências literárias de Lacan, podemos dizer: "Hamlet, desejo";
"Antígona, beleza"; "Gide, o fetiche"; "Sade e Kant, a vontade de
gozo"; "Edgar Allan Poe, a letra" e finalmente "Joyce e sua literatu­
ra, o sintoma".
O recurso de Lacan à literatura segue estritamente seu recur­
so à lingüística. Sabemos que muitos - não todos, mas os membros

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A P S I CANÁ LI S E NA CIVI LI ZAÇÃO

d a I PA - q u i s e r a m aí d e n u n c i a r u m a t e n dê n c i a p a r a o i n t e ­
l e c t u a l i s m o e para o verbalismo. Todav i a e s t e re c u rso i n i c i a l de Lacan
fo i n e c e s s á r i o e i n e v i t á v e l por uma s im p l e s razão: a l i n g ü ís t i c a
c o n s i g n a o " m a t e r i a l " d a a n á l i s e , e a t é m e s m o o " d i s p o s i t iv o c o m o
q u a l s e o p e r a n a a n á l i s e " , L] U e n ã o é n a da a l ém das a s s e r t i v a s p ro fe ­
ridas pelo analisante e pelo analista.
Po rém a p r ó p r i a o p e ra ç ã o a n a l í t i c a n ã o é u m a o p e r a ç ã o l i n ­
g ü ís t i c a p o n1 u e e l a a t e s t a o d o m ín i o da l i n guagem n o s i n to m a , c o n ­
fo r m e e s t e s e a p r e s e n t e n a a n á l i s e . Eu c o n s i de ro a q u i o s i n t o m a e m
s e u s e n t i d o c l í n i c o , n o m o do e m q u e e l e é a p re s e n t a do a o a n a l i s t a ,
o u s ej a , c o m o a t1 u e l e l] U C n ã o c e s s a d e s e i m p o r a o s uj e i t o . C o n s i s t e
c m u m 11 :1 0 s e r c a p a z d e p a r a r d e p e n s a r, o u d e s e n t i r n o c o r p o o u
d e c x p c r i cn c i a r a fe t o s , e é s o m en t e a t r a v é s d a fa l a l] U C s e p o d e
m u d a r o p e n s a m e n t o , a s e n s a ç ã o do c o rp o e o a fe t o .
Re t o r n e m o s à l i t e ra t u ra . E m p s i c a n á l i s e , a l i n g u a ge m o p e r a
s o b re o s i n t o m a e a q u e s tã o q u e s e n o s d e fro n t a é a d e s a b e r c o m o
o u s o l i terário da l i n g u a ge m pode s e r denominado u m s i n t o m a .
B a s ta d e i x a r d e l a d o a fa l a c m fa v o r da e s c r i t a ? E c o m o p o d e a
c r i a ç ã o l i t e d r i a - o r e m p c ro da c i v i l i z a ç ã o , c o m o frc LJ Ü C n t c m e nc c
s e p e n s a - s e r c o l o c a d a n o m e s m o p a t a m a r do s i n t o m a , q u ando
por s u a própria d e fi n i çã o u m s i n to m a é a LJ u i l o t] U e é u m t a n t o
" i n u s i t a d o " (fishy) o u n ã o " s e aj u s t a " (fit i n ) b e m ? I n i c i a l m e n t e ,
g o s t a ria d e i n d i c a r o e n c a m i n h a m e n t o g e r a l d a s o l u çã o : a c r i a ç ã o
__Ji t e d r i a pode s e r u m s in t o m a p o rq u e o s i n t o m a é por si só uma
� v c n ç ã o . O L] U e s i gn i fi c a c r i a r ? A respos t a é : t r a z e r a l g o à l uz l á
· o n d e a n t e s h a v i a n a d a . E n t r e t a n t o a o dizer " l á ó n d c h a v i a n a da " , c u
j á i m p l i c o um l u g a r. E n ã o há t a l c o i s a c o m o u m l u g a r s e m o s i m ­
b ó l i c o e s u a s m a r c a s , t o d a m a r c a s i m b ó l i c a e n gendrando c o m o v a ­
z i o o l u g a r q u e e l a c r i a (create) .
Pe rm i t a m -m e � arrar em u m t o m m a i s leve uma recordação
p e s s o al de meus d i a s de s uposta educação religiosa. Tinha cerca de
nove o u dez anos q u a ndo u m velho cônego s e aproximou de mim du­
ran t e um exame e com grande pompa e circu n s tância me fez uma per­
gunta banal do catecismo: " O q u e h av i a a n t e s de D e u s c r i a r a terr a ? " .

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CO LETT E S O L E R

O que voc ês responderiam ? Eu respondi com a ma ior a u toconfiança:


"Nada " . Observem que "nada " (nothing ) nã o é nada além do q ue
permanece qu a ndo o significa n te "terra " é barrado. Porém minh a
resposta não foi correta ; para minha surpresa e sanç ão, a resposta
era : o n a da ( n o th i ng ness) . I s s o causou um gra nde efeito sobre mim.
Eu até pergunte i para as pessoas à min h a volta, apresentando-lhes
o problema, mas o velho cônego demonstrou estar certo. O nada
não é nada . É a p a Lwra que fo i inv entada p a ra se falar do impensável
vfruo pré-si mbólico, que compa rado com " na da" - o resultado da
elisão de algo - é um animal de outra estirpe, e m b o ra isto de
fo rma a lguma desconsidere as aporias da c riação divina ! O Llue é
claro é Llue toda cr ia ção sup õ e L1ue o sim b61ic o s u s citou uma falta
no rea l, onde por definição nada pode fal t a r.
Po sso completa r minha primeira a ssertiva : a c riação traz a lgu­
ma c oisa à l u z lá ond e nad a exis t ia , ex ceto um bura c o , Llue não é
n a d a . Este vazio é constata d o em t o d os os n íve i s da experiência
ana l ítica - cm prim eiro luga r, como a fa lta do s u j eito, sendo o
e fei to inicial d a fal a t ran s form a r o vi vente no suj eito do querer-ser,
simboliz:1 do por nós pelo o -tp da casrra çfo. Como uma conseL1 üência
deste p r i m e i ro n íve l , e l e também é como a falta do obj e t o q ue
t am pona ria e s t a rachadu ra ou fissura. Isto é o q ue Freud ab orda
com su a teoria d e u m obj eto tJ U C c s d sem p r e substituindo um ob ­
j eto origina l m ente perdido. Reconhecemos nesta formulação que é
sim plesmente a fa lta do sujeito que dá a o obj eto sua importância.
O Llue, por sua vez, La can retoma com o embasamento de sua
lógica d o signi ficante na a sse r t i va : "não há relação sexual". O que
isto sig n i fi c a ? Certamente h;í corpos, corpos biológi c os de diferen­
tes gêneros assim como aqueles qu e erigem ideais sexuais: "virgem" ,
" puta", "mulher " e assim por diante. Nenhum destes inscreve o ob­
j eto que anularia a falta sexual e todos eles falham na compensação
do b u rac o, pois o " parceiro de gozo é inabordável n_�_l_i ngu�_gem".
f Como resultado, pr'õ.cu�a -séi. �-1.. p_or__is"i:"Õ que se tJ; e que não há
1 inclusive satisfação no blablablá, a não ser q u e se encontre uma .. .
' substituição.

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A P S I CANÁLISE NA C IVI LIZAÇÃO

É i s to o que o sintoma faz: ele ta m pona o "não há tal coi s a "


,!
da n ão-relação com a ereção d e u m "há". Dada a fa l t a do parceiro
a dequado de gozo, u m sintom a co loca alguma outra coisa no lugar;
um subs titu to, um elem ento adeq u a do p a ra encarnar o gozo. Sua
prim eira con seqü ência é que não há sujeito s em s intoma, sua fun­
ção s e ndo a de fi xar o modo de gozo privilegiado do s u j eito. É o
s intoma que cri a a s ingula ridade do sujei to, sujeito de outra form a
à grand e l e i do quere r- s er. O s into ma é uma funçã o - uma função
ló gic :1 - de exceção relativa ao trabalho in fi nito, a cifra i n finita do
incons ciente . U m sintoma represa, crava o gozo, ao p as so que o
i n c o nscie n t e des a l oj a o gozo.
D e q u e modo nos deslocamos da descob erta fre u diana a té as
ú lt i m a s fó r m u la s sobre o sintoma? Em t e rmos fre udianos, a d e c i ­
fração do sintom a r e v e b a Lrn ta s i a e a satis fa ç ão libidinal q u e ela
engendra . A noç ão freud i ana de fo rmaç ã o de comp rom isso implica
tJ U e o sintoma cons ti t u a o retorno do gozo recalcado. N fo é sim­
plesmen t e a m e m ória do gozo; é o gozo sem pre pres ente, imut á v e l
e m s eu c e r n e . O ra, s e e le p o d e s er de cifrado e sua trans formação
levada a t erm o , para nós l a cania n o s , podemo s dedu z i r (J u e ele é da
m e sma n a tu reza lJ U C a l i ng u agem - o t1 ue exp lica a tes e de t1 Lt c o
inconsciente é e s trutur ad o c o mo uma lingu agem. M a s, por out ro
lado, s u a inércia c o n t ras t a com o q u e é p r ó p rio à lingua gem,
no tada m en te a s u b s titu ição dos signos , s ub s t i tui ção pela tJu;il o
s ignificado é engendrado. E s t a contra dição é resolvida p o r Lacan
da s e guinte mane i r a : no s intoma , o significante é, diga mos a s s i m ,
casado com algo m ais , encontrando-se portanto trans formado.
E o que s eria este algo mais senão o que é manifestado no
sofr i mento e res ide na fa n ta s i a, p recisam ente o que c hamamos de

(
gozo? Investir um term o , um signi fi cante, o q u a l é subtraído da
s ubs tituição s ignificante, da inces sante cifra do gozo inconscien te,
tran s fo rma-o em uma letra que é fora do s ign i ficado e portanto
\
real, uma letra que sozin ha é capaz de fixar ou amarrar o próprio
s er de gozo. É por i s so que Lacan diz q u e o s ig n i ficante retorna na
exp eri ência como uma letra .

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CO LETT E S O LER

Mas e n t ã o como pode a l i tera t u r a ser um s i n t o m a ? A l i teratu-


ra s e rv e , é claro, como um veículo de gozo. M a s qual gozo? M u i t o
/
1
fre q ü e n t e m e n t e o gozo do s i g n i fi c a d o , espec i a l m e n t e n o c a s o e m
' q u e é u m a l i t eratura rom a n e s c a e faz u s o d a fi c ç ã o ; e m o u t r a s pala-
vras, do imaginário. Isto não é uma contradição? Aq u i gostaria de
c o n s i de r a r o exe mplo de uma invenção s i n to m á t i c a dado por L a c a n .
D e acordo com e l e , não é somente a l i teratura de J oyce q u e p o d e
s e r c h a m a d a de s i n t o m a . T.1 m b é m uma m u l h e r o pode, o u a i n d a ,
para t o m a r o u t ro exemplo, um c e n á r i o m a s o q u i s ta o u m e s m o a
i nvenção l a c a n i a n a do rea l . Qu ando um h o m e m obedece .1 0 m o d e l o
p a t e r n o , u m a m u l h e r 4 pode s e r s u a i n v e n ç ã o s i n t omá t i c a p o r q u e A
m u l h e r ( com A m a iúsculo) n ã o ex i s t e . O q u e l] u e r d i z e r q u e a s u ­
p o s t a n o r m a l i da d e , h e t e ro s s ex u a l i da d e - q u e Lac a n e s c re v e n orm e­
mâlc ou pere-wrsion 5 - - é ela própria u m s intoma. U m s i n t om a q u e
Freu d interpreta n o Complexo de É d i p o .
Aq u i podemos ver ll lle talvez a i n v e n ç ã o não seja c r i a ç ã o . .9
s i n toma inventa - o ll u e s ignifica: escolhe, seleciona - o termo
s i í{g u l a r l] U e n f o é p ro g r a m a d o p elo Outro, e q u e fixa o gozo. Mas
es te termo não é n e c es sariam ente um termo o rigi n a l . N e s t e s e n t i ­
d o , s e a c riação - a verda d e i ra c r i a ção ll u e produz u m a n ovidade
radical - é u m s i n co m a , ela o é um e s p e c i a l , e p oderíamos dizer
que o a r t i s ta/criador está sempre sem pai. A i n da que sempre data­
d o , s e u trab a l h o n ã o tem fil ia ç ã o . Ele é s e m p re "filho de seu t rab a ­
l h o " , como dizia Cervan tes. E no entan t o é s e m p r e tolo pro c u rar
pela chave da obra de a rte em s ua s fontes. O cenário masoq u i s t a
c o m o u m s i n t o m a é o u tra c o i s a . M a s o s e u c a s o é ins tru tivo u rn a
v e z q u e ele indica q u e um cen á r i o - i s c o é , o imaginário - pode
s e r a v a riável do s i n to m a . To dav ia por que não falar do mesmo
modo sobre o s i n to m a ro m an e s c o ? A exp e r i ê n c i a c l ínica fo r n e c e
exem p l o s e n t re l e i t o r e s , m a s t a m b é m e n t re a r t i s t a s/c ri a d o re s .

4 . N . d o T. N o ori g i n a l encontra-se a segu inte observação d a autora: "mulher


(womiin) com o a sublinhado " .
5 . N . do T. C o n h e c i d o n eologismo de Lacan possib i l i tado pela homofonia de
perversion (p e rversão) e p ere-version eversão do pai o u pai-vers ão) .

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A PSICANÁLI S E NA CIVILIZAÇÃO

Leiam novamente, por exem plo, o rel ato de Jean-Jacques Rousseau


sobre a comp osição de A Nova Heloísa , o romance que fez a Europa
tremer. Certamente um romance se dedica ao significado, ao passo
que um sintoma é real, fora do sign ificado. Mas isto é um paradoxo
apenas aparentemente, uma vez que nada opõe uma unidade de sig­
nificado como foz o romance ao um do sintoma .
É neste contexto que Lacan evoca J oyce, usando Fin n egans Wake
para ilustrar a m ensagem de Edgar Allan Poe sob re o obj eto-carta
(letter-object) , o lixo (litter) . Qual fo i, segundo Lacan , a mensagem
de Poe ao escrever "A c a rta rouba da "? 6 A carta nã o é somente um
veículo da mensagem ; a cana é também um obj eto. Joyce usou a
e q u i vocação, que é a essência da poesia, com o u m fo rça exponencial
excluindo o significado, elevando-a à força do ininteligível. Antes
de Joyce não se poderia dizer llue os poetas, m esm o no ponto m a is
alto de su a arte da letra, demonstrassem algo mais q ue a e ficácia da
letra n a gên e s e do significa do. O poeta torna cla ra a j unção ou a
costura na qual a aud;kia da letra engendra algo novo no significado.
Esta é u ma operação cm q ue o poeta subverte o assim cham a d o
s enso comu m. Esta operação certamente produz um gozo para o
q u a l a antinomia kan t i an a gosto/j ulgamento não apresenta obj e ­
ção, uma vez Llue este gozo não p recisa ser universal p a r a ser c o m ­
provado. N o entanto este gozo não é o puro gozo da letra. Ele não
vai além do gozo do chiste, o qual em sua literalidade produz um
e feito de significa do, e a lgu mas vezes Ll u a s e u m não -significado.
S eu gozo emerge na j unção em c.1 ue o s ignificado brota do literal,
indo mais-além e então curto-circu itando a intenção do suj eito.
Portanto a poesi a e o chiste são um savoir-faire da letra porém
isto significa mover o inconsciente. Joyce dá um passo a mais com
Fi n n egans Wa k e . Ele consegue usar a linguagem - onde o con he­
cime n t o inconsci ente reside - sem fazer o signi ficado vibrar.

6. N. do E. Pa ra os comentários de Lacan a respe ito desta questão ver especial­


mente "Seminário sobre 'A carta roubada' " ( I 9 5 5) . Em: Em,tos. Op. cit., p. I 3 -66. Pa ra
o conto de Edgar Allan Poe, PoE, E. A. Ficção comp leta, p oesia e ensaios. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, I 997.

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CO LETTE S O L E R

É por isso que Lacan diz que Joyce é "desabonado do i nconsciente",


ou sej a, não regi strado no inconsciente. Este trabalho, caracteri ­
zado por algo como u m a elação, algo muito próximo d o q u e em
psiquiatria é chamado de mania, livre do peso do signi ficado, per­
tence à era c ientífica. Ele fascina pelo gozo que atesta, e tem uma
maior a fi n idade com o gozo qu e os matem áticos encontram n o s
n ú meros d o que com o romance clássico. Ele talvez inclu s ive as s i­
n ale o fim do si ntoma literá rio cláss i c o. Mas observem que Joyce
não s e fe cha dentro do in i ntclíg ivcl: outra d a s rea l izações de J oyce
foi ter su ces s o cm im por a seus comentadores, por m u itos s é cu los
ainda, o peso de signific ado que s eu tra balho representa .
M a s em t]u e o sintom a de Joyce i nte re s s a aos psicanalistas ?
M ais precisamente, o que cm seu s avoir-faire i n teress a aos analis­
tas? O guc inte ressa a estes é o limite da ação analític a . O sintom a
de J oyce é um sintoma nfo analis ;1 ve l ; ele é , c m seu próp rio gozo,
fe chado aos e fe i t os d e sentido, ou s cj ;i , ele é fo r a d a transfer ência.
1.--: a p s i c a n ,í l ise é prec i s a m e nte u rn a p r áti c a (] Ue opera a t ravés do

s en tido. Ela assu me que o s u j e ito permita a ele próprio ser seduzido
e c a tivado pelo sig n i fic a d o , com o um efeito da articula ç ã o
signi ficant e. O r a , este l i m ite , o (] U C provavelmente explica p o r que
J oyc e nfo fez análise, surge p a ra L1 c ;i n como o modelo do final de
u m a psica n;ílise. J oyc e foi dire tamente ao melh o r do que pode se
es pera r no final de u m a p s ica n ális e, d iz Lacan. Por quê? Qual é o
p ro b l c1m a n a l ític o a g u i em j og o ? É o p ro b l ema de p ô r um ter m o
n a relaç ão tran sfcrenc i al com o anali sta , que é , ele próprio, u m nov o
sintom a . É o problema de d e ixar de engaj a r o analisante no gozo­
do-sentido7 do incons c iente. N este ponto Joyce é um exemplo e
isto é o que Lacan nos ensin a com Joyce. Aqui, podemos vê-lo, c a d a
um apren de até o l i m ite de seu próp rio conhecimento. E c reio que
estamos muito longe de alcançar La c a n .

7 , N . do T. E q u ivocação p ro p o s t a p or La c a n en t re jou issance ( g ozo) e jou is-sens


(gozo -do-sen t i do)

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