Você está na página 1de 7

Inhumas, ano 2, n. 12, out.

2014
ISSN 2316-8102

CORPO-SUPORTE VARIÁVEL PARA


CONSTANTES PROCESSOS DISCURSIVOS
Julia Pelison

Priscilla Davanzo, sob água. Performance realizada em Guimarães, Portugal.


Setembro de 2014. Fotografia de Paulo da Mata

A exposição Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita, ocorrida durante o mês


de setembro de 2014 no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, como o
próprio nome sugere e como o texto curatorial sublinha, possibilita que uma
conjuntura superabundante de inscrições diferenciadas sejam concretizadas
através de diversos meios: pelo próprio lápis ou caneta a deslizar sobre o papel,
ou ainda, pelas formas menos convencionais como os singelos riscos de sangue
impressos sobre papéis, linhas de náilon transpassadas pelo corpo da artista,
pela volumosa quantidade de tinta marcada em várias partes da sua pele, como
tatuagem, ou pelos sinais criados por body brandings e escarificações.
Exceto os vídeos (alguns projetados e outros em televisores) e os objetos

performatus.net 1

oriundos da performance Coleção (2014), a apresentação dos trabalhos alude a


um grande livro sobre uma carteira, a um caderno aberto sobre uma enorme
mesa e, então, a exposição foge à literalidade do formato incorrupto de exibir
fotografias e trabalhos bidimensionais em molduras sobre as paredes,
recorrendo ao uso de alguns expositores que toavam balcões, mas com proteção
de acrílico em todos eles a dar o caráter expositivo. Para ver cada um dos itens,
não olhávamos os trabalhos com queixos retos; éramos obrigados a abaixá-los
e, portanto, concluímos que a curadoria conseguiu remeter o(a) espectador(a)
justamente para o lugar da leitura, assertivamente para que acessássemos toda
a escrita ali exposta.

Plano geral da exposição Priscilla Davanzo: Lugares da Escrita.


Fotografias de eRevista Performatus

performatus.net 2

A leitura, sem lógica oriental ou ocidental, poderia ser iniciada por uma
sequência de vídeos a partir da esquerda, ou a partir de obras tangíveis à direita,
sendo que todas as obras convergiriam para a peça chave da exposição: o
registro da performance Coleção (2014), que é apresentada sob forma de vídeo
em três projetores no espaço expositivo e em três tamanhos e tempos distintos
para que o público possa perceber o começo, o meio e o fim da ação de uma só
vez e de variadas formas. Essa opção dispositiva enfatiza as escritas e leituras
distintas de um mesmo trabalho e traz à tona uma outra possibilidade de
iniciarmos uma leitura, recorrendo a uma solução literária comum em clássicos
como Eneida, de Virgílio ou Ilíada, de Homero, que é conhecida por In media res.
De Coleção rumo às duas possíveis entradas do(a) observador(a) no
espaço, temos as obras: D.N.A. – Reimpressões (2005), sendo um vídeo de Fábia
Fuzeti; o videodocumentário Geotomia (2000), de Marcelo Garcia; Cabelódromo
(2011), vídeo realizado em colaboração com Grasiele Sousa; a série de
somatogravura intitulada projeto D.N.A. (2002); algumas fotografias da ação
pour être plus belle et efficiente – pour être plus beau et efficient (2005); além
dos trabalhos inéditos de fotoperformance como Colaboração #1 e #3 – Ações
de Patylene & Paulette (2014); about the body (2014); e sem título (2014), que
foram realizados em parceria com outras(os) artistas.
Naturalmente, por se tratar de uma artista de body art com ênfase em
estratégias que submetem o corpo à dor, aflição, agonia ou o que quer que o tire
da zona de conforto, imediatamente pensamos em situações datadas como as
manifestações radicais dos acionistas vienenses, de Gina Pane, de Chris Burden,
entre outras(os). Mas a atualidade do trabalho de Priscilla Davanzo se dá à
medida que ela não está testando seus limites físicos ou psíquicos como fazia
grande parte desses(as) artistas aqui elencados(as) como representativos de um
período anterior ao nosso.
Talvez nem a própria Orlan seja um referencial mais próximo do trabalho
de Davanzo, até porque a artista francesa promovia a negação da dor através da
“arte carnal”, ao fazer ode ao uso da morfina e também à condenação da dor
como forma de autopenitência. Já a artista Priscilla Davanzo não aborda a dor no
seu trabalho, apesar de se furar com agulhas para fazer suturas e atravessar em

performatus.net 3

si uma série de objetos, por exemplo, na sua performance Coleção (2014).


Nesse caso, como em tantos outros, a dor pode ser mais uma vez
irrelevante, embora não pareça, pois o cerne da discussão é o corpo como
ambiente para a sua escrita; é o corpo como suporte tal qual a tela pode ser
suporte para a pintura e tal qual a folha do caderno é suporte para o lápis ou
caneta. Trata-se sempre (ou quase sempre) de alguma técnica sobre um
sustentáculo que é o próprio corpo da artista, e isso fica bem claro no seu
trabalho conceitual as vacas comem duas vezes a mesma comida, o qual foi
iniciado em 2000 e pôde ser visto intermediado através de diversas fotografias
miniaturas, do vídeo Geotomia (2000), ou ainda e mais apropriadamente, ao
vivo, durante uma das três apresentações que a artista fez em três sábados
consecutivos do mês de setembro.

Priscilla Davanzo, a efemeridade da existência e a permanência da moeda.


Performance realizada em Guimarães, Portugal. Setembro de 2014.
Fotografia de Maria Luis Neiva.

performatus.net 4

Na primeira performance apresentada dentro deste evento, a


efemeridade da existência e a permanência da moeda, a primeira ação de
Priscilla foi esvaziar um saco de água com alguns minúsculos peixes, fazendo
com que todos morressem sem oxigênio e, então, depois disso, ela rasgava a
pele da sua mão com uma lâmina para nela desenhar um delicado peixinho, o
qual serviu para imprimir com sangue a imagem criada em dez gravuras que
eram vendidas pelo preço que a audiência quisesse/pudesse pagar. Enquanto
sobrasse gravura, Priscilla permaneceria ali intacta a comercializar o seu sangue,
o que não aconteceu; todas foram vendidas, afinal a existência da performer é
tão efêmera quanto a dos peixes que saltaram até a morte no saco plástico sem
água, é tão fugaz quanto a cor do sangue sobre o papel. A moeda sim determina
o fim das vidas existentes na performance e perpetua até mais que a marca
deixada em Priscilla, a qual é suavizada com o tempo até o desaparecimento.
Num segundo encontro com a artista, tivemos um bate-papo em que ela
explicava abertamente o processo criativo que estava vivendo na cidade de
Guimarães para produzir a performance do último sábado antes do fim da sua
exposição. A conversa informal incluiu um passeio pela região central da cidade
por onde passa (e por onde já não vemos passar) o rio de Couros.
No dia 20 de setembro, última atividade integrante do evento, Priscilla
mostrou a ação criada durante a residência, dando título ao seu mais novo
trabalho de sob água, que, na ocasião, foi alvo de uma primeira experiência
diante do público que presenciava a artista a costurar em si alguns sacos de
água adquiridos nos arredores do rio de Couros. Contextualizando a
performance, um vídeo com imagens de trajetos realizados nas margens do rio
era mostrado em loop.
É um trabalho amparado pela estética relacional em que a artista
dialogava com moradores(as) das proximidades desse rio para ouvir seus relatos
e ser influenciada a partir deles e, assim, a solução originada da experiência foi
entregar pequenos sacos de plástico transparentes para pedir que essas pessoas
todas lhe dessem um pouco de água e, então, após conseguir alguma quantia,
ela tentou conectar, da forma mais intensa, tudo o que ela adquiriu, formando
assim um corpo híbrido, conectando histórias, aludindo às águas que correm

performatus.net 5

pelo rio e aos próprios objetos que também foram obtidos em lojas da região.
A sua configuração final, com sacos pendurados na região do peito,
assemelhava-se à deusa Diana Efesina, porém mais precisamente a uma fonte
do século XVI existente nas proximidades de Roma, em Villa d’Este, onde essa
figura feminina é representada com diversos seios dos quais saem jorros de
água.
Coincidentemente, a possível imagem ali construída dessa deusa da
fertilidade, com seus vários seios fartos, vem confirmar o código extremamente
feminino da palavra “livmoder” (“útero” em sueco) tatuada no colo de Priscilla
Davanzo.

Priscilla Davanzo, sob água. Performance realizada em Guimarães, Portugal.


Setembro de 2014. Fotografias de Tales Frey

A narrativa apresentada em seu conjunto não conduz nosso olhar para o


óbvio sobre as possíveis elucidações geradas a partir do suporte do corpo,
fugindo de uma tautologia já codificada a respeito da body art, dilatando para o
campo da imagem o discurso escrito. A curadoria de Paulo da Mata e de Tales
Frey expõe com maestria a transposição das representações visuais – ora
documentais ora já finalizadas como objetos de arte – para o que poderíamos
ver também como uma espécie de caligrafia. Há, nesse sentido, a fusão da
palavra e da imagem sem que uma exerça posição de poder sobre a outra: não

performatus.net 6

há espaço para nenhum tipo de hierarquia e, dessa forma, a artista e os


curadores caminham sob a mesma lógica, que é absolutamente igualitária e
extremamente poderosa.

PARA CITAR ESTE TEXTO


FREY, Tales. “Corpo-Suporte Variável para Constantes Processos Discursivos”.
eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014. ISSN: 2316-8102.

Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy


© 2014 eRevista Performatus e a autora

performatus.net 7

Você também pode gostar