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Acima Edição de 22 de dezembro de 1941 do

In Fact, um dos mais importantes veículos de


mídia independente dos EUA. O lema do jornal:
"um hebdomadário de 4 páginas com notícias
que os demais jornais jamais imprimiriam."
George Seldes
"Conte a verdade e saia correndo"
George Seldes na era das fake news
por Felipe Vale da Silva

Os mesmos que arrancam os olhos do povo o


repreendem por sua cegueira.

— John Milton em 1642

J á é uma notícia velha, mas não custa lembrar: o grande jorna-


lismo passa por uma crise. Ao menos a crença do público nas
grandes plataformas jornalísticas vem sendo balançada há alguns
anos em função da relação promíscua entre a mídia e os interesses
privados. O que deve e entrará no lugar dessas plataformas, porém,
é uma questão que deveria nos causar ansiedade. Há algo em nossa
compreensão coletiva do que é uma democracia que pressupõe
um jornalismo sóbrio e objetivo como atividade intrínseca ao
funcionamento adequado da sociedade civil. Uma população bem
servida de informações sobre o que acontece é uma população
capaz de votar em prol de seus melhores interesses, e, suposta-
mente, imune aos delírios de demagogos e aos enganadores.

Foi nisso que George Seldes acreditava quando pisou pela


primeira vez em uma redação de jornal em Pittsburgh/PA, no
ano de 1909. O jovem, que acabara de ingressar na maioridade,
mal sabia que ingressava também no escorregadio mercado da
informação. Nos primeiros dias de trabalho entrou em contato
com uma pauta que mudou sua vida.

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Posfácio

Diz-se que o filho de um magnata local sofria da ilusão de


que as empregadas na loja de departamentos do pai eram, por
extensão, propriedade sua: era comum vê-lo flertar com as jovens
caixas e atendentes, prometer-lhes aumentos salariais e promoções
na empresa do pai em troca de favores sexuais. A sociedade de
Pittsburgh, na recatada década de 1900, assistia o espetáculo sem
ousar questionar a moral da família, dona de grande parte do
comércio da região. Então, uma certa garota ousou denunciar o
rapaz; sua acusação era de tentativa de estupro e, como era de se
esperar naquele contexto, a polícia não fez muito a seu favor. A
moça terminou sem emprego, sem a devida retaliação e com a
imagem social manchada na cidade. George Seldes, então, resolveu
visitá-la e ouvir sua versão do ocorrido. Escreveu uma matéria
contendo detalhes do caso e exigindo participação mais ativa da
sociedade contra aquela injustiça. O editor-chefe do Pittsburg
Leader leu aquele artigo de estreia com atenção e enviou uma
cópia para o pai do suposto estuprador. Para que os desvios do
filho não fossem revelados, o magnata que pagava por duas páginas
do jornal para publicidade de suas lojas agora teria de pagar por
quatro páginas; esta era a condição para evitar que o escândalo
viesse ao público. Uma vez que o homem aceitou os termos, o
primeiríssimo artigo Seldes foi arquivado e relegado às traças.
Esta foi a primeira lição sobre como o jornalismo de Pittsburgh
funcionava.1 Em pouco tempo de experiência em redações de
jornal ainda maiores e mais significativas — sobretudo no Chicago
Tribune —, foi-lhe possível identificar o caso singelo como um
exemplo de como o jornalismo estadunidense funcionava então:
o interesse financeiro sobrepunha a busca pela verdade.

Em contrapartida, Seldes se profissionalizou em uma época


fértil da reportagem independente. Aqueles meados de 1900 foram
a época de ouro do chamado jornalismo muckraking, o primeiro
jornalismo engajado munido de técnicas de investigação e apu-
ração de dados avançadas, em grande medida utilizadas até hoje.
Muckrakers, em inglês, significa algo próximo de ‘cavoucadores de
lixo’; o termo foi conferido pelo então presidente Ted Roosevelt
1  O caso é relatado com detalhes no documentário Tell the Truth and Run:
George Seldes and the American Press, de Rick Goldsmith (1996).

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George Seldes
para designar os profissionais que denunciavam o que havia de
pior na sociedade: casos de corrupção política, exploração laboral
e demais abusos de personagens e instituições da época.

Há muito do impulso desvendador dos escritores realistas


no trabalho e estilo de escrita dessa geração: um muckraker não
se contentava em mensurar as interpretações dos acontecimentos
distanciadamente, mas participava dos eventos como um agente
direto. A jovem jornalista Elizabeth Cochrane, por exemplo, sob o
nom de plume Nellie Bly, fingiu ser insana para ser admitida em um
hospício feminino do qual ouvira coisas terríveis; só então poderia
escrever um relato rigoroso. Nellie Bly o fez com apenas 22 anos de
idade, e a experiência de dez dias no hospício da Blackwell’s Island,
em Nova York, rendeu-lhe Ten days in a madhouse (1887), iniciando
um processo de reforma manicomial no estado e garantindo sua
fama vitalícia.

Outra grande influência para George Seldes, Upton Sin-


clair, trocou a mesa na redação do jornal por um posto em um
matadouro de Chicago e assim revelar, com exatidão, as terríveis
condições de trabalho e higiene da indústria de carne local. Após 7
meses cortando carne e mais uns tantos para organizar o material
levantado, lançou The Jungle (1906), um dos grandes sucessos
editoriais da época. Interessado inicialmente em “atingir o coração
do seu público” e conscientizá-lo das terríveis condições de trabalho
nos matadouros, Sinclair declarou, “por acidente, atingiu seu estô-
mago”: protestos e boicotes em massa das principais distribuidoras
de carnes e embutidos levaram à criação do Meat Inspection Act
e o primeiro órgão de fiscalização da qualidade de alimentos no
país. Sobre condições de trabalhadores migrantes, pouco se falou.

Esses são dois exemplos de diversos, e ilustram as novas práticas


profissionais dessa época singularmente heroica do jornalismo. Os
muckrakers renovaram a função do repórter dentro da sociedade
civil, tudo com base na crença liberal de que uma sociedade bem
informada é capaz de decidir seus próprios rumos e resolver suas
crises. “Com os fatos apresentados de forma justa e honesta, a
verdade tomará conta de si mesma”, diz o mote atribuído ao

131
Posfácio

presidente Abraham Lincoln. Esta, aliás, foi a citação favorita de


George Seldes até meados da Primeira Guerra Mundial.

Primeira cobertura internacional e o caso Hindenburg


Algo aconteceu na cobertura da Grande Guerra, porém,
que balançou a crença em uma comunidade autorregulada pela
imprensa e órgãos de comunicação pública. O exército criou as
chamadas American Expeditionary Forces para cobrir o que viriam
a ser os eventos derradeiros da guerra, que já se aproximava de
seu final. Seldes, um anônimo de 24 anos, foi surpreendido por
um posto junto a membros do alto escalão do exército, com os
quais jantava e por quem sempre era acompanhado. Mais tarde
descobriu que qualquer jornalista na folha de pagamento das
forças expedicionárias receberia o mesmo tratamento por uma
razão singular: o exército queria ter certeza de que publicariam
exclusivamente a sua versão dos fatos. Fotos e cartazes produzidos
na guerra traziam soldados americanos com rostos sorridentes, com
bons ares e ávidos para esmagar os inimigos — pouco da miséria da
guerra e perdas humanas foi ou pôde ser relatado pelos jornalistas.
Muito do que foi escrito por correspondentes internacionais foi
censurado ou editado pelo serviço de inteligência de forma a
retratar os adversários como bárbaros destituídos de humanidade.
“Era preciso manter a moral dos combatentes no campo de batalha
e em casa”, diziam.

Seldes viveu aquilo que considerou a maior aventura de sua


vida nesta ocasião. No dia do armistício entre forças alemãs e
estadunidenses, juntou-se com outros três jornalistas e cruzou
o cordão de isolamento que separava os exércitos — os quatro
imaginaram gozar de imunidade por serem repórteres, e quiseram
se aproveitar aquele evento importantíssimo para retirar relatos
de algum oficial alemão. Não só conseguiram acesso a um oficial,
mas ao maior de todos: Paul von Hindenburg, chefe máximo do
exército, que quinze anos mais tarde seria eleito junto a Adolf
Hitler pela plataforma nazista. “O bloqueio britânico e a eficácia

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George Seldes
da guerra de infantaria dos americanos foram responsáveis pela
derrota alemã” — Seldes diz ter ouvido isso da boca do militar.
Ao voltar para o acampamento aliado com a maior entrevista de
sua vida, foi ameaçado de morte por fuzilamento pelos generais
franceses: os jovens jornalistas quebraram o armistício, cruzando
uma fronteira proibida e cometendo um crime que poderia com-
prometer o acordo de paz. Todo o material coletado na entrevista
histórica foi confiscado e, por pouco, os quatro não voltam para
casa. Aqui, há muito campo para especulação: até sua morte,
Seldes sustentou que os antigos jornalistas presentes no campo
dos aliados (inclusive homens do New York Times) criaram pressão
suficiente entre os grandes escalões do exército para que aqueles
quatro desconhecidos não publicassem a maior matéria do dia.

Daí veio a afirmação (algo inocente, admitamos) de que a


notícia teria poupado o mundo de Hitler caso fosse publicada
enquanto era novidade. Ela ao menos teria adiado sua ascensão: o
próprio Hindenburg se elegeu com Hitler em 1933 suportando o
delírio da Dolchstoßlegende: segundo essa lenda, a Primeira Guerra
Mundial não havia sido perdida pela superioridade tática e militar
dos britânicos e estadunidenses. Havia, sim, sido perdida por
conta de uma traição mancomunada por judeus, comunistas e
social-democratas. Esses elementos supostamente antipatrióticos
da sociedade alemã haveriam boicotado a vitória garantida da raça
ariana, levando-a à capitulação em 1918. Aí, a entrevista conferida
por um Paul von Hindenburg deprimido, sem Hitler ao seu lado,
teria sido capaz de alterar os desdobramentos da História. Isso não
ocorreu por pressão das forças armadas americanas e da grande
mídia corporativa, que já tinham uma versão pronta dos fatos. Era
tarde demais para alterar a pauta. A prensa dos jornais em Nova
York já estava pronta para rodar.

Aqui temos a segunda grande decepção de Seldes, que mais


uma vez lhe ensinou uma lição importantíssima: os furos e ocul-
tamentos da mídia têm um porquê de existir; até mesmo o que
foi escondido ou relegado às últimas páginas de um jornal diz
muito a respeito dos interesses pontuais de seus editores. O ato
de dar destaque a uma notícia é, por si só, um gesto carregado

133
Posfácio

de ideologia. Desse momento em diante, Seldes inaugura uma


modalidade de análise crítica da mídia da qual Noam Chomsky
e Edward S. Herman são os herdeiros mais célebres (vide o livro
Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media,
de 1988). Ao chegar em casa, um Seldes convencido da crise da
verdade no discurso midiático reabriu uma antiga edição do jornal
local de Pittsburgh onde se reportava a Revolução Russa na página
3. Na cabeça do editor-chefe, um incêndio local pareceu mais
relevante para a História mundial e, por isso, ganhou o lugar de
destaque na primeira página.

1929 e a crise do jornalismo independente


Se o crash da Bolsa de Nova York de 1929 não foi a primeira
crise do capitalismo, foi sentida como a mais impactante. Ele foi
um crash em um sistema de crenças segundo o qual “a ditadura
dos homens de negócios era tomada como parte da eterna ordem
das coisas”, na formulação de Schattsschneider.2 O regime dos
investidores financeiros em si parecia tão estável que a questão
acerca dos interesses comunitários da gente pequena foi suprimi-
da, tudo em prol da manutenção da ideia de que grandes passos
deviam ser tomados pelas grandes nações. A marcha da História,
afinal, exigia certos sacrifícios. A revelação do ilogismo por trás da
especulação financeira fez cair por terra a credibilidade da classe
empresarial e, com ela, das corporações que já controlavam cada
um dos aspectos da vida do americano médio (e ainda o fazem).

A queda dos preços de víveres desmantelou as economias


domésticas na zona rural dos EUA, gerando movimentos mi-
gratórios em massa para qualquer lugar onde houvesse emprego
para a população simples. Acionistas menores perderam tudo o
que tinham; jornalistas, também, não saíram ilesos do processo.
Para sermos mais exatos, a Depressão econômica que se instalou
aí causou uma crise no jornalismo mundial da qual não nos
2  The Semisovereign People. Capítulo 2: “The scope and bias of the pressure
system”. Stamford: Cengage Learning, 1975, p. 21.

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George Seldes
recuperamos até hoje.3 Muito da mídia independente, da mídia
local e dos veículos de comunicação ligados a sindicatos foram à
falência; se o crescimento de uma cultura popular de massa vinha
se formando desde os muckrakers, sempre localmente e voltado
a pequenas comunidades, 1929 foi o momento em que a mídia
corporativa teve terreno livre para expandir sua influência. Com a
plataforma de distribuição avançada e a necessidade de sobreviver à
recessão, além do aperfeiçoamento de tecnologias de radiodifusão,
logo surge espaço para comentadores públicos e ideólogos, algo
que ajudou a derrubar as barreiras entre a notícia e o comentário.

Com isso inicia o declínio de uma modalidade educadora


e reformista do jornal para dar espaço ao jornalismo comercial.
Não o apoio local da comunidade e a venda das tiragens, mas
a publicidade se tornou a fonte número 1 de renda da grande
imprensa. Isso alterou irreversivelmente a qualidade e tom das
notícias. Quem pagava por publicidade terminava por regular de
perto o que era dito sobre suas práticas profissionais — o impacto
ecológico de suas atividades, a forma como tratam ou destratavam
seus funcionários, envolvimentos em escândalos etc. Essa não foi
uma opinião exclusiva de Seldes; teóricos posteriores do jornalismo
fazem os mesmos juízos e elegem meados de 1930 como ponto
de virada da sua área: Edwin Emery (1972) afirma que a mídia,
como instituição, nunca foi tão atacada e controlada como foi
nos anos 1930; Linda Lumsden (2002) estuda como “editores
de jornais vivenciavam uma condenação quase generalizada [de
serem] capitalistas sovinas e hipócritas”. 4 Seldes foi mais longe
mostrando que esse quase sempre era o caso.
3  No período anterior, a circulação conjunta de publicações independentes
atingiu um número de 15 milhões de exemplares mensais, superando o
número de lares atingidos pelas revistas de grande tiragem Times, Life,
Reader’s Digest, Colliers e o jornal Saturday Evening Post. Longham (op. cit., p.
82) relata como, então, ainda existia uma competição entre as duas esferas
da imprensa.
4  Ver Edwin Emery (The Press and America: An Interpretative History of
Journalism. Englewood Cliffs: Prentice-Hall Inc., 1972, p. 712) e Linda J.
Lumsden (Press Criticism. In American Journalism: History, Principles and
Practices. Jefferson: McFarland, 2002, p. 58). Para uma revisão mais ampla da
literatura, ver o volume recente de Helen Fordham (George Seldes’War for the
public good.Weaponising a free press. Perth: Palgrave Pivot, 2019, p. 53).

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Posfácio

Ainda era possível fazer um jornalismo socialmente signi-


ficativo como o dos muckrakers. Para tal, era preciso entender a
realidade dos anos de recessão, assim como a nova demografia do
público consumidor de notícias. Os anos 1930 foram palco de
movimentos migratórios em massa de não falantes de inglês, o
que intensificou muito divisões sociais e preconceitos já existentes.
A opinião pública — antes um termo de tons positivos, capaz de
abranger toda a classe trabalhadora — já deixava de ser sinônimo
dos interesses da classe média. A mesma classe média que antes
se deixava motivar pelas reformas dos jornalistas em prol do bem
público passou a se ver como um grupo seleto, superior em função
da rigidez de seus valores, tradições e moral.5 A própria noção das
“vozes da massa” se tornou pejorativa, sugestiva de algo irracional
e facilmente controlado por populistas. Seldes, porém, optou por
escrever para o público simples, iletrado e muitas vezes, incapaz
de dominar a língua inglesa. Eles eram o novo proletariado e o
alvo mais vulnerável do controle da grande mídia. A linguagem
própria do tabloide, repleta de exageros que Seldes de fato utiliza
em Fatos e Fascismo, é parte de uma estratégia comunicativa. Ela
é já uma forma de selecionar um público.

“O estilo de Seldes é tão sutil quanto uma casa desmoronan-


do”, A. J. Liebling afirmou em The Wayward Pressman, de 1947.
Este foi um dos fatores responsáveis por acelerar sua alienação
dos círculos do grande jornalismo. De 1929 em diante, ele nunca
mais conseguiu um emprego fixo em uma redação de jornal, a não
ser por coberturas internacionais esporádicas no Chicago Tribune,
além de seu próprio trabalho independente no In Fact e em seus
livros. Mas nem as convicções socialista-libertárias, nem o ataque
às corporações explicam o fato de o mais talentoso jornalista da
época ter virado persona non grata em sua área de atuação. A razão
real foi ter quebrado a regra de ouro do jornalismo: Seldes passou
a atacar corporações como o New York Times publicamente.

5  Siegfried Kracauer documentou o fenômeno de divisão da classe média e


as classes populares, tendo em vistas a sociedade alemã durante a República
de Weimar, em Die Angestellten. Aus dem neuesten Deutschland (Frankfurt
am Main: Frankfurter Societäts-Druckerei, 1930; tradução portuguesa: Os
empregados. Traduzido por Manuela Gomes. Lisboa: Antígona, 2015).

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George Seldes
A tarefa do jornalista ante a ascensão do fascismo
O percurso de Seldes como jornalista independente foi bri-
lhante: de 1940 a 1950, seu In Fact foi publicado como um boletim
semanal de quatro páginas, informando os desdobramentos da
política nacional e internacional.6 A metodologia de aliar o que
ocorria no estrangeiro e pesar suas repercussões em casa era, por si
só, um gesto vanguardista. Um levantamento sobre o jornalismo
de uma geração antes, em 1927, mostra que eventos estrangeiros
preenchiam meros 2,5 a 9% dos veículos de mídia estadunidenses.7
Como resultado, havia um grande despreparo por parte dos pro-
fissionais para relatar ocorridos de demais contextos com devido
embasamento, além da falta de interesse público pelo que não fosse
estritamente local; daí advém um certo paroquialismo político na
esfera pública estadunidense desde aquela época.

Seldes caracterizou a resistência de editores por retratar a


informações vindas do estrangeiro como um gesto perigoso. Algo
particularmente perigoso estava acontecendo lá fora: o fascismo se
proliferava rapidamente pela Europa e Ásia. George Seldes viveu
o acaso de conhecer Benito Mussolini (antes da carreira política)
em uma cobertura de eventos na Itália, sob contrato temporário
do Chicago Tribune. Mussolini, para sermos mais exatos, trabalhou
sob a direção de Seldes como repórter freelancer, um coletor de
entrevistas e informações esparsas que o diretor eventualmente
precisasse. Seldes foi patrão de Mussolini, em outras palavras.
Logo depois, é claro, o antigo subordinado ascendeu ao poder
pela plataforma fascista, lançando-se como um homem do povo,
sensibilizado pelos interesses da gente humilde e camponesa, para
em seguida contrariar todas suas promessas. “[...] na verdade, o
capital decolou na Itália, e os padrões de vida dos trabalhadores
foram reduzidos ao ponto mais baixo na História moderna”, Seldes
escreveu mais tarde. Este foi o caso de demais países em que o
fascismo vigorou.

6  Todas as edições estão em domínio público e disponíveis para download


no endereço: <https://archive.org/details/infactnewsletter>
7  Ver informações em Fordham, op. cit., p. 28.

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Posfácio

Aquele novo movimento de pretensões internacionais, que se


propunha como a panaceia de todos os males que a democracia não
pôde sanar, era um movimento pautado na distorção deliberada da
verdade. Uma vez que o maior inimigo do fascismo é a verdade, a
tarefa de um jornalista em uma época autoritária é revelar como
toda a retórica frondosa de nacionalismo e populismo esconde
um só fato: que o fascismo serve aos grandes proprietários de
terras (incluindo a igreja católica, no caso da Espanha e Itália),
aos donos do capital e aos militares. O fascismo tem um profundo
desprezo pelo povo e sua cultura; todo governo fascista desde
Mussolini promoveu a semiescravidão da população à qual jurou
lealdade, além de afastar outra parcela de seus cidadãos de origem
judaica, dos dissidentes, dos homossexuais, de mais uns tantos
povos colonizados, tudo mediante a enganação deliberada das
massas pauperizadas e da classe média. Ditadores têm um curioso
poder de jurar lealdade ao povo (como entidade abstrata), mas
constantemente redefinir quem de fato faz parte deste grupo.
Esta foi a tese que Seldes desenvolveu já na biografia de Benito
Mussolini, Sawdust Cesar (1935), a qual posteriormente expandiu
no presente volume, Fatos e Fascismo (1943).

Fatos e Fascismo amplifica as antigas conclusões sobre o destino


da Itália, pensando o fascismo como um fenômeno internacional,
com lobby dentro da própria política dos EUA. Durante os anos
que ligam a biografia de Mussolini e o livro em questão, George
Seldes teve a chance de documentar de perto a Guerra Civil Espa-
nhola — em que os anarquistas e republicanos foram derrotados
por Franco, sob a velha retórica de “criar um estado de exceção para
defender a nação da ameaça comunista e anticristã” —, além da
curiosa ascensão de Adolf Hitler a partir de Berlim. Hitler se aliou
ao herói de guerra Erich Ludendorff com sua retórica espalhafatosa
e ideia paranoides, tentou um golpe de Estado desastroso conhecido
como o Putsch da cervejaria de Munique, em 1923. Na ocasião,
terminou na cadeia. De lá, escreveu Mein Kampf, um volume
que mal merece o nome de um livro, contendo uma versão da
Dolchstoßlegende que já mencionamos lá atrás — a ideia de que
uma conspiração judaico-bolchevique cooperou para a derrota do
povo alemão na Guerra de 1914-1918.

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George Seldes
Seldes pôde acompanhar passo a passo da insanidade peri-
gosa em que o povo alemão afundava, a complacência da classe
média que se julgava “cansada da política”, e aceitava deixá-la nas
mãos de quem vociferasse mais alto suas promessas de redenção.
Se hoje ainda circula a teoria (absurda) de que Hitler foi um
grande estrategista, um gênio da oratória carismático, e que isso
contribuiu para a sua ascensão — até mesmo historiadores liberais
insistem nesse mito —, o texto de Fatos e Fascismo nos mostra
como ninguém nos anos 1920 sofria de tal ilusão. Hitler sempre
foi um pintor de paredes ensandecido que ninguém levava a sério
até ser posto no poder. Era evidente, mesmo antes da eclosão da
campanha imperialista do Reich que terminou na Segunda Guerra
Mundial, como os grandes capitalistas alemães arquitetaram a
imagem pública do Führer. Um deles foi Fritz Thyssen, o cabeça
do riquíssimo Truste das Indústrias de Aço da região do Reno.
Nas palavras de Seldes,

Thyssen tomou interesse por Hitler no ano do Putsch na


Cervejaria [de Munique], quando Hitler era considerado
um palhaço pistoleiro que acabaria em um hospício, não na
cadeira de chanceler. Mas Thyssen enxergou possibilidades.
Em 1927, levou seu sócio no Truste do Aço, Voegeler, para
Roma. Eles entrevistaram Mussolini e, ao voltarem, o Partido
Nazi, de repente, ficou rico e iniciou sua marcha para o
poder (capítulo 2).

O grande trunfo de Fatos e Fascismo é mostrar, documen-


talmente, como o Grande Capital e a expansão do fascismo
andaram de mãos dadas até terminar em barbárie. Toda uma
história de traições pessoais (contra o próprio Thyssen) e perse-
guições a alguns apoiadores menos expressivos do Partido Nazista,
é claro, desenrolou-se a partir de 1939 e está bem documentada
no livro. Outra questão crucial para Seldes, ademais, é como o
jornalismo internacional se portou uma vez que se viu dividido
entre compartilhar informações objetivamente e ser financiado
por corporações — algumas delas abertamente interessadas na
implantação do fascismo nas Américas. O dilema de uma jornalista
naquele contexto era evidente: havia-se de decidir entre o partido

139
Posfácio

do capital, interessado em esmagar a classe trabalhadora, ou os


interesses comunitários. Em outras palavras, enquanto os jornais
vivessem do dinheiro advindo de fontes outras que seus leitores
(dinheiro de publicidade, por exemplo), estariam rendidos aos
interesses das grandes corporações. Nos Estados Unidos da Amé-
rica, o processo já havia começado: a revista de maior circulação
no país, Reader’s Digest, publicou repetidos elogios às reformas
de Mussolini na Itália, à ordem instaurada por Franco contra
baderneiros comunistas, além de promover um jogo sujo de louvor
à personalidade de grandes líderes: artigos sobre a nova casa de
campo de Hitler, sobre as quintas restauradas pela Igreja Católica
na Espanha pós-republicana etc... Outros órgãos, detalhadamente
tratados no livro, caíram no mesmo erro — mas o ataque à base
naval de Pearl Harbor, é claro, alterou tudo. Uma vez que o aliado
central dos fascistas na Ásia, o Império japonês de Hirohito, ataca
os EUA, da noite para o dia todos os jornais se tornam críticos
veementes de tudo o que cheirasse a fascismo. A tudo, menos ao
dinheiro das grandes corporações que colocaram cada um dos
líderes de extrema-direita no poder, diga-se de passagem.8

Daí é possível entendermos o uso aparentemente leviano que


Seldes faz da palavra fascista. Ralph Nader talvez tenha resumido o
sentido da palavra na obra de seu mestre da forma mais suscinta:
“Seldes usava a palavra fascismo para refletir um estado mental
autoritário que tendia a reprimir a liberdade de expressão e dis-
sidência, além de também crer que might is right — quem tem a
força, tem o direito”.9

Apesar disso, até hoje jornalistas mais conservadores descartam


8  A historiografia liberal nunca corrigiu esse erro; nunca se esforçou muito
para acentuar a participação crucial do capitalismo industrial na eclosão da
Segunda Guerra e nos genocídios resultantes dela. Para todos efeitos, o fato
que não haver um Hitler sem um Thyssen, e mesmo graduandos de História
não saberem quem foi Fritz Thyssen, não pesa muito na ordem dos fatos: a
presença de uma elite financeira por trás de todas as ditaduras de extrema-
direita é um acidente de percurso.
9  Citado a partir de entrevista concedida para o documentário Tell the
Truth and Run: George Seldes and the American Press. Kovno Communications.
Direção de Rick Goldsmith. Junho de 2013.

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George Seldes
as contribuições de Seldes como obras de um fanático para quem
tudo e todos eram agentes de extrema-direita disfarçados. Isso
se deu, em partes, a partir da reação contra uma série de artigos
veiculados em 1942 no já mencionado semanário In Fact, onde
seu editor propôs fornecer um guia detalhado de como ler a mídia
americana. Alguns trechos não passam de provocações em tom de
piada, como no tópico em que Seldes responde à questão “Como
ler a coluna editorial?” com um simples “Don’t”. “Não a leia”. (Isso
é uma piada, embora haja algo inquietante por trás dessa dica;
colunas editoriais até hoje são meros artigos de opinião, e a opinião
pessoal de um jornalista pouco deveria importar para o público.
Muito menos guiá-lo em suas decisões políticas).

Outros trechos mais polêmicos do guia nomeavam direta-


mente os órgãos midiáticos supostamente prostituídos para o
Grande Capital — os jornais de Hearst, o New York Times e tantos
outros — acentuando o isolamento de Seldes de seu nicho. No
Times, ficou vetada qualquer menção a qualquer livro ou matéria
publicada por Seldes, com a única finalidade de vingar sua ofensa.
Isso contribuiu muito para o fato nenhum livro seu ter sido lançado
em língua portuguesa, e de ele ser, hoje, simultaneamente, um
jornalista central na história de sua área e um completo desco-
nhecido para a maioria dos brasileiros e brasileiras. Para ajudar
em sua alienação, Seldes nunca deixou de repetir a convicção de
que a mídia estadunidense se transformara de um joguete dos
interesses das elites, contra as aspirações da classe trabalhadora e
dos imigrantes. Em 1º. de novembro de 1994, o homem de 104
anos publicou seu último testamento contra a mídia, Será que a
imprensa inteira é corrupta? [Is the entire press corrupt?] na undécima
edição do Extra! 10 A crítica fala por si só, e reproduzimo-la abaixo
para apreciação de quem nos lê:

Qual é a força mais poderosa nos Estados Unidos da


América hoje?

Resposta: A opinião pública.


10  Disponível no site da FAIR: Fair & Accuracy in Reporting, < https://fair.
org/topic/extra-november-december-1994/?print=pdf-search>.

141
Posfácio

O que produz a opinião pública?

Resposta: A principal força é a imprensa.

Pode-se confiar na imprensa?

Os resultados do basebol estão sempre corretos (exceto


por um erro tipográfico vez ou outra). As tabelas da bolsa
de valores estão corretas (dentro das mesmas limitações).
Mas quando a questão são notícias que afetarão você, sua
vida cotidiana, seu emprego, sua relação com outros povos,
seu pensamento acerca de problemas econômicos e sociais,
além de, mais importante hoje em dia, se você irá para a
guerra e arriscará sua vida por um grande ideal, aí você
não pode confiar em cerca de 98% (ou talvez 99% e meio)
da grande imprensa jornalística e grandes revistas dos
Estados Unidos.

Mas por que não se pode confiar na imprensa?

Pois ela se tornou um grande negócio. A imprensa da cidade


grande e as grandes revistas se tornaram comercializáveis,
ou organizações do grande capital, administradas a partir
da única motivação de gerar lucros para seu proprietário
ou acionista (embora, hipocritamente, ela ainda sustente a
boa e velha tradição americana de guia e ilustrar o povo).
A grande imprensa não pode existir um só dia sem publi-
cidade. Publicidade significa dinheiro do grande capital.11

Essa, como sabemos, foi uma convicção formada já na época


de Fatos e Fascismo, que trazemos pela primeira vez para o português
após mais de meio século.

Este livro é importante não unicamente pela candura de seu


estilo de reportagem. Também não deveria ser lido como a obra
de um muckraker que se tornou importante por fazer parte da
11  Tradução a partir da reprodução em linha do artigo no endereço
< https://fair.org/extra/is-the-entire-press-corrupt/>.Acesso: 10/12/2019.

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George Seldes
formação de outras críticos brilhantes da opinião pública como
I. F. Stone, Noam Chomsky, Michael Moore, Edward Snowden e
Glenn Greenwald. Aprender com Seldes é, também, uma urgência
na era das fake news, em que o pendor à distorção da antiga mídia
comercial chega ao ponto de descolar a opinião pública da realidade
com tal eficácia que produz um regime onde mentiras óbvias
operam como verdades. Elas operam como se fossem verdades,
alterando atitudes de massas que encaram a objetividade do mundo
como um jogo retórico.

Como em 1940, vivemos a era da enganação arquitetada


por think tanks, onde a desinformação volta a ameaçar o processo
democrático de nações soberanas. Como em 1940, o fascismo volta
a ser um perigo, e a função de qualquer comunicador razoável
é indicar seus agentes e persegui-los sistematicamente. Segundo
Seldes, é fácil identificá-los: em nome de interesses especiais, res-
tritos a um círculo minúsculo de gente endinheirada e sedenta de
poder, fascistas invariavelmente perseguem seus objetivos mediante
por esforço por redefinir o significado e relevância das ideias;
amplificando antigos medos e levando cidadãos desinformados
a perderem a capacidade de discernir, de fato, quem os oprime.

Se a tese de George Seldes é correta, nenhum corretivo para


tal ameaça é mais eficaz do que expor os fatos sobre o fascismo
com clareza. Nesse sentido, ainda precisamos de uma definição
clara do que seja fascismo em nosso contexto, e como operam suas
redes de desinformação. Se na época de Fatos e Fascismo, os maiores
think tanks foram a American Legion e a Liberty League, hoje
são os grupelhos do Identity Evropa (a versão supremacista),
da Alt-right (a versão teen), o Extinction Rebellion (a versão
malthusiana), o Instituto Mises (para a turma do sapatênis) e
toda uma legião de influenciadores com dano cerebral suficiente
para enxergarem profundidade em Ayn Rand e Olavo de Carvalho.
Há de se explicitar quem hoje equivale à NAM, aos jornais de
Hearst, ao New York Times e à Ku Klux Klan, entendendo suas
afinidades, discordâncias e métodos. Embora este se inicie como
um mero exercício especulativo, ao menos valerá à causa antifascista
como um passo adiante no diagnóstico do que está destruindo

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Posfácio

nossas democracias e a qualidade de nossa vida comunitária. O


principal a fazermos e aprendermos com Seldes é não aceitar
desinformação e difamação como a “nova normalidade”, o “novo
estágio infeliz em que as coisas chegaram”. Repetindo o que disse
Walter Benjamin em 1931, é crucial nunca abrirmos mão da
capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas aptas à derrota.12

12  Melancolia de esquerda. Sobre o novo volume de poesia de Erich


Kästner. In: Obras escolhidas. Volume 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 74.

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