Você está na página 1de 4

Sobre a Filosofia (universalismo e isonomia)

A Filosofia, onde quer que tenha acontecido, é uma prática teórica que sempre implica o
universalismo e uma demanda de isonomia.

Esse é um dos pontos fortes de alguns trabalhos recentes, e de outros não tão recentes,
que marcam a conexão interna entre a Filosofia e as práticas sociais da isonomia [1] no
mundo grego antigo. Uma das hipóteses mais potentes é a de que essas práticas, que não
se reduzem à instituição da democracia em Atenas (uma formação determinada e
contraditória que combinava as práticas políticas da isonomia com a sobrevivências dos
privilégios aristocráticos) e se ampliaram por todo universo grego nos séculos V e IV
a.C., não podem ser separadas das lutas de classes entre as comunidades camponesas e a
aristocracia escravista. Da Jônia à Atenas, elas funcionaram historicamente como uma
tentativa de recuperação da igualdade “primitiva” em uma situação histórica
hierárquica, e são inseparáveis do que os gregos chamaram lógos, um discurso que
relaciona as afirmações de maneira explicativa, um discurso que explica a si mesmo.
Como apontou Vernant, esse discurso supõe um público que julgue o seu valor, supõe
uma praça pública em que aquele que fala, fala à luz do dia, ele é um discurso que
desdobra todo o sentido implícito diante do olhar de todos e que supõe que todos os que
ouvem devam também tomar uma fala pública, com as mesmas regras (o fato de que
essa forma de discurso tenha convivido com o discurso mítico e o discurso poético, por
exemplo, não muda o fato de que essa estrutura do discurso seja específica). Em outros
termos: ele é inseparável da construção de um entendimento coletivo, inseparável de um
governo coletivo dos assuntos da cidade. É isso o que foi chamado de isonomia: não
apenas “igualdade perante a lei”, leitura muito posterior da isonomia e que a entende
como uma igualdade passiva do corpo coletivo diante de uma lei que é exterior e
superior a ele, mas igualdade na lei, igualdade de todos os membros não apenas
passivamente (a mesma lei para todos), mas igualdade ativa da diversidade dos
membros na constituição das leis, igualdade que supõe a atividade do seu discurso nesse
processo de constituição.

A Filosofia é a prática teórica conceitual. Como “prática teórica”, ela opera sobre as
visões de mundo (o conjunto de afirmações, de enunciados, que um grupo determinado
faz sobre a sua realidade, as “formas de consciência social” de que Marx fala no
Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política), e produz um efeito teórico
determinado sobre elas, ela reestrutura as visões de mundo. E a estrutura em que ela
busca reorganizar as visões de mundo é conceitual: ela ordena esse conjunto de
afirmações em uma forma sistemática, ou seja, uma forma em que os enunciados são
relacionados uns aos outros por um discurso explicativo, de maneira que cada
enunciado em um discurso esteja relacionado a todos os outros enunciados por
enunciados explicativos; Conceito é o nome dessa estrutura discursiva em que as
afirmações são ligadas umas às outras por enunciados explicativos (Chatêlet), formando
um encadeamento lógico de argumentos. Vemos que o Conceito encontra a sua forma
no lógos, nesse discurso público que busca dar as suas razões diante do conjunto dos
cidadãos, e que o essencial no discurso conceitual é a construção de uma consistência
lógica interior ao discurso, consistência que vem da própria ligação explicativa dos
enunciados, do seu desenvolvimento argumentativo.

A consistência lógica do discurso filosófico tem uma relação interna com a forma da lei
na isonomia: não apenas o discurso filosófico supõe um público passivo capaz de
acompanhar a sua argumentação e que possa julgar sua consistência, como ele supõe
que esse público ativo possa reconstituir o processo lógico pelo qual ele se constrói. Daí
a relação da Filosofia com o universalismo, entendido como a hipótese de que um
discurso possa fazer sentido para todos os que participam dele, a hipótese de que certos
enunciados podem ter um sentido comum a todos. É essa a razão das relações tensas
entre a tentativa do discurso filosófico de construir o universal e a particularidade da
opinião, entendida como uma crença não justificada, um “eu acho que” ou um
sentimento que não precisa oferecer suas razões publicamente: o Conceito exige a
constituição de um entendimento comum, enquanto para a opinião se limita a uma
impressão privada (o que, vale lembrar, não é sempre e necessariamente negativo). A
Filosofia é um construtivismo conceitual, uma atividade de produção do entendimento
comum que opera com uma forma discursiva dialógica (posto que o lógos é sempre
coletivo).

O que, ainda mais na situação atual, não pode deixar de nos colocar a questão do sentido
político do universalismo. Se o universalismo é a hipótese da realidade de um sentido
comum a todos, de que é possível um discurso compreensível e enunciável por todos os
indivíduos, vemos que o seu problema central é o da “unificação” do discurso em uma
formação social, da produção de um discurso consistente que torne compatíveis,
conectados, os discursos diversos de uma formação social. Reencontramos o primeiro
grande problema teórico da Filosofia e suas coordenadas históricas gregas: como pode o
Uno se relacionar com o Múltiplo, como a unidade da cidade pode coexistir com a
diversidade dos cidadãos (Vernant)? A história das práticas da Filosofia nos mostra
duas formas (e apenas duas)de operar a unificação conceitual do discurso. A primeira (e
é sintomático que ela seja historicamente a inicial, a primitiva, a que encontramos nos
filósofos jônicos) é a instituição da unidade pela diversidade, do Uno pelo Múltiplo: se
é possível uma visão de mundo conceitual, consistente e lógica, se é possível um
sentido comum, é porque a unidade dos enunciados se compõe a partir de sua
diversidade. É a partir de seu confronto, de sua luta, que a diversidade dos enunciados
singulares pode ser superada na composição de uma unidade conceitual, procedimento
que recupera, logo se vê, os métodos da isonomia. A segunda (e é também sintomático
que ela seja historicamente posterior) é a ordenação da diversidade pela unidade, do
Múltiplo pelo Uno: se é possível uma visão de mundo conceitual, consistente e lógica,
se é possível um sentido comum, é porque a diversidade dos enunciados deve ser
organizada por uma unidade ideal. Aqui, o entendimento comum é pressuposto como
regra ou modelo do qual se parte e de acordo com o qual os discursos devem ser
ordenados. Se o primeiro procedimento é análogo à estrutura discursiva da isonomia,
não é sem razão que já se disse que o segundo procedimento encontra sua analogia na
estrutura do Estado, como unidade exterior e superior ao conjunto dos discursos em
uma formação social que tem a função de unificá-los (Althusser).

A relação entre as duas formas de unificação do discurso não é sempre a de uma


oposição simples. E, na verdade, em raros momentos ela o é — o caso exemplar de uma
das filosofias mais paradoxais e geniais, o platonismo, Filosofia dialógica que encontra
seu tema central no problema da Justiça, mas que opera simultaneamente com os
procedimentos de uma unificação do discurso de tipo estatal ou hierárquico, e isso na
exata medida em que toda filosofia é enunciada, historicamente, em uma sociedade de
classes e mobiliza formas discursivas e demandas contraditórias de uma sociedade de
classes, opondo sempre em seu próprio interior procedimentos discursivos isonômicos e
procedimentos discursivos estatais. Mas acreditamos que seja possível dizer que o
primeiro procedimento de unificação, isonômico, é o único procedimento rigorosamente
filosófico, já que o segundo procedimento tende sempre a subordinar o discurso a uma
instância de unificação externa: uma intuição inefável, acima da inteligibilidade
discursiva, o saber divino, a fé originária, como mostram todas as disputas entre fé e
razão no período medieval, as expressões sobre a “filosofia como serva da teologia”,
etc. (Deleuze).

A Filosofia não é, aliás, a única prática discursiva universalista: as formações religiosas


do profetismo cristão, do budismo ou do confucionismo são igualmente universalistas,
mas se desenvolveram a cada caso com procedimentos discursivos distintos dos da
Filosofia (Karatani). Por outro lado, a Filosofia é a única a se definir como prática
teórica conceitual, como uma prática teórica constituída por estruturas discursivas
específicas . E, se se prefere dar o nome de Filosofia a toda prática teórica ou ao
pensamento em geral, a uma “reflexão sobre o mundo”, a um “questionamento”
genérico — o que é dar muito à Filosofia, fazendo com que esteja em todo e em nenhum
lugar, e muito pouco ao pensamento, que não precisa da Filosofia para agir e resolver
problemas onde quer que seja — isso muda em nada a existência de uma prática de
pensamento específica, de estrutura conceitual e que é análoga à estrutura discursiva da
isonomia (Deleuze). Definimos provisoriamente o Pensamento (ou pelo menos no uso
específico que fazemos desse termo, que não é o de uma atividade cognitiva em geral
que envolva a percepção, a memória, o juízo, etc.) como a atividade cognitiva da
resolução de problemas, da reorganização geral de uma visão de mundo diante de um
impasse (processo que havíamos chamado de “prática teórica”). A Filosofia não é a
única forma de Pensamento, e nem pode ser tomada como a “melhor” ou a mais
ampla. Ela simplesmente pensa usando procedimentos e estruturas discursivas
específicas, produzindo portanto efeitos teóricos específicos.

É por isso que, hoje, os inimigos da Filosofia são os defensores de uma “filosofia
perene”, guardiã dos “valores ocidentais” e da “racionalidade clássica” (que esses
inimigos, em geral, sejam papagaios de inimigos ainda mais toscos e violentos, os
defensores dos “fatos alternativos”, da “educação sem partido” e da recusa da
racionalidade só torna a situação ainda mais desesperadora). Toda perspectiva
eurocêntrica sobre a Filosofia deve ser recusada, exatamente porque se trata de uma
estratégia discursiva de unificação estatal ou colonial. Razões históricas: a situação
histórica específica em surgiram as práticas sociais da isonomia e, em conexão com
elas, a prática teórica da Filosofia, a situação das colônias gregas na costa da Turquia
oriental no século VI a.C. e as da Grécia no século V a.C., participa de um contexto
econômico, político e cultural (e mesmo de um bloco étnico) que são os do “Antigo
Oriente Próximo”, região em que a Filosofia circulou intensamente como forma cultural
durante séculos antes do desenvolvimento de sociedades urbanas complexas no
continente europeu. Razões teóricas: não sendo uma forma de Pensamento universal,
não é possível hierarquizar por princípio a Filosofia e outras formas de pensamento,
ainda que seja possível remeter cada uma aos problemas e às estruturas discursivas
específicas pelas quais tentam resolvê-los. Se tomamos o Mito, por exemplo,
descobrimos com ele estruturas discursivas extremamente complexas, práticas de
produção de sentido ricas que não deixam de produzir novas operações— C. Lévi-
Strauss, em O pensamento selvagem, e J.-P. Vernant, em As origens do pensamento
grego, nos mostram como o Mito opera um grande sistema de classificação
cosmológico e o faz no processo da composição de uma narrativa sobre a gênese da
ordem atual das coisas, constituindo uma forma de Pensamento que, longe de ser
“infantil” ou “primitiva”, não cessa de produzir efeitos discursivos específicos (as
práticas teóricas de Ailton Krenak ou de Davi Kopenawa nos mostram a riqueza do
Mito, da mesma maneira que suas estruturas discursivas continuam a operar na prática
clínica da psicanálise). A Filosofia não é uma chave que abre todas as portas, uma
estratégia teórica para resolver todos os problemas. Ela não é a única forma possível de
Pensamento, nem é uma forma de Pensamento universal, ainda que seja uma forma de
Pensamento universalista. A “função” da Filosofia, dos efeitos discursivos que produz,
é a unificação discursiva dos discursos em uma formação social (atenção, já que trata
da caracterização dos efeitos discursivos da Filosofia, e não de suas estruturas) .
“Unificação discursiva dos discursos” porque é sempre possível haver outras formas de
unificação, a censura, a construção da “opinião pública” pelas mídias de massas, formas
de unificação dos discursos que não são, elas mesmas, produzidas pelo discurso. É por
isso que a Filosofia é uma das estratégias teóricas mais importantes para enfrentar o
problema da hegemonia (Gramsci).

Você também pode gostar