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Pela permanência

das cotas raciais nas


universidades brasileiras

Exmo. Ministro Ricardo Lewandows-


ki, Exmo. Ministro Joaquim Barbosa,
como todos que me antecederam res‑
salto, inicialmente, a importância de
sua iniciativa de convocação desta au‑
diência pública, que está permitindo
que a pluralidade de vozes que se po‑
sicionam sobre as cotas para negros
no ensino superior possa ser ouvida
Apresentação de Sueli
Carneiro na Audiência por esta Corte e pelo conjunto da so‑
Pública convocada pelo ciedade. Sabemos perfeitamente que
ministro do STF Ricardo
Lewandowski sobre a essa multiplicidade de atores não está
constitucionalidade das democraticamente presente no deba‑
cotas para negros no ensino
superior em 5 de março
te público sobre o tema, o que torna
de 2010. sua iniciativa ainda mais relevante.
ESCRITOS DE UMA VIDA

Quero começar lembrando o Seminário Internacional “Mul‑


ticulturalismo e Racismo: O papel da ação afirmativa nos Esta‑
dos democráticos contemporâneos”, realizado pelo Ministério
da Justiça em julho de 1996. Naquela oportunidade, o então
vice­‑presidente Marco Maciel postulou que a realização daque‑
le seminário era um indicativo de que o

Estado brasileiro estaria finalmente engajado em um aspecto que


diz respeito às suas responsabilidades históricas, em relação às
quais sucessivas gerações da elite política brasileira sempre de‑
monstraram um inconcebível alheamento.

E afirmava o vice­‑presidente:

Creio que este é o grande legado da lição de Nabuco, cuja atualida‑


de […] assenta­‑se na visão profética de que ‘a escravidão permane‑
cerá por muito tempo como característica nacional do Brasil’, uma
vez que a abolição não foi seguida de ‘medidas sociais complemen‑
tares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso inte‑
rior, de renovação da consciência pública’.

Assinalava também o vice­‑presidente:

É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se


inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas sobretu‑
do no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente as‑
segurada por todas as nossas Constituições aos brasileiros e aos
estrangeiros que vivem em nosso território.

Coerente com essa leitura de nosso processo histórico, foi


naquele governo que se iniciaram as primeiras medidas para a
promoção social dos negros brasileiros, medidas que se am‑
pliam no governo atual.
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Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras

Exmo. Ministro, sirvo­ ‑me das palavras do hoje senador


Marco Maciel do Partido Democrata (DEM) para situar alguns
dos desafios inscritos no debate sobre cotas para negros nas
universidades brasileiras. Porque aqueles que as condenam
satisfazem­‑se com essa noção quimérica e virtual de igualdade
a que se referiu o senador Marco Maciel.
Tal concepção, intencionalmente, omite no debate público
todo o acúmulo teórico empreendido no âmbito da ciência polí‑
tica no sentido da superação da noção abstrata de igualdade que
desconsidera a forma concreta como ela se realiza ou não na
experiência humana. Dentre vários autores, Norberto Bobbio,
por exemplo, nos mostra sob que condições é possível assegurar
a efetivação dos valores republicanos e democráticos. Para ele,
impõe­‑se a noção de igualdade substantiva, um princípio iguali‑
tário porque “elimina uma discriminação precedente”.1
Bobbio compreende a igualdade formal entre os homens
como uma exigência da razão que não tem correspondência
com a experiência histórica ou com uma dada realidade social,
o que implica que “na afirmação e no reconhecimento dos direi‑
tos políticos, não se pode deixar de levar em conta determina‑
das diferenças, que justificam um tratamento não igual. Do
mesmo modo, e com maior evidência, isso ocorre no campo dos
direitos sociais”.2
No entanto, essa exigência de reconhecimento das diferenças
assinalada por Bobbio e a necessidade de enfrentamento objetivo
dos obstáculos à plena realização do princípio da igualdade são
estigmatizados, por alguns setores no debate nacional, como ra‑
cialização das políticas públicas, por referirem­‑se a negros, sabi‑
damente exposto a processos de exclusão de base racial.
No entanto, de acordo com o senador Marco Maciel,

1 BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: 1992. 71 p.


2 Idem.

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Se o Estado e a sociedade não caminharem juntos na superação


dessa odisseia vamos transformar os dispositivos da Carta de
1988 (artigos 3º, 5º e 7º), no que respeita a discriminação, ape‑
nas em novas e melhoradas versões da Lei Afonso Arinos, […]
isto é, em postulados ideais e utópicos de escassos efeitos práti‑
cos. Prossegue o senador afirmando que “as conquistas jurídi‑
cas, por isso mesmo, tem de ser seguidas de conquistas econô‑
micas, capazes de reverter a crença de que o sucesso, a ascensão
e a afirmação dependem apenas do esforço individual na supe‑
ração do preconceito.3

Aqueles que as condenam compreendem que elas teriam o


poder de ameaçar os fundamentos políticos e jurídicos que sus‑
tentam a nação brasileira, ferir o princípio do mérito, colocar
em risco a democracia e deflagrar o conflito racial. Poderosas,
essas cotas!
Contra esses argumentos, Exmo. Ministro, o senador Marco
Maciel vem novamente em meu socorro. Segundo ele, “[…] me‑
didas compensatórias em favor dos negros não representam
apenas uma etapa da luta contra a discriminação, mas o fim da
era de desigualdade, da exclusão, se pretendemos uma socieda‑
de igualitária e mais justa”.4
Indo além, afirmou o vice­‑presidente que:

O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participa‑


ção política – vale dizer, o fim da discriminação – terá de ser ci‑
mentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o
fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de em‑
prego e participação na vida pública. Nesse sentido parece­‑me que
o papel da educação será essencial.5

3 Ibidem, p. 21.
4 BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: 1992. p. 21.
5 Idem.

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Aqueles que as condenam utilizam­‑se da retórica da diversi‑


dade, da miscigenação, para negar aos negros o direito de apre‑
sentar à sociedade uma agenda de reivindicações específicas
derivada de sua peculiar experiência histórica. No entanto, e
mais uma vez recorrendo ao senador Marco Maciel, afirmo com
ele que: “A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu,
em termos sociais, senão para deleite intelectual de alguns e
para demonstração de ufanismo de muitos”.6
Por fim, aqueles que as condenam servem­‑se dos estudos
genéticos para negar a existência das racialidades historica‑
mente construídas. Nesse caso, ofereço breve descanso ao sena‑
dor Marco Maciel porque, felizmente, temos precedente anima‑
dor oferecido por esta Corte.
O caso Siegfried Ellwanger, condenado pelo crime de racis‑
mo por edição de obra antissemita, é emblemático nessa dire‑
ção. Ele ofereceu a oportunidade para que o STF debatesse e
examinasse o sentido da noção de raça.
Na ementa do acórdão dessa ação, o STF explicita que “A di‑
visão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político­‑social. Deste pressuposto origina­
‑se o racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o precon‑
ceito segregacionista”.
As diversas manifestações dos ministros nesse caso reafir‑
maram com absoluta pertinência que a racialidade não está
assentada em determinações biológicas. O excelentíssimo Mi‑
nistro Gilmar Mendes defendeu que a Constituição comparti‑
lha o sentido de que “o racismo configura conceito histórico e
cultural assente em referências supostamente raciais, incluído
aí o antissemitismo”.
Em consonância, o então ministro do STF, Nelson Jobim, re‑
cusou o argumento da defesa de Ellwanger, segundo a qual

6 Ibidem, p. 19.

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judeus seriam um povo e não raça e, portanto, não estariam ao


abrigo do crime de racismo, como disposto na Constituição. Por
sua vez, a ministra Ellen Gracie cunhou uma interpretação da
maior importância para o entendimento das relações raciais no
Brasil. Segundo o seu entendimento, “é impossível, assim me
parece, admitir­‑se a argumentação segundo a qual se não há ra‑
ças, não é possível o delito de racismo”.
Exmo. Sr. Ministro,

. se esta Corte entende que pode haver racismo mesmo não


havendo raças;
. se esta Corte também entende que o racismo está assentado
em convicções raciais, que “geram discriminação e precon‑
ceito segregacionista”;
. se todas as evidências empíricas e estudos demonstram o
confinamento dos negros nos patamares inferiores da socie‑
dade, e
. se a inferioridade social não é inerente ao ser negro posto
que raças biológicas não existem, então esta persistente su‑
bordinação social só pode ser fruto do racismo que, como
afirma a ementa do referido acórdão, repito, “gera a discri‑
minação e o preconceito segregacionista”. Isso requer, por‑
tanto, medidas específicas fundadas na racialidade segrega‑
da para romper com os atuais padrões de apartação.

Exmo. Ministro, entendemos que o que está em jogo no de‑


bate sobre as cotas são dois projetos distintos de nação. Em cada
um deles, como essa audiência tem demonstrado, encontram­‑se
negros e brancos de diferentes extrações sociais, de campos po‑
líticos e ideológicos semelhantes ou concorrentes.
O primeiro desses projetos está ancorado no passado. Sobre
esse passadismo, o psicanalista Contardo Calligaris empreende
a seguinte reflexão: “Em meus primeiros contatos com a cultura
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brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de


uma democracia racial. Não era o primeiro, como se sabe, a con‑
fundir o Brasil como um paraíso terrestre”.
E continua: “Mas essa sensação inicial não demorou muito
tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no
Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para des‑
cobrir imediatamente que minha impressão de uma paradi‑
síaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral.
Meus pacientes não eram militantes do movimento negro, e
– com uma só exceção – nem tematizavam, por assim dizer,
sua “negritude” como algo de imediatamente relevante em
suas vidas. Apesar disso, as histórias que se desdobravam para
meus ouvidos todas testemunhavam justamente um constran‑
gimento, senão um sofrimento social ancestral ligado ao ser
negro nesta sociedade.
Restava­‑me perguntar de onde surgia minha impressão –
unilateral, então – de democracia racial. Pergunta que pode
ser estendida: de onde surge, em tantos brasileiros brancos
bem­‑intencionados, a convicção de viver em uma democracia
racial? Qual é a origem desse mito? A resposta não é difícil: o
mito da democracia racial é fundado em uma sensação unila‑
teral e branca de confronto nas relações interraciais. Esse
conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de
uma posição dominante incontestada. Quando eu digo incon‑
testada, no que concerne a sociedade brasileira, quero dizer
que não é só uma posição dominante de fato – mais riqueza,
mais poder. É mais do que isso. É uma posição dominante de
fato, mas que vale como uma posição de direito, ou seja, como
efeito não da riqueza, mas de uma espécie de hierarquia de
castas. […] a desigualdade no Brasil é a expressão material de
uma organização hierárquica. Ou seja, é a continuação da es‑
cravatura. […] Corrigir a desigualdade, que é herdeira direta,
ou melhor, continuação da escravatura, no Brasil, não
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significa corrigir os restos da escravatura. Significa final‑


mente aboli­‑la”.7
Calligaris conclui que:

Sonhar com a continuação da pretensa “democracia racial brasi‑


leira’ é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou
seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de
uma posição branca dominante que o branco – e só ele – pode se
dar ao luxo de afirmar que a raça não importa.8

O segundo projeto de nação dialoga com o futuro. Os que


nele apostam acreditam que o país que foi capaz de construir a
mais bela fábula de relações raciais é capaz de transformar esse
mito numa realidade de conforto nas relações raciais para todos
e todas. Porém, isso só será possível pela ação intencional da
sociedade brasileira e especialmente de suas mais nobres insti‑
tuições. Dentre todas, a mais alta Corte do país é aquela que
pode aportar a maior contribuição a esse processo e reverter o
vaticínio proferido por Joaquim Nabuco sobre a perenidade da
escravidão como característica nacional, do que nos dá teste‑
munho atual Contardo Calligaris.
Os que vislumbram o futuro acreditam, ainda, que se as con‑
dições históricas nos conduziram a um país em que a cor da pele
ou a racialidade das pessoas tornou­‑se fator gerador de desi‑
gualdades. Essas condições não estão inscritas no DNA nacio‑
nal, pois são produto da ação ou inação de seres humanos e por
isso mesmo podem ser transformadas, intencionalmente, pela
ação dos seres humanos de hoje.

7 CALLIGARIS, Contardo. Notas sobre os desafios para o Brasil. In: Anais do Se-
minário Internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos
Estados Democráticos Contemporâneos. Brasília: Ministério da Justiça/Secretaria Na‑
cional de Direitos Humanos, 1997. p. 243­‑244.
8 Ibidem, p. 245.

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É o que esperamos desta Suprema Corte, que ela seja par‑


ceira e protagonista de um processo de aprofundamento da
democracia, da igualdade e da justiça social. E, num esforço
cívico de tamanha envergadura, as cotas para negros, mais do
que uma conquista dos movimentos negros, são parte essen‑
cial da expressão da vontade política da sociedade brasileira
para corrigir injustiças históricas e contemporâneas que per‑
mitem que talentos, capacidades, sonhos e aspirações sejam
frustrados por processos de exclusão que comprometem o
nosso processo civilizatório.
O STF pode ofertar à sociedade brasileira segurança jurídi‑
ca para a criação de um círculo virtuoso de mudanças em con‑
traposição ao círculo vicioso estabelecido pelas hierarquias ins‑
tituídas com base em raça, cor e aparência.
Desse círculo vicioso nos diz o senador Marco Maciel, “Ter‑
minamos todos escravos do preconceito, da marginalização, da
exclusão social e da discriminação que caracterizam, ainda hoje,
o dualismo social e econômico do Brasil”.
Exmo. Ministro, milhões de brasileiros e brasileiras deposi‑
tam nesta Corte as esperanças de que a sua decisão em relação
às cotas para negros nas universidades seja uma sinalização
para a sociedade forte o suficiente para tocar mentes e corações
e transformar sensibilidades que se habituaram à exclusão em
agentes ativos da construção de uma verdadeira democracia ra‑
cial. Isso é uma urgência histórica pois “não poderemos ser o
que podemos e devemos ser continuando a ser o que somos”.
Muito obrigada.

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