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KARINA FREITAS
A
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
capa deste mês é um convite a enxergar parecidas de intervenção no mundo. Isso se deve, em larga
o que está lá, mas que é ocultado pelas medida, às transformações pelas quais o racismo passou Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
disposições estruturais da sociedade. A para continuar mantendo privilégios.
colaboradora Carol Almeida traça uma O ato de narrar as questões que envolvem a si mesmos e Secretário da Casa Civil
Nilton da Mota Silveira Filho
rede de referências (de livros, entrevistas o imaginário também se presentifica na resenha de Panton
e a sua própria) para expor como questões Pia’, reunião de relatos orais de indígenas sobre a própria COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
que envolvem lesbianidade em obras assinadas por autoras vida e o mito de Makunaima, que influenciou Mário de Presidente
lésbicas são apagadas pela crítica. Trata-se daquilo que Andrade. Com isso, vê-se que o “mito” é uma forma Ricardo Leitão
a poeta Adrienne Rich chamou de “heterossexualidade original de elaborar o mundo. Nessas narrativas, vê-se Diretor de Produção e Edição
compulsória”: quando experiências que envolvem a relação profunda com a natureza, abordada em outro Ricardo Melo
sexualidades não-normativas são negligenciadas/ momento desta edição: a entrevista com o artista Pedro Diretor Administrativo e Financeiro
diminuídas em leituras. Por conta disso, muitas delas têm Motta, na qual se vê a urgência de politizarmos o ecológico. Bráulio Meneses
criado definições adequadas à própria obra, em detrimento Nesta edição, o ensaio de Edma de Góis busca
das categorias usadas pela crítica. A capa, de Karina compreender algumas estratégias narrativas de autores
Freitas, demonstra algo desse esforço: contra o monólito contemporâneos que fazem escoar para as obras uma
da heterossexualidade compulsória, estão os incêndios lógica de curadoria oriunda das artes visuais. O assunto
Uma publicação da Cepe Editora
críticos criados pelo questionamento em um contexto deixa mais rico o debate sobre as intersemioses na Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
“quente”, que colabora para a realização desses debates. literatura feita hoje. Pernambuco – CEP: 50100-140
Também é sobre enxergar o que está lá de que trata E mais: o último grande livro de Roberto Bolaño chega Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
Raquel Barreto ao falar sobre as autobiografias de ao Brasil, poemas de Zbigniew Herbert, além de várias
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
militantes negros como documentos políticos. Parte da resenhas e das colunas de José Castello e Everardo Norões. Luiz Arrais
recém-lançada autobiografia de Angela Davis para mostrar
EDITOR
que, em diferentes épocas, militantes assumiram propostas Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
BASTIDORES
Em busca da
FILIPE ACA
ARTIGO
si como forma
1974, após o término do julgamento que conferiu à
autora notoriedade internacional. Graças à exitosa
campanha por sua libertação, intitulada Free Angela
and all political prisioners (“Libertem Angela e todos
os presos políticos”), foi transformada em ícone
de ativismo
do Black Power, e sua imagem tornou-se popular.
O livro será uma oportunidade para conhecer a
autora a partir de seu relato pessoal.
A produção autoral da filósofa Angela Y. Davis
tem se tornado referência para debates e pesquisas
Sobre a recém-lançada no Brasil. A boa recepção da autora coincide com as
mudanças provocadas pelas ações afirmativas nas
LUÍSA VASCONCELOS
responsáveis por
munidade negra – a prática, recorrente no período, com as origens familiares, o nascimento ou as
atingiu outros militantes negros através das ações memórias de infância –, a autora inicia o relato no
do Cointelpro.4 A cobertura midiática do processo exato momento em que se tornava uma fugitiva
judicial, que a inocentou no final, proporcionou-
-lhe popularidade internacional.
No período em que esteve presa, aguardando o jul-
do Estado e entrava na clandestinidade. Desfaz
qualquer imagem heroica de si ao expor seu medo
e sua fragilidade: “Imagens de ataques lampejavam
mudanças sociais
gamento, Angela produziu artigos em que elaborou
reflexões conceituais. Desenvolveu, particularmen-
te, dois aspectos centrais de sua teoria: a análise das
em minha mente, mas não eram abstratas – eram
cenas nítidas de metralhadoras surgindo na escuri-
dão, cercando Helen e eu, abrindo fogo...”, escreve.
que perduram
prisões e suas relações com o racismo nos Estados O livro recupera o ritmo acelerado e efervescen- Uma dimensão inseparável da definição de quem
Unidos; e a gênese de uma teoria sobre a condição te dos múltiplos acontecimentos históricos que é autora é o fato de ser uma mulher negra, algo que
das mulheres negras pautada nas dimensões de clas- proporcionaram mudanças sociais e culturais que atravessa sua trajetória e sua produção intelectual.
se, raça e gênero. Dessa forma, ofertou contribuição perduram no presente. Um exemplo significativo Em Uma autobiografia, aparecem algumas das cir-
original à Teoria Crítica e a Black Radical Tradition.5 a mencionar foi a descolonização estética do corpo ne- cunstâncias nas quais confrontou as expectativas e
gro e sua ressignificação como lugar de inscrição presunções sobre os comportamentos que deveria
AUTOBIOGRAFIA política, bastante evidente no “cabelo afro” da ter. No movimento pela libertação negra, não foi
Uma autobiografia, apesar de política, como a autora autora – estilo nomeado no Brasil, sintomatica- diferente: “Eu me familiarizei muito cedo com a
definiu, manteve características próprias do gêne- mente, de black power. presença generalizada de uma lastimável síndrome
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ARTIGO
negros criando
escravidão à liberdade – que pode incluir a fuga, nista e se tornou sua principal liderança. Além de
mas sem revelar detalhes comprometedores sobre ter sido homem público, orador, escritor e jorna-
o feito, e com omissão de informações que pu- lista, participou ativamente da política americana
definições de
dessem identificar algumas pessoas. Descrevem, e apoiou o sufrágio feminino. Viajou à Europa para
também, experiências de castigos físicos e o uso divulgar e obter apoio à abolição da escravidão.
da violência por parte dos senhores ou capatazes. Douglass compõe a tradição política e filosófica
Os títulos das narrativas possuem, usualmente,
a menção “escritos por ele/a mesmo/a”, o que
pode ser interpretado como um esforço, por parte
liberdade e formas que formou Angela Davis. O primeiro curso que ela
ofertou na Universidade da Califórnia, em 1969,
intitulava-se Os temas filosóficos recorrentes na litera-
dos narradores, para reforçar a ideia da autoria e a
veracidade dos fatos narrados no texto. Essas auto-
biografias proporcionam um testemunho vivencial
de alcançá-las tura negra. Abordava conceitualmente a ideia da
liberdade a partir da produção literária negra, que
evidenciava os limites entre o conceito da liberdade
sobre o cativeiro e foram usadas, em seu contexto, O gênero deixou marcas e influências em obras e sua prática, reforçando a ausência histórica de
pelo movimento abolicionista como um potente contemporâneas de autoria negra, como Amada liberdade para os afro-americanos. O primeiro
instrumento de denúncia do terror da escravidão. (1987), de Toni Morrison, e Kindred (1979) de Octavia autor analisado no curso foi Frederick Douglass,
As slave narratives desempenharam um papel im- Butler, que recuperam partes das estruturas ou a partir de sua autobiografia e de sua experiência
portante ao proporcionar às pessoas que foram das temáticas das slave narratives para ambientarem negativa da liberdade como escravizado.
escravizadas a possibilidade de elaborar sua expe- histórias no período da escravidão. Em Life and times de Frederick Douglass, o autor relata
riência e seu passado. Cabe lembrar que a escravi- que, na infância, perguntou a si mesmo: Por que
dão, como sistema de dominação, pressupunha a FREDERICK DOUGLASS sou escravo? Por que algumas pessoas são escravas
negação da humanidade e transformação de seres No conjunto das slave narratives, destacam-se as e outras senhores?, assinalando a consciência sobre
humanos em objetos-mercadorias, alicerçada na obras de Frederick Douglass (1818-1895), consi- sua própria condição de escravizado. A narrativa de
subjugação física, na tentativa de romper a cons- derado o autor mais relevante do gênero por não Douglass atravessou a jornada física e filosófica da
ciência de si e na aniquilação da identidade da reproduzir suas formas tradicionais e adotar um escravidão à liberdade. No percurso para alcançar
pessoa escravizada. estilo próprio. Escreveu três autobiografias em sua liberdade, compreendeu a importância da re-
As autobiografias femininas acrescentavam ex- diferentes etapas de sua vida: Narrative of the life of sistência física e da consciência. Um acontecimen-
periências específicas, como a violência sexual – Frederick Douglass, an american slave. Written by himself to bem ilustrativo foi o fato de resistir fisicamente
estupros e assédios – e os ciúmes das sinhás. Um (Narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo ameri- e confrontar um de seus senhores mais violentos,
exemplo conhecido é o livro Incidents in the life of a cano. Escrita por ele mesmo), de 1845; My bondage and my Sr. Covey, que o havia quebrado no corpo, na alma e
slave girl (Incidentes na vida de uma jovem escrava), lan- freedom, (Minha servidão e minha liberdade), publicada no espírito: “Minha resistência foi completamente
çado em 1861 por Harriet Jacobs (1813-1897), que em 1855; Life and times of Frederick Douglass (A vida e os inesperada, Covey ficou todo surpreso. Ele tremeu
se destacou por denunciar a exploração sexual de tempos de Frederick Douglass), de 1881. As publicações como uma folha. Isso me deu segurança, eu o se-
mulheres escravizadas. A autora também participou alcançaram imensa popularidade e foram tradu- gurei inquieto, fazendo com que o sangue corresse
do movimento abolicionista. zidas para vários idiomas. onde eu o tocava com as pontas dos meus dedos”.6
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LUÍSA VASCONCELOS
A consciência da importância do conhecimento foi mais contundente, pois se tratou da escravidão, 4. Cointelpro foi um programa de contrainteligência
foi determinante para negar sua condição de es- que determinou, em grande medida, a sua exis- do governo estadunidense que se dedicou a perseguir
cravo. Seu processo de alfabetização iniciou com tência e identidade. Para a filósofa, foi a prisão e o dissidentes políticos de forma ilegal. Sabe-se hoje,
a Sra. Auld, esposa de um seus “proprietários”, processo por motivos políticos. Nas duas situações, por meio de ampla documentação sigilosa liberada
que se dispôs a ensiná-lo, até o momento em que essas vivências influenciaram as trajetórias, as pelo próprio governo, que movimentos e lideranças
seu esposo descobre e proíbe. O diálogo do casal, militâncias e as produções autorais. Douglass de- eram monitorados. Há evidências que provam o en-
reproduzido por Douglass, exemplifica os riscos fendeu e atuou pela abolição da escravidão. Davis volvimento do FBI e dos departamentos de polícias
que a educação de um escravo poderia trazer: “Se defende e atua pela abolição das prisões. em assassinatos, além da imputação de crimes a
você ensinasse aquele nigger (falando de mim) a Observadas em perspectivas comparadas, as membros da chamada “esquerda radical” – em par-
ler, não haveria como mantê-lo. Seria impossível autobiografias demostram como sujeitos negros, ticular, os militantes negros revolucionários, alguns
para ele continuar sendo escravo”. 7 mediados pelas questões de seu tempo histórico, dos quais se encontram presos até hoje. O caso mais
A primeira etapa a se vencer, antes da fuga, construíram definições para liberdade e as possí- conhecido, no qual o Estado reconheceu e indenizou a
foi a consciência de sua condição de escravo e a veis formas de alcançá-la. família, foi o assassinato de Fred Hampton, liderança
possibilidade de recusá-la mentalmente para de- do Partido dos Panteras Negras, executado enquanto
pois empreender a ação: “Quando eu tinha uns 13 NOTAS dormia em 1969.
anos de idade, e tinha conseguido aprender a ler, 1. No original, “I will publish these voices inste- 5. Angela Davis é uma filósofa inserida na Black Radical
cada aumento de conhecimento, especialmente ad of marching”. Disponível em https://news.ucsc. Tradition (Tradição Radical Negra), que pode ser defi-
qualquer coisa respeitando os estados livres, era edu/2014/10/morrison-davis-q-a.html. nida como uma teoria política e filosófica que defende
um peso adicional à escravidão. Era uma realidade 2. O livro se baseou em longas entrevistas concedi- a ideia do capitalismo racial, calcada em um longo
terrível, e eu nunca mais seria capaz de aceitá-la das, entre 1963 e 1965, ao jornalista Alex Haley, que histórico de resistências coletivas negras iniciadas no
em meu espírito jovem, que queria ser livre”.8 posteriormente escreveu uma obra de grande sucesso período da escravidão. Pressupõe uma perspectiva
chamada Roots (1976). A Autobiografia de Malcolm X negra na análise da teoria marxista e enfatiza a neces-
DIÁLOGOS POSSÍVEIS foi publicada no Brasil na década de 1990 pela Record sidade de lutas coletivas para a transformação social.
As autobiografias de Angela Davis e Frederick e está esgotada no mercado. O discurso de Malcolm 6. No original: “My resistance was so entirely unexpec-
Douglass convergem em alguns aspectos e elencam distinguiu-se no contexto pelo forte apelo ao orgulho ted that Covey seemed taken all aback. He trembled like
questões que ajudam a entender dois contex- e à autodeterminação negra, em contraste radical com a leaf. This gave me assurance, and I held him uneasy,
tos distintos de lutas políticas negras nos Estados a perspectiva adotada por setores do Movimento por causing the blood to run where I touched him with
Unidos. A leitura de Douglass ilustra o movimento Direitos Civis. No entanto, vale notar que pesquisas the ends of my fingers”. DOUGLASS, F. Narrative of
abolicionista e a condição de escravizado no sé- históricas nos Estados Unidos vêm problematizando the life of Frederick Douglass: an american slave. New
culo XIX, enquanto o livro de Angela propicia um a percepção homogênea e conformista do Movimento York: The Library of America, 1994.
panorama da década de 1960, do movimento de por Direitos Civis ao revelarem que, em seu interior, 7. No original, “If you teach that nigger (speaking of
libertação negra, através do olhar de uma mulher concorriam propostas distintas sobre a solução para o myself) how to read, there would be no keeping him.
negra militante. problema racial nos Estados Unidos. Muitas questões It would forever unfit him to be slave”. DOUGLASS, F.
As duas narrativas representam a elaboração de levantadas na primeira metade da década de 1960 por Narrative of the life of Frederick Douglass: an american
uma definição de si, que rompe com a definição pré- Malcolm X, como a autonomia política e cultural ou a slave. New York: The Library of America, 1994.
-estabelecida feita pelo outro de como eles deveriam reivindicação da autodefesa, só formariam parte das 8. No original, “When I was about thirteen years old,
ser. Para os dois autores, a educação desempenhou agendas políticas das organizações do poder negro and had succeeded in learning to read, every increase
um papel fundamental em suas conscientizações, e após sua morte, ocorrida em 1965. of knowledge, especially anything respecting the free
foi percebida como forma de emancipação. 3. O tema foi explorado em KAPLAN, Alice. Dreaming states, was an additional weight to the almost into-
A experiência da privação da liberdade, determi- in French. The Paris Years of Jacqueline Bouvier Kenne- lerable burden of my thought ‘I am a slave for life.’”.
nada pela condição racializada dos autores, aparece dy, Susan Sontag, and Angela Davis. Chicago/London: DOUGLASS, F. Life and times of Frederick Douglass.
nos dois relatos. No caso de Douglass, a experiência University of Chicago, 2012, p. 179. New York: The Library of America, 1994.
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ENTREVISTA
Pedro Motta
NORÕES
Qual o “lugar” do texto?
Toda existência supõe relação com locais onde
vivemos, com pessoas que nos deixaram luzes ou
cicatrizes. São artefatos armazenados nas estantes de
nossa memória. Literatura é ficção. Ao mesmo tempo,
é reconstrução do mundo da experiência. Movimenta
esnoroes@uol.com.br personagens de um romance, ergue os andaimes de
um poema. Ela está sempre diante de dois espelhos:
um, o que reflete a realidade; outro, o que revela a
fantasia. A construção de um lugar dentro da escrita,
mesmo fictício, também desvenda novas alternativas
ao existir, o que resulta numa forma de utopia, que
pode ser chamada a "utopia do texto".
Por isso, o desterro é, ao mesmo tempo, o lugar da
metáfora e a metáfora do lugar. E o essencial, para de tal jeito que elas nunca mais serão vistas da
o escritor, sobretudo o poeta, é como essa metáfora mesma maneira.
toma forma. Se o escritor possui uma antena assim, pouco im-
Primeiro, ele busca descobrir o que passa desper- porta o lugar onde se encontre. Pode ser uma sala,
cebido. pode ser um país.
Metáforas
Intitulei um de meus livros Poeiras na réstia. É uma Ernest Hemingway andou pelo mundo de seu século
imagem que traduz esse pensamento. Numa casa de enfrentando guerras e bichos. Giacomo Leopardi,
telha-vã, um furo produzido pelo vento ou pela passa- enclausurado e doentio, quase nunca abandonou
gem de algum bicho deixa-se filtrar por um raio de sol. seu castelo de Recanati. Mas foi ali que escreveu o
A luz forte do sol ofusca, queima. Mas, através da Zibaldone e compôs Il infinito, um dos mais preciosos
sobre onde
fresta, podemos observar partículas microscópicas poemas da literatura.
navegando na réstia. O escritor até pode "edificar" sua própria cidade
É possível perceber a poeira da casa: o mínimo, com andaimes e tijolos imaginários. Assim o fez Juan
o minúsculo. Carlos Onetti, ao erguer sua Santa María, do roman-
canta o sabiá
O artista consegue observar através desse fiapo de ce Juntacadaveres. E, ao lermos Borges, ficamos com a
luz porque está munido de uma espécie de antena. sensação de que seu universo era uma biblioteca. Até
Ele se sente tocado por alguma coisa que se asse- poderíamos concluir que há uma espécie de livro a
melha a um fulgor ou espanto. Às vezes, um duende. brotar de outros livros.
Então, trabalha sua matéria-prima para nos desvelar Além dessa matéria-prima, além dessa antena, a
uma obra susceptível de transmudar a tristeza ou o conversa em torno do Onde canta o sabiá acabou por
desassossego em algo que eleva ou consola. escorrer para a importância do “lugar” na literatura.
"Se me perguntassem No momento em que Picasso se depara com um
guidom de bicicleta e o transforma numa cabeça de
Esses “lugares” podem ser vários. Pois, no fundo, são
apenas suportes onde ocorreram nossas vivências,
sobre qual o meu 'lugar', touro, essa cabeça de touro sofre uma metamor-
fose. E, de repente, passa a ser a própria imagem
aquelas que acabam por tecer uma espécie de col-
cha de retalhos. Há passagens que nos marcam mais
LIVRARIAS
Wellington Comprar um livro não é só comprar
de Melo
A seis minutos a pé da estante só dele, com edições
Plaza de Catalunya fica em línguas impensáveis.
a Alibri Llibrería. Não há Pergunto à atendente pelas
estacionamento, mas três edições mais esdrúxulas.
vagas do bicicletário estão “Acabamos de vender
livres. A fachada de listras uma em klingon”, ouço,
verdes e pretas é discreta decepcionado. Tiro fotos e
e sóbria. Laços amarelos mando ao amigo, que escolhe,
gigantes dos independentistas do outro lado do Atlântico,
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
FILIPE ACA
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Companhia
Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Diretoria considera projetos da própria Editora, são
analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
partir dos seguintes critérios:
de nós por serem, quase sempre, manifestações dos da página do sonho: 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
repetitivos acontecimentos humanos. soletro, devagar, o Aywu rapitá: sem as modificações necessárias à edição e que
Num conto publicado no livro Entre moscas e na o ser do ser da palavra,
contemplem a ampliação do universo de leitores,
revista Granta, escrevi algo assim: "Quando alguém (flor pronunciada
emigra, carrega sempre algum sabor estrangeiro: entre as estrelas). visando à democratização do conhecimento.
fruta invisível que contamina a língua para sempre.
Um cheiro que fica encoberto por outros odores. A A noite II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
exemplo do sabor da goiabada com queijo ou do desaba sobre as telhas sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
cheiro dos pequis". na explosão de um meteoro.
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
Se me perguntassem sobre qual o meu “lugar”, diria Conto estilhaços,
que ele é múltiplo. Talvez por isso não me considere recomponho parábolas: sobre a publicação.
apenas da cidade onde demorei mais tempo. Apenas um mínimo do que sou
a observo como quem olha um rio cortando-lhe a lembra as fronteiras III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
carne feito um gume de navalha. Mesmo assim, em do Universo. papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
nós permanece o reflexo de tudo o que testemunha- Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
mos em nosso passear humano, num mundo do qual O humano não tem fronteiras.
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
somos fragmentos. Donde, o poema: As culturas acabam sempre por derrubar os muros
que lhes são impostos. Por isso, o artista, o escritor, for o caso, índices e bibliografias apresentados
FRACTAIS nunca está fora do lugar. Seu país é o de dentro, onde conforme as normas técnicas em vigor.
encontra o fermento de seu ofício.
Pelo mergulho Apesar de seu trabalho ser o de dentro, tampouco IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
das sombras, é mais importante do que outro trabalho.
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
calculo Coincido com a observação do gênio instigante
o itinerário da luz. de Roberto Arlt (que rompeu com o preciosismo da violência e as diversas formas de preconceito.
Meço gramática para dar mais luz ao romance argentino),
os contornos de nossas ruínas quando observa que a diferença entre o pedreiro que V Os originais devem ser encaminhados à
na matemática particular constrói casas e o fabricante de livros é que livros não Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
dos desesperos. são tão úteis quanto as casas. E o fabricante de casas seguir, sob registro de correio ou protocolo,
Abro a janela não é tão vaidoso quanto o escritor!
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.
FESTA CONSUMO
Companhia Editora de Pernambuco
Livros e flores amarelas Em defesa das livrarias de rua Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
O Dia Mundial do Livro se Na seção de crítica, o uma roda de conversa ou um CEP 50100-140
celebra em 23 de abril, reza atendente está só, lendo, lançamento. A impressão é Recife - Pernambuco
a lenda, porque Shakespeare quando chego. Com o laço de que todos se conhecem. A
e Cervantes morreram nessa amarelo na camisa, dedica caixa não me apressa quando
data em 1616. É também o toda a atenção, mesmo eu decido voltar e incluir outro
dia de San Jordi, padroeiro falando em espanhol, e sabe livro na conta, mas sorri e diz
da Catalunha, onde a festa muito sobre os livros que que vão fechar. A Alibri foi
envolve dar livros e rosas. vende. Na volta, passo pela fundada em 1925, descubro
García Márquez morreu seção infantil, encontro um depois. Caminhando de volta
em 17 de abril de 2005. E jogo narrativo de dados e ao hotel, tento lembrar a
se fosse esta a nossa data decido levá-lo para meu filho. livraria de rua mais antiga SECRETARIA
DA CASA CIVIL
de celebrar o livro, quando Quando venço as tentações que conheço. A Palavraria, de
daríamos livros e flores e chego finalmente ao caixa, Porto Alegre, fechou em 2016.
amarelas, sem santos? Será? já é noite. Perto da entrada, Faz frio em Barcelona.
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CAPA
KARINA FREITAS
Para chegar aos exemplos concretos, dois episódios tros de análise crítica. O fato de que, para questionar a que o “universal” sempre partiu de uma observação
específicos acionaram o pavio: o primeiro aconteceu heteronormatividade no exercício analítico de textos do sujeito branco hegemônico.
em julho de 2016, quando a Festa Literária Internacional de literários, seja necessário que duas situações eviden- “Parece que hoje à crítica literária convém um
Paraty (Flip), mais badalado encontro literário do merca- temente caricaturescas se sobressaiam é testemunho exercício de mapear até onde alcança cada fala, em
do editorial, se lançou com a proposta de revisitar a obra de que não estamos indagando o suficiente. meio aos reconhecimentos de privilégios e opres-
da poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983) e, na mesa de Mais uma nota de bastidores faz-se importante: de sões, ler também pelo escapa ou não se sabe/não
abertura, não apenas havia um apagamento completo início, este texto iria, no mesmo bloco, tratar de um cabe abordar, ao menos pontuando, mencionando.
da própria Ana C. – eram três homens brancos falando apagamento de mulheres, homens e pessoas não-bi- Negligência implica apagamento. O apagamento é
quase que inteiramente sobre seus respectivos traba- nárias com sexualidades e identidades não-heteronor- conservador e são muitos”, diz a poeta, romancis-
lhos – como, durante todo o evento, a sexualidade da mativas. No entanto, como um gesto político, quando ta e pesquisadora Sarah Valle. Sobre esses vários
poeta, tão crucial para leitura de vários de seus poemas, falar de escritores homens cis gays, os colocarei entre apagamentos, ela menciona um dos textos de Rich
foi completamente anulada. Uma nuvem estranha se parênteses – dada a condição (parenteseada) de toda a para lembrar que talvez o mais forte deles tenha sido
formava no ar: podia-se falar quase tudo sobre a obra existência lésbica na literatura. aqueles das mulheres lésbicas que sequer puderam
de Ana C., menos que era atravessada pelo fato de que É urgente, portanto, entender de onde vem o escrever: “séculos de livros não escritos empilhados
aquela mulher se relacionava com outras mulheres. O apagamento de escritoras lésbicas e bissexuais tanto atrás destas prateleiras”, escrevia a poeta.
segundo episódio, curiosamente, se manifestou neste no texto crítico sobre as autoras como simultaneamente Valle continua: “Há um estudo que mostra como
mesmo Pernambuco, quando, em janeiro deste ano, nas revisões analíticas que não existem, aquelas que tendemos a ler citações de sobrenomes em textos
se publicou uma crítica sobre a primeira edição da já nunca foram escritas, muitas vezes porque há, em acadêmicos assumindo que se tratem de homens. O
citada Adrienne Rich no Brasil, Que tempos são estes, com várias ocasiões, um desinteresse sintomático por al- que teria escrito Virginia Woolf, caso não estivesse
tradução de Marcelo Lotufo e edição da Jabuticaba. Na guns livros de algumas autoras, e outras porque há, de sob a apreciação da crítica masculina? Há brecha
resenha sobre o livro, o autor não faz qualquer menção fato, um não-treinamento para lidar com tudo aquilo para a homossexualidade na obra da premiada (Eli-
ao fato de que Rich era uma mulher lésbica e só se que, na forma e no conteúdo, foge do que é hetero- zabeth) Bishop? O caso da censura sobre a obra de
reconhecia criticamente a partir desse dado. normativo, ou seja, foge de tudo aquilo que, na crítica Violette Leduc ilustra, ainda, a diferença quando se
Volto a dizer então que esses mesmos motivos que literária, atende pelo nome de “universalidade”, essa trata exclusivamente de mulheres dentro do escopo
fazem com que este texto aconteça são um problema régua invisível que alguns sujeitos estabeleceram como homoerótico: enquanto Jean Genet tinha seu Diário
em si. Não porque colocar em xeque esses dois mo- critério fundador para apreciação crítica da prosa e de um ladrão (que traz personagens gays) publicado
mentos de apagamento seja questionável. Problema- da poesia. A rigor, universalidade daria conta de tudo pela Gallimard em 1947, Teresa e Isabel (um romance
tizá-los é legítimo, mas a questão é: tudo isso ainda é aquilo que todas as pessoas, em todos os rincões do lésbico) foi repetidamente censurado pela mesma
insuficiente. Em outras palavras: o pensamento sobre planeta, conseguissem compartilhar como um código editora nas versões de 1955 e 1966, só ganhando
a crítica literária precisa também parar de ser apenas em comum. Trata-se, naturalmente, de um pensamen- versão integral em 2000”.
uma reação a eventos episódicos para ser uma ação em to não apenas uniformizador de todas as diferenças, Ainda citando o exemplo de Adrienne Rich, que
si, uma construção ativa e constante de novos parâme- como falsamente conciliatório dessas distinções, já astutamente usava de uma forma canônica em várias
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019
CAPA
de seus poemas para driblar algumas premissas da Um dos pontos diz respeito a colocar em xeque a
crítica do que deve ou não ser comentado – “Esta é a própria palavra “lésbica” a partir de sua experiência
língua do opressor,/ mas preciso dela para falar com de vida: “Para mim, o termo lésbica é um problema.
você.” –, é fundamental citar seu texto teórico sobre Como chicana mestiça de classe operária – um ser
a “heterossexualidade compulsória” que existe não composto, amálgama de culturas e de línguas – uma
apenas na crítica de arte como dentro do próprio fe- mulher que ama mulheres, ‘lésbica’ é uma palavra
minismo acadêmico dos anos 1960 e 1970. A partir de cerebral, branca e de classe média, representando uma
uma análise de quatro livros feministas desse período, cultura dominante, derivada da palavra grega lesbos.
cada um com uma orientação política distinta, Rich Eu penso em lésbicas como mulheres predominan-
vai analisar como o apagamento da mulher lésbica temente brancas e de classe média e um segmento de
começa tantas vezes a partir desse edifício teórico mulheres de cor que adquiriram o termo por osmose
consolidado por mulheres feministas heterossexuais. muito como chicanas e latinas assimilaram a palavra
“Em nenhum desses livros, que tratam de temas como hispânicas. Quando uma ‘lésbica’ me nomeia o mesmo
maternidade, papéis de gênero, relacionamentos e que ela, ela me subsome sob sua categoria. Eu sou de
prescrições psicossociais para mulheres, a heteros- seu grupo, mas não como uma igual, não como uma
sexualidade compulsória é jamais examinada como pessoa inteira – minha cor apagada, minha classe ig-
uma instituição que poderosamente afeta todos os norada. Soy una puta mala, uma texana tortillera. ‘Lésbica’
demais temas aqui relacionados”, ela escreve. não nomeia nada em minha terra natal”.
A poeta lésbica branca Angélica Freitas, que está Em outro momento, Anzaldúa destrincha o que
traduzindo o Heterossexualidade compulsória e existência realmente significa a marcação e adjetivação no
lésbica, de Rich, para uma edição que será publicada ambiente da crítica literária: “O que é uma escritora
pela editora Bolha, sustenta que esse apagamento às lésbica? O rótulo na frente de uma escritora a posicio-
vezes surge das frentes mais inesperadas. Ela lembra na. Sugere que a identidade é socialmente construída.
que, no processo de pesquisa para a tradução desse Mas só para a/o ‘outra/outro’ cultural. Inconscientes
ensaio, terminou cruzando com um outro artigo, do privilégio e absortos em arrogância, a maioria dos
escrito pela pesquisadora Emily Wilson, sobre a pro- escritores da cultura dominante nunca especifica sua
blemática tradução que a poeta Anne Carson, uma identidade; eu quase nunca os escuto dizer: Eu sou
mulher heterossexual, fez de Safo: “Para Carson, um escritor branco. Se a/o escritor/a é classe média,
o que importa é a poesia de Safo, não seu gênero branca/o, heterossexual, ela/ele é coroada/o com
ou sua orientação sexual. Mas as próprias palavras o chapéu ‘escritor/a’ – nenhum adjetivo mitigante
de Safo não são neutras em termos de gênero. A depois. Me consideram uma escritora chicana, ou
tradução de Carson do Fragmento 31 não deixa claro uma escritora chicana lésbica. Adjetivos são uma
o que está claro no grego: o amado e o falante de forma de coagir e controlar (...) O adjetivo depois de
primeira pessoa são ambas mulheres. ‘Parece que escritora marca, para nós, a escritora ‘inferior’, ou
ela conhecia e amava as mulheres tão profunda- seja, a escritora que não escreve como eles. Marcar
mente quanto fazia música’, observa Carson em sua é sempre ‘rebaixar’. E quando eu defendo colocar
introdução. ‘Podemos deixar o assunto pra lá?’. A chicana, tejana, de classe operária, poeta dykefeminista
resposta, obviamente, é não. Safo é a primeira autora junto a meu nome, eu o faço por razões diferentes
sobrevivente na tradição ocidental, e a maioria das daquelas da cultura dominante. As razões deles são
respostas críticas e imaginativas à sua vida e ao seu
trabalho trataram do seu gênero e sua sexualidade
como os fatos mais importantes sobre ela”. “Tem que haver
AUTODEFINIÇÕES E AUTORROTULAÇÕES
“Se eu não tivesse me definido para mim mesma,
teria sido esmagada pelas fantasias que outras pes-
mudança na
soas fazem de mim e teria sido comida viva”, falou
em voz alta Audre Lorde (1934-1992), por ela mes- crítica. Acho que
não dá conta da
ma definida como “mulher, negra, lésbica, poeta,
mãe, professora e guerreira”. Era fevereiro de 1982,
e Lorde fazia então uma apresentação em tributo a
complexidade da
Malcolm X, na Universidade de Harvard. Em outro
texto seu referencial, Autodefinição e minha poesia, ela
é enfática: “Nenhum/a poeta que valha um pacote
de sal escreve de qualquer outra coisa que não as
várias entidades que ela ou ele define como eu. Eu
sou desses eus, e quanto eu aceito essas muitas partes
nossa escrita”, diz
de mim vai determinar como meu viver aparece
dentro de minha poesia. Como meu viver se torna
acessível, em suas forças e suas fraquezas, através
Tatiana Nascimento
do meu trabalho, a cada qual de vocês (...) Não posso marginalizar, confinar e conter. Meu rotular a mim “Me apresento como uma autora lésbica e negra.
separar minha vida e minha poesia. Eu escrevo meu mesma é para que a chicana e lésbica e todas as outras Não acho que minha identidade de gênero é mulher,
viver e eu vivo meu trabalho.” pessoas em mim não sejam apagadas, omitidas ou faz muito tempo que recuso essa identidade e que
É importante trazer a reflexão sobre autodefinição assassinadas. Nomear é como eu faço minha pre- falo em ser lésbica não como uma orientação sexual,
em Lorde para abrir uma discussão que também cor- sença conhecida, como afirmo quem e o que eu sou mas como identidade de gênero. Isso tem a ver com
re em paralelo ao apagamento de autoras que ora se e como quero ser conhecida. Nomear a mim mesma ser leitora assídua da Monique Wittig (1935-2003).
autodefinem como lésbicas ou bissexuais ou pessoas é uma tática de sobrevivência”. Sou discípula da tese dela de que lésbicas não são
trans ou não-binárias e ora recusam qualquer uma Nesse mesmo texto, ela traz algo essencial para se mulheres (no texto Straight minds, Wittig afirma que
dessas palavras. Nessa última categoria, há dois tipos pensar o lugar da recepção de sua obra. Relata que, a categoria ‘mulheres’ foi criada para existir sempre
muito distintos: a de escritoras não-heterossexuais quando ia a recitais de prosa ou poesia entre mulheres em relação ao sujeito homem e que, por isso, as
que, como Ana C. lá atrás e como algumas outras lésbicas feministas, que, no contexto em que ela vi- lésbicas nunca foram lidas como ‘mulheres’ para
poetas contemporâneas, não se sentem à vontade via, implicava em mulheres brancas, ela não se sentia muitas feministas). Só que, porque eu me falo muito
com tais nomenclaturas; e há aquelas para quem a parte daquele ambiente e achava que seu trabalho como escritora sapatão ou lésbica, é impossível não
palavra “lésbica”, por exemplo, vem carregada de era tampouco compreendido nesses espaços de uma levar isso em consideração quando minha obra é
outras marcações que podem, em alguns ambientes, intelectualidade apartada, por exemplo, de questões pesquisada, porque essa é uma identidade da qual
serem igualmente opressivas. operárias tão caras a ela. E que houve momento em não abro mão. Isso tem a ver também com a Audre
Eis o momento então de se fazer uma inflexão a que ela se sentiu, finalmente, “em casa” quando leu Lorde, de me apresentar a partir dessa autodefinição.
um trabalho que deveria ser seminal quando se fala seu trabalho para uma plateia de hippies brancos que Sempre me apresento como uma poeta lésbica negra
em crítica literária (em tempo: não se fala aqui de estavam fora do círculo literário. e as pessoas não podem abrir mão disso.”
crítica literária dissidente, ou crítica literária LGBT, A reivindicação por uma autodefinição, como Naturalmente, Nascimento está ciente de que as
se fala de crítica-literária-ponto). Trata-se do texto diria Lorde, ou por uma autorrotulação, como co- definições que ela põe a si mesma, se têm o bônus de
Queer(izar) a escritora – Loca, escritora y chicana, de Gloria locaria Anzaldúa, parece ser um ponto de partida serem identidades das quais seus críticos não podem
Anzaldúa, que se autodefinia nos termos dados por para autoras contemporâneas que, com frequência, evitar, têm o ônus de uma frequente incompreensão
esse mesmo artigo e cujo trabalho flertava sempre experimentam a sensação de deslocamento quando do que se espera de sua literatura, mais uma vez,
com ensaios poéticos sobre sua própria condição de têm seus trabalhos lidos. Tatiana Nascimento, cujos as caixas “outras” em que a crítica perceberá essa
estrangeira no país onde nasceu, os Estados Unidos. três livros de poesia (Esboço, lundu, e mil994) foram literatura: “Minha obra, por exemplo, tem poucos
Nele, a escritora aponta para várias questões cruciais publicados por sua editora, a Padê Editorial, e que ‘poemas de lésbicas’ como a crítica assim entende.
na relação entre autoras/autores não-heterossexuais é cofundadora e realizadora do Palavra Preta – mostra Tem, sim, muitos poemas de amor, mas tem muito
e os textos críticos sobre a obra dessas pessoas. nacional de negras autoras, é categórica: mais poemas sobre mar, sobre cerrado. O primeiro
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019
KARINA FREITAS
A reivindicação por
autodefinições ou
autorrotulações pode
ser ponto de partida
para autoras que se
sentem deslocadas
quando são lidas
livro que publiquei com uma tiragem maior, o lundu, uma estereotipia narrativa, porque não se consegue telada. Uma mulher escrevendo uma personagem
acho que a palavra lésbica só surge lá no final, não há entender a profundidade de nossa obra.” principal lésbica! Pesquisei depois e li que Cassandra
um mapeamento textual do que é a lesbianidade, A estereotipia narrativa de que Nascimento fala é, foi a primeira autora a vender um milhão de exem-
porque acho que precisamos ter liberdade narrati- portanto, o que simultaneamente faz com que várias plares no país! Foi também das mais censuradas
va, que temos que falar sobre o que quisermos, de autoras sejam marcadas como escritoras lésbicas artistas na década de 1970, com proibição de quase
modo que a ‘escrita lésbica’ precisa ser entendida apenas e somente porque fazem poemas ou prosas todos os seus mais de 30 livros! E, hoje, segue tão
de uma forma muito mais ampla. Esses dias uma sobre o amor entre mulheres, como provoca um apa- pouco conhecida. Por que será?”.
pesquisadora da Argentina veio me perguntar: por gamento dessa identidade em escritoras que falam Que se reveja então, criticamente, a obra de todas
que que, quando você fala de pessoas negras no sobre questões que são entendidas como “univer- as autoras aqui citadas, bem como o trabalho de Ci-
seu livro, você fala de homens, por que você não sais”. Para onde se olha, há quem queira não olhar. dinha da Silva, Vange Leonel, Bruna Beber, Natalia
fala de pessoas negras em outro contexto? Tive que (Nesse ponto, é importante também citar a extensa Borges Polesso, Simone Brantes, Katia Borges, Ryane
responder o seguinte: eu sou uma pessoa negra pesquisa sobre não apenas a homofobia, mas a mi- Leão, Bárbara Esmenia, Joana Côrtes, Nívea Sabino,
escrevendo, tudo tem a ver com negritude, eu sou soginia e o racismo de uma tradicional crítica literária Tatiana Pequeno, Mariana Queiroz, Cecília Floresta,
uma sapatão negra”. brasileira quando teve que lidar, por exemplo, com Laila Oliveira, Mayana Vieira e tantas, tantas outras
Eis então um ponto nevrálgico para se pensar a obra de Mário de Andrade. Em sua tese de douto- escritoras – e aqui cito apenas algumas brasileiras –
como a crítica literária lida quando as marcações rado sobre a recepção da obra do poeta paulista, o que ainda carecem de aproximações mais complexas
as quais ela não está acostumada a usar – pois que pesquisador Jorge Vergara fez um levantamento de sobre seus respectivos trabalhos. Ou, para usar o
nunca se marcaram os escritores homens, bran- todas as resenhas críticas que diminuíam a obra de título de uma recente publicação do grupo Palavra
cos, heterossexuais, cisgêneros – são postas sobre Mário de Andrade por entendê-lo como um sujeito Sapata, “que o dedo atravesse a cidade, que os dedos
a mesa: ela tende a esperar por um certo tipo de efeminado de versos igualmente não-masculinos perfurem os matadouros” e que perturbem o lugar
conteúdo bastante específico. “Tem que haver uma e “mestiços”: de conforto de um ambiente crítico cujas réguas de
mudança no jeito que a crítica olha o que a gente “Eu descobri que Mário de Andrade é insulta- análise, tantas vezes, só conseguem medir aquilo
escreve. Acho que essa abordagem não dá conta do com termos que implicam a homofobia desde que é espelho.
da complexidade da nossa escrita. A crítica não vai 1921. Deve considerar-se a persistência do racismo
olhar pro que uma autora lésbica escreve como ‘li- também, porque, em muitos casos, o texto racista Este texto foi concluído no dia 14 de março de 2019,
teratura lésbica’ se ela não escreve uma história de acompanha o homofóbico”, ele fala. Os exemplos quando se completou um ano do assassinato político
amor. E se ela quiser escrever sobre a vó dela? Não são vários: “Durante o movimento de críticas ao da vereadora lésbica Marielle Franco. Este texto é
vai ser literatura lésbica? O que é invisibilização da Futurismo paulista em 1921, João de Eça escreve que também um tributo a ela e à convicção de que sua luta
crítica? Talvez essa invisibilização tenha a ver com Mário não é suficientemente homem, usa a imagem jamais poderá ser apagada.
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RESENHA
e as formas de
conflito tenha se encaminhado para uma negocia-
ção responsável; no momento, penso apenas nos
amigos da fronteira Norte e em Roraima, estado em
que vivi e atuei como professor por um ano e meio.
Como professor, viajava por diferentes cidades do
KARINA FREITAS
Panton Pia’
pé de banana se chamava wadaka. Tu sabe que é Conseguir sentir felicidade nessa dor, por outro
enorme, é grande esse pé de banana que chamavam lado, manifesta uma capacidade de resistência e
wadaka, piapö é toco. Aqui, por aí, ficou essa história reinvenção que está além do que consigo imaginar.
NOTAS
indicações da performance que acompanha a narra- temos a vida feliz. Quando se tá com fome, rapaz, 1. Referência fundamental para compreender o pro-
tiva, como a descrição de gestos entre colchetes. fica agoniado, fica triste: ‘Rapaz, como é que é?’ cesso de demarcação contínua da Raposa Serra do Sol
Em outros momentos, há falas de pessoas que Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de é o livro Pemongon Patá (2001), de Paulo Santilli. O
resolvem participar da conversa, como acontece barriga cheia, as crianças estão alegres, a esposa tá romance Os bravos de Oixi (1994), de Vilela Montanha,
em situações de oralidade. satisfeita. A gente como esposo tá satisfeito, vê toda documenta parte do processo de violência dos anos pré-
A entrevista de Clemente Flores é a que mais traz família com o buchinho cheio, que coisa, né! É uma -demarcação. Após passar a assinar como José Vilela,
histórias antigas, como a maravilhosa origem do coisa boa, quer dizer que é uma vida de alegria, que o autor reescreveu o romance duas vezes – Xununu
timbó, cipó venenoso usado na pesca. Em outras eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra um Tamu (1998) e Índios em luta pela vida (2019).
entrevistas, nota-se o esforço do entrevistador em lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo 2. Esse processo é pano de fundo de alguns capítulos
buscar, nas memórias dos indígenas, histórias que das coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só de A queda do céu (1995), de Davi Kopenawa e Bruce
foram reprimidas pela cultura do branco. Nota-se, anda enrolado. Só anda enrolado, porque não tem Albert. O romance-testemunho Wadubari (1993), de
também, como os indígenas ressignificam o seu jeito de ter alegria. Ele fica triste cada vez mais: Marcos Pellegrini, que atuava como médico junto aos
papel numa sociedade em mudança, assumindo ‘Puxa vida onde que... será que alguém vai me dar yanomami, também traz algo da dimensão do horror
posições frente ao que significa ser indígena, à atu- alguma coisa pra comer hoje? Puxa vida, colega, eu vivido por essas populações.
ação dos órgãos indigenistas, à educação dos seus estou sem dinheiro!’ Mas é ruim, já passei nessa. 3. Sigo Sérgio Medeiros (Makunaima e Jurupari: cos-
povos, à preservação ou revitalização das línguas. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já tenho me mogonias ameríndias, de 2002) em utilizar Makunaima
Registrar as entrevistas na íntegra mostra que a virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem com k, para o demiurgo das culturas do circum-Roraima,
oralidade indígena não é só narrativa ou “mito”, que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: ‘Me em contraste com Macunaíma, com c e acento no i,
mas também reflexão, ensaio, autobiografia, visão dá, patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais para o personagem de Mário de Andrade. Dentro do
de mundo. aí, rapaz, fim do mês eu lhe pago.’ ‘Nada, pode livro Panton pia’, o nome aparece grafado com c e sem
As descrições do cotidiano são especialmente pegar aí, não se preocupe não, pega aí.’ Compro acento, como se vê nas citações reproduzidas.
tocantes. Na fala abaixo (p. 123-124), o tuxaua alguma coisa, pego como eu falei. Então, naquele 4. As narrativas foram publicadas em 1917 como se-
macuxi Armando Magalhães responde qual a coisa dia nós estamos alegres, com barriguinha cheia…” gundo volume de Vom Roraima zum Orinoco, livro que
mais feliz que lhe tinha acontecido: Essa fala evoca uma longa história de dor que chegou às mãos de Mário de Andrade. Uma tradução
“Quer dizer, feliz como eu acabei de dizer, pro- veio com as fazendas, estradas, cidades. No pro- das narrativas pode ser encontrada na obra citada na
fessor, é quando a gente tá de bucho cheio, nós cesso colonizador, tais espaços retiraram a autos- nota anterior.
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ENSAIO
como forma
recomendações de leitura do livro. Os itens constam
em uma lista publicada quase no desfecho da obra,
catalogada como poesia brasileira, mas que apesar
disso não se prende a classificações. As indicações
esclarecem em certa medida a arquitetura em-
de presença
preendida por Luciany e abrem um atalho possível
de leitura, ainda que o leitor opte por tomar outros
caminhos. Ezequiel é escrito em parte usando o corpo
humano como metáfora e, uma vez materializado
pela linguagem, assume que quer ser um corpo, ter
Sobre as marcas cada vez seu próprio corpo, com pés, mãos, tronco e sexo.
A partir dessa lista também sabemos se tratar do
mais notórias da mediação sétimo livro assinado como Margô Paraíso, autora
“morta” em 2013 para dar lugar às outras vozes de
LUISA VASCONCELOS
autoria assume
que a constatação de que o conceito, bem como as -químico etc.); (...) Vejo o ‘artista-etc.’ como um
formações em curadoria são ainda jovens no país desenvolvimento e extensão do ‘artista multimídia’
(basta lembrar que o termo curador se firma a partir que emergiu em meados dos anos de 1970, com-
que a literatura
dos anos de 1980) e, como tudo em construção, binando o ‘artista-multimídia’ fluxus (sic) com o
alvo de opiniões divergentes – está em uma das ‘artista conceitual’ – hoje, a maioria dos artistas
hipóteses que infla o estudo de Sonia Salcedo del (digo, aqueles interessantes) poderia ser considera-
Castillo, a de que uma poética expositiva se cons-
titui enquanto obra e se faz à maneira da poesia.
Um pouco do que penso aqui no sentido oposto e
contemporânea da como ‘artistas multimídia’, embora, por ‘razões
de discurso’, estes sejam referidos somente como
‘artistas’ pela mídia e literatura especializada”.2
abrindo caminho aos gêneros da prosa.
O pesquisador e curador Diego Matos, um dos
organizadores de Cildo: estudos, espaços e tempo, finalista
se mescla com Outra questão que há de se pensar, trazida do
campo das poéticas visuais, é a exposição do pro-
cesso enquanto obra, o que na visão de Diego Matos
do Prêmio Jabuti 2018, entende a curadoria como
também uma derivação da crítica e, apesar de não
enxergar uma exposição como obra em si mesma,
outras semioses pode resvalar para a própria desmaterialização da
arte, afinal duas perguntas se interpõem: ao expor
o processo em si, o que resta como obra final?
defende que é possível visitarmos exposições como sem segredo e grafadas em diversos trabalhos da Deve restar alguma coisa? No caso da literatura,
narrativas. “Há produções com uma dinâmica de artista Elida Tessler no início dos anos 2000, ou algo similar seria o que Reinaldo Laddaga intitula
leitura como a de um romance, quando observamos mais recentemente as fotografias de Elisa Pessoa de estética de laboratório, ao argumentar sobre obras
a composição completa”, explica1. Se a palavra pode em obra conjunta com a escritora Paloma Vidal, que ganham potência a partir da exposição de sua
ser matéria para uma exposição, outras matérias, em Dupla exposição, de 2016. Ao artista que não se engrenagem. O romance luminoso, do uruguaio Mario
digamos não literárias, podem dividir o terreno do limita a um lugar de produção, porque em certa Levrero, e O falso mentiroso, de Silviano Santiago, em
livro, fazendo com que os artistas se movimentem medida questiona a natureza e a sua função como que o próprio literário é satirizado, nos ajudam a
em diferentes campos. E aqui podemos lembrar artista, Ricardo Basbaum refere-se como “artista- visualizar essa questão. Mas é possível lembrar
de muitos exemplos, os claviculários com chaves -etc”. Em depoimento ao projeto de Jens Hoffmann ainda o exemplo radical de Leonardo Gandolfi e
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019
ENSAIO
como junção de
ilustrou a tese de doutoramento da pesquisadora ser notória a tentativa de reproduzir a linguagem
Luciany Aparecida”. de cinema, sendo o livro, portanto, um espaço de
confluência de várias práticas com o propósito de
fragmentos em
GALERIA 2: NO PRINCÍPIO, O ESTRANHAMENTO que tais “contrabandos” formais atribuam outros
A discussão que proponho começa pela minha ex- significados ao texto.
periência de leitura e, preciso frisar, de uma leitura
específica, a dos livros do escritor Valêncio Xavier
(1933-2008). A sensação era invariavelmente de
incômodo, seguida de uma breve satisfação por
busca de unidade GALERIA 3: A ARTISTA VISUAL
ENQUANTO ESCRITORA
Uma das representantes do Brasil na Feira Internacional
talvez “começar a entender” o que o narrador de
seus livros dizia. O estranhamento inicial tinha
como justificativa o modo de organização do texto
para criar sentido do Livro de Guadalajara em 2018, Deisiane Barbosa, diz
se beneficiar das aproximações entre artes visuais
e literatura. Um dos mais comentados produtos de
que junta fotografias, frames de cinema, imagens mole e dar o livro como lido sem se entranhar pelo um amplo projeto artístico da autora, que se intitula
de almanaques científicos, anúncios publicitários labirinto do texto. A questão é que esse labirinto “artista visual, poeta e andarilha”, é o livro cartas à
entre outros elementos, além de pequenos textos do é guiado, como se o autor empírico, que antecede e Tereza: fragmentos de uma correspondência incompleta, pu-
autor, notas explicativas, legendas forjadas e outros propõe o autor-modelo, quisesse de livre e espontânea blicado de modo independente, e que tem se des-
itens inclassificáveis. Aqui e acolá lembrava Zero, vontade fazer companhia ao leitor no percurso de dobrado em outras ações artísticas entre os estados
de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1974, visitação. Ser sua companhia e fazer-se presente é de Pernambuco e Bahia. O livro, como salienta a
e com arranjos formais incomuns para o período. uma decisão autoral. Dessa forma, a recepção co- autora, é uma costura de maços de papel onde estão
Fato é que em qualquer tempo um texto como o de nhece as fontes de textos e imagens exportadas de reunidas cartas à personagem Tereza, uma espécie
Minha mãe morrendo e o menino mentido ou Rremenbranças outros locais para o livro. O que pode ser um mero de Godot, do Samuel Beckett, de alguma ilha não
da menina de rua morta nua: e outros livros exige uma pre- detalhe para uns, uma mina de ouro para outros, especificada na narrativa. A aproximação com o
sença do leitor, um impulso maior. Em Minha mãe e um dado concreto para a crítica: não se trata de leitor aparece na largada. Antes de virarem livro,
morrendo..., lemos (ou eu leio) as memórias de um apêndice do texto, mas sua parte constituinte. O pequenos trechos de cartas à Tereza apareciam em
menino-narrador, cuja presença da mãe, mesmo binômio forma e experimentação tão caros aos forma- dois videoartes e cartões-postais com fotografias
depois de morta, é marcante. No segundo, temos listas e aos modernos por si só não justifica uma feitas em diferentes cidades do Recôncavo Baiano.
pequenas narrativas de violência e, na principal, leitura dos romances a partir da ideia de curadoria, O passo seguinte foi de certa forma determinada
que nomeia o livro, baseada em um fato verídico, o mas, sim, uma análise da autoria como propositor pelo público. “As pessoas perguntavam quem era
assassinato de uma criança em um trem-fantasma a partir de várias chaves de leitura. Tereza, queriam ler mais das cartas”, explica. “Mui-
numa cidade do interior de São Paulo. Os livros Minha mãe morrendo e o menino mentido é catalogado to tempo depois, resolvi procurá-la (a Tereza). A
de Valêncio (e não apenas os citados, porque essa como “romance brasileiro” e provoca as caracte- princípio, uma personagem-destinatário, depois
consideração vale para ler a sua obra completa) rizações dadas normalmente ao gênero romance descobri que ela é mais real do que eu julgava”,
apresentam um autor-modelo, recorrendo a Umberto ou até mesmo ao que se convencionou chamar escreve em um dos sites do projeto.
Eco, que exige uma participação efetiva do leitor literatura, devido a justaposição de textos e imagens Além de publicar os textos em formato de li-
em sua lógica de montagem. Não dá para fazer corpo alheias ao mundo das artes, em um experimen- vro, a autora acrescentou outro tópico ao projeto,
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019
LUISA VASCONCELOS
da curadoria,
é resultado das entrevistas com Terezas diversas, primeira intelectual latino-americana. É um tipo
portanto com as leitoras, é a catalogação do Inven- de texto que ganha maior envergadura a depen-
tário da /ilha\ de Tereza, disponível em andarilla.tumblr. der da movimentação feita pelo leitor e que exige
assumindo que se
com e desenvolvido como parte do mestrado que a entradas e saída do literário. Não só o leitor, mas
escritora realiza em Artes Visuais, na Universidade a crítica do texto pode agregar valores que lhe são
Federal de Pernambuco. exteriores e que por isso lhe dão uma dimensão
A busca de referências materiais no mundo tem
relação direta com a recusa aos meios tradicionais
de produção e redimensiona o espaço em relação
pode incendiar o cultural ampliada.
Em Sobre o ofício do curador, Regina Cintrão afirma
que o modo como uma determinada seleção de
ao tempo da experiência, em um envolvimento
que se dá com o corpo e por meio dele. O corpo
está na gênese do conceito de errância, apresentado
conceito de literário obras é exposta denuncia a curadoria do trabalho,
porque cabe a esta a realização de uma montagem
que estabeleça relações formais ou conceituais
por Paola Berenstein Jacques como uma espécie de inconscientemente. Essa ressalva é fundamental entre as peças e as localize de forma estratégica no
“arte de andar pela cidade” ou de “errar pela cida- para não parecer que apenas textos declarada- campo por ela ocupado, “onde os diálogos propos-
de” e é um dos leitmotiv para o trabalho de Deisiane mente experimentais ou de múltiplas linguagens tos facilitam a compreensão dos objetos expostos,
Barbosa, que literalmente buscou material para fazem uso da prática curatorial, quase como um ou num labirinto de ideias onde o visitante se sente
escrever nas errâncias pelas cidades. A escritora rodapé para o entendimento do leitor (e como se perdido”. Portanto, a intenção é observar alguma
entende cartas à Tereza como um livro de artista e re- o leitor precisasse de alguém que desenhe uma autoria contemporânea a luz da curadoria, assu-
conhece um trabalho de curadoria com vistas na interpretação). Em Com armas sonolentas: um romance mindo a possibilidade de incendiar o conceito de
dimensão da troca com o leitor. O processo 100% de formação¸ de Carola Saavedra, o investimento de literário, uma vez que a curadoria reforça a ideia
artesanal, resultado de uma escolha consciente, complementação da leitura está presente a cada de modo de composição com vistas à leitura como
segundo a autora, mistura múltiplos procedimen- parte do livro (título, epígrafes, notas e traduções), visita guiada, portanto jamais neutra, invariavel-
tos como impressão, fotografia e costura manual. ainda que o leitor se encontre diante de um roman- mente interessada.
Deisiane também tem trabalhado com serigrafia ce mais próximo da tradição (ou que faça o elogio
e tingimento de papel em outras produções. O do grande romance). O livro conta a história de NOTAS
projeto completo de cartas pode ser conferido em três mulheres, suas relações com a maternagem, 1. O curador foi entrevistado em janeiro de 2019 para
cartasaatereza.wordpress.com. tocando no não desejo de ser mãe, na violência do- este ensaio, que faz parte de um estudo de pós-dou-
méstica e na difícil tarefa de se desligar dos papeis torado sobre as relações entre autoria e curadoria na
SAÍDA: O AUTOR AINDA ESTÁ LÁ atribuídos ao gênero feminino. Aparentemente, narrativa brasileira contemporânea. Agradeço ao pro-
Walter Benjamin, em O conceito de crítica de arte no tudo está organizado sem arroubos experimen- fessor de Teoria Literária e parceiro de investigação
romantismo alemão, afirma que uma obra deve se- tais, radicado apenas nas palavras, sem recursos Anderson Luís Nunes da Mata (UnB) pela leitura da
guir sua reflexão infinita, mediante o experimento de outros sistemas artísticos. E aqui escolho não primeira versão deste ensaio.
de outra pessoa. Essa aposta no espectador faz me ater a questões editoriais que eventualmente 2. CURI, Fernanda. Ricardo Basbaum: um artista-etc.
pensar que, mesmo quando discreto, o trabalho podem gerar interferências no texto. No entanto, Disponível em www.bienal.org.br/post/551. Acessado
bem-estruturado de curadoria pode ser percebido a tomar pela escolha do título, retirado do poema em 29 de janeiro de 2019.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS
RESENHA
Da primeira vez
REPRODUÇÃO
Zbigniew Herbert (1924-1998) foi um poeta, en- No filme, esculturas de Sérgio Camargo aparecem
saísta e dramaturgo polonês, considerado um dos ao som de dois poemas de Herbert: Um cubo de madeira
mais importantes representantes da poesia do século e fragmentos de Estudo do objeto. Tudo acompanhado
XX. Herbert, que unia em sua poesia o amor pela por música de Schubert, voz de Czesław Miłosz e
tradição e a forma moderna, foi testemunha de dois fragmentos de afresco de Masaccio.
totalitarismos e foi, sem dúvida, filho de sua época: E, no entanto, nada no mundo herbertiano é sim-
lutou por ressuscitar os valores humanistas destruí- ples, excluindo-se talvez a esfera dos valores éticos
dos nos cataclismos da guerra, mesmo sabendo que baseados predominantemente na compaixão, cora-
essa era uma luta cujo resultado estava longe de ser gem e fidelidade. Se a grande literatura é aquela que
promissor. Seus poemas, como os da compatriota e comporta várias leituras e passa longe de ter uma
amiga Wislawa Szymborska, são geralmente peque- única interpretação possível, Herbert, sem dúvida, é
nas narrativas que, escritas com extremo cuidado um grande autor. Seja em seus ensaios, seja nas peças
estilístico e cheias de ambiguidades propositais, ou apócrifos míticos, o espaço da indefinição, sentido
permitem múltiplas leituras e relatam a experiência de uma maneira mais forte pela aparente concretude
moderna, mesmo que frequentemente utilizem para e precisão do estilo, poderia ser classificado como um
isso uma roupagem clássica. Seus versos compostos dos traços predominantes da obra do poeta. Alguns
por várias camadas de sentido conseguem falar si- de seus poemas permitem leituras radicalmente
multaneamente da experiência pessoal, geracional, opostas, pelo que se tornou um dos poetas predile-
nacional e universal. tos dos políticos que representam lados do cenário
Além de ser um poeta que propõe a releitura dos político diversos e, não raramente, opostos. E, como
clássicos e dos mitos, Herbert também é um poeta se trata de um poeta, cujas palavras sempre tiveram
dos objetos. Há toda uma parte de sua obra que se uma grande resposta popular, até hoje, 20 anos após
dedica ao Estudo do objeto (título de um de seus livros de sua morte, ainda se ouvem citações de suas poesias
poesia, de 1961). Os objetos no meio de uma realidade nos discursos políticos na Polônia.
em constante mutação (política e existencial) apa- Talvez parte do crédito pela construção polifônica de
recem como algo mais duradouro que os humanos seus poemas pudesse ser atribuída à censura reinante
e suas ordens. Parecem constituir também um reino na Polônia comunista (sobre o caso específico de
no qual não entram ideologias e sentimentos. Em Herbert e censura escreveu J.M. Coetzee). Era preciso
Herbert, o contato com eles, assim como o contato utilizar a linguagem de Esopo e esconder as alusões
com a tradição, parece funcionar como um substi- políticas na roupagem clássica para poder editar as
SOBRE O TEXTO tuto da presença de algo imutável, essencial, quase obras que tinham duplo ou triplo fundo. E Herbert,
metafísico. No mundo em que as ideologias e utopias que, por um lado opunha-se ativamente ao sistema,
Ao lado, uma apresentação ao em mutação destroem tradições e objetos, estes, além mas, por outro, queria ser publicado, frequentemente
poeta Zbigniew Herbert e seu de apresentarem invejável concretude, constituem lançava mão do recurso que permitia abordar o con-
trabalho. Na próximas páginas, maneira de protestar contra as sanhas imateriais temporâneo falando do universal. Por conta de sua
cinco poemas traduzidos. que destroem as realidades concretas por meio das oposição ao sistema, estreou em livro tardiamente, aos
Serão publicados pela Editora mãos de seus devotos. Esta parte da obra de Herbert 32 anos, em 1956. Até então, escrevia para a gaveta.
Âyiné ainda neste ano. inspirou, entre outros, o cineasta João Moreira Salles. Parte de sua vida foi passada em constantes viagens,
Em 1992, ele dirigiu o curta-metragem Dois poemas. que eram tentativas de conhecer as fontes da tradição
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ocidental e, ao mesmo tempo, fugas da cinzenta e É realista, sabe que o mundo se rege com valores reflexões a respeito da memória dos torturados e
opressiva realidade de seu país. A emigração não era diferentes daqueles nos quais acredita, mas nem torturadores são o tema do poema Da não escrita teoria
uma alternativa viável para Herbert, mas as saídas do por isso deixa de professá-los e vivê-los. A derrota dos sonhos, dedicado à memória do amigo de Herbert,
país, driblando as dificuldades de obter o passaporte na luta contra o mundo é inevitável, mas, mesmo Jean Améry, escritor austríaco de origem judaica que
e dinheiro para se sustentar, eram frequentes e du- fadado a perder, o credo do Senhor Cogito não lhe sofreu as atrocidades das torturas nazistas, vindo
ravam anos. Dos mais de 40 anos da permanência do permite perder a dignidade e deixar de lutar pelo a suicidar-se em 1978. Uma reflexão desse tipo, a
regime comunista na Polônia, Herbert passou cerca que acredita (como vemos em um dos mais famosos respeito da diferença das memórias e dos sonhos
de 20 fora do país. E, no entanto, era um poeta muito poemas do poeta, A mensagem do Senhor Cogito). Seus das vítimas e dos perpetradores de crueldades, in-
polonês, a ponto de ser chamado, em determinada poemas como, por exemplo, O Senhor Cogito sobre a felizmente, nunca e em lugar nenhum perde sua
época, de “poeta do Solidariedade”, por seu envolvi- postura ereta ou O monstro do Senhor Cogito, que, curio- universalidade, e por isso é necessária.
mento com o movimento e ser, enquanto viveu, um samente, se mantêm atuais, eram lidos tanto como Até agora, Herbert ainda é pouco conhecido no
poeta mais popular em seu país que seus colegas que manifestos da luta contra o sistema totalitário (que Brasil, embora suas primeiras traduções tenham sido
foram laureados com o prêmio Nobel: Czesław Miłosz parecia invencível), como da luta contra o mundo obra de Ana Cristina Cesar em parceria com Grażyna
e Wisława Szymborska. consumista e da condição existencial humana. Neles, Drabik, nos anos 1980. Contou ainda com traduções
Uma das criações mais marcantes de Herbert, Herbert alude às fontes da tradição clássica, da poesia de seus poemas publicadas nas antologias Quatro poetas
uma espécie de alter ego poético, é o Senhor Cogito, moderna (por exemplo, a Konstantínos Kaváfis ou poloneses, em tradução de Henryk Siewierski e José
protagonista de muitos de seus poemas e de um livro Fernando Pessoa – se pensarmos na criação de seu Santiago Naud, Poesia alheia, de Nelson Ascher, Céu
poético a ele dedicado, intitulado justamente O Senhor quase heterônimo, o Senhor Cogito) e às situações vazio, de Aleksandar Jovanović e Lira argenta (orga-
Cogito (1974). Grande exegeta de Herbert, também que vão do nível pessoal ao universal. nização de Vanderley Mendonça e tradução minha).
poeta e tradutor, Stanisław Barańczak disse que o Seus grandes temas são temas universais: sofri- O único livro de poesias de Herbert em português
protagonista dos poemas de Herbert é como o deus mento, morte, perguntas sobre o papel da arte, os do Brasil, A viagem do Senhor Cogito, foi publicado em
Jano: consegue olhar simultaneamente para dois objetos e a compaixão. Durante muito tempo, um Katowice (Polônia), com distribuição e tradução
lados opostos, sendo ao mesmo tempo “A” e “não elemento forte na sua poesia foi a luta pela memória minhas. Algumas antologias de seus poemas foram
A” e negando assim a lógica binária que constituiu dos que pereceram na Segunda Guerra Mundial, publicadas nas revistas Piauí (traduções de Danuta
a base dos totalitarismos. lutando contra os invasores alemães e russos, e cuja Haczynska de Nóbrega em parceria com Sílvio Fraga
O Senhor Cogito compartilha alguns traços fí- história foi manipulada e esquecida – como os inte- e de Paulo Henriques Britto) e Qorpus (duas edições
sicos, psicológicos e biográficos com seu autor, a lectuais e oficiais poloneses assassinados em Katyń. com traduções de minha autoria), Poesia sempre e vários
ponto de o nome do personagem ser utilizado com Os fantasmas dos companheiros mortos aparecem poemas esparsos em traduções de Olga Guerizoli
frequência na Polônia para se referir a Herbert. Ele em toda sua poesia. Surgem como os que desafiaram Kempinska em parceria com Carlito Azevedo, Mar-
é uma imagem do intelectual do século XX que se as leis ditadas pelos instintos e que permaneceram celo Paiva de Souza, Dirceu Villa e Pedro Gonzaga.
vê diante de realidades completamente novas: os fiéis a valores diferentes nos tempos de terror e ódio, Em Portugal, além de ter um poema traduzido pelo
totalitarismos que tiram a liberdade, o consumismo como os protagonistas do poema Duas gotas, que abre próprio Herberto Helder, contou com um livro de
que torna a humanidade cada vez mais superficial seu primeiro livro de poesia. traduções a partir do inglês feitas por José Souza
e o capitalismo que oprime de modo mais discreto A necessidade de revisitar a história e rever as atro- Braga. Felizmente, a época de difícil acesso a Herbert
que os regimes de exceção, mas nem por isso deixa cidades perpetradas, tendo como intuito sensibilizar no Brasil está chegando ao fim. A Âyiné publicou,
de fazê-lo. O Senhor Cogito, que, apesar do nome seus leitores, transforma sua poesia em dispositivo em outubro do ano passado, um de seus livros de
de origem cartesiana, não é um racionalista – muito de compaixão. Além do sofrimento naturalmente ensaios (Um bárbaro no jardim), em tradução de Henryk
pelo contrário –, é um ser que duvida e permanece inerente à condição humana, o ser humano aper- Siewierski, e prepara para este ano o primeiro volume
fiel a si mesmo, proclamando o humanismo cético. feiçoou maneiras de fazer seu próximo sofrer. As de suas Poesias completas, traduzidas por mim.
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DA NÃO ESCRITA TEORIA DOS SONHOS ajeitam os restos de cabelo como uma coroa de
[louros
À memória de Jean Améry sob a água do esquecimento que lava tudo
ensaboam seu corpo com sabonete da marca
1 [Macbeth
Os torturadores dormem tranquilos têm sonhos
[cor-de-rosa 2
os bonachões genocidas a quem já perdoou Por que o sonho – o refúgio de todos os seres
a curta memória humana – os estrangeiros e os [humanos
[da tribo recusa a sua graça às vítimas da violência
o vento suave vira as páginas dos álbuns de por que à noite sangram entre os lençóis limpos
[família e entram nas suas camas como nas câmaras de
as janelas da casa abertas para agosto a sombra [torturas
[da macieira em flor como na cela da morte como na sombra da forca
sob a qual se aglomerou a fina estirpe afinal eles também tiveram uma mãe e viram
a carruagem aberta do avô a expedição até a o bosque a clareira a macieira em flor a rosa
[igreja quem baniu tudo isso dos recônditos da alma
a primeira comunhão o primeiro abraço da mãe eles também viveram instantes de felicidade
a fogueira numa clareira e o céu estrelado acima [então por que
sem sinais e mistérios sem apocalipse seus rugidos despertam de noite os familiares
então dormem tranquilos têm sonhos nutritivos [inocentes
cheios de alimento bebidas gordos corpos e irrompem mais uma vez numa fuga insana
[femininos batendo a cabeça na parede e depois não
com os quais jogos amorosos nos emaranhados [dormem mais
[dos bosques fitando obtusamente o relógio que nada mudará
e acima disso tudo flui uma voz inesquecível
uma voz límpida como uma fonte inocente como o sino da memória repete o grande pavor
[um eco o sino da memória imutavelmente soa o alarme
acerca do menino que encontrou uma rosa no
[prado entre as urzes deveras é duro confessar os torturadores
[venceram
o sino da memória não desperta fantasmas nem as vítimas para toda a eternidade da vida já estão
[pesadelos [derrotadas
o sino da memória repete a grande absolvição
assim precisam por si mesmas conciliar-se com
despertam cedo pela manhã cheios de vontade [este castigo sem culpa
[de potência com a cicatriz da vergonha a impressão digital na
meticulosamente barbeiam suas bochechas de [bochecha
[comerciantes com a abjeta vontade de sobreviver à tentação de
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RESENHAS
CAFI/ REPRODUÇÃO
e resiliente
com Clube da esquina e outros volume da coleção O livro do o folk de Minas. Ao lado referência ao simbólico
discos que fomentavam disco sobre Clube da esquina, de uma arrojada síntese Museu Clube da Esquina
meu imaginário acerca de escrito pelo jornalista e musical, esboçou-se permaneciam afixadas nos
daquele álbum
Minas Gerais, suas cidades antropólogo Paulo Thiago também no disco uma mesmos pontos de antes
montanhosas e um sem de Mello. Durante a leitura, síntese de um Brasil – uma delas, no edifício
número de nuvens ciganas me dei conta de que as profundo e afetuoso, Malleta, com adesivos
que eu acreditava pairar duas visões que expus em frangalhos, mas descascados onde ainda
RESENHAS
DIVULGAÇÃO
recriada para
escritores obscuros. como se sentíssemos na comovemos com a tristeza realidade propriamente:
Amanhã a loja abre pele a letargia dos dias se de pastéis de carne sem o livro traceja uma visão
cedo, e ele tem pressa consumindo, indistintos. ovos cozidos no recheio, de mundo, insinua uma
as desolações
para separar os livros, Ou como se, tateando a com uma envergonhada resposta estética aos
arrumar as prateleiras, rugosidade do mundo, mortadela servida em malogros da existência.
catalogar os achados. percebêssemos num palitinhos no restaurante “Sim, é preciso que
Depois de consultar estalo que o novo é uma que já foi esnobe, com alguém nos diga que
José
CASTELLO KARINA FREITAS
Psicologia do vassalo
Ano de 1865. Na famosa Passagem, galeria sente-se sereno, quase aliviado, como se a de visitantes que chegam à loja, que agora
comercial de luxo que ainda hoje resiste no agressão tivesse sido, na verdade, uma con- pagam para ver não apenas um crocodilo,
centro de São Petersburgo, Rússia, um certo quista. Aqui – nessa inaceitável reviravolta –, mas um crocodilo que engoliu um homem.
Ivan Matviéievitch passeia com Ielena Ivâ- começa a parte mais chocante de O crocodilo, Passa a fazer as contas, constata os aspectos
novna, sua esposa. Funcionário graduado, novela que Fiodor Dostoiévski publicou no vantajosos de sua desgraça. A ideia de lucro
Ivan já está com bilhetes comprados para a ano de 1865 e que leio na tradução de Boris se sobrepõe a todas as outras. Resolve então
Europa, onde passará, por ordem médica, Schnaiderman para a Editora 34. Pior que o que continuará, até feliz, na barriga do bi-
uma temporada de repouso. Em uma das lojas desastre é a apatia, e também – como fazem cho. “Não me aborrecerei!”, promete. Já não
da galeria, dentro de uma tina, exibe-se um os vassalos – a submissão ao agressor. É nesse precisa de sua viagem de férias. “Somente
imenso crocodilo, recém-chegado à capital. ponto – em nosso mundo insensível, indi- agora, dispondo de lazer, posso sonhar com
O casal resolve conhecê-lo. “Então isso é um ferente, em que agimos, um pouco, como a melhoria da sorte de toda a humanidade”.
crocodilo!”, exclama Ielena. “E eu que pensei sonâmbulos – que a novela de Dostoiévski E arremata, cheio de si: “Do crocodilo hão
que ele fosse... diferente!” ganha surpreendente atualidade. de sair agora a verdade e a luz”. Sente-se
O proprietário da loja, um alemão, batizou As ameaças de guerra se multiplicam, mi- designado a um trabalho especial. A desdita
o réptil de Karlchen, isto é, Carlinhos. Porém, grantes em desespero se afogam nos oceanos, se torna seu prêmio.
o bicho não desperta a mesma ternura em a fome e a miséria se disseminam, o planeta Revela ao amigo, por fim, um disparate:
todos os visitantes. “Como é nojento esse parece, tantas vezes, prestes a explodir; o fa- que, por dentro, o crocodilo é completamente
crocodilo!”, Ielena desabafa, e, para tran- natismo se expande, e o diálogo se torna cada oco. Embora vivo, é tão vazio quanto um
quilizá-la, Ivan, com uma luva, começa a vez mais difícil. Ainda assim, anestesiados, monstro de papel. O amigo ainda resiste em
acariciar o focinho do animal. Tudo parece abobalhados, continuamos a seguir nossas aceitar. “Tudo isso são coisas fantásticas, em
divertido, embora exótico e mesmo perigoso, vidas medíocres, nossas rotinas vazias, conti- que mal posso acreditar. Mas será possível,
até que o monstro, exibindo suas mandíbu- nuamos a encenar o script de nossos bons há- será possível que você pretenda nunca mais
las, devora Ivan Matviéievitch vivo. Começa bitos. Que outra coisa faz Ivan Matviéievitch jantar?”, pergunta, insistindo em sustentar o
pelas pernas, engole-as, regurgita, engole de senão gozar do próprio sofrimento? Tomando prosaico diante do absurdo. “Com que tolices
novo. “Finalmente, numa tragada decisi- suas dores, e ainda perplexo, o narrador da você se preocupa, cabeça fútil e ociosa!”,
va, o crocodilo fez entrar em si o meu culto história pensa em recorrer aos superiores para protesta Ivan. “Eu lhe falo das grandes ideias,
amigo, inteiro, sem qualquer sobra”, relata prestar queixa pela agressão. Mas a entrevista e você...” Também aqui o protagonista de
o narrador. Como um Geppetto dentro de que tem com Timofiéi Siemiônitch, o chefe, Dostoiévski se torna nosso contemporâneo.
sua baleia, Ivan, ainda vivo, passa a habitar mostra-se inútil. Já não se interessa pelos aspectos humanos,
a barriga do réptil. “Quem o mandou entrar no crocodilo?”, está dominado pelo cálculo e pela ganân-
O que é fantástico e também repulsivo, repreende Timofiéi, indignado. “Uma pessoa cia. Além de tudo, mesmo recluso em uma
contudo, logo se transforma em algo normal. séria, na posse de determinado cargo, que barriga vazia, ele passa a brilhar e a brilhar
“Oh, o meu crocodilo!”, exclama o proprie- vive em matrimônio legítimo, e de repen- cada vez mais. As filas se alongam, o interesse
tário, mais preocupado com o predador do te... um tal passo!” Pela falta de um prece- aumenta, Ivan é um astro da... zoologia?
que com a vítima. “Ele estava provocan- dente, declara-se incapacitado de pensar. A Ivan teme, apenas, a agressão dos espíritos
do o crocodilo”, reclama, referindo-se ao obsessão pelo cálculo contamina o próprio críticos, da imprensa, das zombarias. “Tenho
desaparecido Ivan. “O nosso Carlinhos, o narrador, o amigo de Ivan, que passa a ima- medo de que os visitantes levianos, os néscios
nosso queridíssimo Carlinhos vai morrer!”, ginar que vantagens a vítima poderia tirar e invejosos e, de modo geral, os niilistas me
enlouquece a mulher do alemão. Já ninguém de seu triste destino. Pensam, quem sabe, tornem alvo de sua chacota.” Teme a crítica.
se preocupa mais com o homem que, depois “numa missão oficial... para as profundezas Também para ele, como para tantos homens
de engolido, agora está preso para sempre nas do crocodilo”. Além dos ganhos pecuniários, práticos de hoje, a crítica é não só perigosa,
tripas de um monstro. haveria vantagens espirituais, para a ciência mas perniciosa, e até escandalosa. Enquanto
Contudo, imitando o que tantos fazem hoje, e para a filosofia. se cega com a fama, a mulher, Ielena, pensa
o próprio Ivan se torna, ele mesmo, comparsa Voltando logo depois à loja, o narrador em abandoná-lo. “Quer dizer que ele vai per-
de seu agressor. Quando Ielena, aos gritos, constata que Ivan continua vivo e com saú- manecer lá, dentro do crocodilo, e talvez passe
lhe pergunta se está vivo, ele, com espantosa de. À beira da tina, passa a conversar com o a vida toda assim, e eu tenho que esperá-lo
serenidade, a tranquiliza: “Vivo e com saú- amigo. Ele parece entusiasmado com a ideia aqui?” Também como em nossos dias, os
de e, graças ao Altíssimo, fui engolido sem de uma missão oficial ao interior do réptil. laços amorosos definham. Será que estamos
qualquer dano”. Apesar do ataque brutal, Encanta-lhe, também, o aumento do número todos, igualmente, no interior de um monstro?