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Nº 158 - Abril 2019 - R$ 6,00 - www.suplementopernambuco.com.

br

KARINA FREITAS

Uma discussão sobre os apagamentos de sexualidades não-normativas


na literatura, a partir de obras lançadas por autoras lésbicas

POLITIZAÇÃO DA NATUREZA | ZBIGNIEW HERBERT | LUIZ RUFFATO | ESCRITA E CURADORIA


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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

C A RTA DOS E DI TOR E S E X PE DI E N T E


GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

A
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
capa deste mês é um convite a enxergar parecidas de intervenção no mundo. Isso se deve, em larga
o que está lá, mas que é ocultado pelas medida, às transformações pelas quais o racismo passou Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
disposições estruturais da sociedade. A para continuar mantendo privilégios.
colaboradora Carol Almeida traça uma O ato de narrar as questões que envolvem a si mesmos e Secretário da Casa Civil
Nilton da Mota Silveira Filho
rede de referências (de livros, entrevistas o imaginário também se presentifica na resenha de Panton
e a sua própria) para expor como questões Pia’, reunião de relatos orais de indígenas sobre a própria COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
que envolvem lesbianidade em obras assinadas por autoras vida e o mito de Makunaima, que influenciou Mário de Presidente
lésbicas são apagadas pela crítica. Trata-se daquilo que Andrade. Com isso, vê-se que o “mito” é uma forma Ricardo Leitão
a poeta Adrienne Rich chamou de “heterossexualidade original de elaborar o mundo. Nessas narrativas, vê-se Diretor de Produção e Edição
compulsória”: quando experiências que envolvem a relação profunda com a natureza, abordada em outro Ricardo Melo
sexualidades não-normativas são negligenciadas/ momento desta edição: a entrevista com o artista Pedro Diretor Administrativo e Financeiro
diminuídas em leituras. Por conta disso, muitas delas têm Motta, na qual se vê a urgência de politizarmos o ecológico. Bráulio Meneses
criado definições adequadas à própria obra, em detrimento Nesta edição, o ensaio de Edma de Góis busca
das categorias usadas pela crítica. A capa, de Karina compreender algumas estratégias narrativas de autores
Freitas, demonstra algo desse esforço: contra o monólito contemporâneos que fazem escoar para as obras uma
da heterossexualidade compulsória, estão os incêndios lógica de curadoria oriunda das artes visuais. O assunto
Uma publicação da Cepe Editora
críticos criados pelo questionamento em um contexto deixa mais rico o debate sobre as intersemioses na Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
“quente”, que colabora para a realização desses debates. literatura feita hoje. Pernambuco – CEP: 50100-140
Também é sobre enxergar o que está lá de que trata E mais: o último grande livro de Roberto Bolaño chega Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
Raquel Barreto ao falar sobre as autobiografias de ao Brasil, poemas de Zbigniew Herbert, além de várias
SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
militantes negros como documentos políticos. Parte da resenhas e das colunas de José Castello e Everardo Norões. Luiz Arrais
recém-lançada autobiografia de Angela Davis para mostrar
EDITOR
que, em diferentes épocas, militantes assumiram propostas Boa leitura a todas e todos! Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes

COL A BOR A M N E STA E DIÇ ÃO DIAGRAMAÇÃO E ARTE


Filipe Aca, Karina Freitas, Janio Santos e Luísa Vasconcelos
Carol Almeida, Leonardo Nascimento, Luiz Ruffato, TRATAMENTO DE IMAGEM
crítica de cinema jornalista e mestrando escritor, autor Agelson Soares
(foradequadro.com) em Antropologia de Eles eram REVISÃO
e doutoranda em (Museu Nacional/ muitos cavalos José Bruno Marinho e Maria Helena Pôrto
Comunicação (UFPE) UFRJ) COLUNISTAS
Everardo Norões, José Castello e Wellington de Melo
PRODUÇÃO GRÁFICA
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino
Edma de Góis, pós-doutoranda em Estudo de Linguagens (Uneb); Felipe Charbel, escritor e professor (UFRJ), autor de e Sóstenes Fernandes
Janelas irreais; Pedro Mandagará, professor e pesquisador (UnB); Piotr Kilanowski, tradutor e professor (UFPR); Raquel MARKETING E VENDAS
Barreto, historiadora e doutoranda em História (UFF); Renato Contente, jornalista e doutorando em Sociologia (UFPE) Tarcísio Pereira, Rafael Chagas e Rosana Galvão
E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

BASTIDORES

Em busca da
FILIPE ACA

forma ideal para


o verão tardio
Um romance sobre perdas,
memórias e questões
socioeconômicas se
insere dentro de uma obra
maior, que passeia por
possibilidades narrativas

Luiz Ruffato Meus livros levam bastante tempo para matura-


rem. Eu só me sento para executar o trabalho braçal
Creio que há apenas uma maneira de contar uma quando constato que já conheço em profundidade
história. O grande desafio do escritor é exatamente os personagens e o ambiente onde vai se desenro-
descobrir essa forma singular que dará vida a per- lar a história – esta, no entanto, vou descobrindo
sonagens, paisagens e dramas. Se, por felicidade, aos poucos, de acordo com o andamento da es-
ele a encontra, a narrativa flui, verossímil e con- crita. Nunca anoto nada, não fotografo, não faço
tundente, alcançando sua finalidade – que, de fato, entrevistas, não me submeto a laboratórios ou
é uma finalidade sem fim –: transportar o leitor coisas que tais. Escolhida a história que vou contar,
para um mundo que não é o seu, confrontando- deixo que ela vá se estruturando dentro de mim,
-o e transformando-o por meio da empatia. E ele devagar. Os personagens se aproximam, tímidos
poderá retornar ao livro inúmeras vezes e, em no início, ousados mais à frente, e, apossando-se
cada uma delas, experienciará novas sensações, de elementos da memória coletiva, distribuem os
pois, sendo o sentido da vida inesgotável, o texto papéis, ocupam seus lugares. Se, a princípio, por
que consegue essa transcendência também o será. exemplo, imaginei que o narrador seria o homem
Caso, no entanto, o escritor não alcance a forma que avistou, ainda menino, a cena do suicídio
adequada, a narrativa desanda e, por melhor que pela janela da casa, logo percebi que ele nem faria
seja a fabulação, ao final sairemos com a percepção parte da trama. Concluí que ele serviu apenas para
de que fomos ludibriados. manter viva aquela imagem, para ser posterior-
Assim, cada livro meu é completamente diferente mente usada em outra trama. Depois, pensei que
do outro, embora traga, digamos assim, uma as- descreveria a biografia da menina, os fatos que
sinatura, que podemos chamar de estilo, algo que determinaram a curta caminhada, culminando
identifica o autor, mesmo que ele mude de gênero, com sua terrível decisão – e tampouco essa ideia
de universo, de interesse. Grosso modo, De mim já se solidificou. A história que se impôs tem, sim,
nem se lembra (2007) atualiza o relato epistolográfico; a menina como personagem principal, mas num
Estive em Lisboa e lembrei de você (2009) recicla o ro- livro no qual ela praticamente não aparece, é ape-
mance-reportagem; Flores artificiais (2014) recupera o nas uma lembrança distante.
chamado manuscrit trouvé, o manuscrito encontrado; Então, em meados de 2016 a menina possuía
Inferno provisório (2016) funda o que denomino de nome, Lígia; família: a mãe, Stella Moretto, costu-
“realismo capitalista”, ou seja, a história coletiva reira, e o pai, José Nivaldo Nunes, operário têxtil; e
construída a partir de histórias individuais (o oposto data de nascimento e de morte, 1960-1975. Tam-
do horroroso “realismo socialista”, portanto). Na bém, nessa altura, o narrador já tinha emergido:
base de todos esses livros, está o inaugural Eles eram Oséias, irmão um ano mais novo que ela, repre-
muitos cavalos (2001), espécie de caderno de possi- sentante de vendas de uma empresa de produtos
bilidades narrativas, a que batizei de “instalação agropecuários no estado de São Paulo, que, após o
literária”, núcleo de onde emanam todos os outros suicídio de Lígia, decide ir embora de Cataguases.
livros, incluindo os contos de A cidade dorme (2018). A narrativa descreve sua volta, após quase vinte
Não foi diferente o caso de O verão tardio. Há uma anos afastado (ele deixa de visitar a cidade depois
passagem em Eles eram muitos cavalos, uma passagem da morte da mãe, em 1995). A ação transcorre
sutil, quase imperceptível, que, por sua força dra- durante seis dias nos quais ele revisita os irmãos,
mática, me persegue desde sempre. Está na página Isabela, Rosana e João Lúcio, cada um pertencente
122 da 4ª reimpressão da 11ª edição, no capítulo ou agora a um estrato social diferente.
fragmento número 67, intitulado Insônia. Trata-se do Penso que O verão tardio pode ser lido em duas
fluxo de consciência de um personagem que, a certa chaves diversas: uma, realista, a de um sujeito
O LIVRO altura, lembra: “morreu no beira-rio, tiro no ouvido, inadequado a seu universo, torturado pela tentativa
O verão tardio uma menina, quinze anos, ouviu?, é tiro!, deitada infrutífera de resgatar o passado; outra, alegórica,
Editora Companhia das Letras na poltrona da sala, o sangue escorrendo, pingan- a de uma descrição da história brasileira con-
Páginas 240 do no tapete, os olhos me olhando, me pedindo, temporânea, na qual as classes sociais – pobres,
Preço R$ 44,90 me, relógio marcando quatro e meia”. Tentando remediados, ricos – romperam o diálogo e, como
compreender essa tragédia, passei muitos anos, no afirma uma personagem a certa altura, tornaram-
plano da ficção, convivendo, cotidianamente, com -se “planetas errantes” cujas trajetórias de vez em
os familiares, amigos e conhecidos dessa menina. quando se cruzam e quase se destroem.
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ARTIGO

A escrita de É publicada pela primeira vez no Brasil Uma


autobiografia (Boitempo, 2019), de Angela Davis,
originalmente lançada nos Estados Unidos em

si como forma
1974, após o término do julgamento que conferiu à
autora notoriedade internacional. Graças à exitosa
campanha por sua libertação, intitulada Free Angela
and all political prisioners (“Libertem Angela e todos
os presos políticos”), foi transformada em ícone

de ativismo
do Black Power, e sua imagem tornou-se popular.
O livro será uma oportunidade para conhecer a
autora a partir de seu relato pessoal.
A produção autoral da filósofa Angela Y. Davis
tem se tornado referência para debates e pesquisas
Sobre a recém-lançada no Brasil. A boa recepção da autora coincide com as
mudanças provocadas pelas ações afirmativas nas

autobiografia de Angela universidades, que criaram demandas por novas


referências epistemológicas, menos eurocêntricas.

Davis e as slave narratives


A obra de Angela se dedica às questões sociais,
políticas e culturais. No elenco dos temas que in-
vestiga e analisa, destacam-se as relações entre o
racismo, o capitalismo e a compreensão da existên-
Raquel Barreto cia de um continuum histórico que liga escravidão,
abolição e as prisões (as novas plantations), além
de reflexões sobre encarceramento da população
negra (e outros grupos étnicos minoritários) nos
Estados Unidos, feminismo negro, cultura popular
e outros assuntos.
Uma autobiografia apresenta um enfoque distinto
da autora, não observado nas demais publicações:
o relato em primeira pessoa dos primeiros 28 de
sua trajetória. Neste período, de caráter formativo,
já se delineavam temáticas que singularizaram sua
teoria. O livro cobre as décadas de 1950 e 1970,
atravessando uma conjuntura política, social e
cultural de muitas transformações nos Estados
Unidos e no mundo.
O convite para a elaboração da autobiografia
partiu da escritora Toni Morrison – a única mu-
lher negra a ganhar um Nobel de Literatura, em
1993. Na década de 1970, Morrison trabalhava na
Random House, uma das principais editoras de
língua inglesa. Durante sua gestão, garantiu que
mais autores africanos e afro-americanos fossem
publicados. Essa seria sua contribuição política:
“Eu vou publicar essas vozes em vez de marchar”,
disse, em referência às marchas do Movimento por
Direitos Civis.1 Seguindo esse propósito, convidou
Angela, recém-saída de um histórico processo
judicial, para que escrevesse sua autobiografia.
Inicialmente, o convite não foi aceito. Davis
considerava que ainda era muito jovem para es-
crever uma autobiografia e, além disso, não que-
ria personalizar a militância. Para convencê-la,
Morrison argumentou que autobiografia poderia
focar não apenas na autora, mas no movimento
em que atuou. “Quando decidi, afinal, escrever o
livro, foi porque passei a vislumbrá-lo como uma
autobiografia política que enfatizava as pessoas, os
acontecimentos e as forças que, durante minha
vida, me impulsionaram em direção ao meu atual
engajamento.” a grande maioria dos afro-americanos da mesma
Na cultura política estadunidense, as autobio- geração não tiveram.
grafias têm um papel de destaque, frequentemente Sua graduação foi em Literatura Francesa pela
usadas por políticos e pessoas públicas que pre- Universidade Brandeis, tendo como trabalho de
tendem construir uma narrativa pública e oficial conclusão uma análise sobre o autor francês Alain
de si. Há, por exemplo, um número considerável Robbe-Grillet (1922-2008), representante do Nouve-
de ex-presidentes que publicaram uma ou mais au roman. Angela analisou as possibilidades lançadas
autobiografias, escritas tanto no período eleitoral pela obra do autor – marcada pelo anonimato,
como naquele posterior a seus mandatos. Na co- pela impessoalidade e pelas máquinas que frag-
munidade afro-americana, a prática também é mentavam a existência – para o entendimento da
recorrente. Autobiografia de Malcolm X (1965), do líder realidade contemporânea.3
e ideólogo do nacionalismo negro, por exemplo, é A aproximação com a Filosofia iniciou ainda na
uma obra fundamental que serviu para toda uma graduação, através dos contatos com o filósofo e
geração de militantes do movimento Black Power. professor Herbert Marcuse (1898-1979), que lecio-
nava em Brandeis na ocasião. Angela decidiu fazer o
A AUTORA doutorado em Filosofia. O plano inicial era cursá-lo
Angela Davis nasceu em 1944 no Alabama, um na Universidade de Frankfurt, com Theodor Adorno.
estado legalmente segregado por um conjunto Porém, em 1967, devido ao clima político intenso
de leis, em vigor entre 1876 a 1965, que negavam nos Estados Unidos de agitações e movimentos,
direitos civis e políticos à população negra. Em ela decidiu sair da Alemanha, voltar aos Estados
1963, o Alabama ganhou destaque internacional Unidos e continuar a formação com Marcuse, que,
por causa da ação de supremacistas brancos que na ocasião, lecionava na Universidade da Califórnia,
jogaram uma bomba em uma igreja protestante, em San Diego.
matando quatro meninas negras. Sua militância se iniciou nesse período, partici-
Em sua autobiografia, a autora salienta como pando de organizações do movimento Black Power,
sua trajetória foi marcada por uma forte relação do Comitê de Solidariedade aos Presos Políticos da
com os estudos, o que lhe permitiu ingressar em Penitenciária Estadual de San Quentin e do Coletivo
prestigiosas instituições de ensino, obter bolsas, Che-Lumumba, composto por militantes negros do
fazer intercâmbio na Europa, oportunidades que Partido Comunista dos Estados Unidos. Seu intenso
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engajamento a transformou em alvo da persegui-


ção estatal em duas conhecidas ocasiões. Primei-
ramente em 1969, quando se tornou a primeira
ro, isto é, a conformidade a certos padrões narra-
tivos que procuram construir uma apresentação
pública de si, o estabelecimento de uma sequência
A autobiografia de
professora negra de Filosofia da Universidade da
Califórnia. O então governador do Estado, Ronald
Reagan, queria impedi-la de assumir o cargo por
lógica entre os acontecimentos da própria vida,
a análise e justificava das próprias escolhas, ou
seja, “tornar-se o ideólogo de sua própria vida”.
Davis é de 1974 e
ser membro do Partido Comunista. E depois, em
agosto de 1970, quando, após três meses de fuga
O objetivo, para Angela Davis, era justificar seu
engajamento político nas lutas por transformações traz a vertigem de
ocorridos históricos
e clandestinidade, foi presa pelo FBI, falsamente revolucionárias.
acusada por crimes que não cometeu. O objetivo É interessante observar que, contrariando a for-
era conter sua possível influência política na co- ma tradicional das autobiografias – que começam

responsáveis por
munidade negra – a prática, recorrente no período, com as origens familiares, o nascimento ou as
atingiu outros militantes negros através das ações memórias de infância –, a autora inicia o relato no
do Cointelpro.4 A cobertura midiática do processo exato momento em que se tornava uma fugitiva
judicial, que a inocentou no final, proporcionou-
-lhe popularidade internacional.
No período em que esteve presa, aguardando o jul-
do Estado e entrava na clandestinidade. Desfaz
qualquer imagem heroica de si ao expor seu medo
e sua fragilidade: “Imagens de ataques lampejavam
mudanças sociais
gamento, Angela produziu artigos em que elaborou
reflexões conceituais. Desenvolveu, particularmen-
te, dois aspectos centrais de sua teoria: a análise das
em minha mente, mas não eram abstratas – eram
cenas nítidas de metralhadoras surgindo na escuri-
dão, cercando Helen e eu, abrindo fogo...”, escreve.
que perduram
prisões e suas relações com o racismo nos Estados O livro recupera o ritmo acelerado e efervescen- Uma dimensão inseparável da definição de quem
Unidos; e a gênese de uma teoria sobre a condição te dos múltiplos acontecimentos históricos que é autora é o fato de ser uma mulher negra, algo que
das mulheres negras pautada nas dimensões de clas- proporcionaram mudanças sociais e culturais que atravessa sua trajetória e sua produção intelectual.
se, raça e gênero. Dessa forma, ofertou contribuição perduram no presente. Um exemplo significativo Em Uma autobiografia, aparecem algumas das cir-
original à Teoria Crítica e a Black Radical Tradition.5 a mencionar foi a descolonização estética do corpo ne- cunstâncias nas quais confrontou as expectativas e
gro e sua ressignificação como lugar de inscrição presunções sobre os comportamentos que deveria
AUTOBIOGRAFIA política, bastante evidente no “cabelo afro” da ter. No movimento pela libertação negra, não foi
Uma autobiografia, apesar de política, como a autora autora – estilo nomeado no Brasil, sintomatica- diferente: “Eu me familiarizei muito cedo com a
definiu, manteve características próprias do gêne- mente, de black power. presença generalizada de uma lastimável síndrome
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ARTIGO

entre alguns ativistas negros do sexo masculino


– confundir sua atividade política com a afirma-
ção de sua masculinidade. Eles viam – e alguns
ainda veem – a condição de homem negro como
algo separado da condição de mulher negra. Esses
homens enxergam as mulheres negras como uma
ameaça à realização de sua condição de homens
– particularmente aquelas mulheres negras que
tomam a iniciativa e trabalham para se tornarem
líderes por meio de seus próprios esforços”.
É relevante ressaltar a importância da publica-
ção, uma vez que há poucas mulheres negras que
escreveram textos memorialísticos ou autobio-
gráficos. No Brasil, podemos mencionar Carolina
Maria de Jesus como um dos raros exemplos. Nos
Estados Unidos, por características próprias da
formação de seu campo literário e da história dos
afro-americanos, existe um número maior de
publicações do gênero.
Uma autobiografia é relato intimista sobre uma
geração de militantes negros/as engajados/as em
um projeto revolucionário de transformação po-
lítica, social e cultural contra a exclusão social
e o racismo, que custou a vida ou liberdade de
muitos. Detalha a atmosfera e o ambiente coletivo
daqueles anos. Lança um olhar, a partir de seu
tempo histórico, para si e, ao mesmo tempo, para o
movimento, evidenciando as transformações mú-
tuas e uma relação indivisível entre ambos: “Para
mim, a revolução nunca foi uma ‘coisa temporária
a se fazer’ antes de eu me estabilizar; não era um
clube da moda com jargões recém-criados nem
um novo tipo de vida social – que se tornava emo-
cionante pelo risco e pelo confronto e glamouroso
pelo vestuário. Revolução é coisa séria, a coisa
mais séria na vida de uma pessoa revolucionária.
Quando alguém se compromete com a luta, deve
ser para sempre”.

SEGUINDO UMA TRADIÇÃO


Quando decidiu escrever uma autobiografia políti-
ca, Angela Davis não inventou propriamente um
conceito, mas seguiu uma tradição já estabelecida
de textos autobiográficos de homens e mulheres
negras ex-escravizados/as conhecida como slave
narratives, que reúne escritos publicados entre 1760
e 1865. Segundo especialistas, foi o primeiro gênero
literário de prosa criado por afro-americanos/as.
As obras possuem características afins, estru-
turas narrativas que seguem algumas convenções.
As autobiografias A trajetória de Douglass é bastante singular. Nas-
ceu em Maryland, filho de mãe negra escravizada
e de pai branco que não conheceu. Foi alfabetizado
São relatos de vida (ou um fragmento dela) elaborados
por uma pessoa que já se encontrava na condição
de liberta ou fugitiva da escravidão. Iniciavam
de Davis e Douglass pela esposa de um de seus “proprietários” (prática
considerada ilegal), o que determinou sua forma-
ção. Aos 21 anos, conseguiu fugir para o estado de
com o nascimento (que poderia ser no continente
africano), traçam o percurso do protagonista da trazem sujeitos Massachusetts com ajuda de um líder abolicionista.
A partir daí, engajou-se no movimento abolicio-

negros criando
escravidão à liberdade – que pode incluir a fuga, nista e se tornou sua principal liderança. Além de
mas sem revelar detalhes comprometedores sobre ter sido homem público, orador, escritor e jorna-
o feito, e com omissão de informações que pu- lista, participou ativamente da política americana

definições de
dessem identificar algumas pessoas. Descrevem, e apoiou o sufrágio feminino. Viajou à Europa para
também, experiências de castigos físicos e o uso divulgar e obter apoio à abolição da escravidão.
da violência por parte dos senhores ou capatazes. Douglass compõe a tradição política e filosófica
Os títulos das narrativas possuem, usualmente,
a menção “escritos por ele/a mesmo/a”, o que
pode ser interpretado como um esforço, por parte
liberdade e formas que formou Angela Davis. O primeiro curso que ela
ofertou na Universidade da Califórnia, em 1969,
intitulava-se Os temas filosóficos recorrentes na litera-
dos narradores, para reforçar a ideia da autoria e a
veracidade dos fatos narrados no texto. Essas auto-
biografias proporcionam um testemunho vivencial
de alcançá-las tura negra. Abordava conceitualmente a ideia da
liberdade a partir da produção literária negra, que
evidenciava os limites entre o conceito da liberdade
sobre o cativeiro e foram usadas, em seu contexto, O gênero deixou marcas e influências em obras e sua prática, reforçando a ausência histórica de
pelo movimento abolicionista como um potente contemporâneas de autoria negra, como Amada liberdade para os afro-americanos. O primeiro
instrumento de denúncia do terror da escravidão. (1987), de Toni Morrison, e Kindred (1979) de Octavia autor analisado no curso foi Frederick Douglass,
As slave narratives desempenharam um papel im- Butler, que recuperam partes das estruturas ou a partir de sua autobiografia e de sua experiência
portante ao proporcionar às pessoas que foram das temáticas das slave narratives para ambientarem negativa da liberdade como escravizado.
escravizadas a possibilidade de elaborar sua expe- histórias no período da escravidão. Em Life and times de Frederick Douglass, o autor relata
riência e seu passado. Cabe lembrar que a escravi- que, na infância, perguntou a si mesmo: Por que
dão, como sistema de dominação, pressupunha a FREDERICK DOUGLASS sou escravo? Por que algumas pessoas são escravas
negação da humanidade e transformação de seres No conjunto das slave narratives, destacam-se as e outras senhores?, assinalando a consciência sobre
humanos em objetos-mercadorias, alicerçada na obras de Frederick Douglass (1818-1895), consi- sua própria condição de escravizado. A narrativa de
subjugação física, na tentativa de romper a cons- derado o autor mais relevante do gênero por não Douglass atravessou a jornada física e filosófica da
ciência de si e na aniquilação da identidade da reproduzir suas formas tradicionais e adotar um escravidão à liberdade. No percurso para alcançar
pessoa escravizada. estilo próprio. Escreveu três autobiografias em sua liberdade, compreendeu a importância da re-
As autobiografias femininas acrescentavam ex- diferentes etapas de sua vida: Narrative of the life of sistência física e da consciência. Um acontecimen-
periências específicas, como a violência sexual – Frederick Douglass, an american slave. Written by himself to bem ilustrativo foi o fato de resistir fisicamente
estupros e assédios – e os ciúmes das sinhás. Um (Narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo ameri- e confrontar um de seus senhores mais violentos,
exemplo conhecido é o livro Incidents in the life of a cano. Escrita por ele mesmo), de 1845; My bondage and my Sr. Covey, que o havia quebrado no corpo, na alma e
slave girl (Incidentes na vida de uma jovem escrava), lan- freedom, (Minha servidão e minha liberdade), publicada no espírito: “Minha resistência foi completamente
çado em 1861 por Harriet Jacobs (1813-1897), que em 1855; Life and times of Frederick Douglass (A vida e os inesperada, Covey ficou todo surpreso. Ele tremeu
se destacou por denunciar a exploração sexual de tempos de Frederick Douglass), de 1881. As publicações como uma folha. Isso me deu segurança, eu o se-
mulheres escravizadas. A autora também participou alcançaram imensa popularidade e foram tradu- gurei inquieto, fazendo com que o sangue corresse
do movimento abolicionista. zidas para vários idiomas. onde eu o tocava com as pontas dos meus dedos”.6
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LUÍSA VASCONCELOS

A consciência da importância do conhecimento foi mais contundente, pois se tratou da escravidão, 4. Cointelpro foi um programa de contrainteligência
foi determinante para negar sua condição de es- que determinou, em grande medida, a sua exis- do governo estadunidense que se dedicou a perseguir
cravo. Seu processo de alfabetização iniciou com tência e identidade. Para a filósofa, foi a prisão e o dissidentes políticos de forma ilegal. Sabe-se hoje,
a Sra. Auld, esposa de um seus “proprietários”, processo por motivos políticos. Nas duas situações, por meio de ampla documentação sigilosa liberada
que se dispôs a ensiná-lo, até o momento em que essas vivências influenciaram as trajetórias, as pelo próprio governo, que movimentos e lideranças
seu esposo descobre e proíbe. O diálogo do casal, militâncias e as produções autorais. Douglass de- eram monitorados. Há evidências que provam o en-
reproduzido por Douglass, exemplifica os riscos fendeu e atuou pela abolição da escravidão. Davis volvimento do FBI e dos departamentos de polícias
que a educação de um escravo poderia trazer: “Se defende e atua pela abolição das prisões. em assassinatos, além da imputação de crimes a
você ensinasse aquele nigger (falando de mim) a Observadas em perspectivas comparadas, as membros da chamada “esquerda radical” – em par-
ler, não haveria como mantê-lo. Seria impossível autobiografias demostram como sujeitos negros, ticular, os militantes negros revolucionários, alguns
para ele continuar sendo escravo”. 7 mediados pelas questões de seu tempo histórico, dos quais se encontram presos até hoje. O caso mais
A primeira etapa a se vencer, antes da fuga, construíram definições para liberdade e as possí- conhecido, no qual o Estado reconheceu e indenizou a
foi a consciência de sua condição de escravo e a veis formas de alcançá-la. família, foi o assassinato de Fred Hampton, liderança
possibilidade de recusá-la mentalmente para de- do Partido dos Panteras Negras, executado enquanto
pois empreender a ação: “Quando eu tinha uns 13 NOTAS dormia em 1969.
anos de idade, e tinha conseguido aprender a ler, 1. No original, “I will publish these voices inste- 5. Angela Davis é uma filósofa inserida na Black Radical
cada aumento de conhecimento, especialmente ad of marching”. Disponível em https://news.ucsc. Tradition (Tradição Radical Negra), que pode ser defi-
qualquer coisa respeitando os estados livres, era edu/2014/10/morrison-davis-q-a.html. nida como uma teoria política e filosófica que defende
um peso adicional à escravidão. Era uma realidade 2. O livro se baseou em longas entrevistas concedi- a ideia do capitalismo racial, calcada em um longo
terrível, e eu nunca mais seria capaz de aceitá-la das, entre 1963 e 1965, ao jornalista Alex Haley, que histórico de resistências coletivas negras iniciadas no
em meu espírito jovem, que queria ser livre”.8 posteriormente escreveu uma obra de grande sucesso período da escravidão. Pressupõe uma perspectiva
chamada Roots (1976). A Autobiografia de Malcolm X negra na análise da teoria marxista e enfatiza a neces-
DIÁLOGOS POSSÍVEIS foi publicada no Brasil na década de 1990 pela Record sidade de lutas coletivas para a transformação social.
As autobiografias de Angela Davis e Frederick e está esgotada no mercado. O discurso de Malcolm 6. No original: “My resistance was so entirely unexpec-
Douglass convergem em alguns aspectos e elencam distinguiu-se no contexto pelo forte apelo ao orgulho ted that Covey seemed taken all aback. He trembled like
questões que ajudam a entender dois contex- e à autodeterminação negra, em contraste radical com a leaf. This gave me assurance, and I held him uneasy,
tos distintos de lutas políticas negras nos Estados a perspectiva adotada por setores do Movimento por causing the blood to run where I touched him with
Unidos. A leitura de Douglass ilustra o movimento Direitos Civis. No entanto, vale notar que pesquisas the ends of my fingers”. DOUGLASS, F. Narrative of
abolicionista e a condição de escravizado no sé- históricas nos Estados Unidos vêm problematizando the life of Frederick Douglass: an american slave. New
culo XIX, enquanto o livro de Angela propicia um a percepção homogênea e conformista do Movimento York: The Library of America, 1994.
panorama da década de 1960, do movimento de por Direitos Civis ao revelarem que, em seu interior, 7. No original, “If you teach that nigger (speaking of
libertação negra, através do olhar de uma mulher concorriam propostas distintas sobre a solução para o myself) how to read, there would be no keeping him.
negra militante. problema racial nos Estados Unidos. Muitas questões It would forever unfit him to be slave”. DOUGLASS, F.
As duas narrativas representam a elaboração de levantadas na primeira metade da década de 1960 por Narrative of the life of Frederick Douglass: an american
uma definição de si, que rompe com a definição pré- Malcolm X, como a autonomia política e cultural ou a slave. New York: The Library of America, 1994.
-estabelecida feita pelo outro de como eles deveriam reivindicação da autodefesa, só formariam parte das 8. No original, “When I was about thirteen years old,
ser. Para os dois autores, a educação desempenhou agendas políticas das organizações do poder negro and had succeeded in learning to read, every increase
um papel fundamental em suas conscientizações, e após sua morte, ocorrida em 1965. of knowledge, especially anything respecting the free
foi percebida como forma de emancipação. 3. O tema foi explorado em KAPLAN, Alice. Dreaming states, was an additional weight to the almost into-
A experiência da privação da liberdade, determi- in French. The Paris Years of Jacqueline Bouvier Kenne- lerable burden of my thought ‘I am a slave for life.’”.
nada pela condição racializada dos autores, aparece dy, Susan Sontag, and Angela Davis. Chicago/London: DOUGLASS, F. Life and times of Frederick Douglass.
nos dois relatos. No caso de Douglass, a experiência University of Chicago, 2012, p. 179. New York: The Library of America, 1994.
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

ENTREVISTA
Pedro Motta

Das imagens que


nos convocam a
politizar a natureza
Em livro de arte com textos críticos, artista plástico traz
uma contemporaneidade aflitiva ao fazer fotografias da
intervenção humana no meio ambiente e intervir nelas
DIVULGAÇÃO

pesquisa muito extensa sobre a paisagem


natural. Então eu chamei o Rodrigo com a
vontade de produzir um livro novo, e ele veio
com uma proposta que, de cara, me pegou: a
de sair de uma leitura cronológica, apostando
antes em séries que dialogam com o que eu
tenho produzido hoje, focando nos elementos
transformadores do meu trabalho. A ideia foi
selecionar 10 séries – na verdade 11, porque
uma não tem análise crítica – e chamar 10
pessoas que já tinham relação com o meu
trabalho, oferecendo determinada série. Fiz
uma seleção (e o Rodrigo participou) um tanto
intuitiva para escolher cada qual com seu cada
qual. E isso gerou um trabalho completamente
novo! As diferenças de perspectivas e de
formatos de abordagem trouxeram uma
riqueza que considero a grande qualidade
desse projeto, que não é um livro de
fotografias, mas um livro que tem fotografias,
e também não é um livro biográfico, mas é
um livro de arte. Eu acredito que a parte mais
importante do trabalho nas artes plásticas é
esse encontro com outros olhares, abrindo
um mundo de possibilidades. E é claro que
existem as críticas não muito favoráveis
também, mas cabe ao artista a humildade
de permitir que o outro faça a leitura que ele
de politização da natureza. As imagens citadas quiser. No caso do livro, tenho certeza de
Entrevista a Leonardo Nascimento na entrevista podem ser conferidas no site do que se eu trocasse as séries entre os autores
artista: www.pedromotta.net. (dos textos críticos), as perspectivas seriam
Em Natureza das coisas (Ubu), dez das mais sig- completamente diferentes.
nificativas séries visuais de Pedro Motta (Belo Como funciona a relação entre o seu
Horizonte, 1977) são analisadas por críticos/ trabalho e as análises críticas presentes em Na série Paisagem suspensa, vemos balões
as brasileiros/as e internacionais. A relação Natureza das coisas? coloridos suspendendo blocos geométricos
do humano com a natureza é tema central em A proposta de formato do livro surgiu do que simulam toneladas de minério sendo
sua pesquisa: sobre fotografias que revelam Rodrigo Moura. O último livro que fizemos extraídas de covas. Parte da série foi
alterações na paisagem, o artista realiza suas juntos chamava Temprano (2010), infelizmente realizada numa região montanhosa de Belo
próprias intervenções. Organizado por Rodrigo realizado por um edital da Funarte que não Horizonte, área com tradição centenária
Moura, o livro conta com textos de Agnaldo permitia venda. Meu interesse não é na de mineração. José Miguel Wisnik, em
Farias, Ana Luisa Lima, Cauê Alves, Eduardo de comercialização, e sim entrar numa editora Maquinação do mundo: Drummond e
Jesus, José Roca, Kátia Hallak Lombardi, Luisa e ser distribuído. O mais importante do livro a mineração, mostra como o aspecto
Duarte, Nuno Ramos, Ricardo Sardenberg, além é ele chegar nas pessoas, é a possibilidade catastrófico da mineração foi determinante
de texto do próprio organizador. Diante dos de ele transitar por vários territórios, entre em boa parte da obra do poeta. De que forma
crimes ambientais ocorridos em Mariana (2015) pessoas com diferentes pontos de vista; o tema da mineração encontra espaço tão
e Brumadinho (2019) – além dos alarmantes pessoas leigas, pessoas da área, pessoas que relevante em suas composições?
índices de desmatamento em nosso país –, a se interessam por fotografia ou por artes Não sei reconhecer os limites precisos dessa
obra de Pedro Motta ganha aflitiva contempo- plásticas etc. Eu já vinha com um longo influência, mas, se eu morasse na beira-
raneidade e nos convoca a uma radical tarefa trabalho voltado para o ambiente, numa -mar, certamente minha obra teria outra
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

Minha pesquisa No caso do


é a do humano Drummond, penso
em relação com no Pico do Cauê em
a paisagem. Mas negativo. Tinha um
grande parte formato piramidal
da minha obra e agora tem o
trata de ruínas formato invertido
aproximação. O que posso dizer drástica que as pessoas se viam de Minas Gerais aparecem certa inversão dessa ideia, o ficção ou da “realidade”. A
é que sou muito interessado obrigadas a migrar para regiões transformadas pelos processos que constitui um paradoxo partir do momento em que
pelas formas. No caso do mais baratas. Nos dois casos, de terraplanagem para a abertura absurdo. Essas construções você entende que a fotografia
Drummond, por exemplo, em tentei partir de um ponto de de estradas ou pela atividade exibidas nas fotografias são não é parte da realidade, não
que o Pico do Cauê (montanha vista local, de uma noção do mineradora, que tem destruído como monumentos falidos, que, serve de documento para nada
que marcava a paisagem de que estava acontecendo ao meu rios, paisagens e devastado a qualquer momento, vão acabar – que é o que eu defendo –,
Itabira) foi destruído pela redor, em que o meio me levava cidades inteiras. Então, fica por ruir. Nesse sentido, eu acho dela você pode tecer narrativas
mineração, deixando em seu ao trabalho. claro para mim que sempre me que a metáfora acaba sendo espetaculares e aproximá-la
lugar um buraco, fico pensando interessei por pensar nessas contundente para pensarmos o da ficção, desnaturalizando até
na imagem da montanha em Partindo da sugestão de que o estruturas, embora não costume país, sobretudo neste momento. mesmo a fotografia de paisagem.
negativo. Uma montanha, planeta entrou em uma nova era ter isso em mente quando crio. Eu fiz Naufrágio calado em 2016,
que teria algo próximo ao geológica oriunda da capacidade No livro, Luisa Duarte analisa época do golpe sofrido pela
formato piramidal, tem agora o humana de alterar ordenações O texto de Ricardo Sardenberg Naufrágio calado, série que Dilma. Fiz como a elaboração de
formato invertido. Imagina as da natureza (e a existência de aponta que seu trabalho segue traz embarcações encalhadas um enorme pessimismo. Para
implicações disso em termos de vida na Terra), algumas áreas a tradição dos exploradores e em paisagens tomadas por mim, esses barcos eram como
tempo, espaço e matéria?! É uma da antropologia se dedicam a viajantes, registrando cenários erosões de grandes dimensões. nós, soterrados, sem qualquer
coisa brutal, um terror! Então, contribuir para a construção de que parecem resgatados por Através de recursos digitais, possibilidade de negociação com
é uma paisagem recorrente uma nova filosofia da natureza. um arqueólogo imaginário. são aproximadas uma região de uma paisagem destruidora...
para mim, que sou de Minas. Esse giro de perspectivas abre O paradoxo, segundo ele, é Minas Gerais e um cemitério na época, acho que não fiz
No caso da série mencionada, espaço para a tarefa de radical que não há uma memória a de navios na França. Para uma associação tão direta, mas
o trabalho foi feito para uma politização da natureza, algo que ser reconstruída a partir das Duarte, a série é um dos sentia uma ligação entre os
residência artística no Jardim me parece presente de forma ruínas do passado, já que as momentos mais potentes de dois elementos: uma paisagem
Canadá, uma região bastante bastante sofisticada na sua obra. construções que estão na obra um programa poético todo destruída pela mineração e um
explorada pela mineração. A As pessoas associam meu foram feitas por nós no presente atravessado pela incerteza que, cemitério de barcos que eu já
proposta era fazer um trabalho trabalho com o debate ecológico. e funcionam como “totem ao ainda assim, escolhe instaurar tinha visitado na França. Ali, os
sobre o entorno. Senti que O que eu faço, então, é tentar qual nós, brasileiros, dedicamos situações nas quais a pausa e a barcos estavam destituídos de
a mineração me dava uma enriquecer isso no campo imensa devoção”. E, como ausência de movimento são as vitalidade, estavam em plena
aproximação muito grande com das artes plásticas, a partir totens da tribo Brasil, “estão protagonistas, em oposição ao decadência. Então, fiz essa
a pesquisa escultórica que me de um pensamento sobre o envolvidos por tabus claros e ruído e à aceleração do mundo junção que, para mim, era como
interessava. Foi assim que criei embate entre forças e formas. severos: nunca são discutidos, contemporâneo. Como entende um retrato da impossibilidade de
essa ambiguidade dos balões Minha pesquisa é, sobretudo, mencionados, questionados; e, as possibilidades de intervenção movimento. Para te ser sincero,
pequenos e sutis levantando a do humano em relação com acima de tudo, não devem ser crítica da arte em um mundo de às vezes olho essas imagens
esses torrões de terra não se a paisagem; uma questão destruídos (...) são, em suma, horizontes interrompidos? expostas, e elas me parecem um
sabe bem para onde. O motivo muito antiga, com inúmeros intocáveis”. Seu trabalho pode Entendo que cada artista tem grande mausoléu. Mas a Luisa
seria o escoamento, a subtração desdobramentos na pintura. ser encarado como uma forma uma elaboração muito específica: Duarte fala de uma possibilidade
da matéria. Ou a subtração da Mas grande parte da minha de questionamento dos tabus e alguns mais intuitivos, como no de resistência presente no meu
memória do lugar, que é o que obra trata de ruínas. O Cauê da profanação de nossos totens? meu caso; outros mais analíticos. trabalho, através da instauração
essas mineradoras praticam, já Alves, um dos autores do livro, Na série que ele analisa, Antes, meu trabalho era mais de um tempo de pausa e
que ali nada é mais ancestral escreve sobre isso de forma Arquipélago, eu trabalho com urbano. Hoje, a natureza ocupa silêncio que pode nos fazer
do que o próprio solo. Depois, bastante interessante num construções sobre blocos de lugar central. Entretanto, mesmo enxergar o naufrágio em que nos
fiz outra parte da série em Nova texto curatorial. Ele aponta que, terra, construções que não nos trabalhos sobre o meio encontramos. Ela acredita que
York, uma cidade que vive distante das belezas naturais servem para nada, mas, ainda urbano, a questão da dúvida esse tempo pode ser necessário
no concreto, em outro tipo de louvadas nas canções que assim, constituem memória de sempre me interessou. Por isso, para que possamos novamente
matéria. Nos dois meses em que marcaram a identidade nacional, um tempo gasto, de um esforço realizo manipulações digitais, ver o mar e o horizonte. Assim
estive por lá numa residência eu construo obras com barrancos empregado. Na perspectiva da para jogar com uma fronteira como cada artista tem uma
artística, vi grande quantidade desmoronando e erosões que arqueologia, o passado está por crucial que é a da dúvida do elaboração muito própria, cada
de terrenos baldios sendo revelam a falência da nossa baixo, submerso, e o presente espectador, que, muitas vezes, espectador acaba por criar um
invadidos pelas construtoras, noção de progresso. Nas minhas está ao nosso alcance. Nesse se sente angustiado tendo que contato muito pessoal com as
gerando uma mudança tão fotografias, as montanhas caso, eu trabalho com uma decidir se está diante de uma obras de arte.
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

Numa conversa sobre a importância do trabalho do es-


critor fora de seu "lugar", veio o mote: Onde canta o sabiá.
Esse mote sugere duas metáforas: a primeira refere-
-se a um exílio consentido por lembrar o conhecido
poema de Gonçalves Dias, repetido nas escolas à época
da ditadura do Estado Novo. A segunda, a da letra de
Chico Buarque.
Gonçalves Dias não é um proscrito. Vai estudar em
Coimbra, para onde eram encaminhados os que viriam
a ser os letrados da época. O sabiá do Chico Buarque
diz respeito aos anos 1970. É obrigado a fugir da gaiola.
Ao contrário de Gonçalves Dias, Chico Buarque
deve ter tido o sentimento de alguém fora de um lugar
que considera seu e para o qual não sabe se vai voltar.

Everardo Para o escritor, qualquer uma dessas situações de-


semboca numa indagação:

NORÕES
Qual o “lugar” do texto?
Toda existência supõe relação com locais onde
vivemos, com pessoas que nos deixaram luzes ou
cicatrizes. São artefatos armazenados nas estantes de
nossa memória. Literatura é ficção. Ao mesmo tempo,
é reconstrução do mundo da experiência. Movimenta
esnoroes@uol.com.br personagens de um romance, ergue os andaimes de
um poema. Ela está sempre diante de dois espelhos:
um, o que reflete a realidade; outro, o que revela a
fantasia. A construção de um lugar dentro da escrita,
mesmo fictício, também desvenda novas alternativas
ao existir, o que resulta numa forma de utopia, que
pode ser chamada a "utopia do texto".
Por isso, o desterro é, ao mesmo tempo, o lugar da
metáfora e a metáfora do lugar. E o essencial, para de tal jeito que elas nunca mais serão vistas da
o escritor, sobretudo o poeta, é como essa metáfora mesma maneira.
toma forma. Se o escritor possui uma antena assim, pouco im-
Primeiro, ele busca descobrir o que passa desper- porta o lugar onde se encontre. Pode ser uma sala,
cebido. pode ser um país.

Metáforas
Intitulei um de meus livros Poeiras na réstia. É uma Ernest Hemingway andou pelo mundo de seu século
imagem que traduz esse pensamento. Numa casa de enfrentando guerras e bichos. Giacomo Leopardi,
telha-vã, um furo produzido pelo vento ou pela passa- enclausurado e doentio, quase nunca abandonou
gem de algum bicho deixa-se filtrar por um raio de sol. seu castelo de Recanati. Mas foi ali que escreveu o
A luz forte do sol ofusca, queima. Mas, através da Zibaldone e compôs Il infinito, um dos mais preciosos

sobre onde
fresta, podemos observar partículas microscópicas poemas da literatura.
navegando na réstia. O escritor até pode "edificar" sua própria cidade
É possível perceber a poeira da casa: o mínimo, com andaimes e tijolos imaginários. Assim o fez Juan
o minúsculo. Carlos Onetti, ao erguer sua Santa María, do roman-

canta o sabiá
O artista consegue observar através desse fiapo de ce Juntacadaveres. E, ao lermos Borges, ficamos com a
luz porque está munido de uma espécie de antena. sensação de que seu universo era uma biblioteca. Até
Ele se sente tocado por alguma coisa que se asse- poderíamos concluir que há uma espécie de livro a
melha a um fulgor ou espanto. Às vezes, um duende. brotar de outros livros.
Então, trabalha sua matéria-prima para nos desvelar Além dessa matéria-prima, além dessa antena, a
uma obra susceptível de transmudar a tristeza ou o conversa em torno do Onde canta o sabiá acabou por
desassossego em algo que eleva ou consola. escorrer para a importância do “lugar” na literatura.
"Se me perguntassem No momento em que Picasso se depara com um
guidom de bicicleta e o transforma numa cabeça de
Esses “lugares” podem ser vários. Pois, no fundo, são
apenas suportes onde ocorreram nossas vivências,

sobre qual o meu 'lugar', touro, essa cabeça de touro sofre uma metamor-
fose. E, de repente, passa a ser a própria imagem
aquelas que acabam por tecer uma espécie de col-
cha de retalhos. Há passagens que nos marcam mais

diria que ele é múltiplo"


da Espanha. do que um simples endereço. São esses contatos,
Também o escritor se serve dessa aptidão para aproximações, que nos levam a outras culturas, à
captar a aura que percebe em torno de circunstân- apreensão de contextos estrangeiros. Quem sabe, nem
cias ou de coisas. Em seguida, ele as transfigura tanto "estrangeiros", na medida em que são próximos

LIVRARIAS
Wellington Comprar um livro não é só comprar
de Melo
A seis minutos a pé da estante só dele, com edições
Plaza de Catalunya fica em línguas impensáveis.
a Alibri Llibrería. Não há Pergunto à atendente pelas
estacionamento, mas três edições mais esdrúxulas.
vagas do bicicletário estão “Acabamos de vender
livres. A fachada de listras uma em klingon”, ouço,
verdes e pretas é discreta decepcionado. Tiro fotos e
e sóbria. Laços amarelos mando ao amigo, que escolhe,
gigantes dos independentistas do outro lado do Atlântico,

MERCADO enfeitam janelas do edifício


antigo, onde, no térreo, fica
ao vivo, o que quer. “Vocês
têm uma seção de crítica?”,

EDITORIAL a livraria. Quero presentear


um amigo com exemplares
pergunto depois de escolher.
“Sim, mas é com outro
d’O pequeno príncipe e há uma atendente, eu o levo até lá.”
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
FILIPE ACA
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Companhia
Editora de Pernambuco -Cepe, exceto aqueles que a
Diretoria considera projetos da própria Editora, são
analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a
partir dos seguintes critérios:

1. Contribuição relevante à cultura.

2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,


que privilegia:

a) A edição de obras inéditas, escritas ou


traduzidas em português, com relevância
cultural nos vários campos do
conhecimento, suscetíveis de serem
apreciadas pelo leitor e que preencham os
seguintes requisitos: originalidade,
adequação da linguagem, coerência
e criatividade;

b) A reedição de obras de qualquer gênero da


criação artística ou área do conhecimento
científico, consideradas fundamentais para o
patrimônio cultural;

de nós por serem, quase sempre, manifestações dos da página do sonho: 3. O Conselho não acolhe teses ou dissertações
repetitivos acontecimentos humanos. soletro, devagar, o Aywu rapitá: sem as modificações necessárias à edição e que
Num conto publicado no livro Entre moscas e na o ser do ser da palavra,
contemplem a ampliação do universo de leitores,
revista Granta, escrevi algo assim: "Quando alguém (flor pronunciada
emigra, carrega sempre algum sabor estrangeiro: entre as estrelas). visando à democratização do conhecimento.
fruta invisível que contamina a língua para sempre.
Um cheiro que fica encoberto por outros odores. A A noite II Atendidos tais critérios, o Conselho emitirá parecer
exemplo do sabor da goiabada com queijo ou do desaba sobre as telhas sobre o projeto analisado, que será comunicado ao
cheiro dos pequis". na explosão de um meteoro.
proponente, cabendo à diretoria da Cepe decidir
Se me perguntassem sobre qual o meu “lugar”, diria Conto estilhaços,
que ele é múltiplo. Talvez por isso não me considere recomponho parábolas: sobre a publicação.
apenas da cidade onde demorei mais tempo. Apenas um mínimo do que sou
a observo como quem olha um rio cortando-lhe a lembra as fronteiras III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
carne feito um gume de navalha. Mesmo assim, em do Universo. papel A4, conforme a nova ortografia, em fonte
nós permanece o reflexo de tudo o que testemunha- Times New Roman, tamanho 12, com espaço de
mos em nosso passear humano, num mundo do qual O humano não tem fronteiras.
uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando
somos fragmentos. Donde, o poema: As culturas acabam sempre por derrubar os muros
que lhes são impostos. Por isso, o artista, o escritor, for o caso, índices e bibliografias apresentados
FRACTAIS nunca está fora do lugar. Seu país é o de dentro, onde conforme as normas técnicas em vigor.
encontra o fermento de seu ofício.
Pelo mergulho Apesar de seu trabalho ser o de dentro, tampouco IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
das sombras, é mais importante do que outro trabalho.
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
calculo Coincido com a observação do gênio instigante
o itinerário da luz. de Roberto Arlt (que rompeu com o preciosismo da violência e as diversas formas de preconceito.
Meço gramática para dar mais luz ao romance argentino),
os contornos de nossas ruínas quando observa que a diferença entre o pedreiro que V Os originais devem ser encaminhados à
na matemática particular constrói casas e o fabricante de livros é que livros não Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
dos desesperos. são tão úteis quanto as casas. E o fabricante de casas seguir, sob registro de correio ou protocolo,
Abro a janela não é tão vaidoso quanto o escritor!
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.

VI Os originais apresentados para análise não


serão devolvidos.

FESTA CONSUMO
Companhia Editora de Pernambuco
Livros e flores amarelas Em defesa das livrarias de rua Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
O Dia Mundial do Livro se Na seção de crítica, o uma roda de conversa ou um CEP 50100-140
celebra em 23 de abril, reza atendente está só, lendo, lançamento. A impressão é Recife - Pernambuco
a lenda, porque Shakespeare quando chego. Com o laço de que todos se conhecem. A
e Cervantes morreram nessa amarelo na camisa, dedica caixa não me apressa quando
data em 1616. É também o toda a atenção, mesmo eu decido voltar e incluir outro
dia de San Jordi, padroeiro falando em espanhol, e sabe livro na conta, mas sorri e diz
da Catalunha, onde a festa muito sobre os livros que que vão fechar. A Alibri foi
envolve dar livros e rosas. vende. Na volta, passo pela fundada em 1925, descubro
García Márquez morreu seção infantil, encontro um depois. Caminhando de volta
em 17 de abril de 2005. E jogo narrativo de dados e ao hotel, tento lembrar a
se fosse esta a nossa data decido levá-lo para meu filho. livraria de rua mais antiga SECRETARIA
DA CASA CIVIL
de celebrar o livro, quando Quando venço as tentações que conheço. A Palavraria, de
daríamos livros e flores e chego finalmente ao caixa, Porto Alegre, fechou em 2016.
amarelas, sem santos? Será? já é noite. Perto da entrada, Faz frio em Barcelona.
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

CAPA

Como obras de autoras O parágrafo abaixo contém movimentos estranhos,


palavras pesadas talvez, prerrogativas que passam
Foi preciso fazer uma atípica moldura ao depoimen-
to de Adrienne Rich para que ele não fosse subtraído,

lésbicas ajudam a entender


longe da grade curricular de quem estuda, debate e apagado, invisibilizado como um depoimento qual-
pensa a Literatura, essa de “L” maiúsculo, disciplina quer, como uma fala que seja facilmente “integrada”
pouco dada a “l” tão minúsculos quanto... a uma convenção de um texto crítico que, como a
a “heterossexualidade No outono de 1977, a poeta e ativista lésbica bran-
ca Adrienne Rich (1929-2012) sentou-se para uma
própria Rich mencionaria em um de seus textos mais
conhecidos, sofreria de uma “heterossexualidade

compulsória”, que apaga, na longa entrevista com a também ativista lésbica


branca Elly Bulkin (1944). Em algum momento da
compulsória” não somente da crítica literária, mas
da própria luta de mulheres lésbicas dentro do movi-

crítica literária, as diferenças


conversa, Rich fala: “Duas amigas minhas, ambas mento feminista acadêmico – e branco e heterossexual
artistas, me escreveram sobre ler Vinte-e-um poemas – dos anos 1960 e 1970.
de amor com seus amantes homens, garantindo-me O que se seguirá, nas próximas linhas, precisa se
quão ‘universais’ os poemas eram. Eu fiquei irritada alimentar também do desconforto, desse incômodo
e, quando me perguntei por que, percebi que era que Rich e tantas outras escritoras que se encaixam em
Carol Almeida raiva de ter meu trabalho essencialmente assimi- identidades de gênero e/ou sexualidades não-heteros-
lado e despojado de seu significado, ‘integrado’ ao sexuais passam quando suas respectivas obras circulam
romance heterossexual. Esse tipo de ‘aceitação’ do no terreno da crítica literária. Mas não somente isso,
livro me parece uma recusa de suas implicações precisa também causar desconforto em quem lerá
mais profundas”. este texto, confundir quem acha que a própria palavra
O parágrafo acima contém movimentos estranhos, “lésbica” não é, ela mesma, carregada de tantas marca-
palavras pesadas talvez, prerrogativas que passam longe ções, algumas delas nascidas de estruturas opressoras.
da grade curricular de quem estuda, debate e pensa a Sim, o objetivo é esse mesmo, causar curto-circuito.
Literatura, essa de “L” maiúsculo, disciplina pouco dada A começar pelas intenções iniciais que motivaram a
a “l” tão minúsculos quanto… adjetivos que parecem existência deste texto. Motivações essas que, à medida
desnecessários à crítica, adjetivos como “lésbica”. Mas que as conversas com autoras e pesquisadoras e o
será mesmo de um adjetivo que se fala aqui? Será que contato não apenas com os textos da própria Adrien-
toda a confusão – e toda a raiva – causadas no corpo da ne Rich e da escritora Gloria Anzaldúa (1942-2004),
poeta foi porque as amigas heterossexuais que a leram foram se mostrando a causa mesma do problema
não perceberam que a palavra “lésbica”, na forma e no que é termos sempre lidado com uma crítica literária
conteúdo de seus versos, era o substantivo inexorável? heteronormativa (infelizmente, é preciso pontuar, a
Que essa palavra era a essência mesma de sua poesia heteronormatividade não é uma premissa apenas da
e que, sem ela, não se poderia seguir adiante? crítica literária, mas de toda e qualquer crítica de arte).
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

KARINA FREITAS

Para chegar aos exemplos concretos, dois episódios tros de análise crítica. O fato de que, para questionar a que o “universal” sempre partiu de uma observação
específicos acionaram o pavio: o primeiro aconteceu heteronormatividade no exercício analítico de textos do sujeito branco hegemônico.
em julho de 2016, quando a Festa Literária Internacional de literários, seja necessário que duas situações eviden- “Parece que hoje à crítica literária convém um
Paraty (Flip), mais badalado encontro literário do merca- temente caricaturescas se sobressaiam é testemunho exercício de mapear até onde alcança cada fala, em
do editorial, se lançou com a proposta de revisitar a obra de que não estamos indagando o suficiente. meio aos reconhecimentos de privilégios e opres-
da poeta Ana Cristina Cesar (1952-1983) e, na mesa de Mais uma nota de bastidores faz-se importante: de sões, ler também pelo escapa ou não se sabe/não
abertura, não apenas havia um apagamento completo início, este texto iria, no mesmo bloco, tratar de um cabe abordar, ao menos pontuando, mencionando.
da própria Ana C. – eram três homens brancos falando apagamento de mulheres, homens e pessoas não-bi- Negligência implica apagamento. O apagamento é
quase que inteiramente sobre seus respectivos traba- nárias com sexualidades e identidades não-heteronor- conservador e são muitos”, diz a poeta, romancis-
lhos – como, durante todo o evento, a sexualidade da mativas. No entanto, como um gesto político, quando ta e pesquisadora Sarah Valle. Sobre esses vários
poeta, tão crucial para leitura de vários de seus poemas, falar de escritores homens cis gays, os colocarei entre apagamentos, ela menciona um dos textos de Rich
foi completamente anulada. Uma nuvem estranha se parênteses – dada a condição (parenteseada) de toda a para lembrar que talvez o mais forte deles tenha sido
formava no ar: podia-se falar quase tudo sobre a obra existência lésbica na literatura. aqueles das mulheres lésbicas que sequer puderam
de Ana C., menos que era atravessada pelo fato de que É urgente, portanto, entender de onde vem o escrever: “séculos de livros não escritos empilhados
aquela mulher se relacionava com outras mulheres. O apagamento de escritoras lésbicas e bissexuais tanto atrás destas prateleiras”, escrevia a poeta.
segundo episódio, curiosamente, se manifestou neste no texto crítico sobre as autoras como simultaneamente Valle continua: “Há um estudo que mostra como
mesmo Pernambuco, quando, em janeiro deste ano, nas revisões analíticas que não existem, aquelas que tendemos a ler citações de sobrenomes em textos
se publicou uma crítica sobre a primeira edição da já nunca foram escritas, muitas vezes porque há, em acadêmicos assumindo que se tratem de homens. O
citada Adrienne Rich no Brasil, Que tempos são estes, com várias ocasiões, um desinteresse sintomático por al- que teria escrito Virginia Woolf, caso não estivesse
tradução de Marcelo Lotufo e edição da Jabuticaba. Na guns livros de algumas autoras, e outras porque há, de sob a apreciação da crítica masculina? Há brecha
resenha sobre o livro, o autor não faz qualquer menção fato, um não-treinamento para lidar com tudo aquilo para a homossexualidade na obra da premiada (Eli-
ao fato de que Rich era uma mulher lésbica e só se que, na forma e no conteúdo, foge do que é hetero- zabeth) Bishop? O caso da censura sobre a obra de
reconhecia criticamente a partir desse dado. normativo, ou seja, foge de tudo aquilo que, na crítica Violette Leduc ilustra, ainda, a diferença quando se
Volto a dizer então que esses mesmos motivos que literária, atende pelo nome de “universalidade”, essa trata exclusivamente de mulheres dentro do escopo
fazem com que este texto aconteça são um problema régua invisível que alguns sujeitos estabeleceram como homoerótico: enquanto Jean Genet tinha seu Diário
em si. Não porque colocar em xeque esses dois mo- critério fundador para apreciação crítica da prosa e de um ladrão (que traz personagens gays) publicado
mentos de apagamento seja questionável. Problema- da poesia. A rigor, universalidade daria conta de tudo pela Gallimard em 1947, Teresa e Isabel (um romance
tizá-los é legítimo, mas a questão é: tudo isso ainda é aquilo que todas as pessoas, em todos os rincões do lésbico) foi repetidamente censurado pela mesma
insuficiente. Em outras palavras: o pensamento sobre planeta, conseguissem compartilhar como um código editora nas versões de 1955 e 1966, só ganhando
a crítica literária precisa também parar de ser apenas em comum. Trata-se, naturalmente, de um pensamen- versão integral em 2000”.
uma reação a eventos episódicos para ser uma ação em to não apenas uniformizador de todas as diferenças, Ainda citando o exemplo de Adrienne Rich, que
si, uma construção ativa e constante de novos parâme- como falsamente conciliatório dessas distinções, já astutamente usava de uma forma canônica em várias
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CAPA

de seus poemas para driblar algumas premissas da Um dos pontos diz respeito a colocar em xeque a
crítica do que deve ou não ser comentado – “Esta é a própria palavra “lésbica” a partir de sua experiência
língua do opressor,/ mas preciso dela para falar com de vida: “Para mim, o termo lésbica é um problema.
você.” –, é fundamental citar seu texto teórico sobre Como chicana mestiça de classe operária – um ser
a “heterossexualidade compulsória” que existe não composto, amálgama de culturas e de línguas – uma
apenas na crítica de arte como dentro do próprio fe- mulher que ama mulheres, ‘lésbica’ é uma palavra
minismo acadêmico dos anos 1960 e 1970. A partir de cerebral, branca e de classe média, representando uma
uma análise de quatro livros feministas desse período, cultura dominante, derivada da palavra grega lesbos.
cada um com uma orientação política distinta, Rich Eu penso em lésbicas como mulheres predominan-
vai analisar como o apagamento da mulher lésbica temente brancas e de classe média e um segmento de
começa tantas vezes a partir desse edifício teórico mulheres de cor que adquiriram o termo por osmose
consolidado por mulheres feministas heterossexuais. muito como chicanas e latinas assimilaram a palavra
“Em nenhum desses livros, que tratam de temas como hispânicas. Quando uma ‘lésbica’ me nomeia o mesmo
maternidade, papéis de gênero, relacionamentos e que ela, ela me subsome sob sua categoria. Eu sou de
prescrições psicossociais para mulheres, a heteros- seu grupo, mas não como uma igual, não como uma
sexualidade compulsória é jamais examinada como pessoa inteira – minha cor apagada, minha classe ig-
uma instituição que poderosamente afeta todos os norada. Soy una puta mala, uma texana tortillera. ‘Lésbica’
demais temas aqui relacionados”, ela escreve. não nomeia nada em minha terra natal”.
A poeta lésbica branca Angélica Freitas, que está Em outro momento, Anzaldúa destrincha o que
traduzindo o Heterossexualidade compulsória e existência realmente significa a marcação e adjetivação no
lésbica, de Rich, para uma edição que será publicada ambiente da crítica literária: “O que é uma escritora
pela editora Bolha, sustenta que esse apagamento às lésbica? O rótulo na frente de uma escritora a posicio-
vezes surge das frentes mais inesperadas. Ela lembra na. Sugere que a identidade é socialmente construída.
que, no processo de pesquisa para a tradução desse Mas só para a/o ‘outra/outro’ cultural. Inconscientes
ensaio, terminou cruzando com um outro artigo, do privilégio e absortos em arrogância, a maioria dos
escrito pela pesquisadora Emily Wilson, sobre a pro- escritores da cultura dominante nunca especifica sua
blemática tradução que a poeta Anne Carson, uma identidade; eu quase nunca os escuto dizer: Eu sou
mulher heterossexual, fez de Safo: “Para Carson, um escritor branco. Se a/o escritor/a é classe média,
o que importa é a poesia de Safo, não seu gênero branca/o, heterossexual, ela/ele é coroada/o com
ou sua orientação sexual. Mas as próprias palavras o chapéu ‘escritor/a’ – nenhum adjetivo mitigante
de Safo não são neutras em termos de gênero. A depois. Me consideram uma escritora chicana, ou
tradução de Carson do Fragmento 31 não deixa claro uma escritora chicana lésbica. Adjetivos são uma
o que está claro no grego: o amado e o falante de forma de coagir e controlar (...) O adjetivo depois de
primeira pessoa são ambas mulheres. ‘Parece que escritora marca, para nós, a escritora ‘inferior’, ou
ela conhecia e amava as mulheres tão profunda- seja, a escritora que não escreve como eles. Marcar
mente quanto fazia música’, observa Carson em sua é sempre ‘rebaixar’. E quando eu defendo colocar
introdução. ‘Podemos deixar o assunto pra lá?’. A chicana, tejana, de classe operária, poeta dykefeminista
resposta, obviamente, é não. Safo é a primeira autora junto a meu nome, eu o faço por razões diferentes
sobrevivente na tradição ocidental, e a maioria das daquelas da cultura dominante. As razões deles são
respostas críticas e imaginativas à sua vida e ao seu
trabalho trataram do seu gênero e sua sexualidade
como os fatos mais importantes sobre ela”. “Tem que haver
AUTODEFINIÇÕES E AUTORROTULAÇÕES
“Se eu não tivesse me definido para mim mesma,
teria sido esmagada pelas fantasias que outras pes-
mudança na
soas fazem de mim e teria sido comida viva”, falou
em voz alta Audre Lorde (1934-1992), por ela mes- crítica. Acho que
não dá conta da
ma definida como “mulher, negra, lésbica, poeta,
mãe, professora e guerreira”. Era fevereiro de 1982,
e Lorde fazia então uma apresentação em tributo a

complexidade da
Malcolm X, na Universidade de Harvard. Em outro
texto seu referencial, Autodefinição e minha poesia, ela
é enfática: “Nenhum/a poeta que valha um pacote
de sal escreve de qualquer outra coisa que não as
várias entidades que ela ou ele define como eu. Eu
sou desses eus, e quanto eu aceito essas muitas partes
nossa escrita”, diz
de mim vai determinar como meu viver aparece
dentro de minha poesia. Como meu viver se torna
acessível, em suas forças e suas fraquezas, através
Tatiana Nascimento
do meu trabalho, a cada qual de vocês (...) Não posso marginalizar, confinar e conter. Meu rotular a mim “Me apresento como uma autora lésbica e negra.
separar minha vida e minha poesia. Eu escrevo meu mesma é para que a chicana e lésbica e todas as outras Não acho que minha identidade de gênero é mulher,
viver e eu vivo meu trabalho.” pessoas em mim não sejam apagadas, omitidas ou faz muito tempo que recuso essa identidade e que
É importante trazer a reflexão sobre autodefinição assassinadas. Nomear é como eu faço minha pre- falo em ser lésbica não como uma orientação sexual,
em Lorde para abrir uma discussão que também cor- sença conhecida, como afirmo quem e o que eu sou mas como identidade de gênero. Isso tem a ver com
re em paralelo ao apagamento de autoras que ora se e como quero ser conhecida. Nomear a mim mesma ser leitora assídua da Monique Wittig (1935-2003).
autodefinem como lésbicas ou bissexuais ou pessoas é uma tática de sobrevivência”. Sou discípula da tese dela de que lésbicas não são
trans ou não-binárias e ora recusam qualquer uma Nesse mesmo texto, ela traz algo essencial para se mulheres (no texto Straight minds, Wittig afirma que
dessas palavras. Nessa última categoria, há dois tipos pensar o lugar da recepção de sua obra. Relata que, a categoria ‘mulheres’ foi criada para existir sempre
muito distintos: a de escritoras não-heterossexuais quando ia a recitais de prosa ou poesia entre mulheres em relação ao sujeito homem e que, por isso, as
que, como Ana C. lá atrás e como algumas outras lésbicas feministas, que, no contexto em que ela vi- lésbicas nunca foram lidas como ‘mulheres’ para
poetas contemporâneas, não se sentem à vontade via, implicava em mulheres brancas, ela não se sentia muitas feministas). Só que, porque eu me falo muito
com tais nomenclaturas; e há aquelas para quem a parte daquele ambiente e achava que seu trabalho como escritora sapatão ou lésbica, é impossível não
palavra “lésbica”, por exemplo, vem carregada de era tampouco compreendido nesses espaços de uma levar isso em consideração quando minha obra é
outras marcações que podem, em alguns ambientes, intelectualidade apartada, por exemplo, de questões pesquisada, porque essa é uma identidade da qual
serem igualmente opressivas. operárias tão caras a ela. E que houve momento em não abro mão. Isso tem a ver também com a Audre
Eis o momento então de se fazer uma inflexão a que ela se sentiu, finalmente, “em casa” quando leu Lorde, de me apresentar a partir dessa autodefinição.
um trabalho que deveria ser seminal quando se fala seu trabalho para uma plateia de hippies brancos que Sempre me apresento como uma poeta lésbica negra
em crítica literária (em tempo: não se fala aqui de estavam fora do círculo literário. e as pessoas não podem abrir mão disso.”
crítica literária dissidente, ou crítica literária LGBT, A reivindicação por uma autodefinição, como Naturalmente, Nascimento está ciente de que as
se fala de crítica-literária-ponto). Trata-se do texto diria Lorde, ou por uma autorrotulação, como co- definições que ela põe a si mesma, se têm o bônus de
Queer(izar) a escritora – Loca, escritora y chicana, de Gloria locaria Anzaldúa, parece ser um ponto de partida serem identidades das quais seus críticos não podem
Anzaldúa, que se autodefinia nos termos dados por para autoras contemporâneas que, com frequência, evitar, têm o ônus de uma frequente incompreensão
esse mesmo artigo e cujo trabalho flertava sempre experimentam a sensação de deslocamento quando do que se espera de sua literatura, mais uma vez,
com ensaios poéticos sobre sua própria condição de têm seus trabalhos lidos. Tatiana Nascimento, cujos as caixas “outras” em que a crítica perceberá essa
estrangeira no país onde nasceu, os Estados Unidos. três livros de poesia (Esboço, lundu, e mil994) foram literatura: “Minha obra, por exemplo, tem poucos
Nele, a escritora aponta para várias questões cruciais publicados por sua editora, a Padê Editorial, e que ‘poemas de lésbicas’ como a crítica assim entende.
na relação entre autoras/autores não-heterossexuais é cofundadora e realizadora do Palavra Preta – mostra Tem, sim, muitos poemas de amor, mas tem muito
e os textos críticos sobre a obra dessas pessoas. nacional de negras autoras, é categórica: mais poemas sobre mar, sobre cerrado. O primeiro
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KARINA FREITAS

do castrato para implicar que a virgindade de Mário é


o motivo que o leva a escrever sobre sexualidade de
forma exagerada. A campanha de higiene estética e
moral da Folha da noite, de 1923, condenou Mário com
os termos de ‘doença mental’. Vários jornais retomam
os temas em 1923, 1924, 1926 e em 1929, na Revista
de Antropofagia, se escreve que Mário é o ‘Miss São
Paulo traduzido em masculino’ e menciona a ‘pele
bronzeada’ de ‘Miss Macunaíma’. Em 1939, escritores
usam termos como ‘sub-Wilde mestiço’ como uma
forma de insulto. Em todas essas situações, Mário de
Andrade estava vivo”.
Estamos, é importante lembrar, no mesmo terri-
tório crítico que embranqueceu Machado de Assis e,
por tanto tempo, invisibilizou Lima Barreto.)
Há, no bojo de todo esse debate, algo que, tal como
os eventos episódicos acima citados de apagamento
lésbico em Ana C. e Adrienne Rich, uma motivação
ainda mais orgânica para se pensar a necessidade de
uma revisão dos textos críticos quando lidam com
o território de autoras lidas como “outras”. A fun-
damental necessidade de representação, leia-se, de
não precisar passar a vida inteira lendo uma crítica
literária que deslegitima as experiências não-hete-
ronormativas e, portanto, nega a própria vivência de
leitoras não-heterossexuais.
Aline Miranda, uma das integrantes do coletivo e
do zine homônimo Palavra Sapata, em artigo sobre
representação (a lésbica nos textos) e representativi-
dade (a lésbica que escreve os textos), afirma: “Para
mim, é cada vez mais fundamental explicitar-me
como lésbica em todos os espaços que ocupo e por
onde transito. Isso inclui minha escrita, sendo ela tão
parte de mim. Como válvula da vida, a escrita me
toma por inteira. Então, por mais que exista ficção,
eu-lírico e qualquer coisa que o valha, o que escrevo
sou eu ali. Eu criando. E eu sou uma lésbica, como
diz o título dum romance de Cassandra Rios. Quando
uma amiga emprestou-me esse livro, fiquei esta-

A reivindicação por
autodefinições ou
autorrotulações pode
ser ponto de partida
para autoras que se
sentem deslocadas
quando são lidas
livro que publiquei com uma tiragem maior, o lundu, uma estereotipia narrativa, porque não se consegue telada. Uma mulher escrevendo uma personagem
acho que a palavra lésbica só surge lá no final, não há entender a profundidade de nossa obra.” principal lésbica! Pesquisei depois e li que Cassandra
um mapeamento textual do que é a lesbianidade, A estereotipia narrativa de que Nascimento fala é, foi a primeira autora a vender um milhão de exem-
porque acho que precisamos ter liberdade narrati- portanto, o que simultaneamente faz com que várias plares no país! Foi também das mais censuradas
va, que temos que falar sobre o que quisermos, de autoras sejam marcadas como escritoras lésbicas artistas na década de 1970, com proibição de quase
modo que a ‘escrita lésbica’ precisa ser entendida apenas e somente porque fazem poemas ou prosas todos os seus mais de 30 livros! E, hoje, segue tão
de uma forma muito mais ampla. Esses dias uma sobre o amor entre mulheres, como provoca um apa- pouco conhecida. Por que será?”.
pesquisadora da Argentina veio me perguntar: por gamento dessa identidade em escritoras que falam Que se reveja então, criticamente, a obra de todas
que que, quando você fala de pessoas negras no sobre questões que são entendidas como “univer- as autoras aqui citadas, bem como o trabalho de Ci-
seu livro, você fala de homens, por que você não sais”. Para onde se olha, há quem queira não olhar. dinha da Silva, Vange Leonel, Bruna Beber, Natalia
fala de pessoas negras em outro contexto? Tive que (Nesse ponto, é importante também citar a extensa Borges Polesso, Simone Brantes, Katia Borges, Ryane
responder o seguinte: eu sou uma pessoa negra pesquisa sobre não apenas a homofobia, mas a mi- Leão, Bárbara Esmenia, Joana Côrtes, Nívea Sabino,
escrevendo, tudo tem a ver com negritude, eu sou soginia e o racismo de uma tradicional crítica literária Tatiana Pequeno, Mariana Queiroz, Cecília Floresta,
uma sapatão negra”. brasileira quando teve que lidar, por exemplo, com Laila Oliveira, Mayana Vieira e tantas, tantas outras
Eis então um ponto nevrálgico para se pensar a obra de Mário de Andrade. Em sua tese de douto- escritoras – e aqui cito apenas algumas brasileiras –
como a crítica literária lida quando as marcações rado sobre a recepção da obra do poeta paulista, o que ainda carecem de aproximações mais complexas
as quais ela não está acostumada a usar – pois que pesquisador Jorge Vergara fez um levantamento de sobre seus respectivos trabalhos. Ou, para usar o
nunca se marcaram os escritores homens, bran- todas as resenhas críticas que diminuíam a obra de título de uma recente publicação do grupo Palavra
cos, heterossexuais, cisgêneros – são postas sobre Mário de Andrade por entendê-lo como um sujeito Sapata, “que o dedo atravesse a cidade, que os dedos
a mesa: ela tende a esperar por um certo tipo de efeminado de versos igualmente não-masculinos perfurem os matadouros” e que perturbem o lugar
conteúdo bastante específico. “Tem que haver uma e “mestiços”: de conforto de um ambiente crítico cujas réguas de
mudança no jeito que a crítica olha o que a gente “Eu descobri que Mário de Andrade é insulta- análise, tantas vezes, só conseguem medir aquilo
escreve. Acho que essa abordagem não dá conta do com termos que implicam a homofobia desde que é espelho.
da complexidade da nossa escrita. A crítica não vai 1921. Deve considerar-se a persistência do racismo
olhar pro que uma autora lésbica escreve como ‘li- também, porque, em muitos casos, o texto racista Este texto foi concluído no dia 14 de março de 2019,
teratura lésbica’ se ela não escreve uma história de acompanha o homofóbico”, ele fala. Os exemplos quando se completou um ano do assassinato político
amor. E se ela quiser escrever sobre a vó dela? Não são vários: “Durante o movimento de críticas ao da vereadora lésbica Marielle Franco. Este texto é
vai ser literatura lésbica? O que é invisibilização da Futurismo paulista em 1921, João de Eça escreve que também um tributo a ela e à convicção de que sua luta
crítica? Talvez essa invisibilização tenha a ver com Mário não é suficientemente homem, usa a imagem jamais poderá ser apagada.
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RESENHA

O dorso da cutia Escrevo em um momento em que o Brasil arrisca


conflitos armados na região de fronteira. Espero
que, quando este texto for publicado em abril, o

e as formas de
conflito tenha se encaminhado para uma negocia-
ção responsável; no momento, penso apenas nos
amigos da fronteira Norte e em Roraima, estado em
que vivi e atuei como professor por um ano e meio.
Como professor, viajava por diferentes cidades do

ver este mundo


estado, nos campi descentralizados da Universidade
Estadual de Roraima. A partir de Boa Vista, ia da
universidade pela BR-401 até Bonfim, na fronteira
com a Guiana; pela BR-174, ia na direção sul até
os municípios de Iracema, Caracaraí, Rorainópolis
Antigas histórias de culturas e São João da Baliza. Pela BR-174, em direção ao
norte, fui algumas vezes a Pacaraima, na fronteira

indígenas de Roraima são com a Venezuela, em eventos da universidade ou


– como muitos faziam – para fazer compras no

reunidas em e-book gratuito


lado venezuelano.
Esses locais têm aparecido no noticiário, primeiro
por conta da crise de refugiados, agora pela ame-
aça de um incidente militar. Ausentes dos jornais,
Pedro Mandagará me parece, estão os conflitos que delimitaram a
formação do território fronteiriço, conflitos que
continuam ainda hoje. Ausente está a razão de
existir o município de Pacaraima, emancipado de
Boa Vista em 1995 para tentar barrar a demarcação
de terras indígenas (TIs) – artifício usado na cria-
ção de municípios como Normandia (em 1982) e
Uiramutã (1995), todos a partir de pequenas vilas
situadas em regiões que se tornariam parte da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol.1
Em Roraima, a construção de estradas deixou
caminhos de genocídio e etnocídio. A abando-
nada Perimetral Norte resultou no genocídio de
populações yanomami2. A parte sul da BR-174
trouxe o genocídio dos waimiri-atroari, nos anos
1970. Sua parte norte, de Boa Vista até Pacaraima,
resultou em processo etnocida contínuo sobre as
populações das TIs São Marcos e Raposa Serra
do Sol que vivem próximas à estrada. Rechaçada
pela maioria das religiões neopentecostais que
adentraram as aldeias, negada por boa parcela da
população (em sua maioria migrantes que vieram
em ondas sucessivas de garimpo e reforma agrária de Claude Lévi-Strauss, operam com resumos de
colonizadora), a cultura indígena de Roraima so- “mitos”. A partir de trabalhos dos anos 1960 e
brevive e se recria em meio a um longo processo 1970, como os de Ruth Finnegan, Jack Goody e
de violência contínua. Paul Zumthor, passou-se a valorizar o estilo oral
Panton pia’: registro na Terra Indígena São Marcos (2019), e a performance. Publicações posteriores tentaram
coordenado por Devair Fiorotti, primeiro volume de emular características do discurso falado na pu-
quatro projetados para a série Panton pia’ (pantonpia. blicação escrita.
com.br), é resultado de anos de pesquisas junto a Um exemplo pode mostrar a força dessa opção.
indígenas no entorno de Pacaraima. Embora esse Em Panton pia’, o taurepang Clemente Flores conta
volume se concentre na TI São Marcos, o estudo uma história de Makunaima que corresponde, em
abrange comunidades da TI Raposa Serra do Sol, linhas gerais, a partes das duas primeiras narrativas
que farão parte dos volumes posteriores. No tomo editadas por Koch-Grünberg em seu livro. Nelas, a
publicado, há testemunhos orais dos povos macuxi história de Makunaima e seus irmãos é a da criação
e taurepang, com alguma presença wapixana. To- dos alimentos, de uma grande árvore – na versão
dos são povos do que se convencionou chamar de de Clemente, uma bananeira – que traria abun-
circum-Roraima, o caldo de culturas que vivem ou dância de frutos e peixes para o mundo. O toco
viveram no entorno do Monte Roraima (fronteira da árvore viraria o Monte Roraima. Na história,
Brasil-Venezuela-Guiana) e que compartilham está a origem das listras do dorso da cutia, que é
histórias e crenças. O livro está disponível para um dos irmãos de Makunaima (Clemente Flores
download gratuito (basta digitar bit.ly/2NxuW9c no o chama, em português, de Cutia; na versão re-
navegador da internet). colhida por Koch-Grünberg, ele é Akúli, nome do
Uma das figuras que transitam entre esses povos animal em arekuná). Uma breve comparação das
é Makunaima3, o demiurgo que, a partir de uma co- versões pode mostrar a riqueza da linguagem oral
leta de narrativas feita por Theodor Koch-Grünberg quando transcrita:
junto aos povos taurepang e arekuná entre 1911 e “Akúli tinha-se arrastado para dentro do buraco
1913, resultou na criação do Macunaíma de Mário de do tronco, onde escondera as bananas. Queria
Andrade4. A busca por figuras como Makunaima salvar-se da grande enchente e tapou o buraco. Fez
e por narrativas dos tempos antigos estrutura as um fogo dentro do buraco e se aqueceu nele. O fogo,
entrevistas que compõem este primeiro volume porém, pegou no seu traseiro e se transformou em
de Panton pia’. A partir da metodologia da história pelo ruivo. E Akúli, até hoje, ficou com o traseiro
oral, Devair entrevistou figuras de referência em coberto de pelo ruivo.” (Koch-Grünberg extraído
comunidades da São Marcos – anciãos ou lideranças de Makunaima e Jurupari, de Sérgio Medeiros, p. 62)
conhecidas como tuxauas. A pesquisa trouxe relatos Agora, a versão do Panton pia’ (p. 35-37):
de violências, físicas e simbólicas, que resultaram “Aí, ele amontoava cera, cera de mel. Como essa
na perda das línguas e narrativas, e também na Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por
transformação dos hábitos. dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos
Para o livro, Devair fez uma opção corajosa: regis- que apareceram com essa cera viva que ele ajuntou
trar na íntegra as entrevistas que realizou. Por muito da abelha. Fechou, amontoou lenha, amontoou
tempo, a publicação de histórias indígenas buscou banana que tava recém-caída, verde, tudo amon-
isolar as narrativas ou “mitos” de seu contexto toou dentro do oco de pau. E ficou lá, enterrado.
discursivo e performático. Em coletâneas como a Ele se preparou, esse Cutia se preparou. Os outros
de Koch-Grünberg, as histórias são estilizadas ou Macunaima, Xicö não, não se prepararam não,
recontadas, perdendo marcas da oralidade (como as não se preveniram. (...) A Cutia abriu esse oco de
repetições). Considerava-se que os “mitos” valiam pau que tava dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira
pelo que era narrado, não pela forma de se contar. (passa a mão nas nádegas) ficou encarnadinha por
Assim, livros importantes como a série Mitológicas, fumaça, por causa da fumaça. Essa é a história de
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KARINA FREITAS

Macunaima. Essa é que é a história de Macunai-


ma. Cutia não era assim não. Era branco... parece
que era ou preto, não sei. Agora, quando... com
Ao transcrever a suficiência alimentar desses povos, afugentando
a caça, poluindo a água dos rios, substituindo a
área de roças por pasto para gado, e criaram uma
essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim (...)
Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí
foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no
íntegra dos relatos situação de dependência da qual não parece haver
saída – se não há dinheiro, vendendo pedra ou
madeira (o que o Estado proíbe), ou criando gado,
Monte Roraima, até agora aparece. Nós chamamos,
na nossa língua, wadakapiapö, wadakapiapö (...). Esse orais, o livro ou trabalhando para fazendeiros, ou recebendo de
programas como o Bolsa Família, não há comida.

Panton Pia’
pé de banana se chamava wadaka. Tu sabe que é Conseguir sentir felicidade nessa dor, por outro
enorme, é grande esse pé de banana que chamavam lado, manifesta uma capacidade de resistência e
wadaka, piapö é toco. Aqui, por aí, ficou essa história reinvenção que está além do que consigo imaginar.

mostra que essa


porque pra lá, mais pra trás, não estou sabendo, Consta que o tuxaua Armando Magalhães ainda
não sei como continuar.” está vivo nos arredores de Pacaraima. Espero um
A entrevista transcrita preserva elementos de dia encontrá-lo para agradecer pelo que vejo como
oralidade que permitem manter o caráter dialógico
da narrativa oral, sempre direcionada a uma audi-
ência específica, a pessoas que o narrador imagina
oralidade é reflexão, um dos textos mais lindos de nossa literatura con-
temporânea. E espero que, até lá, as relações de
poder entre os países não tenham levado a essas
que saibam ou não informações relevantes para a
história – e daí a necessidade de explicar, ir e voltar,
comentar o vocabulário. Também estão presentes
ensaio, e não “mito” pessoas mais uma dor, a da guerra.

NOTAS
indicações da performance que acompanha a narra- temos a vida feliz. Quando se tá com fome, rapaz, 1. Referência fundamental para compreender o pro-
tiva, como a descrição de gestos entre colchetes. fica agoniado, fica triste: ‘Rapaz, como é que é?’ cesso de demarcação contínua da Raposa Serra do Sol
Em outros momentos, há falas de pessoas que Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de é o livro Pemongon Patá (2001), de Paulo Santilli. O
resolvem participar da conversa, como acontece barriga cheia, as crianças estão alegres, a esposa tá romance Os bravos de Oixi (1994), de Vilela Montanha,
em situações de oralidade. satisfeita. A gente como esposo tá satisfeito, vê toda documenta parte do processo de violência dos anos pré-
A entrevista de Clemente Flores é a que mais traz família com o buchinho cheio, que coisa, né! É uma -demarcação. Após passar a assinar como José Vilela,
histórias antigas, como a maravilhosa origem do coisa boa, quer dizer que é uma vida de alegria, que o autor reescreveu o romance duas vezes – Xununu
timbó, cipó venenoso usado na pesca. Em outras eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra um Tamu (1998) e Índios em luta pela vida (2019).
entrevistas, nota-se o esforço do entrevistador em lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo 2. Esse processo é pano de fundo de alguns capítulos
buscar, nas memórias dos indígenas, histórias que das coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só de A queda do céu (1995), de Davi Kopenawa e Bruce
foram reprimidas pela cultura do branco. Nota-se, anda enrolado. Só anda enrolado, porque não tem Albert. O romance-testemunho Wadubari (1993), de
também, como os indígenas ressignificam o seu jeito de ter alegria. Ele fica triste cada vez mais: Marcos Pellegrini, que atuava como médico junto aos
papel numa sociedade em mudança, assumindo ‘Puxa vida onde que... será que alguém vai me dar yanomami, também traz algo da dimensão do horror
posições frente ao que significa ser indígena, à atu- alguma coisa pra comer hoje? Puxa vida, colega, eu vivido por essas populações.
ação dos órgãos indigenistas, à educação dos seus estou sem dinheiro!’ Mas é ruim, já passei nessa. 3. Sigo Sérgio Medeiros (Makunaima e Jurupari: cos-
povos, à preservação ou revitalização das línguas. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já tenho me mogonias ameríndias, de 2002) em utilizar Makunaima
Registrar as entrevistas na íntegra mostra que a virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem com k, para o demiurgo das culturas do circum-Roraima,
oralidade indígena não é só narrativa ou “mito”, que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: ‘Me em contraste com Macunaíma, com c e acento no i,
mas também reflexão, ensaio, autobiografia, visão dá, patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais para o personagem de Mário de Andrade. Dentro do
de mundo. aí, rapaz, fim do mês eu lhe pago.’ ‘Nada, pode livro Panton pia’, o nome aparece grafado com c e sem
As descrições do cotidiano são especialmente pegar aí, não se preocupe não, pega aí.’ Compro acento, como se vê nas citações reproduzidas.
tocantes. Na fala abaixo (p. 123-124), o tuxaua alguma coisa, pego como eu falei. Então, naquele 4. As narrativas foram publicadas em 1917 como se-
macuxi Armando Magalhães responde qual a coisa dia nós estamos alegres, com barriguinha cheia…” gundo volume de Vom Roraima zum Orinoco, livro que
mais feliz que lhe tinha acontecido: Essa fala evoca uma longa história de dor que chegou às mãos de Mário de Andrade. Uma tradução
“Quer dizer, feliz como eu acabei de dizer, pro- veio com as fazendas, estradas, cidades. No pro- das narrativas pode ser encontrada na obra citada na
fessor, é quando a gente tá de bucho cheio, nós cesso colonizador, tais espaços retiraram a autos- nota anterior.
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ENSAIO

Da curadoria Em Ezequiel (Editora Pantim, 2018), de Margô Paraí-


so, uma das assinaturas poéticas da escritora baiana
Luciany Aparecida, o leitor tem à sua disposição 11

como forma
recomendações de leitura do livro. Os itens constam
em uma lista publicada quase no desfecho da obra,
catalogada como poesia brasileira, mas que apesar
disso não se prende a classificações. As indicações
esclarecem em certa medida a arquitetura em-

de presença
preendida por Luciany e abrem um atalho possível
de leitura, ainda que o leitor opte por tomar outros
caminhos. Ezequiel é escrito em parte usando o corpo
humano como metáfora e, uma vez materializado
pela linguagem, assume que quer ser um corpo, ter
Sobre as marcas cada vez seu próprio corpo, com pés, mãos, tronco e sexo.
A partir dessa lista também sabemos se tratar do

mais notórias da mediação sétimo livro assinado como Margô Paraíso, autora
“morta” em 2013 para dar lugar às outras vozes de

dos autores na literatura


sua autora empírica. É também o único momento
do texto em que o nome de Luciany aparece. A
provocação final do texto, intitulado 11 pontos para
ouvir gente, acena diretamente para quem lê – “Esse
Edma de Góis livro quer te ouvir: fala” –, e é a partir dela que
inicio minha reflexão.
Entre as marcas de certa produção literária con-
temporânea (e aqui friso “certa”, porque as ficções
de que me ocupo são uma das possibilidades do
enquadramento escorregadio e complexo que é o
contemporâneo), é cada vez mais frequente encontrar-
mos narrativas compostas por textos que denun-
ciam um investimento autoral para a constituição
do sentido do texto. Muito distante de querer lançar
por terra o significado dos estudos de recepção
em que o leitor passa a dividir importância com o
autor, notadamente os trabalhos de Hans Robert
Jauss e Wolfgang Iser, de quem as ideias de partida
desse texto são profundamente devedoras, aposto
na aproximação de uma determinada postura de
autor do que no campo das artes visuais chama-se
curadoria. Se lermos a partir dessa possibilidade,
isso teria duas motivações: o reforço da presença
da figura do autor, retomada de modo declarado
na pós-modernidade, e a valorização crescente
da recepção, chamada nesses experimentos para
compor o trabalho junto com o autor, tal e qual o
“espectador emancipado” defendido por Jacques
Rancière. Para este filósofo, a recepção não ob-
serva de forma estática o que lhe é apresentado,
mas age a partir de analogias entre o sabido e o
desconhecido, compondo sua própria experiência
de fruição estética, bem como o próprio objeto de
arte, às vezes à revelia do que o artista pretendia.
O espectador emancipado sinaliza para uma pos-
tura política, traçando um pontilhado até uma das
questões centrais para Rancière, a de que não há
separação entre estética e ética.
O leitor não perde hora e vez ao pensarmos prá-
ticas curatoriais por parte da autoria. A escolha por
uma nomenclatura do repertório das artes visuais
dialoga com outro aspecto desse contemporâneo do
qual falamos, a forma expandida, seja em relação
ao tema ou aos aportes de produção utilizados. Por- e A morte do autor, em ordem) e ressurge nas práticas
tanto, a curadoria como uma dimensão da autoria contemporâneas, problematizando as noções de
toma partido de que a literatura brasileira contem- real e ficcional.
porânea atua no campo expandido, mesclando-se
com outras semioses e dando o ultimato a outro GALERIA 1: DE CATALISADOR A CRIADOR
conceito em baixa no campo das poéticas visuais, Nas artes visuais, os estudos de curadoria são re-
mas ainda revisitado nos estudos literários, o de lativamente recentes, muito embora a atividade
autonomia estética. Assim, trazer a curadoria para caminhe ao mesmo passo da história das exposi-
pensar a recepção, pelo menos no caso proposto, ções. A palavra curador, do latim curare, chega com
deve se dar por sua localização no campo da autoria, este sentido na língua portuguesa. Até meados
auxiliando o entendimento dos efeitos pretendidos dos anos de 1950, curar ou conservar as obras de
para o público. arte era o papel estrito dos curadores nos mu-
É bom que se diga que não estamos falando em seus, na época associados aos diretores artísticos
substituição de conceitos ou tentativa de criação de e/ou programadores. Mudanças museológicas e
modismos acadêmicos, mas de uma reflexão que expográficas deslocaram a função conservadora
coaduna as opiniões de que a literatura do presente para a de mediação ou propagação da experiência
extrapola seus próprios limites e sua autonomia, artística. Mais uma mudança é operada quando
como defende pesquisadoras como Florencia Gar- as exposições ganham novo perfil, incorporando
ramuño e Ana Kiffer. Se assim for, parece natural a perspectiva desses profissionais a partir de eixos
também que a crítica se movimente entre diferentes poéticos que assumem uma dimensão de criação.
campos em busca de uma maior compreensão para Sonia Salcedo del Castillo, em Arte de expor: curadoria
a leitura do texto contemporâneo. A observação de como expoesis, publicado em 2014, apresenta o pouco
narrativas recentes localiza a função do curador consenso a respeito da prática curatorial a partir dos
não apenas como hífen entre autor e espectador, depoimentos de vários curadores e críticos de arte
mas como mais uma atribuição assumida pela do Brasil e do exterior. No estudo, Jens Hoffmann
autoria da obra, essa mesma autoria que desapa- sugere que uma exposição pode ser um trabalho
rece enquanto característica individual do sujeito de arte em si mesmo. Ele criou o projeto The Next
escritor, conforme sinalizado nos clássicos textos de Documenta Should Be Curated By An Artist, trabalho em
Michel Foucault e Roland Barthes (O que é um autor? que artistas opinam sobre curadoria e subjetivi-
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

LUISA VASCONCELOS

dade, e adaptou a proposta para a Escola de Artes


Visuais do Parque Lage. Já Paulo Herkenhoff e Ivo
Mesquita discordam dessa posição e separam arte
A curadoria como já citado, o artista, curador e crítico detalha: “(de
modo que podemos imaginar diversas categorias:
artista-curador, artista-escritor, artista-ativista,
e curadoria tal e qual arte e curador.
O mais interessante a ser notado – mais até do dimensão da artista-produtor, artista-agenciador, artista-teó-
rico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-

autoria assume
que a constatação de que o conceito, bem como as -químico etc.); (...) Vejo o ‘artista-etc.’ como um
formações em curadoria são ainda jovens no país desenvolvimento e extensão do ‘artista multimídia’
(basta lembrar que o termo curador se firma a partir que emergiu em meados dos anos de 1970, com-

que a literatura
dos anos de 1980) e, como tudo em construção, binando o ‘artista-multimídia’ fluxus (sic) com o
alvo de opiniões divergentes – está em uma das ‘artista conceitual’ – hoje, a maioria dos artistas
hipóteses que infla o estudo de Sonia Salcedo del (digo, aqueles interessantes) poderia ser considera-
Castillo, a de que uma poética expositiva se cons-
titui enquanto obra e se faz à maneira da poesia.
Um pouco do que penso aqui no sentido oposto e
contemporânea da como ‘artistas multimídia’, embora, por ‘razões
de discurso’, estes sejam referidos somente como
‘artistas’ pela mídia e literatura especializada”.2
abrindo caminho aos gêneros da prosa.
O pesquisador e curador Diego Matos, um dos
organizadores de Cildo: estudos, espaços e tempo, finalista
se mescla com Outra questão que há de se pensar, trazida do
campo das poéticas visuais, é a exposição do pro-
cesso enquanto obra, o que na visão de Diego Matos
do Prêmio Jabuti 2018, entende a curadoria como
também uma derivação da crítica e, apesar de não
enxergar uma exposição como obra em si mesma,
outras semioses pode resvalar para a própria desmaterialização da
arte, afinal duas perguntas se interpõem: ao expor
o processo em si, o que resta como obra final?
defende que é possível visitarmos exposições como sem segredo e grafadas em diversos trabalhos da Deve restar alguma coisa? No caso da literatura,
narrativas. “Há produções com uma dinâmica de artista Elida Tessler no início dos anos 2000, ou algo similar seria o que Reinaldo Laddaga intitula
leitura como a de um romance, quando observamos mais recentemente as fotografias de Elisa Pessoa de estética de laboratório, ao argumentar sobre obras
a composição completa”, explica1. Se a palavra pode em obra conjunta com a escritora Paloma Vidal, que ganham potência a partir da exposição de sua
ser matéria para uma exposição, outras matérias, em Dupla exposição, de 2016. Ao artista que não se engrenagem. O romance luminoso, do uruguaio Mario
digamos não literárias, podem dividir o terreno do limita a um lugar de produção, porque em certa Levrero, e O falso mentiroso, de Silviano Santiago, em
livro, fazendo com que os artistas se movimentem medida questiona a natureza e a sua função como que o próprio literário é satirizado, nos ajudam a
em diferentes campos. E aqui podemos lembrar artista, Ricardo Basbaum refere-se como “artista- visualizar essa questão. Mas é possível lembrar
de muitos exemplos, os claviculários com chaves -etc”. Em depoimento ao projeto de Jens Hoffmann ainda o exemplo radical de Leonardo Gandolfi e
20
PERNAMBUCO, ABRIL 2019

ENSAIO

Marília Garcia em Trânsito – versão compacta e dublada,


adaptação de Traffic, de Kenneth Goldsmith, obras
em que são transcritos os boletins de trânsito das
cidades de São Paulo e Nova York, respectivamente.
Pensar a curadoria, seja no campo das artes vi-
suais, seja no literário, remete à ideia de espaço
de vivência e de reciprocidade, sendo, portanto, a
recepção parte integrante da estratégia artística posta
em prática. Há de se pensar também que, no mo-
mento atual, em que muitos textos prescindem das
características dos gêneros em que foram escritos, a
curadoria soa quase como uma junção de fragmen-
tos estéticos e históricos auxiliares à experiência
de fruição, não como intérprete ou propriamente
tradução, mas buscando pontos de unidade para a
construção do sentido. O leitor é conduzido ao tra-
balho de arte como numa visita guiada e o espaço,
peça-chave na dimensão das artes visuais, deve ser
entendido como o tempo de experiência e no caso
da literatura, do tempo de leitura.
A adoção de estilos próprios pelos artistas, o que
reorienta a criação e a crítica da forma, mostra um
desejo de reaproximação entre o eu e o mundo. No
entanto, nem sempre isso é percebido de largada.
A escritora Luciany Aparecida reconhece “certa
dificuldade” por parte dos leitores para o reconheci-
mento de alguns de seus textos. Menos pela forma,
e mais pela proposta de quebra dos protocolos de
leitura que mantemos. Contos ordinários de melancolia,
de 2017, como o próprio título motiva, cria uma
expectativa de que serão encontrados contos no
sentido tradicional do gênero. No entanto, o ritmo
dado aos pequenos textos, por vezes exigindo uma
construção sintática por parte do leitor, gera a dúvi-
da classificatória. Seriam contos ao passo de poesia?
São os protocolos de leitura, o jeito com que nos
habituamos a ler (ou a que fomos habituados), que
nos fazem reconhecer o que é um romance, uma
poesia, um tweet ou uma notícia de jornal e como
lê-los. Nesse contexto, para a autora, a curadoria
não trata de uma intromissão descabida no texto,
mas de trazer maior potência ao sentido do texto,
tendo o leitor a decisão final como sempre foi, antes
mesmo da teoria se dar conta disso.
Em Auto-retrato, de Antônio Peixôtro e Ruth Du-
caso (duas outras assinaturas de Luciany Apareci-
da), a folha de rosto, índice aparentemente apenas
editorial, é bem-aproveitado. É nele que a autora
apresenta aos leitores os autores do zine, portanto,
Para muitos textos to de reconfiguração dos objetos, como propõe
o ready-made duchampiano. Para além dos novos
sentidos criados na obra, Valêncio Xavier utiliza
ficcionalizando em espaço que seria extraliterá-
rio e jogando com as autorias empírica e modelo.
Peixôtro é apresentado como: “membro da Pantim
produzidos hoje, estratégias de outras áreas, fazendo o livro trans-
cender a sua condição de literatura. Um deles é o
efeito rítmico de cinema, estampado nas três nar-
Coletivo, atualmente trabalha na ilustração de um
livro de poemas da artista Taise Dourado. Em 2015, a curadoria soa rativas que o divide. Em estudo dedicado ao autor,
a pesquisadora Ângela Maranhão Gandier afirma

como junção de
ilustrou a tese de doutoramento da pesquisadora ser notória a tentativa de reproduzir a linguagem
Luciany Aparecida”. de cinema, sendo o livro, portanto, um espaço de
confluência de várias práticas com o propósito de

fragmentos em
GALERIA 2: NO PRINCÍPIO, O ESTRANHAMENTO que tais “contrabandos” formais atribuam outros
A discussão que proponho começa pela minha ex- significados ao texto.
periência de leitura e, preciso frisar, de uma leitura
específica, a dos livros do escritor Valêncio Xavier
(1933-2008). A sensação era invariavelmente de
incômodo, seguida de uma breve satisfação por
busca de unidade GALERIA 3: A ARTISTA VISUAL
ENQUANTO ESCRITORA
Uma das representantes do Brasil na Feira Internacional
talvez “começar a entender” o que o narrador de
seus livros dizia. O estranhamento inicial tinha
como justificativa o modo de organização do texto
para criar sentido do Livro de Guadalajara em 2018, Deisiane Barbosa, diz
se beneficiar das aproximações entre artes visuais
e literatura. Um dos mais comentados produtos de
que junta fotografias, frames de cinema, imagens mole e dar o livro como lido sem se entranhar pelo um amplo projeto artístico da autora, que se intitula
de almanaques científicos, anúncios publicitários labirinto do texto. A questão é que esse labirinto “artista visual, poeta e andarilha”, é o livro cartas à
entre outros elementos, além de pequenos textos do é guiado, como se o autor empírico, que antecede e Tereza: fragmentos de uma correspondência incompleta, pu-
autor, notas explicativas, legendas forjadas e outros propõe o autor-modelo, quisesse de livre e espontânea blicado de modo independente, e que tem se des-
itens inclassificáveis. Aqui e acolá lembrava Zero, vontade fazer companhia ao leitor no percurso de dobrado em outras ações artísticas entre os estados
de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1974, visitação. Ser sua companhia e fazer-se presente é de Pernambuco e Bahia. O livro, como salienta a
e com arranjos formais incomuns para o período. uma decisão autoral. Dessa forma, a recepção co- autora, é uma costura de maços de papel onde estão
Fato é que em qualquer tempo um texto como o de nhece as fontes de textos e imagens exportadas de reunidas cartas à personagem Tereza, uma espécie
Minha mãe morrendo e o menino mentido ou Rremenbranças outros locais para o livro. O que pode ser um mero de Godot, do Samuel Beckett, de alguma ilha não
da menina de rua morta nua: e outros livros exige uma pre- detalhe para uns, uma mina de ouro para outros, especificada na narrativa. A aproximação com o
sença do leitor, um impulso maior. Em Minha mãe e um dado concreto para a crítica: não se trata de leitor aparece na largada. Antes de virarem livro,
morrendo..., lemos (ou eu leio) as memórias de um apêndice do texto, mas sua parte constituinte. O pequenos trechos de cartas à Tereza apareciam em
menino-narrador, cuja presença da mãe, mesmo binômio forma e experimentação tão caros aos forma- dois videoartes e cartões-postais com fotografias
depois de morta, é marcante. No segundo, temos listas e aos modernos por si só não justifica uma feitas em diferentes cidades do Recôncavo Baiano.
pequenas narrativas de violência e, na principal, leitura dos romances a partir da ideia de curadoria, O passo seguinte foi de certa forma determinada
que nomeia o livro, baseada em um fato verídico, o mas, sim, uma análise da autoria como propositor pelo público. “As pessoas perguntavam quem era
assassinato de uma criança em um trem-fantasma a partir de várias chaves de leitura. Tereza, queriam ler mais das cartas”, explica. “Mui-
numa cidade do interior de São Paulo. Os livros Minha mãe morrendo e o menino mentido é catalogado to tempo depois, resolvi procurá-la (a Tereza). A
de Valêncio (e não apenas os citados, porque essa como “romance brasileiro” e provoca as caracte- princípio, uma personagem-destinatário, depois
consideração vale para ler a sua obra completa) rizações dadas normalmente ao gênero romance descobri que ela é mais real do que eu julgava”,
apresentam um autor-modelo, recorrendo a Umberto ou até mesmo ao que se convencionou chamar escreve em um dos sites do projeto.
Eco, que exige uma participação efetiva do leitor literatura, devido a justaposição de textos e imagens Além de publicar os textos em formato de li-
em sua lógica de montagem. Não dá para fazer corpo alheias ao mundo das artes, em um experimen- vro, a autora acrescentou outro tópico ao projeto,
21
PERNAMBUCO, ABRIL 2019

LUISA VASCONCELOS

na tentativa de dar fisionomia à Tereza. Por meio


de consulta a leitores e entrevista com mulheres
chamadas Tereza nas cidades por onde passa-
A intenção aqui é Primero sueño, de Sor Juana Inés de la Cruz, associado
às notas explicativas da parte final e a tradução de
poemas lidos por uma das personagens, torna-se
va, Deisiane começou um exercício de criação do
perfil da personagem, quase uma descrição, muito
embora ela assuma que a personagem Tereza pode
observar alguma inevitável observar a presença da autora. O leitor
não precisa se sentir obrigado a ler tudo, mas é fato
que as notas dão a exata dimensão do que signi-
ser qualquer um, a começar pelo leitor afetado
pelas cartas. O passo mais recente, que também autoria à luz fica a “personagem ausente” do livro, Sor Juana
Inés, escritora, poeta, dramaturga e considerada a

da curadoria,
é resultado das entrevistas com Terezas diversas, primeira intelectual latino-americana. É um tipo
portanto com as leitoras, é a catalogação do Inven- de texto que ganha maior envergadura a depen-
tário da /ilha\ de Tereza, disponível em andarilla.tumblr. der da movimentação feita pelo leitor e que exige

assumindo que se
com e desenvolvido como parte do mestrado que a entradas e saída do literário. Não só o leitor, mas
escritora realiza em Artes Visuais, na Universidade a crítica do texto pode agregar valores que lhe são
Federal de Pernambuco. exteriores e que por isso lhe dão uma dimensão
A busca de referências materiais no mundo tem
relação direta com a recusa aos meios tradicionais
de produção e redimensiona o espaço em relação
pode incendiar o cultural ampliada.
Em Sobre o ofício do curador, Regina Cintrão afirma
que o modo como uma determinada seleção de
ao tempo da experiência, em um envolvimento
que se dá com o corpo e por meio dele. O corpo
está na gênese do conceito de errância, apresentado
conceito de literário obras é exposta denuncia a curadoria do trabalho,
porque cabe a esta a realização de uma montagem
que estabeleça relações formais ou conceituais
por Paola Berenstein Jacques como uma espécie de inconscientemente. Essa ressalva é fundamental entre as peças e as localize de forma estratégica no
“arte de andar pela cidade” ou de “errar pela cida- para não parecer que apenas textos declarada- campo por ela ocupado, “onde os diálogos propos-
de” e é um dos leitmotiv para o trabalho de Deisiane mente experimentais ou de múltiplas linguagens tos facilitam a compreensão dos objetos expostos,
Barbosa, que literalmente buscou material para fazem uso da prática curatorial, quase como um ou num labirinto de ideias onde o visitante se sente
escrever nas errâncias pelas cidades. A escritora rodapé para o entendimento do leitor (e como se perdido”. Portanto, a intenção é observar alguma
entende cartas à Tereza como um livro de artista e re- o leitor precisasse de alguém que desenhe uma autoria contemporânea a luz da curadoria, assu-
conhece um trabalho de curadoria com vistas na interpretação). Em Com armas sonolentas: um romance mindo a possibilidade de incendiar o conceito de
dimensão da troca com o leitor. O processo 100% de formação¸ de Carola Saavedra, o investimento de literário, uma vez que a curadoria reforça a ideia
artesanal, resultado de uma escolha consciente, complementação da leitura está presente a cada de modo de composição com vistas à leitura como
segundo a autora, mistura múltiplos procedimen- parte do livro (título, epígrafes, notas e traduções), visita guiada, portanto jamais neutra, invariavel-
tos como impressão, fotografia e costura manual. ainda que o leitor se encontre diante de um roman- mente interessada.
Deisiane também tem trabalhado com serigrafia ce mais próximo da tradição (ou que faça o elogio
e tingimento de papel em outras produções. O do grande romance). O livro conta a história de NOTAS
projeto completo de cartas pode ser conferido em três mulheres, suas relações com a maternagem, 1. O curador foi entrevistado em janeiro de 2019 para
cartasaatereza.wordpress.com. tocando no não desejo de ser mãe, na violência do- este ensaio, que faz parte de um estudo de pós-dou-
méstica e na difícil tarefa de se desligar dos papeis torado sobre as relações entre autoria e curadoria na
SAÍDA: O AUTOR AINDA ESTÁ LÁ atribuídos ao gênero feminino. Aparentemente, narrativa brasileira contemporânea. Agradeço ao pro-
Walter Benjamin, em O conceito de crítica de arte no tudo está organizado sem arroubos experimen- fessor de Teoria Literária e parceiro de investigação
romantismo alemão, afirma que uma obra deve se- tais, radicado apenas nas palavras, sem recursos Anderson Luís Nunes da Mata (UnB) pela leitura da
guir sua reflexão infinita, mediante o experimento de outros sistemas artísticos. E aqui escolho não primeira versão deste ensaio.
de outra pessoa. Essa aposta no espectador faz me ater a questões editoriais que eventualmente 2. CURI, Fernanda. Ricardo Basbaum: um artista-etc.
pensar que, mesmo quando discreto, o trabalho podem gerar interferências no texto. No entanto, Disponível em www.bienal.org.br/post/551. Acessado
bem-estruturado de curadoria pode ser percebido a tomar pela escolha do título, retirado do poema em 29 de janeiro de 2019.
HUMOR, AVENTURA E HISTÓRIA EM
LIVROS PARA ADULTOS E CRIANÇAS

HISTÓRIA DO BRASIL SOB O PEQUENA VOZ: ANOTAÇÕES POVO XAMBÁ RESISTE: 80


GOVERNO DE MAURÍCIO DE SOBRE POESIA ANOS DA REPRESSÃO AOS
NASSAU (1639-1644) Nuno Félix da Costa TERREIROS EM PERNAMBUCO
Gaspar Barléu Marileide Alves
O escritor português Nuno Félix da Costa
Nova tradução com mais de 300 notas situa o lugar da poesia no desenvolvimento Esta é a história do Povo Xambá contada
explicativas e reproduções coloridas de do pensamento, desde antes da pelos que a viveram e que trazem as marcas
gravuras do original, que retrata o período sistematização do pensamento filosófico. das dores sofridas em 80 anos de repressão,
holandês no Brasil. É uma edição essencial Para ele, a poesia é antiga e contemporânea, pela proibição de viver sua religiosidade,
para pesquisadores e envolvente para o e o poema descobre harmonia nas pela proibição de cultuar seus deuses, pela
público geral. Barléu é uma fonte histórica desconexões sinfônicas ou jazzísticas do proibição de expressar sua liberdade. É,
importante de contribuir de forma original real. O livro é fragmentário e guarda o principalmente, a história da resistência e das
para a compreensão europeia da América. despropósito permitido à linguagem poética. conquistas da nova geração de xambazeiros.

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DON JUAN-DON GIOVANNI: A COISA BRUTAMONTES O VOO DA ETERNA BREVIDADE


PEÇA EM DEZ JORNADAS Renata Penzani José Mário Rodrigues
Marcus Accioly
Como um menininho reage à ideia da É por meio da poesia que José Mário
Este livro póstumo de Marcus Accioly morte? A coisa brutamontes é um livro- Rodrigues reúne forças para unir todas
foi escrito à exaustão pelo poeta, que o interrogação: Há um lugar para ser criança as coisas e mostrar seu universo, em que
imaginou como sua última obra. Nele, e outro para ser velho? A infância um as perdas representam o sentido final da
percebe-se a grandeza épica e trágica – a dia acaba? Perto e longe são palavras experiência vivida. Ideias como brevidade,
par com o burlesco –, cuja força verbal desconhecidas? Cícero e Dona Maria são solidão e imagens de ventos e nuvens dão a
resgata a figura de Don Juan. Este, em como coordenadas geográficas tentando seus versos uma característica fugidia que
seus jogos de erotismo e sedução, revela indicar um lugar fácil de chegar, mas que recusa a linearidade de ideias. O livro foi 2°
inconsistências da condição humana, a mesmo assim poucos visitam depois de lugar do Prêmio Alphonsus de Guimaraens,
recusa e a atração da morte. grandes: um lugar chamado infância. oferecido pela Biblioteca Nacional.
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CONDENADOS À VIDA POESIA REUNIDA: ESPAÇO TERRESTRE


Raimundo Carrero TEREZA TENÓRIO Gilvan Lemos
Tereza Tenório
Edição definitiva da tetralogia de Em narrativa quase cinematográfica, Gilvan
Raimundo Carrero, que reúne Maçã O universo cósmico e imaginário da Lemos transmite a saga de uma comunidade
agreste (1989), Somos pedras que se poesia de Tereza Tenório é agrupado do interior nordestino e de várias gerações de
consomem (1995), O amor não tem bons nesta primeira antologia organizada pela uma família luso-tropical, os Albanos, que na
sentimentos (2008) e Tangolomango Cepe Editora. A obra reunida da poeta Vila de Sulidade vivem conflitos exacerbados
(2013), que aborda a família do patriarca recifense obedece à ordem cronológica pela miscigenação entre portugueses, negros
Ernesto Cavalcante do Rego. Trata- de suas publicações, de Parábola (1970) e índios. Tentam preservar suas características
se de corrosiva crítica social à elite à A casa que dorme (2003), conforme o genéticas, seus modos de ser, de ver a
nordestina decadente. O volume conta desejo da autora, que foi a grande musa realidade e de reinterpretá-la à luz do que
com ensaio crítico de José Castello. da poesia da Geração de 65 no Recife. se convencionou chamar de brasilidade.
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LÁZARO CAMINHA SOBRE O INSISTENTE INACABADO


O ABISMO Luiz Costa Lima
Augusto Ferraz
Este volume desdobra mais uma volta
Um romance em prosa poética sobre no percurso de Luiz Costa Lima sobre a
um homem que vai da morte à vida, problemática da mímesis. Aqui, o autor
enquanto reflete sobre o presente traça uma retrospectiva paralela das
e o passado de sua própria história. perguntas sobre a escrita da história e a
A todo momento, ele se encontra literatura, na qual examina formulações
e desencontra consigo, morto ou oferecidas por historiadores e
vivo, pelas ruas de São Paulo, para romancistas como Chladenius,
recordar os acontecimentos mais Droysen, e Gervinus, do século XVIII
prosaicos. Escrita em um constante ao XIX. Seu exame comparado assinala
fluxo de pensamento, a narrativa é alguns resultados consideráveis e
densa e carregada de jogos verbais, também a hierarquia que se estabelecia
belas imagens poéticas e referências entre os dois campos.
a artistas como Faulkner e Fellini.
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23
PERNAMBUCO, ABRIL 2019

RESENHA

Da primeira vez
REPRODUÇÃO

que ele usou


aquela máscara
Última das grandes obras de
Roberto Bolaño a chegar ao
Brasil, A literatura nazista
na América traz embrião
fundamental do projeto
literário do escritor chileno

dade típica de quem sofreu um trauma. É o sussur-


Schneider Carpeggiani ro do militante que não pode se expor em tempos
repressivos; ainda que eles tenham passado – mas
Dois ancestrais argentinos são logo lembrados dian- quando é que se pode dizer que um trauma pres-
te de A literatura nazista na América, de Roberto Bolaño creve? Em Estrela distante, o relato do alter ego Arturo
(1953-2003): História universal da infâmia, de Jorge Luis Belano reivindica recuperar o que foi perdido com
Borges (1899-1986), e Sinagoga dos iconoclastas, de J. a violência do poder. Essa questão nos leva a Beatriz
Rodolfo Wilcock (1919-1978). Textos que, ao perfilar Sarlo e a um dos problemas que ela levanta em seu
homens infames, aderem à poética dos verbetes de ensaio Tempo passado – Cultura da memória e guinada sub-
enciclopédia. A ironia de entender o sinuoso pela jetiva: o que garante a memória e a primeira pessoa
objetividade. Mas nossa atenção será voltada a outro como captação de uma experiência? Talvez nada
tópico. É curioso notar que, numa obra de armação de forma concreta, apenas uma tentativa, talvez...
tão cerrada, dirigida com rédeas curtas pelo escritor Mas por que o verbete de Hoffman se destaca da
chileno, uma peça se destoe do restante e acabe se estrutura de A literatura nazista na América e por que ele
mostrando fundamental para entendermos não ape- se mostrou tão importante a ponto de ter se desdo-
nas o livro em questão, também o próprio legado de brado num romance? As tramas de ambos retratam
Bolaño. Trata-se do verbete sobre o poeta-aviador os momentos que antecederam o golpe de Pinochet,
Carlos Ramírez Hoffman, duplo do poeta Emilio Ste- aqueles dias sem medo, as noites sem o som do
vens, ponto de partida para o desdobrar de um sem- toque de recolher e a irmandade fundada na poe-
-fim de outros duplos. sia. E mais: retrabalham as lembranças que Bolaño
Ao contrário das outras entradas do livro, a saga de e seus companheiros/seu alter ego e personagens
Hoffman é narrada em primeira pessoa e justamente precisaram “criar” para entender o 11 de setembro
por um personagem Bolaño, que se ausentará nos chileno. Nas palavras do escritor, Estrela distante foi
livros seguintes do autor. O verbete irá se expandir “una aproximación, muy modesta al mal absoluto”.
naquele que foi o seu primeiro grande romance, Es- Foi justamente ao fazer essa aproximação ao mal
trela distante, lançado originalmente no mesmo ano absoluto que Bolaño criou, em Estrela distante, sua
(1996) que o bestiário dos autores nazistas. Em Estrela, “obra síntese”, a que contém todas as questões que
Bolaño marca a separação do seu “eu” dos diversos se repetiriam no restante dos seus livros: a relação
alter egos que já atravessavam sua obra. Do verbete entre poesia e revolução, entre a literatura e o mal, a
para o romance, todos também mudam de nome. figura do poeta como herói (ou anti-herói), o cená-
Emilio Stevens passa a se chamar Carlos Wieder (em rio de violência da ditadura chilena, o exílio como
alemão, o sobrenome significa justamente “outra cidadania, a busca por um escritor desaparecido, o
vez”) e Ramírez Hoffman, Alberto Ruiz-Tagle. As processo de construção de alter egos e as referências
irmãs Venegas, assassinadas por Stevens, passam a literárias que misturam nomes reais e fictícios em
se chamar as irmãs Garmendia e, mais importante, um jogo um tanto quanto perverso.
Bolaño se transforma em Arturo Belano. Com a exceção da poesia (que está sendo traduzida
É como se a questão de Estrela distante não fosse por Josely Vianna Baptista), a Companhia das Letras
apenas ampliar as possibilidades de contar uma encerra, com A literatura nazista na América, a publicação
história. Também abrange o latente desejo de ser no Brasil das grandes obras de Bolaño. Para os inicia-
outro, de ser outro para desaparecer – e desaparecer dos, esse livro marca ainda o momento em que, pela
é o grande projeto de Emilio Stevens/Carlos Wieder e primeira vez, nos deparamos com a ironia pestilenta
Ramírez Hoffman/Alberto Ruiz-Tagle. Além da troca em meio a arroubos de beleza que fez de Roberto
de nomes, outra questão central na passagem entre o Bolaño um nome de frente da literatura mundial.
verbete e o romance: não há mais todas as certezas E, para os leitores brasileiros, o livro tem dois feitos
que o formato enciclopédico oferecia. Várias novas especiais. O primeiro é o verbete sobre um escritor
dúvidas são instauradas – por exemplo, talvez Emilio que guarda uma relação de amor/ódio com Ru-
Stevens/Carlos Wieder e Ramírez Hoffman/Alberto bem Fonseca (que, para ele, é um “enorme filho
Ruiz-Tagle não sejam mais a mesma pessoa. Somos da puta”, apesar de “escrever bem” – passagem
levados para a incerteza do túmulo vazio, do túmulo que retomaria a filiação entre Fonseca e a ditadura,
inexistente, signo de um momento contemporâneo ou seja: colocaria Fonseca no bestiário dos autores
que, numa América Latina marcada pela raiz comum nazistas). O segundo, ainda mais importante, é o
de regimes totalitários, também podemos chamar timing de lançamento do livro, que chega em meio
de Pós-ditadura. a uma crise de representação política e de tomada
As camadas de máscaras usadas por Bolaño em de poder pela extrema direita. É A literatura nazista na
seus livros dão conta da indizibilidade de uma ver- América em meio a um noturno do Brasil.
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INÉDITOS Tradução e nota: Piotr Kilanowski


Zbigniew Herbert

Zbigniew Herbert (1924-1998) foi um poeta, en- No filme, esculturas de Sérgio Camargo aparecem
saísta e dramaturgo polonês, considerado um dos ao som de dois poemas de Herbert: Um cubo de madeira
mais importantes representantes da poesia do século e fragmentos de Estudo do objeto. Tudo acompanhado
XX. Herbert, que unia em sua poesia o amor pela por música de Schubert, voz de Czesław Miłosz e
tradição e a forma moderna, foi testemunha de dois fragmentos de afresco de Masaccio.
totalitarismos e foi, sem dúvida, filho de sua época: E, no entanto, nada no mundo herbertiano é sim-
lutou por ressuscitar os valores humanistas destruí- ples, excluindo-se talvez a esfera dos valores éticos
dos nos cataclismos da guerra, mesmo sabendo que baseados predominantemente na compaixão, cora-
essa era uma luta cujo resultado estava longe de ser gem e fidelidade. Se a grande literatura é aquela que
promissor. Seus poemas, como os da compatriota e comporta várias leituras e passa longe de ter uma
amiga Wislawa Szymborska, são geralmente peque- única interpretação possível, Herbert, sem dúvida, é
nas narrativas que, escritas com extremo cuidado um grande autor. Seja em seus ensaios, seja nas peças
estilístico e cheias de ambiguidades propositais, ou apócrifos míticos, o espaço da indefinição, sentido
permitem múltiplas leituras e relatam a experiência de uma maneira mais forte pela aparente concretude
moderna, mesmo que frequentemente utilizem para e precisão do estilo, poderia ser classificado como um
isso uma roupagem clássica. Seus versos compostos dos traços predominantes da obra do poeta. Alguns
por várias camadas de sentido conseguem falar si- de seus poemas permitem leituras radicalmente
multaneamente da experiência pessoal, geracional, opostas, pelo que se tornou um dos poetas predile-
nacional e universal. tos dos políticos que representam lados do cenário
Além de ser um poeta que propõe a releitura dos político diversos e, não raramente, opostos. E, como
clássicos e dos mitos, Herbert também é um poeta se trata de um poeta, cujas palavras sempre tiveram
dos objetos. Há toda uma parte de sua obra que se uma grande resposta popular, até hoje, 20 anos após
dedica ao Estudo do objeto (título de um de seus livros de sua morte, ainda se ouvem citações de suas poesias
poesia, de 1961). Os objetos no meio de uma realidade nos discursos políticos na Polônia.
em constante mutação (política e existencial) apa- Talvez parte do crédito pela construção polifônica de
recem como algo mais duradouro que os humanos seus poemas pudesse ser atribuída à censura reinante
e suas ordens. Parecem constituir também um reino na Polônia comunista (sobre o caso específico de
no qual não entram ideologias e sentimentos. Em Herbert e censura escreveu J.M. Coetzee). Era preciso
Herbert, o contato com eles, assim como o contato utilizar a linguagem de Esopo e esconder as alusões
com a tradição, parece funcionar como um substi- políticas na roupagem clássica para poder editar as
SOBRE O TEXTO tuto da presença de algo imutável, essencial, quase obras que tinham duplo ou triplo fundo. E Herbert,
metafísico. No mundo em que as ideologias e utopias que, por um lado opunha-se ativamente ao sistema,
Ao lado, uma apresentação ao em mutação destroem tradições e objetos, estes, além mas, por outro, queria ser publicado, frequentemente
poeta Zbigniew Herbert e seu de apresentarem invejável concretude, constituem lançava mão do recurso que permitia abordar o con-
trabalho. Na próximas páginas, maneira de protestar contra as sanhas imateriais temporâneo falando do universal. Por conta de sua
cinco poemas traduzidos. que destroem as realidades concretas por meio das oposição ao sistema, estreou em livro tardiamente, aos
Serão publicados pela Editora mãos de seus devotos. Esta parte da obra de Herbert 32 anos, em 1956. Até então, escrevia para a gaveta.
Âyiné ainda neste ano. inspirou, entre outros, o cineasta João Moreira Salles. Parte de sua vida foi passada em constantes viagens,
Em 1992, ele dirigiu o curta-metragem Dois poemas. que eram tentativas de conhecer as fontes da tradição
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FILIPE ACA

ocidental e, ao mesmo tempo, fugas da cinzenta e É realista, sabe que o mundo se rege com valores reflexões a respeito da memória dos torturados e
opressiva realidade de seu país. A emigração não era diferentes daqueles nos quais acredita, mas nem torturadores são o tema do poema Da não escrita teoria
uma alternativa viável para Herbert, mas as saídas do por isso deixa de professá-los e vivê-los. A derrota dos sonhos, dedicado à memória do amigo de Herbert,
país, driblando as dificuldades de obter o passaporte na luta contra o mundo é inevitável, mas, mesmo Jean Améry, escritor austríaco de origem judaica que
e dinheiro para se sustentar, eram frequentes e du- fadado a perder, o credo do Senhor Cogito não lhe sofreu as atrocidades das torturas nazistas, vindo
ravam anos. Dos mais de 40 anos da permanência do permite perder a dignidade e deixar de lutar pelo a suicidar-se em 1978. Uma reflexão desse tipo, a
regime comunista na Polônia, Herbert passou cerca que acredita (como vemos em um dos mais famosos respeito da diferença das memórias e dos sonhos
de 20 fora do país. E, no entanto, era um poeta muito poemas do poeta, A mensagem do Senhor Cogito). Seus das vítimas e dos perpetradores de crueldades, in-
polonês, a ponto de ser chamado, em determinada poemas como, por exemplo, O Senhor Cogito sobre a felizmente, nunca e em lugar nenhum perde sua
época, de “poeta do Solidariedade”, por seu envolvi- postura ereta ou O monstro do Senhor Cogito, que, curio- universalidade, e por isso é necessária.
mento com o movimento e ser, enquanto viveu, um samente, se mantêm atuais, eram lidos tanto como Até agora, Herbert ainda é pouco conhecido no
poeta mais popular em seu país que seus colegas que manifestos da luta contra o sistema totalitário (que Brasil, embora suas primeiras traduções tenham sido
foram laureados com o prêmio Nobel: Czesław Miłosz parecia invencível), como da luta contra o mundo obra de Ana Cristina Cesar em parceria com Grażyna
e Wisława Szymborska. consumista e da condição existencial humana. Neles, Drabik, nos anos 1980. Contou ainda com traduções
Uma das criações mais marcantes de Herbert, Herbert alude às fontes da tradição clássica, da poesia de seus poemas publicadas nas antologias Quatro poetas
uma espécie de alter ego poético, é o Senhor Cogito, moderna (por exemplo, a Konstantínos Kaváfis ou poloneses, em tradução de Henryk Siewierski e José
protagonista de muitos de seus poemas e de um livro Fernando Pessoa – se pensarmos na criação de seu Santiago Naud, Poesia alheia, de Nelson Ascher, Céu
poético a ele dedicado, intitulado justamente O Senhor quase heterônimo, o Senhor Cogito) e às situações vazio, de Aleksandar Jovanović e Lira argenta (orga-
Cogito (1974). Grande exegeta de Herbert, também que vão do nível pessoal ao universal. nização de Vanderley Mendonça e tradução minha).
poeta e tradutor, Stanisław Barańczak disse que o Seus grandes temas são temas universais: sofri- O único livro de poesias de Herbert em português
protagonista dos poemas de Herbert é como o deus mento, morte, perguntas sobre o papel da arte, os do Brasil, A viagem do Senhor Cogito, foi publicado em
Jano: consegue olhar simultaneamente para dois objetos e a compaixão. Durante muito tempo, um Katowice (Polônia), com distribuição e tradução
lados opostos, sendo ao mesmo tempo “A” e “não elemento forte na sua poesia foi a luta pela memória minhas. Algumas antologias de seus poemas foram
A” e negando assim a lógica binária que constituiu dos que pereceram na Segunda Guerra Mundial, publicadas nas revistas Piauí (traduções de Danuta
a base dos totalitarismos. lutando contra os invasores alemães e russos, e cuja Haczynska de Nóbrega em parceria com Sílvio Fraga
O Senhor Cogito compartilha alguns traços fí- história foi manipulada e esquecida – como os inte- e de Paulo Henriques Britto) e Qorpus (duas edições
sicos, psicológicos e biográficos com seu autor, a lectuais e oficiais poloneses assassinados em Katyń. com traduções de minha autoria), Poesia sempre e vários
ponto de o nome do personagem ser utilizado com Os fantasmas dos companheiros mortos aparecem poemas esparsos em traduções de Olga Guerizoli
frequência na Polônia para se referir a Herbert. Ele em toda sua poesia. Surgem como os que desafiaram Kempinska em parceria com Carlito Azevedo, Mar-
é uma imagem do intelectual do século XX que se as leis ditadas pelos instintos e que permaneceram celo Paiva de Souza, Dirceu Villa e Pedro Gonzaga.
vê diante de realidades completamente novas: os fiéis a valores diferentes nos tempos de terror e ódio, Em Portugal, além de ter um poema traduzido pelo
totalitarismos que tiram a liberdade, o consumismo como os protagonistas do poema Duas gotas, que abre próprio Herberto Helder, contou com um livro de
que torna a humanidade cada vez mais superficial seu primeiro livro de poesia. traduções a partir do inglês feitas por José Souza
e o capitalismo que oprime de modo mais discreto A necessidade de revisitar a história e rever as atro- Braga. Felizmente, a época de difícil acesso a Herbert
que os regimes de exceção, mas nem por isso deixa cidades perpetradas, tendo como intuito sensibilizar no Brasil está chegando ao fim. A Âyiné publicou,
de fazê-lo. O Senhor Cogito, que, apesar do nome seus leitores, transforma sua poesia em dispositivo em outubro do ano passado, um de seus livros de
de origem cartesiana, não é um racionalista – muito de compaixão. Além do sofrimento naturalmente ensaios (Um bárbaro no jardim), em tradução de Henryk
pelo contrário –, é um ser que duvida e permanece inerente à condição humana, o ser humano aper- Siewierski, e prepara para este ano o primeiro volume
fiel a si mesmo, proclamando o humanismo cético. feiçoou maneiras de fazer seu próximo sofrer. As de suas Poesias completas, traduzidas por mim.
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INÉDITOS Tradução e nota: Piotr Kilanowski


Zbigniew Herbert

DA NÃO ESCRITA TEORIA DOS SONHOS ajeitam os restos de cabelo como uma coroa de
[louros
À memória de Jean Améry sob a água do esquecimento que lava tudo
ensaboam seu corpo com sabonete da marca
1 [Macbeth
Os torturadores dormem tranquilos têm sonhos
[cor-de-rosa 2
os bonachões genocidas a quem já perdoou Por que o sonho – o refúgio de todos os seres
a curta memória humana – os estrangeiros e os [humanos
[da tribo recusa a sua graça às vítimas da violência
o vento suave vira as páginas dos álbuns de por que à noite sangram entre os lençóis limpos
[família e entram nas suas camas como nas câmaras de
as janelas da casa abertas para agosto a sombra [torturas
[da macieira em flor como na cela da morte como na sombra da forca
sob a qual se aglomerou a fina estirpe afinal eles também tiveram uma mãe e viram
a carruagem aberta do avô a expedição até a o bosque a clareira a macieira em flor a rosa
[igreja quem baniu tudo isso dos recônditos da alma
a primeira comunhão o primeiro abraço da mãe eles também viveram instantes de felicidade
a fogueira numa clareira e o céu estrelado acima [então por que
sem sinais e mistérios sem apocalipse seus rugidos despertam de noite os familiares
então dormem tranquilos têm sonhos nutritivos [inocentes
cheios de alimento bebidas gordos corpos e irrompem mais uma vez numa fuga insana
[femininos batendo a cabeça na parede e depois não
com os quais jogos amorosos nos emaranhados [dormem mais
[dos bosques fitando obtusamente o relógio que nada mudará
e acima disso tudo flui uma voz inesquecível
uma voz límpida como uma fonte inocente como o sino da memória repete o grande pavor
[um eco o sino da memória imutavelmente soa o alarme
acerca do menino que encontrou uma rosa no
[prado entre as urzes deveras é duro confessar os torturadores
[venceram
o sino da memória não desperta fantasmas nem as vítimas para toda a eternidade da vida já estão
[pesadelos [derrotadas
o sino da memória repete a grande absolvição
assim precisam por si mesmas conciliar-se com
despertam cedo pela manhã cheios de vontade [este castigo sem culpa
[de potência com a cicatriz da vergonha a impressão digital na
meticulosamente barbeiam suas bochechas de [bochecha
[comerciantes com a abjeta vontade de sobreviver à tentação de
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[perdoar entre os que viraram as costas e os derrubados [obscura


e o relato sobre o inferno já desperta o legítimo [no pó
[desgosto repete os velhos sortilégios da humanidade
sobreviveste não para viver as fábulas e as lendas
não existe mais o lugar para prestar queixa tens pouco tempo é preciso dar testemunho pois assim conquistarás o bem que não
vereditos inconcebíveis profere o tribunal dos [conquistarás
[sonhos sê corajoso quando a razão falha sê corajoso repete as grandes palavras repete-as com
no cálculo final apenas isso conta [persistência
UM CUBO DE MADEIRA como aqueles que andavam pelo deserto e
e que a tua Ira impotente seja como o mar [pereciam na areia
Um cubo de madeira só pode ser descrito de sempre que ouças a voz dos humilhados e
fora. Estamos, assim, condenados ao eterno [espancados e serás recompensado com o que têm à mão
desconhecimento da sua essência. Ainda que o flagelo do riso o assassinato no monturo
rapidamente o partamos ao meio, de imediato que não te abandone o teu irmão Desprezo
seu interior se torna uma parede e segue-se a para com os delatores os carrascos os covardes – vai pois só assim serás aceito no círculo dos
instantânea transformação do mistério em pele. [eles vencerão [crânios frios
Por isso é inexequível a criação da psicologia irão para o teu enterro e com alívio jogarão um no círculo dos teus antepassados: Gilgamesh
de uma esfera de pedra, de uma barra de ferro, [torrão de terra [Heitor Rolando
de um hexaedro de madeira. e o caruncho escreverá tua biografia retocada os defensores do reino sem limites e da cidade
[das cinzas
NO CAMINHO PARA DELFOS e não perdoes em verdade não está em teu poder
perdoar em nome daqueles traídos na madrugada Sê fiel Vai
Aconteceu no caminho para Delfos. Eu
acabava de passar pela rocha vermelha, guarda-te no entanto do orgulho desnecessário A VESPA
quando do lado oposto apareceu Apolo. Andava contempla no espelho a tua face de bufão
rápido, sem prestar atenção a nada. Quando se repete: fui chamado – por acaso não havia Quando com um movimento ceifaram da
aproximou, observei que brincava com a cabeça [alguém melhor mesa a toalha florida, o mel e as frutas, se
de Medusa, encolhida e ressecada de velhice. lançou para o voo. Enredada na sufocante
Murmurava algo para si mesmo. Se é que escutei guarda-te da aridez do coração ama a fonte fumaça do voile, zumbiu longamente. Finalmente
bem, repetia: “Um artífice precisa aprofundar-se [matinal chegou à janela. Por vezes batia com o corpo
na crueldade”. o pássaro de nome desconhecido o carvalho esmorecido no frio e solidificado ar da vidraça.
invernal No último movimento das asas dormitava
A MENSAGEM DO SENHOR COGITO a luz no muro o esplendor do céu a mesma fé de que a inquietude dos corpos
eles não precisam do seu alento cálido é capaz de despertar o vento que há de nos
Vai aonde foram os outros até o limiar obscuro existem para dizer: ninguém há de te consolar transportar até os mundos almejados.
atrás do tosão de ouro do nada tua última Vós, que permanecestes embaixo da
[recompensa vigia – quando a luz nas montanhas der o sinal – janela da amada, vós que vistes a vossa
[levanta-te e anda felicidade na vitrine – conseguiríeis
vai ereto entre os que estão de joelhos enquanto o sangue revolve no peito tua estrela retirar o ferrão dessa morte?
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RESENHAS
CAFI/ REPRODUÇÃO

1972. O próprio Milton,


em entrevista de 1972,
se disse magoado pela
falta de reconhecimento
do seu trabalho por
parte de outros artistas,
embora não cite nomes.
Um mea culpa de
Veloso só viria décadas
depois, no prefácio de um
livro sobre o movimento
Clube da Esquina: “Nos
anos setenta, um grupo
de mineiros se firmou no
cenário da música popular
brasileira com profundas
consequências para sua
história (...). Eles traziam
o que só Minas pode
trazer: os frutos de um
paciente amadurecimento
de impulsos culturais
do povo brasileiro, o
esboço (ainda que muito
bem-acabado) de uma
síntese possível. (...) Em
Minas o caldo engrossa,
o tempero entranha, o
sentimento se verticaliza”.
Minha segunda ida a
Belo Horizonte ocorreu
justamente três dias após
o tenso segundo turno

O país afetuoso Antes de embarcar para


Belo Horizonte, em 2016, eu
abasteci o aparelho de mp3
não tenham contribuído
para a resolução dessa
questão tanto quanto o
jazz fusion, o rock da fase
psicodélica dos Beatles e
a toada, a música sacra e
das eleições presidenciais
de 2018. As placas de
metal douradas em

e resiliente
com Clube da esquina e outros volume da coleção O livro do o folk de Minas. Ao lado referência ao simbólico
discos que fomentavam disco sobre Clube da esquina, de uma arrojada síntese Museu Clube da Esquina
meu imaginário acerca de escrito pelo jornalista e musical, esboçou-se permaneciam afixadas nos

daquele álbum
Minas Gerais, suas cidades antropólogo Paulo Thiago também no disco uma mesmos pontos de antes
montanhosas e um sem de Mello. Durante a leitura, síntese de um Brasil – uma delas, no edifício
número de nuvens ciganas me dei conta de que as profundo e afetuoso, Malleta, com adesivos
que eu acreditava pairar duas visões que expus em frangalhos, mas descascados onde ainda

Coleção O livro do disco sobre elas. Durante a


viagem, percebi que minha
aqui não eram opostas,
mas complementares:
resiliente a despeito de
sonhos estranhos com
se lia #HaddadSim e “BH
Antifascismo”. Talvez
situa o LP Clube da esquina relação com o álbum de
Milton Nascimento e Lô
a melancolia serena e o
afeto não suprimiam uma
sabor de vidro e corte.
Mello se equilibra entre
o que Clube da esquina e
as eleições de 2018 me
entre o político e o emocional Borges havia saltado de
um eixo emocional, de
leitura doída e engajada
do disco – pelo contrário,
informações históricas e
curiosidades sobre o disco,
mostraram em comum
tenha sido a constatação
transcendência e alguma a potencializavam. análises dos contextos de que o afeto permanece
Renato Contente melancolia, para uma Uma chave de leitura histórico-sociais aos como estratégia política
leitura política mais efetiva fundamental para o álbum quais a obra está atrelada potente em tempos
e dolorosa, nos meses consiste justamente nas e uma análise subjetiva obscuros. Voltando ao
que seguiram ao golpe relações de afeto entre os das letras assinadas por Brasil de 2019, a turnê
político-judiciário contra a membros do “clube”, que, Fernando Brant, Ronaldo comemorativa do Clube
presidenta Dilma Rousseff, nas palavras de Mello, Bastos, Márcio Borges e da esquina, com a qual
naquele mesmo ano. mais do que um disco pelo próprio Milton. Talvez Milton está rodando o país
Não bastassem as ou um movimento, fora a análise mais consistente atualmente, não deixa de
diversas possibilidades de uma aventura amorosa seja justamente o paralelo ser a defesa de uma utopia
associações metafóricas fundada na amizade. que o autor estabelece entre em meio às distopias da
entre o disco, produzido Nesse sentido, Milton e Lô o movimento Clube da vida concreta. Que seja
na ditadura militar, e os arregimentaram letristas, Esquina e o Tropicalismo uma sinalização de que
nebulosos e arrastados arranjadores e demais – não os discos, mas os sonhos não envelhecem
meses de 2016, Dilma é parceiros dos bailes da vida respectivos movimentos e, em meio a tantos gases
natural de Belo Horizonte, em prol da construção de que estes originaram e que lacrimogêneos, ficam
vivenciou a maior parte um projeto coletivo que, remodelaram a música calmos, calmos, calmos.
de sua militância contra ao lado do Tropicalismo, brasileira moderna. Mello
o regime em cidades passou a constituir um dos define o trabalho dos
mineiras e havia sido pilares da música brasileira mineiros como adepto de
submetida a pavorosas moderna. Para além do um caminho mais intuitivo
sessões de tortura em Juiz desbravamento estético do que o formalismo
de Fora, Zona da Mata de na música brasileira, no minucioso dos baianos, que
seu estado natal, no mesmo entanto, a dupla havia estava em consonância com
1972 em que o álbum fora arquitetado uma redoma os demais movimentos
concebido. A viagem não de afeto e resiliência de vanguarda de então.
se tratava mais de buscar frente à repressão da Na autobiografia Verdade
vestígios de um clube ditadura militar. tropical, Caetano Veloso
“transcendental” pelas ruas Para Mello, no campo argumenta, de maneira
de BH, mas de revisar certo musical, o arriscado lacônica, que o trabalho
imaginário ingênuo e bem LP duplo dos mineiros de Milton era “tão notável
sedimentado que construí agregava desde influências e tão diferente do nosso
em torno do álbum. de autores clássicos, (mesmo oposto ao nosso,
Talvez as placas douradas como Pixinguinha, em certos aspectos)”, CRÍTICA
em referência ao Museu Noel Rosa, Ary Barroso sugerindo certa indiferença
Clube da Esquina, que e Dorival Caymmi, aos quanto às contribuições Milton Nascimento e Lô Borges -
existe apenas de maneira medalhões da Bossa Nova, dos mineiros à música Clube da esquina
simbólica nos pontos em sem desconsiderar o brasileira no período em Autor - Paulo Thiago de Mello
que elas estão afixadas, Tropicalismo (com a qual que ele e Gilberto Gil Editora - Cobogó
onde seus membros vivenciou uma espécie estiveram exilados em Páginas - 128
costumavam se encontrar, de disputa simbólica), o Londres, entre 1969 e Preço - R$ 35
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A noite em que o poeta não adormeceu PRATELEIRA


O 2 de setembro de deflagra o poeta nos final da primeira década novo século mais NADA SE VÊ
2018 ficou marcado primeiros versos do livro. do novo século a partir bélico e ensimesmado A obra reúne seis ensaios escritos pelo
pelas destruições A destruição do Museu de um sebo no centro do que nunca (deve ser historiador da arte Daniel Arasse (1944-
simbólica e concreta Nacional é pressuposto Recife, e de um Recife interessante reler o 2003), com tradução de Camila Boldrini
de parte da história para que Monteiro outra também já em estado de esgotado Armada América e Daniel Lührmann. Os textos abordam a
do Brasil. O incêndio vez questione a função segunda mão, já exausto em meio ao trumpismo). experiência estética diante de telas a partir de
do Museu Nacional, da literatura em tempos de si mesmo. Separados Em seu esforço de diferentes perguntas: O que acontece quando
no Rio de Janeiro, sombrios. Escrever para por uma década, Vi uma flagrar o presente, Museu observamos uma pintura? Como funcionam
descortinou o descaso quê ou para salvar o quê? foto de Anna Akhmátova da noite mostra o quanto os processos da percepção, da memória e do
das autoridades com o Seu épico às avessas vai junto com Museu da noite é importante que os pensamento diante de uma obra de arte? E
material que nos forma, do choque diante das trazem o poeta armando artistas permaneçam como traduzir para si mesmo essa experiência?
com aquilo que nos primeiras imagens das imagens claustrofóbicas insones, despertos em
constitui, justamente às chamas e segue pela dos tempos viventes e sua condição de atores da
vésperas de uma crítica busca desesperada da catalogando o que ainda história, como uma vez
eleição presidencial. A palavra que dê conta pode ser dito ou cantado. alertou Hannah Arendt.
fantasmagoria daquelas do horror, numa clara Até mesmo a obra (Schneider Carpeggiani)
chamas e daquela filiação a Pasolini e sua em prosa de Monteiro
noite levaram o escritor luta contra o fascismo: segue por esse caminho Autor: Daniel Arasse
Fernando Monteiro “Aqui,/ virou uma forma de subverter gêneros Editora: 34
a virar a madrugada de perguntar:/ apesar canônicos para Páginas: 168
para compor o poema dos pesares,/ tudo é denunciar/desmontar o Preço: R$ 62
em cinco partes poesia/ e vai para a presente. Foi o que ele
Museu da noite, escrito poesia,/ mesmo depois fez nos seus primeiros O RUMOR DO TEMPO
no calor da hora. de Auschwitz/ e outros romances, lançados Nesta obra de 1925, vemos o poeta Óssip
Trata-se de um épico lugares do cínico/ dístico no final dos anos 1990, Mandelstam (1891-1938) levar ao verso
às avessas. No lugar sobre a Liberdade/ do os geniais Aspades, ETs, memórias de juventude e o ambiente artístico
de uma narrativa de Trabalho?”, pontua etc e A cabeça no fundo do e cultural de São Petersburgo, entre o tom lírico
fatos heroicos ou da a parte derradeira entulho. Ambos, narrativas e o polêmico. O livro inclui Viagem à Armênia,
bravura de um povo, os do poema. detetivescas assombradas trabalho provocado pela encomenda feita ao
questionamentos de sua Esta não é a primeira por uma virada de milênio poeta de um relatório sobre a jovem URSS, e
decadência. Um relato vez que Monteiro se que boiava anestesiada no qual Mandelstam leva mais longe o uso de
que vai das cinzas às vale de um momento em suas fixações por diferentes gêneros e vozes, agora associados por
cinzas. “Porque ficamos político, ou de um fato imagens e frases de efeito. puro lirismo. A tradução é de Paulo Bezerra.
do lado das pedras,/ histórico assombroso, Na seleta de contos Armada POESIA
porque permanecemos para escrever um épico América, Monteiro brincou
no silêncio/ de cinzas às avessas. Foi o que com a história e literatura Museu da noite
das etnias perdidas/ ele fez em Vi uma foto de norte-americana, Autor - Fernando Monteiro
entre as árvores mais Anna Akhmátova (2009), homenageando/ Editora - Confraria do vento
altas,/ ao penetrarem no exercício poético que ridicularizando um Páginas - 80
vórtice/ das chamas”, enxergava o melancólico país que chegava ao Preço - R$ 37 Autor: Óssip Mandelstam
Editora: Editora 34
Páginas: 200
Preço: R$ 47

Fascismo em pauta A vida da rainha POPOL VUH


O mais antigo documento poético-político
da antiguidade das Américas publicado em
Em Vamos falar de fascismo, a estratégia do mercado Muitos são os relatos livro, insinua-se o fato português em laboriosa tradução da poeta Josely
artista visual Hito Steyerl financeiro: especulação. sobre Jinga, rainha de trazer referência Vianna Baptista. A obra traz a cosmogonia do
aborda as condições que Visa reintroduzir um africana do séculos histórica interessante para povo maia-quiché da Guatemala com préfacios
tornam mais propícia componente especulativo XVI e XVII, e muitos debates afrocentrados, e notas próprios, além de apensados que
(sem tratá-las como (raça, cultura) para são os que tentaram mas que chega ao ambientam o leitor no texto – estão inclusos
determinantes) a ascensão garantir o escalão superior vilanizar sua figura. mercado com preço elementos (notas, introdução e prólogo) da 1ª
do fascismo. Traduzido da sociedade. Steyerl O trabalho de Linda elevado. Em um país no tradução do livro ao espanhol, do século XVIII.
por Alexandre Brasil, o fala de uma perspectiva Heywood, traduzido qual pessoas negras são
texto começa apontando o europeia e poderia ter por Pedro Maia Soares, maioria da população,
esvaziamento político de desenvolvido mais suas resgata a soberana a e também maioria
atentados como o de Oslo ideias, mas o texto é partir dos enfoques entre os pobres, quem
(2011), promovido sob boa provocação para que narrativas deram esse produto alcança?
ideais de masculinidade pensarmos os problemas a ela: uma feiticeira, Apesar disso, a obra
brancos e calcados em inerentes aos avanços personalidade vale o investimento para Autor: Desconhecido
uma lógica torta de das direitas fascistas no fascinante que os que têm condições Editora: Ubu
virilidade. A eles, são mundo. (Igor Gomes) demanda cautela ou de adquiri-la. (I.G.) Páginas: 384
atribuídas motivações ícone de resistência. Preço: R$ 99
individuais (loucura), e Jinga representava
não identitárias. A autora uma afronta ao sistema O ENIGMA DA REVOLTA
observa os problemas de colonial por resistir às Organizado e traduzido por Lorena Balbino,
representação política, investidas europeias, e o volume traz entrevistas de Michel Foucault
representação cultural e ao sistema de gênero, inéditas em português, nas quais aborda ideias
participação econômica. O por liderar exércitos, como revolta, resistência, poder e vontade a
fascismo promete abolir a vestir-se de forma partir dos ocorridos da Revolução Iraniana.
representação política ao masculina e criar Esclarece ideias a respeito do que entende por
impor um líder absoluto; haréns de homens. "espiritualidade política", que teria mais a ver
e erodir a cultural ao Jinga desestabiliza com modificações de si do que com ideias
promover visões toscas e olhares superficiais por religiosas. O livro ainda possui um ensaio do
caricaturais da realidade. ter optado, no fim da sociólogo francês Christian Laval.
Promete participação vida, pelo cristianismo.
econômica aos seus Heywood expõe não
correligionários, que apenas a inteligência
serão alçados a lugares de ENSAIO de Jinga como também HISTÓRIA
elite. Compatível com os suas complexidades.
paradigmas econômicos Vamos falar de fascismo Com isso, a figura Jinga de Angola
contemporâneos (a Autora - Hito Steyerl ganha dimensão Autora - Linda M. Heywood Autor: Michel Foucault
sociedade não é nada, Editora - Zazie Edições humanizada e arredia Editora - Todavia Editora: n-1 edições
o indivíduo é tudo), Páginas - 22 a apropriações Páginas - 320 Páginas: 144
o fascismo adota a Preço - Gratuito (em zazie.com.br) acríticas. Sobre o Preço - R$ 89,90 Preço: R$ 50
30
PERNAMBUCO, ABRIL 2019

RESENHAS
DIVULGAÇÃO

Uma geografia Imagine um livreiro.


Ele acaba de receber
um novo lote, só com
funciona, seu efeito
é potente: um ano se
multiplica em cinco, e é
prosaicos. Mas ele os
filtra com as lentes do
afeto, e é por isso que nos
costuma ser o caso com
a boa literatura, A invenção
dos subúrbios não espelha a

recriada para
escritores obscuros. como se sentíssemos na comovemos com a tristeza realidade propriamente:
Amanhã a loja abre pele a letargia dos dias se de pastéis de carne sem o livro traceja uma visão
cedo, e ele tem pressa consumindo, indistintos. ovos cozidos no recheio, de mundo, insinua uma

as desolações
para separar os livros, Ou como se, tateando a com uma envergonhada resposta estética aos
arrumar as prateleiras, rugosidade do mundo, mortadela servida em malogros da existência.
catalogar os achados. percebêssemos num palitinhos no restaurante “Sim, é preciso que
Depois de consultar estalo que o novo é uma que já foi esnobe, com alguém nos diga que

Sem pessimismos, Daniel a internet e as fichas


catalográficas, ele começa
variação do que sempre
existiu, e nada passa, e
o brio do atendente em
uma lojinha de carimbos
aqui não é um lugar de
milagres. E é preciso que
Francoy responde, em seu livro, a etiquetar as novidades:
romance brasileiro,
nunca saímos do lugar.
“Turista do tédio”,
fadada à ruína, com a
deselegância modernosa
outro alguém nos diga
que tudo vai ficar bem.”
aos fracassos da existência contos argentinos etc.
Agora imagine que uma
flâneur, sempre
circulando entre postos
de um “hortifrúti que
ficaria ofendido de ser
A vida é horrível, mas é
boa, é bonita e sempre
dessas fichas foi comida de gasolina e praças de chamado de quitanda”. acaba mal – de resto, nos
Felipe Charbel pelos cachorros. Que a alimentação de shoppings Francoy está mais para ajeitamos como podemos.
internet saiu do ar. Ou e hipermercados, o retratista da desolação Sem saber o que
então que o livreiro, narrador de A invenção humana do que para fazer com o livro, como
confiando no instinto e dos subúrbios percorre cronista, cogita o livreiro: ordená-lo em suas
no sexto sentido literário, Ribeirão Preto com um “um pintor imitando estantes, o livreiro o lança
intrigado com o título bloquinho no bolso e a Hopper imitando a em um balaio qualquer,
machadiano de uma das câmera do celular sempre realidade”, ele lê numa sobre uma pilha de títulos
obras, resolva ler A invenção a postos. Sua acuidade passagem. Sabemos à venda desde sempre:
dos subúrbios, de Daniel visual impressiona. O que são os bairros de best-sellers esquecidos de
Francoy(foto), antes texto é atravessado por Ribeirão Preto retratados Harold Robbins; A pele,
de definir qual lugar na fotografias sugestivas: uma ali, que são suas ruas, de Curzio Malaparte; Os
estante o livro vai ocupar. sapataria mal iluminada, suas ruínas urbanas, os irmãos inimigos, de Nikos
Logo de cara, ele sente panos de prato estendidos seus sonâmbulos, uma Kazantzákis. Ali ele vai
que está lendo um diário. no varal, um cachorro forma toda peculiar de permanecer por um bom
É que os breves capítulos magro se contorcendo miséria. Mas bem poderia tempo. Exposto, sujeito
têm a aparência de um junto ao vaso de plantas. ser a Tijuca, no Rio de às intempéries. Até se
caderno de notas. Além As imagens cortam a Janeiro; o bairro Fonseca, desfazer em pó. Ou até
disso, é o próprio Francoy narrativa sem ilustrá-la, em Niterói; o Iapi, em encontrar os seus leitores.
quem está falando: sem didatismo, e ajudam Salvador – variações
sobre si mesmo, mas a compor uma atmosfera, realistas da distópica Orão,
principalmente sobre o a criar um clima de de Camus. O subúrbio
marasmo e os encantos da prostração e estranheza. de Francoy é menos um
cidade onde vive, Ribeirão Envolvido com o espaço histórico do que
Preto, reinventada relato, o livreiro tem um lócus imaginário,
literariamente como a impressão de que A parte da geografia
subúrbio. A dicção é invenção dos subúrbios talvez subjetiva: ele existe onde
elegante, espirituosa, se acomode melhor na quer que se esparramem
uma voz que lembra a seção de crônicas. Isso os desertos do tédio, as
de alguns diaristas da porque Francoy não se planícies do desânimo,
nossa tradição literária, pinta como personagem: onde quer que o fracasso
como o conselheiro Aires seu interesse está voltado se imponha como regra
e o amanuense Belmiro. para fora, para a “vida ao e a desistência se revele
Agrupadas conforme rés-do-chão”. Ele “pega o uma alternativa sensata
os meses do ano, as miúdo e mostra nele uma à dureza da vida.
entradas não seguem a grandeza, uma beleza Ainda assim, não se FICÇÃO
retidão da cronologia: ou uma singularidade trata de obra pessimista.
num salto, recuamos de insuspeitadas”, como A exemplo dos narradores A invenção dos subúrbios
2017 a 2015, pulamos escreveu certa vez de Machado, Francoy Autor - Daniel Francoy
para 2018, retrocedemos Antonio Candido. Os oscila entre a melancolia Editora - Jabuticaba
a 2013 e assim por lugares e situações que e a galhofa, entre a Páginas - 132
diante. O procedimento Francoy nos exibe são resignação e o riso. Como Preço - R$ 30
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

O jogo inútil de esquecer para lembrar PRATELEIRA


A vontade de tecer um enquanto eu descia as de cabeça para baixo, é um acerto de contas com o ESCRITOS FICCIONAIS
paralelo entre a novela O escadas ouvia sua voz, que, a memória e seu poder passado repleto de gestos Descobertos em 1929, Escorpião e Félix e
que te pertence, do escritor como o restante dele, era de retroceder até a mais inúteis, sem a certeza de Oulanem são dois textos ficcionais escritos
norte-americano Garth grande demais para aquelas sólida das decisões. Basta um bote salva-vidas. A por um Karl Marx ainda jovem e que tratam
Greenwell, e Morte em dependências subterrâneas, um gatilho e tudo desaba. questão para Greenwell de ridicularizar as convenções burguesas,
Veneza (1912), de Thomas transbordando delas como Em O que te pertence, não é disparar uma a arrogância intelectual e a aristocracia.
Mann (1875-1955), é se ascendesse de volta para Mitko é só mais uma das luta de cavalos de raça Interessam por antecipar algo do olhar crítico
enorme. A novela do autor dentro da tarde luminosa madeleines proustianas que com a memória, para que o filósofo desenvolveria posteriormente,
alemão virou o monólito que, apesar de estarmos em obrigam o narrador a olhar ao final exibir o que ela e por estarem no início da carreira de um
que guarda em si algumas meados de outubro, não para trás. As duas outras consegue conter (como faz autor que largaria a literatura pela filosofia.
das questões centrais tinha nada de outonal; as madeleines da novela Knausgard na saga Minha Os textos receberam tradução de Claudio
quando pensamos numa uvas que pendiam maduras irrompem ao som de uma luta). O importante Cardinali, Flávio Aguiar e Tercio Redondo.
literatura feita por homens das parreiras cidade afora batida na porta: a primeira parece ser aquilo que a
gays, entre as quais estão rebentavam ainda mornas delas quando o professor dilatação da memória,
a atração pelo estranho/ na boca da gente. Fiquei tem sua aula interrompida por si só, não consegue
forasteiro, o pavor da surpreso ao ouvir alguém para ser avisado que seu dar conta. O passado
passagem do tempo e o falando tão livremente pai, nos Estados Unidos, em O que te pertence é
desejo que a tudo corrói e num lugar onde, de acordo anda à beira da morte; na anônimo e sem grandes
corrompe e que começa com um código tácito, as segunda, Mitko reaparece lances de heroísmo. Autor: Karl Marx
no súbito de um primeiro vozes não costumavam tempos depois, extraído (Schneider Carpeggiani) Editora: Boitempo
olhar, que não demanda ultrapassar um sussurro”.  do nada. Reaparece para Páginas: 120
maiores diálogos. O Mitko é alto, magro e tem alertar ao professor que Preço: R$ 34
menino bonito Tadzio é a um corte de cabelo militar, contraiu sífilis e que,
Medusa a levar o homem que lhe confere um tom talvez, ele também tenha POESIA E CRISE
maduro Aschenbach para artificial "hipermasculino", sido contaminado. Isso Livro de 2010 relançado pela Editora
uma bancarrota tanto e vive a vagar pela capital quando o narrador já se Unicamp. Nele, Marcos Siscar – poeta e um
física quanto emocional. búlgara. Do professor, encontrava numa relação dos pesquisadores mais importantes sobre
Para além da beleza da sabemos apenas que estável, certo de que poesia no Brasil – investiga a "crise" como
Veneza defunta descrita por não é mais tão jovem curado do seu desejo. um elemento fundante da modernidade que
Mann, o livro de Greenwell e vive aparentemente O que te pertence pode ser toma forma historicamente particular no
começa no fétido de um confortável em sua jaula confundido com a literatura discurso poético. O volume dialoga com a
banheiro público em Sófia, de imigrante de classe do "clube do eu”, que inclui obra seguinte de Siscar, Depois do fim (2016),
na Bulgária. A descrição média. A relação dos dois, nomes como Ben Lerner e na qual retoma a falência dos ímpetos de
do primeiro encontro do que parecia o único ponto Karl Ove Knausgard. Mas vanguarda para pensar questões sobre as
professor norte-americano de fuga do nosso olhar, Garth Greenwell não parece ROMANCE poesias moderna e contemporânea.
(que nunca é nomeado) não é o mais importante muito interessado no jogo
com o michê Mitko é no decorrer do livro. A irônico a marcar a prosa do O que te pertence
impressionante. Vemos, em Medusa aqui está longe primeiro, e a beleza da sua Autor - Garth Greenwell
uma grande angular, o rato de ser o menino bonito escrita consegue ultrapassar Editora - Todavia
sendo atraído com prazer de Mann. O que petrifica, a compulsão "voyeurística" Páginas - 208
para a ratoeira: “Mesmo o que coloca a história do segundo. Temos aqui Preço - R$ 54,90
Autor: Marcos Siscar
Editora: Unicamp
Páginas: 360

Nas encruzilhadas "A morte de si"


Preço: R$ 60

SOBRE O FASCISMO, A DITADURA


PORTUGUESA E SALAZAR
A história da Nação Xambá a trajetória de resistência Questão pungente e, no último, bibliografia Reunião dos escritos do poeta Fernando
é a história de Pernambuco de um dos celeiros dos pontos de vista sobre o assunto – mas Pessoa sobre o fascismo e as duas ditaduras
e dos terreiros brasileiros. culturais mais potentes individual e coletivo, ainda escondendo os casos portuguesas pelas quais passou. A trajetória
No livro Povo Xambá, do país. Consegue entrar o suicídio tem uma concretos e abordando o sinuosa e reticente de suas ideias abrange
da jornalista Marileide em disputas internas trajetória histórica de tema de forma abstrata. uma defesa condicional da ditadura militar, a
Alves, dialogam o caráter da comunidade, o que parca documentação. Apesar do foco apenas rejeição do salazarismo e a rejeição simultânea
universal da opressão deixa entrever como a O que Georges Minois ocidental, o trabalho de do comunismo e dos fascismos. Metade dos
aos povos de candomblé convivência em grupo faz em História do suicídio, Minois nos coloca diante da textos eram inéditos até a presente publicação.
no Estado brasileiro traz o dissenso sem anular livro de 1995 traduzido complexidade: trata-se de
(o marco histórico é a o pano de fundo dessa por Fernando Santos e sucumbir às dificuldades
perseguição empreendida história, ou seja, o afeto publicado no Brasil em ou de exercer uma
em 1938 por Vargas) e as em que identidades, o 2018, é resgatar registros liberdade absoluta? Talvez
particularidades da nação cotidiano e o sagrado de diversas origens ainda sem conclusão,
de candomblé Xambá se cruzam de forma (jurídicos, literários, a questão se impôs de
– de menor presença construtiva. (Igor Gomes) jornalísticos) para diferentes formas e recebeu Autor: Fernando Pessoa
no Brasil se comparada entender as mudanças diferentes respostas. (I.G.) Editora: Tinta da China
às nações Nagô, Ketu e nas formas de lidar com Páginas: 432
Jejê –, responsável pelo a “morte de si mesmo” Preço: R$ 69
surgimento de um dos (única expressão a
primeiros quilombos designar a prática até MASTODONTES
urbanos reconhecidos fins do século XVII) na Especializado em industrialização, Joshua
pelo poder público, o do sociedade ocidental. Freeman aborda a história das fábricas como
Portão do Gelo (Olinda). Do caldo religioso e peça fundamental para compreensão da
O trabalho se expande político da Idade Média, história da humanidade. Se antes a produção
também graças ao grupo que afirmava a punição econômica era constante, depois delas passa
Bongar, de coco de roda, aos suicidas no além a ser crescente – e isso muda a expectativa de
egresso do terreiro da (pelo castigo divino) e vida, a organização urbana e a relação com a
yalorixá Mãe Biu (1914- por aqui (no cadáver, natureza. Tradução de Pedro Maia Soares.
1993), que, junto com suas ao qual era vetado
irmãs, refundou o terreiro um enterro comum
fechado pelo Estado Novo e digno), passando
e manteve viva a tradição HISTÓRIA por uma primeira HISTÓRIA
Xambá. Na encruzilhada abertura no século
dos depoimentos orais com Povo Xambá XV até se tornar algo História do suicídio
registros documentais, Autora - Marileide Alves francamente discutido Autor - Georges Minois Autor: Joshua B. Freeman
com urbanização e, por Editora - Cepe Editora com o Iluminismo. Editora - Editora Unesp Editora: Todavia
vezes, o uso da primeira Páginas - 178 Nos séculos XIX e XX, Páginas - 420 Páginas: 416
pessoa, Alves reconstrói Preço - R$ 35 há produção de dados Preço - R$ 74 Preço: R$ 89,90
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PERNAMBUCO, ABRIL 2019

José
CASTELLO KARINA FREITAS

Psicologia do vassalo
Ano de 1865. Na famosa Passagem, galeria sente-se sereno, quase aliviado, como se a de visitantes que chegam à loja, que agora
comercial de luxo que ainda hoje resiste no agressão tivesse sido, na verdade, uma con- pagam para ver não apenas um crocodilo,
centro de São Petersburgo, Rússia, um certo quista. Aqui – nessa inaceitável reviravolta –, mas um crocodilo que engoliu um homem.
Ivan Matviéievitch passeia com Ielena Ivâ- começa a parte mais chocante de O crocodilo, Passa a fazer as contas, constata os aspectos
novna, sua esposa. Funcionário graduado, novela que Fiodor Dostoiévski publicou no vantajosos de sua desgraça. A ideia de lucro
Ivan já está com bilhetes comprados para a ano de 1865 e que leio na tradução de Boris se sobrepõe a todas as outras. Resolve então
Europa, onde passará, por ordem médica, Schnaiderman para a Editora 34. Pior que o que continuará, até feliz, na barriga do bi-
uma temporada de repouso. Em uma das lojas desastre é a apatia, e também – como fazem cho. “Não me aborrecerei!”, promete. Já não
da galeria, dentro de uma tina, exibe-se um os vassalos – a submissão ao agressor. É nesse precisa de sua viagem de férias. “Somente
imenso crocodilo, recém-chegado à capital. ponto – em nosso mundo insensível, indi- agora, dispondo de lazer, posso sonhar com
O casal resolve conhecê-lo. “Então isso é um ferente, em que agimos, um pouco, como a melhoria da sorte de toda a humanidade”.
crocodilo!”, exclama Ielena. “E eu que pensei sonâmbulos – que a novela de Dostoiévski E arremata, cheio de si: “Do crocodilo hão
que ele fosse... diferente!” ganha surpreendente atualidade. de sair agora a verdade e a luz”. Sente-se
O proprietário da loja, um alemão, batizou As ameaças de guerra se multiplicam, mi- designado a um trabalho especial. A desdita
o réptil de Karlchen, isto é, Carlinhos. Porém, grantes em desespero se afogam nos oceanos, se torna seu prêmio.
o bicho não desperta a mesma ternura em a fome e a miséria se disseminam, o planeta Revela ao amigo, por fim, um disparate:
todos os visitantes. “Como é nojento esse parece, tantas vezes, prestes a explodir; o fa- que, por dentro, o crocodilo é completamente
crocodilo!”, Ielena desabafa, e, para tran- natismo se expande, e o diálogo se torna cada oco. Embora vivo, é tão vazio quanto um
quilizá-la, Ivan, com uma luva, começa a vez mais difícil. Ainda assim, anestesiados, monstro de papel. O amigo ainda resiste em
acariciar o focinho do animal. Tudo parece abobalhados, continuamos a seguir nossas aceitar. “Tudo isso são coisas fantásticas, em
divertido, embora exótico e mesmo perigoso, vidas medíocres, nossas rotinas vazias, conti- que mal posso acreditar. Mas será possível,
até que o monstro, exibindo suas mandíbu- nuamos a encenar o script de nossos bons há- será possível que você pretenda nunca mais
las, devora Ivan Matviéievitch vivo. Começa bitos. Que outra coisa faz Ivan Matviéievitch jantar?”, pergunta, insistindo em sustentar o
pelas pernas, engole-as, regurgita, engole de senão gozar do próprio sofrimento? Tomando prosaico diante do absurdo. “Com que tolices
novo. “Finalmente, numa tragada decisi- suas dores, e ainda perplexo, o narrador da você se preocupa, cabeça fútil e ociosa!”,
va, o crocodilo fez entrar em si o meu culto história pensa em recorrer aos superiores para protesta Ivan. “Eu lhe falo das grandes ideias,
amigo, inteiro, sem qualquer sobra”, relata prestar queixa pela agressão. Mas a entrevista e você...” Também aqui o protagonista de
o narrador. Como um Geppetto dentro de que tem com Timofiéi Siemiônitch, o chefe, Dostoiévski se torna nosso contemporâneo.
sua baleia, Ivan, ainda vivo, passa a habitar mostra-se inútil. Já não se interessa pelos aspectos humanos,
a barriga do réptil. “Quem o mandou entrar no crocodilo?”, está dominado pelo cálculo e pela ganân-
O que é fantástico e também repulsivo, repreende Timofiéi, indignado. “Uma pessoa cia. Além de tudo, mesmo recluso em uma
contudo, logo se transforma em algo normal. séria, na posse de determinado cargo, que barriga vazia, ele passa a brilhar e a brilhar
“Oh, o meu crocodilo!”, exclama o proprie- vive em matrimônio legítimo, e de repen- cada vez mais. As filas se alongam, o interesse
tário, mais preocupado com o predador do te... um tal passo!” Pela falta de um prece- aumenta, Ivan é um astro da... zoologia?
que com a vítima. “Ele estava provocan- dente, declara-se incapacitado de pensar. A Ivan teme, apenas, a agressão dos espíritos
do o crocodilo”, reclama, referindo-se ao obsessão pelo cálculo contamina o próprio críticos, da imprensa, das zombarias. “Tenho
desaparecido Ivan. “O nosso Carlinhos, o narrador, o amigo de Ivan, que passa a ima- medo de que os visitantes levianos, os néscios
nosso queridíssimo Carlinhos vai morrer!”, ginar que vantagens a vítima poderia tirar e invejosos e, de modo geral, os niilistas me
enlouquece a mulher do alemão. Já ninguém de seu triste destino. Pensam, quem sabe, tornem alvo de sua chacota.” Teme a crítica.
se preocupa mais com o homem que, depois “numa missão oficial... para as profundezas Também para ele, como para tantos homens
de engolido, agora está preso para sempre nas do crocodilo”. Além dos ganhos pecuniários, práticos de hoje, a crítica é não só perigosa,
tripas de um monstro. haveria vantagens espirituais, para a ciência mas perniciosa, e até escandalosa. Enquanto
Contudo, imitando o que tantos fazem hoje, e para a filosofia. se cega com a fama, a mulher, Ielena, pensa
o próprio Ivan se torna, ele mesmo, comparsa Voltando logo depois à loja, o narrador em abandoná-lo. “Quer dizer que ele vai per-
de seu agressor. Quando Ielena, aos gritos, constata que Ivan continua vivo e com saú- manecer lá, dentro do crocodilo, e talvez passe
lhe pergunta se está vivo, ele, com espantosa de. À beira da tina, passa a conversar com o a vida toda assim, e eu tenho que esperá-lo
serenidade, a tranquiliza: “Vivo e com saú- amigo. Ele parece entusiasmado com a ideia aqui?” Também como em nossos dias, os
de e, graças ao Altíssimo, fui engolido sem de uma missão oficial ao interior do réptil. laços amorosos definham. Será que estamos
qualquer dano”. Apesar do ataque brutal, Encanta-lhe, também, o aumento do número todos, igualmente, no interior de um monstro?

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