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Foto: Doug Strickland/Chattanooga Times Free Press via AP

COMO A POLÍTICA
IDENTITÁRIA DIVIDIU A
ESQUERDA: UMA
ENTREVISTA COM
ASAD HAIDER
Rashmee Kumar

1 de Junho de 2018, 3h00


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A POLÍTICA IDENTITÁR IA ATENDE a todos os gostos,


mas não no bom sentido. Em sua campanha eleitoral de 2016,
Hillary Clinton invocou a “interseccionalidade” e o “privilégio
branco” como um aceno vazio aos jovens eleitores liberais.
Richard Spencer e membros da “alt-right” (“alternative right”,
um movimento de extrema-direita nos EUA) se
autodenominam “identitários” para mascarar o fato de que são,
na verdade, supremacistas brancos. E, para algumas pessoas
“conscientes”, usar uma camiseta onde se lê “feminista” e
criticar celebridades por serem vagamente “problemáticas” é a
máxima extensão de sua participação política.
O que pretendia ser uma estratégia revolucionária para
derrubar opressões entrecruzadas tornou-se uma palavra de
ordem nebulosa e carregada, que foi cooptada pelos diferentes
polos do espectro político. Um novo livro, “Mistaken Identity:
Race and Class in the Age of Trump” (“Identidade Trocada:
Raça e Classe na Era Trump”, ainda sem tradução no Brasil),
empreende uma análise rigorosa das políticas raciais e da
história racial nos Estados Unidos para debater a mutável
relação entre identidade pessoal e ação política.

Foto: Cortesia de Verso


Em “Mistaken Identity”, Asad Haider defende que a política
identitária contemporânea é uma “neutralização dos
movimentos contra a opressão racial”, e não uma progressão
em relação à luta de base contra o racismo. Haider, doutorando
da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, coloca o
trabalho dos acadêmicos e ativistas negros radicais em diálogo
com suas experiências pessoais de racismo e organização
política. Ele mapeia o processo por meio do qual as visões
revolucionárias do movimento de libertação negra – que viam
o racismo e o capitalismo como dois lados da mesma moeda –
foram substituídas por um conceito restrito e limitado de
identidade.
Ele argumenta que a identidade foi abstraída das nossas
relações materiais com o Estado e a sociedade, que a tornam
relevante para as nossas vidas. Assim, quando a identidade
serve de base para as crenças políticas de alguém, ela se
manifesta em divisionismo e atitudes moralizantes, em vez de
estimular a solidariedade.
“O enquadramento da identidade reduz a política ao que você é
como indivíduo e enquanto ganha reconhecimento como
indivíduo, e não à sua participação em uma coletividade e na
luta coletiva contra uma estrutura social opressora”, escreve
Haider. “O resultado é que a política identitária
paradoxalmente acaba reforçando as mesmas normas que se
dispõe a criticar.”
O conceito de política identitária foi originalmente criado em
1977 pelo Coletivo Combahee River, um grupo de feministas
socialistas lésbicas negras que reconheciam a necessidade de
uma política autônoma própria, uma vez que se confrontavam
com o racismo no movimento das mulheres, o sexismo no
movimento de libertação negra, e o reducionismo de classe. Foi
fundamental para sua política emancipatória trazer para o
centro a forma como as opressões econômica, racial e de
gênero se materializavam simultaneamente em suas vidas. Seu
trabalho político, porém, não parou aí. As mulheres de
Combaheem defendiam a construção de alianças em
solidariedade a outros grupos progressistas para erradicar
todas as formas de opressão, ao mesmo tempo em que traziam
a que elas próprias sofriam para o primeiro plano.

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Ao fundamentar sua crítica em histórias específicas e relações


materiais, Haider adota uma abordagem de múltiplas vertentes
para explorar em que intensidade a política identitária se
afastou de suas origens radicais.
Por meio de seu envolvimento na organização contra o
aumento das anuidades escolares e a privatização, Haider
descreve as falhas dos movimentos que criam uma falsa
separação das questões econômicas e raciais por critérios
baseados em identidade: questões “de brancos” e questões “de
não brancos”. Sua análise do “privilégio branco” reflete sobre o
desenvolvimento da raça branca, codificada no estado colonial
da Virgínia no século XVII pela classe dominante para
justificar a exploração econômica dos africanos como escravos
e evitar as alianças entre trabalhadores africanos e europeus na
sequência da Revolta de Bacon.
No seu capítulo sobre “passabilidade”, Haider tenta
compreender o caso de Rachel Dolezal como um exemplo das
“consequências de reduzir a política à performance
identitária”. Ele analisa o trabalho do novelista Philip Roth,
bem como a transformação política do poeta Amiri Baraka, que
abraçou o nacionalismo negro nos anos 1970 e depois o
renegou em prol do universalismo marxista. Por fim, Haider
explica como a eleição de Donald Trump estava delineada na
ascensão do neoliberalismo na política eleitoral décadas atrás.
Usando o trabalho do teórico cultural britânico Stuart Hall, ele
traça cuidadosas comparações com a gestão da crise econômica
e do pânico moral pelo Partido Trabalhista do Reino Unido na
década de 70, que preparou o caminho para a chegada de
Margaret Thatcher ao poder.
O curto livro de Haider se encerra com o paradoxo dos direitos
como o objetivo final dos movimentos de massa. Ele convoca,
em vez disso, a uma retomada do “universalismo insurgente”,
onde os grupos oprimidos se posicionam como atores políticos,
não como vítimas passivas. Ao mesmo tempo fascinante e
provocativo, “Mistaken Identity” se afasta das brigas no
Twitter e dos artigos de opinião para contextualizar os debates
sobre política identitária e reconfigurar como a ideia de raça
conforma os movimentos de esquerda. A entrevista de The
Intercept com Haider foi resumida e editada por razões de
clareza.
Você pode fazer um apanhado de como a política identitária se
converteu de prática política revolucionária a ideologia liberal
individualista?
1977 foi historicamente um divisor de águas. Em primeiro
lugar, veio a crise dos movimentos de massa, que remonta ao
movimento dos direitos civis – a Nova Esquerda da década de
60 e o nacionalismo negro que se seguiu a ela. Essas
mobilizações e organizações de massa enfrentaram seus
próprios limites estratégicos, confrontadas com a repressão
estatal, e assim seu dinamismo entrou em declínio. Ao mesmo
tempo, houve o que Stuart Hall chamou de “crise de
hegemonia”, onde as coordenadas da política americana
estavam sendo completamente reorganizadas. O mesmo
processo estava acontecendo na Europa, onde as crises
econômicas dos anos 1970 tinham levado a uma completa
reordenação dos locais de trabalho, os sindicatos estavam na
defensiva, e os movimentos de massa estavam se dissolvendo.
Assim, parte do que aconteceu naquele período é que a
linguagem da identidade e da luta contra o racismo se tornou
individualizada e unida ao progresso individual de uma classe
política negra ascendente e de elites econômicas que haviam
sido excluídas do centro da sociedade americana pelo racismo,
mas passaram a ter uma via de entrada.
Penso que nos falta, no momento atual, uma linguagem
política que possa promover o deslocamento da divisão para a
solidariedade, que foi uma questão importante para os
movimentos antirracistas desde a década de 50 até a de 70, e é
sobre isso que o Coletivo Combahee River estava escrevendo.
Não temos uma linguagem para as lutas coletivas que inclua as
questões do racismo e possa incorporar movimentos
interraciais. Acho então que parte do motivo para que esse tipo
de política identitária individualista apareça tanto na esquerda
entre ativistas que realmente querem estruturar movimentos
que desafiem a estrutura social é que nós perdemos a
linguagem que acompanhava os movimentos de massa, e que
nos permitia pensar em formas de construir essa solidariedade.
Você escreve que “a ideologia de raça é produzida pelo racismo,
não o contrário”. O que isso significa?
Nesse livro, eu não falo sobre “raça” em geral porque é possível
pensar em muitos contextos históricos diferentes em que são
introduzidas divisões entre grupos que se tornam hierárquicas,
e algumas delas podem estar relacionadas à cor da pele. Mas
existem exemplos desse tipo de diferenciação de grupo que não
estão relacionados a isso, como o caso do colonialismo irlandês
e inglês na Irlanda, no século XIII, a que faço referência no
livro. Se olharmos para os diferentes exemplos de escravidão
no sistema de plantation do Caribe, precisaremos explicar
[raça] de outra forma, porque não havia apenas escravos
africanos, mas também “coolies” [termo pejorativo usado para
se referir aos trabalhadores braçais vindos da Ásia] da Índia e
da China.
Falo de uma história muito específica do conceito de raça que
emergiu dos trabalhos forçados no estado da Virgínia no
período colonial do século XVII. (…) Meu argumento é que a
primeira categoria racial que se produz é a da raça branca, de
forma a excluir os trabalhadores africanos da categoria em que
se incluíam os europeus, para os quais havia uma previsão de
término para o período de servidão, [em oposição à] categoria
dos escravos, que não tinham prazo. A raça branca foi
inventada, como diz Theodore Allen, na forma como as leis
mudaram em relação aos trabalhos forçados, e esse foi o
começo da divisão das pessoas em categorias raciais na história
dos EUA. O que o racismo fez nesse caso foi estabelecer uma
diferença entre os tipos de exploração econômica, ao ponto de
se tornar uma forma de controle social, que dividiu os
explorados ao introduzir entre eles hierarquias e privilégios
para alguns, impedindo que [os trabalhadores forçados
migrantes europeus e africanos] percebessem seus interesses
comuns e o antagonismo comum contra aqueles que os
exploravam.
Seus encontros pessoais com o racismo e suas observações sobre
o ativismo universitário estão entremeados ao livro. Como a sua
própria identidade e as suas experiências influenciaram a sua
compreensão de raça?
Asad Haider, cofundador e editor da Viewpoint Magazine e autor do livro
“Mistaken Identity”.
Foto: Cortesia de Asad Haider

Eu sempre me refiro a uma citação de Stuart Hall, que disse


que a identidade não é um retorno às suas raízes, mas um
acerto de contas com as suas rotas. Nesse sentido, identidade
não é a sua essência, ou o que está dentro de você na sua
fundação, mas diz respeito ao movimento que levou até onde
você se encontra. Consigo rastrear minha identidade no tempo
até a migração dos meus ancestrais do Irã para a Índia, e
então, depois da Partição [a divisão do território da Índia
Britânica pós-independência, que culminou na criação da Índia
e do Paquistão], da Índia para o Paquistão; de lá, meus pais
foram para o interior da Pensilvânia. É a história de um
movimento pelo mundo, e, a cada passo, uma mistura que
transformava o que estava se movendo. Essa percepção sempre
me deixou muito cético quanto ao salto entre uma identidade e
um tipo específico de política, porque a identidade não pode
ser reduzida a uma coisa fixa. Quando você tem uma política
que faz exatamente isso, é um desserviço para as pessoas e
para todas as nossas histórias de misturas e dinamismo.
Quanto ao ativismo universitário, minha experiência foi como
pessoa não branca que se radicalizou principalmente ao
aprender sobre o movimento Black Power e sobre o marxismo,
por meio do Black Power. Por isso, nunca imaginei que as
pessoas pudessem enxergar incompatibilidade entre eles,
especialmente porque o marxismo era a força poderosa que
existia no século XX, e ia sendo levada e adaptada ao mundo
fora do Ocidente. E isso atualmente foi esquecido ou
suprimido. Então, como pessoa não branca que se envolvia em
movimentos sociais, eu ficava realmente desanimado quando
via que a questão racial frequentemente se tornava um
catalisador de polarização, fragmentação e derrota, em vez de
se incorporar a um programa de emancipação geral. Foi essa
frustração que me levou a refletir e a escrever sobre os temas
que compuseram o livro.
A esquerda é frequentemente acusada de ser “branca demais” ou
“masculina demais”. Como a esquerda pode começar a abordar
sua dinâmica racial interna?
Se você tem uma organização ou um movimento que é
dominado por homens brancos, isso é um problema político e
estratégico. Se ele for tratado como um problema moral, não
haverá como resolvê-lo, e eu considero que o importante é
conseguir mudar a situação. Qualquer pessoa que já tenha
participado de ativismo sabe que, em uma reunião, alguém
pode ser chamado ou intimado a “medir seus privilégios”. Jo
Freeman escreveu um texto interessante, oriundo do
movimento feminista, intitulado “Trashing” [“Escracho”]: o
equivalente contemporâneo de “escrachar” é “expor”. O curioso
do escracho é que ele não funciona, porque centraliza toda a
atenção no homem branco que praticou a transgressão que
esteja sendo moralmente condenada. Ele também cria uma
atmosfera tal de tensão e paranoia que mesmo pessoas que não
são homens brancos ficam nervosas ao falar porque podem
dizer a coisa errada – e ser escrachadas. Assim, é uma questão
que as pessoas envolvidas na organização precisam levar a
sério, e que os homens brancos precisam levar a sério.
Havia um princípio que o comunista negro Harry Haywood
dizia ser fundamental para a organização durante as lutas
antirracistas dos anos 1930. Ele dizia que todos precisam
acertar as contas com sua própria posição nacional. Assim, os
camaradas brancos precisam se opor ao chauvinismo branco, e
assumir um papel preponderante nessa oposição. E ele dizia
que os camaradas negros precisavam ter um papel
preponderante na oposição ao nacionalismo reacionário, que
na época era representado pelo Garveyismo [de Marcus
Garvey, um dos principais ativistas do nacionalismo negro] e
seus equivalentes. Para ele, com essa divisão de trabalho, que
era parte efetiva dos movimentos de massa, era possível
começar a superar esses problemas. Mas ele disse mais tarde,
quando o partido abandonou suas campanhas contra o
racismo, que começaram a policiar a linguagem que cada um
usava, e a divisão de trabalho acabou, e o problema não foi
resolvido. E isso permanece. Homens brancos dentro dos
movimentos precisam tomar a frente das tentativas de
superação dessas hierarquias que se manifestam nas interações
sociais, mas as pessoas não brancas também precisam dar um
passo adiante e dizer: “não aceitamos essa divisão entre
questões econômicas e raciais, entre classe e raça, e se alguém
vier tentar dizer que essas questões são ‘brancas’ ou que este é
um ‘movimento branco’, isso não é verdade, porque estamos
aqui e desempenhamos um papel, e acreditamos que todas
essas questões estejam conectadas e que possamos trabalhar
nelas juntos”.
Você pode falar um pouco sobre as ideias por trás do
nacionalismo negro dos anos 1970 e suas limitações? Como o
nacionalismo negro tem resistido na política contemporânea dos
EUA?
Depois de 1965, depois que o movimento dos direitos civis já
havia conquistado importantes mudanças nas políticas, não
estava claro para onde ele deveria se voltar. Mesmo as
lideranças do movimento pensavam que, uma vez que a
segregação legal já havia sido formalmente enfraquecida, ainda
era preciso lidar com o fato de que a maior parte da população
negra vivia na pobreza, e que existiam estruturas fáticas de
exclusão. Martin Luther King, por exemplo, começou a se
interessar pela “Campanha dos Pobres”, em que atuou no final
de sua vida. Mas nesse momento havia também uma outra
abordagem, que algumas pessoas chamavam de “tumultos” e
outras chamavam de “rebeliões urbanas”, nas cidades do norte
do país, numa revolta contra o controle econômico dos
proprietários de imóveis e empresários brancos, e questões
afins. Na região norte, num contexto urbano, o nacionalismo
negro entendido como projeto político dizia respeito à
construção de instituições alternativas, em vez de pleitear a
integração à sociedade branca.
Havia, então, duas coisas acontecendo simultaneamente. De
um lado, nacionalistas negros construindo instituições
paralelas, e de outro, a superação da segregação legal e a
ascensão de uma nova classe política e uma nova elite
econômica negras, que sempre tinham existido em alguma
medida, mas não em qualquer escala comparável. Assim, as
organizações nacionalistas negras estavam por trás de boa
parte das campanhas pela eleição de um prefeito negro em
uma cidade de maioria negra. No caso de Amiri Baraka, foi
Kenneth Gibson. Uma das razões pelas quais Baraka deixou o
nacionalismo negro e aderiu ao marxismo foi a percepção de
que, uma vez que Gibson estava no comando de Newark, a
política continuou a de sempre. Eu considero que o
nacionalismo negro teve um papel revolucionário na sua época
– foi um desenvolvimento estratégico e político muito
importante – mas ao longo da década de 70, com a ascensão da
classe política negra e das elites econômicas negras, ele entrou
em contradição.
O nacionalismo negro se tornou atrelado às elites negras
políticas e econômicas porque tinha uma ideologia de união
racial, e quando as pessoas estavam completamente excluídas
da governança e do controle sobre suas vidas, fazia sentido que
houvesse uma espécie de aliança entre essas figuras elitizadas e
os estratos econômicos mais baixos, porque ambos estavam
enfrentando estruturas raciais de exclusão. Porém, à medida
que teve continuidade o processo de incorporação das elites
negras às estruturas políticas e econômicas já existentes,
aqueles interesses já não estavam alinhados, especialmente nos
anos 1970, quando os políticos em todos os níveis começaram a
impor medidas de austeridade à população, cortando
programas sociais e afins. Passaram a ser os políticos negros
fazendo isso, e então as contradições entre a elite negra e a
maioria da população negra das cidades começaram a se tornar
muito claras. O que eu acho que ainda permanece é a divisão
entre as elites e a massa trabalhadora, e um resíduo ideológico
de união racial que muitas vezes é usado para encobrir a
divisão de classe. Esse era bem o caso de Barack Obama.
Como a política identitária pode ser levada de volta a suas
origens radicais dentro de um discurso político e uma forma de
organização contemporâneos?
Considero que precisamos estar abertos à compreensão de que
nossas identidades não formam a base de nada; elas são
instáveis e multifacetadas, e isso pode ser incômodo.
Precisamos, porém, aprender a aceitar esses aspectos, e parte
do que podemos fazer a esse respeito é criar novas formas de
nos relacionarmos, que podem surgir por meio dos
movimentos de massa. Poderemos superar a fragmentação a
que a identidade parece conduzir atualmente ao reconhecer o
que o Coletivo Combahee River propunha: que conseguíssemos
afirmar uma autonomia política, mas também estar unidos.
Acho isso muito prático. Essa solução não virá das discussões
intermináveis no Twitter; é algo que precisa surgir da atividade
política. É trabalhando em projetos práticos e concretos,
aliados a outras pessoas. Esse, por si só, é um processo que
enfraquece o racismo, e brancos que trabalham em conjunto
com não brancos podem aprender a questionar suas próprias
presunções e superar seus impulsos racistas.
Eu me inspiro muito pelo rápido crescimento de organizações
socialistas na atualidade, mas algumas vezes me preocupa que
o socialismo seja considerado uma espécie de projeto de
redistribuição econômica que permanece inalterado desde o
século XIX. Os socialistas sempre estiveram envolvidos na
construção de alianças: sempre houve um princípio de
internacionalismo, nunca houve um conceito fixo sobre que
tipos de demanda um movimento socialista deve impulsionar.
Algumas vezes uma demanda que parece não estar diretamente
relacionada à redistribuição da riqueza pode ser parte da
construção de alianças e da mobilização das pessoas. Se uma
organização socialista está à frente de um movimento contra o
racismo (e esse era o objetivo de vários membros negros do
Partido Comunista na década de 30), as pessoas vão olhar ao
redor e dizer: “Quem está do nosso lado? São essas pessoas.
Quando estávamos lidando com a violência policial, ali
estavam essas pessoas, foi essa organização que interferiu para
ajudar. E essa organização é multirracial, e eles acham que
essas questões que vivemos no cotidiano são importantes,
exatamente na mesma medida de qualquer outra questão
econômica.” Por isso as organizações socialistas também
precisam estar abertas à experimentação e à flexibilidade, para
poderem se antecipar à identidade como fonte de divisão e, no
lugar disso, fomentar antecipadamente a solidariedade.
Você pode nos explicar sua visão de uma estrutura política
universalista?
Precisamos deixar de lado o universalismo do tipo que
soluciona divisões e dificuldades dizendo por antecedência que
temos algum tipo de fundamento universal, como a natureza
humana, ou um materialismo tratado como questão física, que
não tem nenhuma relação com o materialismo de que Marx
falava. Não é esse universalismo que eu defendo, porque,
historicamente, ele tem sido alcançado pela exclusão e pela
dominação – como o que foi trazido pelo Iluminismo, pela
Revolução Francesa e pela Revolução Americana, que se
mantinha associado à escravidão, ao colonialismo e a várias
formas de violência. (…) Minha ideia de universalismo é que as
pessoas e os grupos que estão excluídos [dessa definição] do
universal se levantem e reivindiquem sua autonomia para
produzir um novo tipo de universalidade. Não é algo que possa
preexistir; é uma ruptura com o estado existente das coisas. O
exemplo clássico é a Revolução Haitiana, que veio depois da
Revolução Francesa e mostrou que a França ainda mantinha
colônias onde persistia a escravidão, a despeito do que se
passava na metrópole.
Conseguiríamos enxergar um novo universalismo se fossem
superadas em um movimento real e pragmático as divisões
rígidas entre as chamadas categorias identitárias, como raça e
gênero, e a categoria de classe. Se pudéssemos ver emergir
organizações que promovessem mudanças reais e concretas
para aproximar esse fosso – nas quais se tornasse impossível
dizer “esta é uma organização branca” ou “esta é uma
organização dominada por homens”. Esse fenômeno
necessariamente exigiria o questionamento da igualdade
econômica e da estrutura de classes da sociedade norte-
americana. Pois o surgimento de um movimento que se volte
contra as estruturas fundamentais de desigualdade, dominação
e exploração da sociedade americana de forma que a
identidade não possa existir como força de divisão – esse seria
um verdadeiro momento universal.
Foto em destaque: Isaiah Moore, à direita, discute com outros manifestantes
sobre relações raciais durante uma manifestação em Coolidge Park em 17 de
agosto de 2017, em Chattanooga, Tennessee.

Tradução: Deborah Leão

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