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AUGUSTIN BERQUE

Paisagem, meio, história

Duvidar da paisagem
Algumas dúvidas em relação à paisagem me vieram quando, ainda jovem
pesquisador, preparava uma tese sobre a colonização de Hokkaido, a grande
ilha do norte do Japão. Uma primeira incursão me levou ao estrito de Sôya.
Nestas regiões, muito frescas no verão, a cultura do arroz não é possível; os
campos são especializados em pecuária leiteira. Quando se desce o vale do
Teshio em direção ao norte, os arrozais se rarefazem e acabam por
desaparecer. Não há mais do que campos de alfafa, de beterraba ou de milho,
com belas vacas Holstein dispersas nos prados. Uma paisagem bucólica,
diríamos. Mas o que dizia o pequeno guia que eu tinha à mão? Que a partir de
tal lugar “não se vêem mais arrozais, e a paisagem se torna melancólica”...

Melancólicas (sabishii), estas alegres perspectivas (diríamos nós)?

Foi preciso viver nesta ilha e estudar sua história para compreendê-la: uma
paisagem amena, uma paisagem onde sentir-se bem, para um japonês, é uma
paisagem com arrozais. Em Hokkaido, o arroz é necessário para a vida ser
bela. No começo da colonização, imbuída pelo parecer do agrônomo Horace
Capron, a administração interditou o cultivo do arroz aos soldados-colonos (os
tondenhei, pontas de lança do desmatamento). Produzam trigo, batata, façam a
pecuária! Como na Nova Inglaterra... Mas os imigrantes resistiram; e nos anos
trinta, viam-se arrozais mesmo em Nemuro, onde o verão é menos quente que
em Estocolmo... 1

O Japão me reservou outros ensinamentos. Por exemplo esta expressão –


tirada de uma recente pesquisa sociológica – de um camponês a respeito de
um córrego vizinho: “Ele ficou bonito depois que o canalizaram!”. Não há
ambigüidade na palavra empregada: utsukushii quer dizer “belo”. E sem ironia,
para espanto dos pesquisadores (é preciso dizer que no Japão não se canaliza
com mão leve: sanmenbari, calibrar os rios em “três planos”, é transformá-los
em dois muros e um fundo em concreto armado). Eles achavam que o
sanmenbari não era bonito... Mas para o morador, o bonito era não ter mais

1
A. BERQUE, La Rizière et la banquise. Colonisation et changement culturel à Hokkaido
, Paris,
Publications orientalistes de France, 1980.
que ceifar as margens dos meandros caprichosos do antigo córrego... Ele ficou
limpo e arrumado, por que não bonito?

Há três séculos, em sua estética do haiku, Bashô prescrevia: “Segue a


natureza, retorna à natureza! E para isto, sai da selvageria, afasta-te dos

animais!”2

De fato, os animais, os selvagens e os camponeses não sabem o que é a


natureza e não tem nenhum senso de paisagem. É preciso ensinar-lhes!

A proto-paisagem

Ouço daqui (Katsura, janeiro de 1994) os seus brados: que enormidade! Não
foram os camponeses que fizeram a paisagem? E a sua história dos arrozais?
Quanto ao seu Bashô, ele se contradiz a si mesmo! É um absurdo! Tem
certeza de tê-lo lido bem?

Nesta pequena prosopopéia (desculpe se você não disse nada), resumo


dezenas de polêmicas que tive, desde minhas primeiras histórias de arrozais, a
respeito do sentimento da natureza e da noção de paisagem. As pessoas (aí
incluídos historiadores da arte, etnólogos, filósofos e outros conhecedores dos
assuntos da cultura) crêem que todo ser humano goza a beleza das paisagens,
e que a natureza, em si mesma, só pode ser bela. Eu mesmo acreditava nisto –
antes de, aos poucos, compreender que pensar assim não é se não projetar no
outro nossos próprios modos de ver. Se tentarmos tomar distância de nós
mesmos, imaginar como o mundo é percebido em outras culturas, em outras
épocas, em outros meios sociais, nos damos conta que Bashô tinha razão. O
sentido da natureza, e mais particularmente o sentido da paisagem, para uma

grande parte, são uma elaboração cultural; quer dizer, são aprendidos. É

2
Iteki wo ide, chôjû wo hanarete, zôka ni shitagai, zôka ni kaere. Esta frase célèbre figura na
introdução de Oi no kobumi.
preciso “sair da selvageria” adquirir certas maneiras de dizer, de ver, de sentir,
e só então se poderá gozar a paisagem, apreciar a natureza como convém.

É mais que evidente que a sensibilidade se cultiva. Com efeito, nossas próprias
evidências são tipificadas culturalmente e datadas historicamente. É

justamente o caso da paisagem – este dado primeiro do mundo, ao que


parece, desde que abrimos os olhos...

Ora, a história, a lingüística e a antropologia estabeleceram de maneira


irrefutável que a noção de paisagem não existe nem em todo lugar nem desde
sempre. Houve civilizações não paisagísticas – civilizações em que não se
sabia o que é a paisagem: não havia palavras para dizê-la, nem imagens para
representá-la, nem práticas para testemunhar sua apreciação... Em suma, não
havia paisagem.

Diante deste fato incrível, o senso comum que nos guia não se deixa confundir
por muito tempo. Imerso no primeiro grau do seu etnocentrismo, o positivismo
liquidará a questão: “simples questão de palavras! De todo modo,
objetivamente, sempre há um ambiente para ver, portanto, sempre há
paisagem”. No segundo grau, o experto em cultura retruca: “Você que é
etnocêntrico ao negar que estes povos possam apreciar seu ambiente! Eles se
referem a ele de outro modo, talvez, mas eles não são menos sensíveis à
paisagem do que nós!”

É rodar em círculo no interior da nossa própria visão de mundo. É preciso sair


disto e, para tanto, é preciso antes de mais nada estabelecer critérios objetivos
de comparação.

Quanto a mim, adotei empiricamente os quatro seguintes critérios para


distinguir as civilizações paisagísticas daquelas que não o são:

1. uso de uma ou mais palavras para dizer “paisagem”;


2. uma literatura (oral ou escrita) descrevendo paisagens ou cantando sua
beleza;
3. representações pictóricas de paisagens;
4. jardins para deleitar-se.
O primeiro destes critérios é o mais discriminante, e a história mostra que,
efetivamente, ele implica nos outros três. Muitas culturas não apresentam ou
não apresentaram nenhum dos quatro critérios. Todas as grandes civilizações
apresentaram ao menos um dos três últimos. Na história da humanidade, só
duas entre elas apresentaram o conjunto dos quatro critérios; o primeiro deles,
notadamente, aparece na China a partir do século IV da nossa era e, mil e
duzentos anos mais tarde, na Europa, a partir do século XVI.

Pode-se, certamente, considerar as nuances, precisar as datas, expor as


premissas; porém, grosso modo, o fato é este: entre as milhares de culturas
que diferenciaram a humanidade, apenas duas parecem ter tido o senso da
paisagem enquanto tal. Em seguida elas influenciaram muitas outras; mas a
questão não está aí.

A questão, para nós que estamos imersos em uma civilização paisagística, é


chegar a compreender, ou mesmo a admitir, que inúmeras culturas, e várias
grandes civilizações, tiveram consciência de seu ambiente em termos
irredutíveis à paisagem. Termos que nós ignoramos tanto quanto eles ignoram
a noção de paisagem, como ignoram o conjunto dos quatro critérios definidos
acima. Somos do mesmo modo cegos aos seus critérios e não temos palavras
para expressá-los, a não ser mediante um paciente e humilde trabalho de
aprendizagem e de tradução...

O aparelho sensorial, de certo, é fundamentalmente o mesmo entre todos os


seres humanos; e todos, comprovadamente, têm mais ou menos a mesma
capacidade de discriminação dos dados sensíveis do ambiente. Não é no nível
fisiológico que o problema se situa, e sim no nível da interpretação que as
diversas culturas fazem de seus ambientes. Ora, esta interpretação – aquilo
que, por exemplo, nós percebemos em termos de paisagem – é
necessariamente tipificada, datada, inscrita no contexto singular de um certo
modo de vida, em uma certa época.

É isto que nosso senso comum não consegue admitir e, menos ainda,
compreender. No entanto, é daí que é preciso partir, pois este é o postulado
que funda a possibilidade de uma abordagem objetiva da paisagem. A saber:
as sociedades interpretam seus ambientes em função da organização que elas
lhes dão e, reciprocamente, elas os organizam em função da interpretação que
elas fazem deles.

Este postulado é apenas um ponto zero. Ele já permite, ao menos, admitir que

fosse necessário ter arrozais para que as grandes terras de Hokkaido


parecessem amenas aos japoneses. Ou ainda, a razão pela qual nós
apreciamos os bosques, as altas pradarias e as aldeias encarapitadas (na
Coréia, aldeias encarapitadas seriam uma terrível heresia). Isto não nos diz o
porquê dos europeus só começaram a se interessar pela paisagem na
Renascença; mas permite ao menos imaginar que há em todo ser humano uma
espécie de motivação fundamental que o faz sentir-se bem em um ambiente
apropriado, embora as formas desta apreciação e as formas desta satisfação
sejam tão variáveis quanto são variáveis as culturas.

Propus chamar de proto-paisagem este denominador comum que, na


apreciação que toda sociedade tem de seu ambiente, pode se referir à vista
sem, por isso, implicar uma estética propriamente paisagística 3 . Sobre este
substrato, comum a toda humanidade, cada cultura elabora as formas de sua
própria sensibilidade, suas próprias categorias, seus próprios conceitos.

Na Índia clássica, por exemplo, onde a noção de paisagem era ausente, a


palavra sânscrita cara designava algo que se pode traduzir como “meio de
vida”4 ; ou seja, um pedaço de terra apreendido ao mesmo tempo em sua
extensão e em seus recursos alimentares e medicinais. Sobre esta noção
fundaram-se, particularmente, as categorias de meios que distinguem a
Ayurveda, a medicina hinduísta tradicional; por exemplo, a de jangala (palavra
que srcinou “jungle”, mas que, na srcem, quer dizer algo muito diferente da
imagem que nos deu Kipling: a estepe espinhosa das regiões semi-áridas
como o Punjab; e, por extensão, uma floresta tropical seca, com folhas
caducas). Para a biogeografia, trata-se de paisagens. Mas para a Ayurveda,

3
A. BERQUE, Nihon no fûkei, Seiô no keikan , Tokyo, Kadansha, 1990.
4
F. ZIMMERMANN, La Jungle et le fumet des viandes, Paris, Gallimard / Le Seuil, 1982.
como em geral na visão indiana clássica, estas categorias dizem respeito à
circulação de humores, à digestibilidade, em suma, ao ventre, mais que aos
olhos. Assim, a noção de cara não evoluiu no sentido de uma estética
paisagística. A visão indiana não era, simplesmente, aquela que, na
Renascença, nos fez começar a ver paisagem em nosso ambiente.

A paisagem à chinesa

As premissas de uma sensibilidade paisagística aparecem na China sob os


Han (206 a.C-220 d.C.). Uma estética paisagística em sentido pleno, reunindo
os quatro critérios definidos mais acima, existe ali, com evidência, no século IV.
Suas srcens devem muito, sem dúvida, ao taoísmo. Supõe-se, por exemplo,

que os antecedentes dos quadros de paisagem sejam as representações do


mundo que figuram no verso dos espelhos que, nos tempos dos Han, os sábios
taoistas levavam consigo nas montanhas, para afastar os demônios.

Diferentemente dos Tempos Modernos europeus, onde, pode-se dizer, a


paisagem nasce à medida que a natureza se liberta da história sacra, na China,
a paisagem se enraíza na religião e na moral. A Hua shanshui xu (Introdução à
pintura de paisagem), de Zong Bing (375-443), começa por colocar que “o
Santo carrega consigo o Tao. O sábio purifica seu coração e saboreia os
fenômenos. Quanto às montanhas e às águas, mesmo possuindo uma forma
material, elas tendem ao espiritual”5 .

“As montanhas e as águas” (shanshui), é o termo chinês tradicional para dizer


“paisagem” (há muitos outros). Zong Bing acrescenta, mais adiante, que “os
grandes homens (...) foram se deleitar nos montes”. É a reafirmação de um
velho princípio taoista, reencontrado mesmo no confucionismo. As Lunyu

5
Tradução de N. VANDIER-NICOLAS, Esthétique et peinture de paysage en Chine, Paris,
Klincksieck, 1982, p. 64.
(Conversações) atribuem, com efeito, a Confúcio o adágio “O homem de bem
se apraz nas montanhas, o sábio, diante das águas”6 .

A noção de shanshui tem, pois, uma longa história, carregada de valores


morais. Na China – como, aliás, em toda a Ásia oriental- , a paisagem sempre

foi mais que o aspecto externo do ambiente. Nenhuma relação, com certeza,
com a ecologia da paisagem, nem mesmo com os quadros dos primeiros
paisagistas flamengos. O que Zong Bing já afirmava – que a paisagem “tende
ao espiritual” – , seus sucessores não cessaram de reafirmar: o pintor deve
saber ir além da forma exterior para apreender a essência da paisagem.

Uma das razões desta convicção – outra diferença com a Europa – é que, na
China, a paisagem nasceu nas palavras e na literatura antes de se manifestar
na pintura. A multiplicidade dos termos equivalentes a “paisagem” revela que o
sentimento paisagístico diz respeito a toda alma humana. A representação
pictórica é apenas um dos seus vetores, um dos modos, que evoca sempre
outros modos – os diversos gêneros literários, os ritos de celebração dos altos
lugares paisagísticos, os jardins, etc. A pintura jamais revelou, portanto, todas
as formas do ambiente. Ao contrário, foi preciso antes fazer sentir a “intenção”
(yi) da paisagem – em outras palavras, pintar em grandes traços –, “deixando
brancos” (yubai) para convidar a imaginação do espectador a entrar na obra.
Ao mesmo tempo, era no atelier, e não em campo, que o pintor de paisagem

trabalhava.
Enraizando-se no sentimento coletivo, a paisagem à chinesa pôde se separar
da coisa e do lugar reais, para viajar, alusivamente, de um modo de expressão
a outro, de uma extremidade a outra da Ásia oriental. Estas transposições se
chamam, em japonês, mitate – literalmente: “instituir pelo olhar”. Isto consiste,
por exemplo, em evocar, em um poema, uma tela que evoca tal jardim, que
evoca tal lugar paisagístico alto, que evoca tal figura histórica... etc. O Lushan,
uma das montanhas sagradas da China, é também evocado por um montículo

6
Renshe le shan, zhishe le shui. Lunyu , capítulo VI.
no jardim Kôrakuen, em Tóquio. O mesmo jardim contém, em profusão, outros
mitate de paisagens famosas, tanto chinesas como japonesas.

Os mitate não são reproduções, mas alusões. Eles não imitam formas; eles as
trazem para o campo comum do imaginário. Encontram-se assim, aqui e ali,

em toda a Ásia oriental, mitates das “Oito paisagens do Xiang e do Xiao” ( Xiao-
Xiang ba jing) – dois rios da China central; no Japão, por exemplo, as “Oito
paisagens de Omi” (Omi hakkei, perto do lago Biwa), ou aquelas de Kanazawa
(perto de Yokoyama). Isto não quer absolutamente dizer que as paisagens, em
Omi ou em Kanazawa, se assemelhem de fato àquelas da China central, mas
que poetas e pintores um dia as celebraram enquanto tais. Trata-se,
propriamente, de um “ver comum” – de uma metáfora, e não dos traços
objetivos do ambiente.

Assim, o que se transmite nestas metáforas não é a “forma externa” ( waixing)


mas a “intenção” (yi) da paisagem. Mas cuidado! Este yi não é uma abstração.
Ele se mantém como um dado sensível. “Pintar o yi” (xieyi) é uma
esquematização que, longe de repudiar o senso comum, retraça e reanima
indefinidamente suas artérias. O “traço” do pincel (hua) reencontra e ilustra, ao
mesmo tempo, os princípios da cosmologia, para a qual um mesmo sopro (o qi)
anima tanto a paisagem como o corpo humano. O gesto do pintor que traça o
hua prossegue de algum modo o trabalho do mundo, a cosmogênese da

natureza (zaohua). Assim é também com o poema que, frequentemente, por


sinal, o pintor caligrafa em um canto do quadro. Mesmo sopro, mesmo traço.

Nesta visão orgânica do universo, a paisagem-imagem é então apenas uma


certa modalidade da paisagem em verdadeira grandeza que, aliás, interpreta e
regula o fengshui (“vento-água”) – a arte de bem dispor as tumbas, as casas e
as cidades, administrando harmoniosamente a circulação do qi. A medicina
também não visa outra coisa: a acupuntura, notadamente, funda-se sobre o
mesmo princípio do fengshui e do shanshui. Do microcosmo ao macrocosmo,
tanto na imagem como na natureza, no corpo humano como nas montanhas,
tudo ressoa e reage neste universo. A direção oeste, por exemplo, corresponde
à cor branca, ao tigre, ao pulmão, ao metal e assim por diante, até o planeta
Vênus ( “estrela do metal”, Jinxing). Pelas “veias” (mai) da montanha como
pelos “meridianos” (jingluo) do corpo humano, do monte Kunlun até Okinawa,
toda a Ásia oriental é percorrida por um novelo de linhas de força, que um
mesmo traço de pincel fiou ao longo de séculos de poema em imagem, indo ao
encalço da intenção da paisagem e da realização do mundo.

A paisagem à chinesa jamais veio a ser, portanto, morfologia do ambiente. Ela


sempre associou intimamente o homem à natureza. Por isso, a intrusão da
civilização ocidental moderna perturbou-a brutalmente. No entanto, o fim do
século XX vê renascer, tanto no Japão como na China, um interesse
apaixonado pelo qi; isto porque, no final dos anos setenta, começou-se a
registrar cientificamente suas manifestações no corpo humano 7 .
Paralelamente, descobre-se que o fengshui tem uma certa eficácia no
gerenciamento das paisagens. Ele lhes confere uma harmonia que valeria mais
que os regulamentos do urbanismo... Cultivar a intenção da paisagem, afinal,
não é o melhor modo de dar um sentido ao mundo?

A paisagem à européia

Tendo sido a China, de longe, a mais completa e, ao mesmo tempo, a primeira


das civilizações paisagísticas, é em relação a ela, e não o contrário, que
devemos caracterizar a paisagem à européia. Esta é indissociável da
modernidade. O que é, então, a modernidade? Uma certa visão do mundo,
cujos princípios foram estabelecidos no século XVII e cujos efeitos se
estenderam, aos poucos, a todas as nossas práticas sociais, mais ou menos
tardiamente, conforme os domínios. Daí a complexidade do movimento do
conjunto e as decorrentes confusões a respeito dos próprios termos “moderno”
e “modernidade”. Por exemplo, Le Corbusier (1887-1965), que deu a mais forte
expressão à espacialidade moderna em arquitetura, é posterior de um século a
Lobatchevski (1792-1856), o inventor da primeira geometria não euclidiana – o

7
Trata-se, bem entendido, de manifestações (ondas cerebrais, radiações da epiderme, etc.) do
qi e não do próprio qi, o qual se mantém fisicamente inacessível. Estes fenômenos são
mensuráveis, mas inexplicáveis nos termos da física atual. Cf. Y. SHINAGAWA e K. KAWANO,
Ki no kagaku, Tokyo, Sogo Horei, 1993.
que pode ser considerado os primórdios de uma concepção relativista, portanto
pós-newtoniana e pós-moderna do espaço. Deste ponto de vista, o pós-
modernismo arquitetônico não terá sido mais do que um sintoma tardio e
derrisório desta relativização do espaço iniciada há mais de um século.

Não por acaso, na Europa, a descoberta da paisagem na pintura e o


desenvolvimento da perspectiva linear são contemporâneos. De fato, eles
testemunham que, no século XV, um certo olhar sobre o mundo se instaurou
na Europa. Um olhar que toma distância em relação às coisas, que as examina
(isto é, as mede), e as institui pouco a pouco em um ambiente objetivo,
abstrato do sujeito. Neste sentido, a perspectiva, como deixou claro a célebre
tese de Panofsky, terá sido a “forma simbólica” da emergência do sujeito
moderno8 . Correlativamente, a descoberta da paisagem terá sido a forma
simbólica da emergência do mundo moderno, objetivado sob o olhar deste
sujeito.

Há uma diferença radical em relação à China. Não somente por razões


intrínsecas à técnica pictórica que faz as paisagens pintadas à européia não
apresentarem os “brancos” daquelas pintadas à chinesa; mas pelo fato delas
representarem um ambiente apreendido como um objeto substancial, não em
sua relação com o sujeito. É a forma exterior e completa deste ambiente
objetivado que é pintada, e não, de modo alusivo e a largos traços, a “intenção”

da paisagem. De fato, foi enquanto forma visual autônoma que a paisagem


apareceu na Europa; e esta forma só foi nomeada em seguida, ao contrário do
que se passou na China. A própria palavra paisagem, nas línguas européias, é
dezenas de anos posterior aos primeiros quadros de paisagem.

Uma diferença ainda mais crucial em face à China: embora simbolizando a


emergência do mundo moderno, a paisagem à européia carregava em germe,
desde a srcem, uma incompatibilidade fatal com a modernidade. Do mesmo
modo, o desenvolvimento desta levaria, no século XX, ao desaparecimento da
paisagem-imagem na pintura das vanguardas, e a um tal arruinamento das

8
E. PANOFSKY, La Perspective comme forme symbolique, Paris, Minuit, 1975 (1924).
paisagens em escala real a ponto de se poder falar em “morte da paisagem” 9 .
Em suma, a paisagem à européia nasceu com a modernidade, mas esta
acabaria por matá-la...

A razão desta contradição interna – da qual, desnecessário dizer, não se

encontram traços na China – é que a civilização moderna, embora paisagística,


foi mais ainda uma civilização física. O que isto quer dizer?

Na Renascença, a noção de paisagem aparece ao mesmo tempo em que se


produz a revolução copernicana. Objetivar o ambiente é, de fato, provocar um
descentramento homólogo ao heliocentrismo; é dividir o mundo entre um ponto
de vista subjetivo (centrado no homem) e um ponto de vista centrado no objeto
(a natureza). Esta dicotomia se consuma no século XVII com o dualismo
cartesiano, fundando assim, ontologicamente, a possibilidade da física
moderna e, a partir daí, a das transformações do mundo moderno (a revolução
científica favorecendo as técnicas industriais, etc.). É nisto que a civilização
moderna foi física. Ora, o mundo da física, enquanto centrado no objeto, não
tem em princípio qualquer relação com o ponto de vista do sujeito. Neste ponto
ele é fundamentalmente estranho à paisagem.

Este divórcio acontece logo no começo do século XVIII, com a publicação da


Óptica de Newton (1704). Daí em diante, a paisagem não tem mais nada a ver
com a cosmologia científica. Os dois pontos de vistas coexistem, certamente,
mas eles não respondem mais a uma lógica unitária. Ora, é a lógica universal e
quantitativa da ciência – o “espírito de geometria”, que Pascal soube
reconhecer – que vai cada vez mais guiar a visão moderna; particularmente,
através da indústria e do mercado. Correlativamente, a paisagem e o
sentimento da natureza – dos primeiros românticos à deep ecology
contemporânea – vão cada vez mais se colocar em uma relação de antítese
com o movimento profundo da modernidade.

9
F. DAGOGNET (dir.), Mort du paysage? Seyssel, Champ Vallon, 1982.
Tal oposição seria inconcebível na China (abstração feita, evidentemente, à
influência do Ocidente) onde, ao contrário, a cosmologia e a paisagem não
deixaram de se confirmar reciprocamente. A China jamais conheceu a
alternativa entre mundo físico e mundo fenomenal, que ao mesmo tempo
fundou e fendeu a modernidade europeia.

Ora, esta ruptura fundadora, no próprio decorrer de suas manifestações,


tornou-se insuportável. Dividir o mundo só pode levar, com efeito, a torná-lo
inviável. Tanto que, no século XX, a modernidade foi colocada em questão em
sua dupla expressão física e paisagística.

Por que o mundo engendrado pela alternativa moderna não podia durar?
Porque esta o engaja em uma série de dissociações e de contradições que
tendem a esvaziá-lo de sentido. Primeiramente, dissociação entre o verdadeiro
– referido, a partir de então, à universalidade neutra do mundo físico –, de um
lado, e, de outro, o belo e o bom, que continuam referidos aos valores
humanos. Mais tarde, dissociação entre o belo e o bom (a arte moderna,
finalmente, libera-se da moral). Tríplice separação do sujeito em relação ao
mundo – quer se trate de seu ambiente físico (visto a partir de então como
objeto), social (o individualismo desintegrando a velha comunidade), e mesmo
de seu próprio corpo (a partir de então medido pela ciência do mesmo modo
que os objetos do ambiente). O corpo, para Descartes e para a anatomia, é

apenas uma res extensa, uma coisa da qual se abstrai a consciência do sujeito.
Em uma palavra, esta série de dissociações tende a decompor o mundo.

Na verdade, foi uma utopia, que se pretendeu como substituta da unidade real
do mundo ambiente. Ao invocar um espaço universal e abstrato (o espaço
absoluto de Newton), a despeito dos lugares concretos, esta utopia engendrou,
em particular, os axiomas do movimento moderno em arquitetura. De fato, ela
tendeu a se exprimir ali – notadamente em Le Corbusier – pela ruptura

sistemática de todos os laços que davam corpo à paisagem e unidade ao


mundo ambiente. A “Unidade de habitação” de Marselha, por exemplo, repudia
a continuidade do construído, o alinhamento das fachadas, a harmonização
das alturas, a entrada pela frente, a junção dentro/fora pelas lojas, etc. – em
suma, todas as ligações que constituíam a essência da paisagem urbana (e da
paisagem, simplesmente), até mesmo a ligação entre o edifício e o solo!

Mas aí se deu, pode-se dizer, o combate final da modernidade.

Paisagem e ecúmeno

O lado fundamentalmente positivo da modernidade foi o de ter proporcionado à


humanidade uma alavanca de uma eficácia sem precedentes sobre o mundo
físico, na medida em que ela estabeleceu a distinção entre este e o mundo
fenomenal. Daí a aceleração inédita da transformação do mundo ao longo dos
três últimos séculos.

Ora, este movimento – a realização do projeto moderno –, ao efetuar-se,


perdeu o referente que ele próprio criara no século XVII: o mundo físico, na sua
universalidade objetiva. Tanto concretamente, ao deparar-se com a finitude da
Terra, enquanto biosfera perecível, quanto em seu próprio princípio, ao revelar-
se ilusória a dicotomia ontológica entre um indivíduo sujeito e um mundo
objeto. Por seu próprio progresso, as ciências modernas – sejam naturais,
sejam humanas – conduziram a visões racionais incompatíveis com a visão
dualista e substancialista instituída como paradigma no século XVII.

Eis, com efeito, o que simbolizou a emergência simultânea da ecologia e da


fenomenologia no século XX. Elas recusam o dualismo e questionam mesmo o
substancialismo. Os seres vivos – os humanos como os demais – não existem
a não ser em relação, entre eles e com o mundo físico. A tríplice objetivação
moderna – a do corpo, a das pessoas, a do ambiente – tende a ser substituída
pela visão de entidades relacionais complexas, que engendra a interação
perpétua dos dois pólos, a partir de então teóricos, do sujeito e do objeto. Estas
entidades relacionais põem em jogo ao mesmo tempo a corporeidade, os laços
sociais e os trofismos ecológicos. O corpo, por exemplo, não pode mais ser
considerado um simples dado objetivo: sua realidade se instaura em um
equilíbrio dinâmico, estabelecendo um conjunto de relações físicas e sociais,
psíquicas e biológicas. Sua “idiossincrasia” conjuga um ambiente e uma
personalidade. Estamos longe da dualidade cartesiana entre o sujeito e seu
corpo-máquina...

Da mesma maneira, somos levados a reconsiderar fundamentalmente todos os


outros termos que a modernidade tinha, enquanto objetos, dissociado do

sujeito. Para o que nos concerne aqui, a paisagem e o ambiente.

Se a questão da paisagem se colocou com acuidade cada vez maior nos fins
do século XX, não foi somente porque a modernidade degradou nosso
ambiente; foi porque este não pode mais ser considerado como um simples
objeto. A distinção ontológica, anteriormente operada pela alternativa moderna,
invalidou-se a si própria diante desta evidência sempre mais gritante: o
ambiente está impregnado pela nossa subjetividade. Não estamos somente
imersos biologicamente nele; ele condiciona também nossa identidade e nossa
personalidade através dos valores que nós lhe apomos. Em outras palavras:
enquanto paisagem.

Contudo, a modernidade nos lega, nesta área, uma dupla ilusão, proveniente
de seu duplo caráter de civilização paisagística e física; a saber, a redução da
paisagem a uma forma visível, que não seria outra senão a do próprio
ambiente.

Ora, a história nos ensina, por um lado, que a paisagem não é o ambiente – o
qual existe objetivamente sempre e em toda parte –, mas uma entidade
relacional que não aparece senão em certas condições. Por outro lado, o
exemplo da China mostra que a paisagem é mais que uma forma exterior
oferecida à visão; e, mais uma vez, uma entidade relacional que envolve toda
nossa sensibilidade. A paisagem não existe fora de nós, que também não
existimos fora da nossa paisagem. É por isso que falar de paisagem é sempre
um pouco uma auto-referência.

A paisagem, contudo, continua a ser essencialmente a modalidade visual da


nossa relação com o ambiente. A inflação que hoje em dia leva a falar de
paisagem a propósito de qualquer coisa – da “paisagem sonora” à “paisagem
criminal”10 ... sem contar a paisagem no sentido de geossistema – tende a
transformá-la em uma palavra vazia, exceto por simbolizar um distanciamento
face ao mundo; justo quando importaria, mais do que nunca, diante do
atolamento do projeto moderno, dar à paisagem um sentido que nos motive e
nos engaje no mundo.

Em vez de falar de paisagem em todo e qualquer sentido, que é o mesmo que


em nenhum, penso que precisamos focar firmemente esta noção na visão
relacional que se impôs pouco a pouco no final da modernidade, tendo em
conta o que sabemos hoje sobre civilizações não paisagísticas e paisagísticas
do passado. À falta disto, a experiência comprova, gira-se em círculos: o
diálogo de surdos entre subjetivistas e objetivistas se anula indefinidamente em
suas alternativas.

Propus, de minha parte, empregar a palavra meio no sentido de relação de


uma sociedade com seu ambiente. O meio é uma entidade relacional,
construída por mediações diversas que se estabelecem entre seus
constituintes, tanto os subjetivos como os objetivos. A paisagem é uma entre
elas. O conjunto destas mediações – o ambiente, portanto – é animado por um
certo sentido que faz com que o meio evolua. Chamo este sentido de mediança
(médiance) 11 (termo forjado a partir da raiz latina de “meio”). A mediança anima
a paisagem. Pode-se, neste sentido, considerá-la como um equivalente do que

10
No sentido – nada menos do que óbvio – do “estado atual da criminalidade”. Mas pode-se
pensar que há paisagens desumanizadas a ponto de levar ao crime ou ao suicídio, no que
seriam, efetivamente, paisagens criminais!
11
“(...) a mediança vem definida como o sentido ou a idiossincrasia de um certo meio, ou seja, a
relação de uma sociedade com seu ambiente. Ora, este sentido vem justamente do fato da
relação em questão ser assimétrica. Ela consiste, na verdade, na bipartição do nosso ser em
duas “metades” que não são equivalentes: uma é investida no ambiente técnica e
simbolicamente, a outra é constituída por nosso corpo animal. Estas duas metades não
equivalentes são, contudo, unidas. Elas fazem parte do mesmo ser. Assim, esta estrutura
ontológica faz sentido por si mesma, estabelecendo uma identidade dinâmica a partir de suas
duas metades, uma interna, a outra externa, uma fisiologicamente individualizada (o topos que

é nosso corpo
perspectiva, animal), watsujiana
a definição a outra difusa no meio
(referente (a chôrajaponês
ao filósofo que é Tetsuro
nosso corpo medial).
Watsuji Nesta
[1889-1960].
N.T.]) de mediança adquire todo seu sentido. A mediança é justamente o momento estrutural
instaurado pela bipartição, específica do ser humano, entre um corpo animal e um corpo
medial.” A.BERQUE, Ecoumène; introduction à l'étude des milieux humains , Paris, Belin, 2000,
p.128 (N.T.).
os chineses chamaram de “intenção” (yi) da paisagem ou a “propensão” (shi)
das coisas 12 . Ela transcende, na verdade, a cisão moderna entre sujeito e
objeto, impregnando com nossa subjetividade o mundo que nos envolve, e nos
engajando, reciprocamente, na tendência objetiva deste mundo – nosso meio.
Nem subjetiva, nem objetiva, a mediança é, por conseqüência, trajetiva
(trajective). Ela realiza uma trajeção (trajection), isto é, a conjugação, ao longo
do tempo da história e no espaço dos meios, dos fatores subjetivos e dos
fatores objetivos que concorrem para a elaboração dos meios.

Marcada, ao mesmo tempo, por mediança e historicidade, a paisagem é


trajetiva. Não é nem um dado objetivo, nem uma ilusão subjetiva. Eis porque
ela nem sempre existe, nem existe em toda parte – embora haja sempre e em
toda parte um ambiente para ser visto – , mas existe realmente para os que
estão engajados na mediança e na historicidade próprias a alguns meios, em
algumas épocas. Para dar apenas um exemplo conhecido: foi apenas no
século XIX que o espaço selvagem ( wilderness), nos Estados Unidos, veio a
ser celebrado como paisagem. Anteriormente, na mediança americana, ele era
apenas uma abominável desolação – a hellish wilderness 13 .

Em uma outra escala, o mundo não é mais esta res extensa que o projeto
moderno tinha utopicamente assimilado ao espaço absoluto de Newton. Por
sua finitude, a Terra é vista agora como a morada condicional da humanidade.

Em outras palavras, como uma entidade relacional: o ecúmeno, que é o


conjunto dos meios, ou a relação da humanidade com a extensão terrestre. O
lugar de todas as nossas paisagens.

Reconhecer estas entidades relacionais não nos coloca aquém da


modernidade, pois supõe o progresso contínuo dos conhecimentos que a
própria modernidade engendrou. Não se trata de renegar estes conhecimentos,
mas de abandonar certas ilusões que se tornaram mortais. Por exemplo, é

12F. JULLIEN, La Propension des choses. Pour une histoire de l’efficacité en Chine , Paris, Le
Seuil, 1990.
13
R. NASH, Wilderness and the American Mind, New Haven & London, Yale University Press,
1973.
apenas com a condição de reconhecer que os meios são marcados por
subjetividade, envolvendo sempre pessoas humanas, que poderemos fundar
ontologicamente a ética ambiental de que necessitamos para sobreviver. Não
é, de modo algum, tratar a Terra como sujeito de direito, o que ela só poderia
ser às custas de uma deserção da condição humana; é compreender que ela
não pode mais ser considerada como um objeto, a partir do momento em que
ela só existe para nós na trajetividade do ecúmeno, onde não somente se
funda nossa própria existência, mas que também envolve todo nosso ser. E
isto, esta realidade que ultrapassa a utopia moderna, são as paisagens que
nos fazem vivenciar no cotidiano14 .

14
As ideias resumidas neste artigo estão desenvolvidas em:Le Sauvage et l’artifice. Les
japonais devant la nature, Paris, Gallimard, 1986; Médiance. De milieux en paysages,
Montpellier, RECLUS (diffusion: Documentation Française, Paris), 1990; Du Geste à la cité.
, Paris, Gallimard, 1993; Les Raisons du paysage. De
Formes urbaines et lien social au Japon
la Chine antique aux environnements de synthèse , Paris, Hazan (no prelo). Propus igualmente
termo mesologia
omediança (mésologie)portanto,
, aí compreendidas, para designar o estudocomo
as paisagens dos meios (enquanto
entidades relações)
relacionais. e de sua
Deve-se o
nome mesologia a Louis-Adolphe Bertillon (1821-1883), que a definiu – enquanto estudo dos
meios – em um sentido que poderia ser hoje interpretado como uma combinação de ecologia e
de sociologia. Em seguida, o termo caiu em desuso. No século XX, raros autores o utilizaram,
limitando seu sentido ao estudo físico do ambiente.

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