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Duvidar da paisagem
Algumas dúvidas em relação à paisagem me vieram quando, ainda jovem
pesquisador, preparava uma tese sobre a colonização de Hokkaido, a grande
ilha do norte do Japão. Uma primeira incursão me levou ao estrito de Sôya.
Nestas regiões, muito frescas no verão, a cultura do arroz não é possível; os
campos são especializados em pecuária leiteira. Quando se desce o vale do
Teshio em direção ao norte, os arrozais se rarefazem e acabam por
desaparecer. Não há mais do que campos de alfafa, de beterraba ou de milho,
com belas vacas Holstein dispersas nos prados. Uma paisagem bucólica,
diríamos. Mas o que dizia o pequeno guia que eu tinha à mão? Que a partir de
tal lugar “não se vêem mais arrozais, e a paisagem se torna melancólica”...
Foi preciso viver nesta ilha e estudar sua história para compreendê-la: uma
paisagem amena, uma paisagem onde sentir-se bem, para um japonês, é uma
paisagem com arrozais. Em Hokkaido, o arroz é necessário para a vida ser
bela. No começo da colonização, imbuída pelo parecer do agrônomo Horace
Capron, a administração interditou o cultivo do arroz aos soldados-colonos (os
tondenhei, pontas de lança do desmatamento). Produzam trigo, batata, façam a
pecuária! Como na Nova Inglaterra... Mas os imigrantes resistiram; e nos anos
trinta, viam-se arrozais mesmo em Nemuro, onde o verão é menos quente que
em Estocolmo... 1
1
A. BERQUE, La Rizière et la banquise. Colonisation et changement culturel à Hokkaido
, Paris,
Publications orientalistes de France, 1980.
que ceifar as margens dos meandros caprichosos do antigo córrego... Ele ficou
limpo e arrumado, por que não bonito?
animais!”2
A proto-paisagem
Ouço daqui (Katsura, janeiro de 1994) os seus brados: que enormidade! Não
foram os camponeses que fizeram a paisagem? E a sua história dos arrozais?
Quanto ao seu Bashô, ele se contradiz a si mesmo! É um absurdo! Tem
certeza de tê-lo lido bem?
grande parte, são uma elaboração cultural; quer dizer, são aprendidos. É
2
Iteki wo ide, chôjû wo hanarete, zôka ni shitagai, zôka ni kaere. Esta frase célèbre figura na
introdução de Oi no kobumi.
preciso “sair da selvageria” adquirir certas maneiras de dizer, de ver, de sentir,
e só então se poderá gozar a paisagem, apreciar a natureza como convém.
É mais que evidente que a sensibilidade se cultiva. Com efeito, nossas próprias
evidências são tipificadas culturalmente e datadas historicamente. É
Diante deste fato incrível, o senso comum que nos guia não se deixa confundir
por muito tempo. Imerso no primeiro grau do seu etnocentrismo, o positivismo
liquidará a questão: “simples questão de palavras! De todo modo,
objetivamente, sempre há um ambiente para ver, portanto, sempre há
paisagem”. No segundo grau, o experto em cultura retruca: “Você que é
etnocêntrico ao negar que estes povos possam apreciar seu ambiente! Eles se
referem a ele de outro modo, talvez, mas eles não são menos sensíveis à
paisagem do que nós!”
É isto que nosso senso comum não consegue admitir e, menos ainda,
compreender. No entanto, é daí que é preciso partir, pois este é o postulado
que funda a possibilidade de uma abordagem objetiva da paisagem. A saber:
as sociedades interpretam seus ambientes em função da organização que elas
lhes dão e, reciprocamente, elas os organizam em função da interpretação que
elas fazem deles.
Este postulado é apenas um ponto zero. Ele já permite, ao menos, admitir que
3
A. BERQUE, Nihon no fûkei, Seiô no keikan , Tokyo, Kadansha, 1990.
4
F. ZIMMERMANN, La Jungle et le fumet des viandes, Paris, Gallimard / Le Seuil, 1982.
como em geral na visão indiana clássica, estas categorias dizem respeito à
circulação de humores, à digestibilidade, em suma, ao ventre, mais que aos
olhos. Assim, a noção de cara não evoluiu no sentido de uma estética
paisagística. A visão indiana não era, simplesmente, aquela que, na
Renascença, nos fez começar a ver paisagem em nosso ambiente.
A paisagem à chinesa
5
Tradução de N. VANDIER-NICOLAS, Esthétique et peinture de paysage en Chine, Paris,
Klincksieck, 1982, p. 64.
(Conversações) atribuem, com efeito, a Confúcio o adágio “O homem de bem
se apraz nas montanhas, o sábio, diante das águas”6 .
foi mais que o aspecto externo do ambiente. Nenhuma relação, com certeza,
com a ecologia da paisagem, nem mesmo com os quadros dos primeiros
paisagistas flamengos. O que Zong Bing já afirmava – que a paisagem “tende
ao espiritual” – , seus sucessores não cessaram de reafirmar: o pintor deve
saber ir além da forma exterior para apreender a essência da paisagem.
Uma das razões desta convicção – outra diferença com a Europa – é que, na
China, a paisagem nasceu nas palavras e na literatura antes de se manifestar
na pintura. A multiplicidade dos termos equivalentes a “paisagem” revela que o
sentimento paisagístico diz respeito a toda alma humana. A representação
pictórica é apenas um dos seus vetores, um dos modos, que evoca sempre
outros modos – os diversos gêneros literários, os ritos de celebração dos altos
lugares paisagísticos, os jardins, etc. A pintura jamais revelou, portanto, todas
as formas do ambiente. Ao contrário, foi preciso antes fazer sentir a “intenção”
(yi) da paisagem – em outras palavras, pintar em grandes traços –, “deixando
brancos” (yubai) para convidar a imaginação do espectador a entrar na obra.
Ao mesmo tempo, era no atelier, e não em campo, que o pintor de paisagem
trabalhava.
Enraizando-se no sentimento coletivo, a paisagem à chinesa pôde se separar
da coisa e do lugar reais, para viajar, alusivamente, de um modo de expressão
a outro, de uma extremidade a outra da Ásia oriental. Estas transposições se
chamam, em japonês, mitate – literalmente: “instituir pelo olhar”. Isto consiste,
por exemplo, em evocar, em um poema, uma tela que evoca tal jardim, que
evoca tal lugar paisagístico alto, que evoca tal figura histórica... etc. O Lushan,
uma das montanhas sagradas da China, é também evocado por um montículo
6
Renshe le shan, zhishe le shui. Lunyu , capítulo VI.
no jardim Kôrakuen, em Tóquio. O mesmo jardim contém, em profusão, outros
mitate de paisagens famosas, tanto chinesas como japonesas.
Os mitate não são reproduções, mas alusões. Eles não imitam formas; eles as
trazem para o campo comum do imaginário. Encontram-se assim, aqui e ali,
em toda a Ásia oriental, mitates das “Oito paisagens do Xiang e do Xiao” ( Xiao-
Xiang ba jing) – dois rios da China central; no Japão, por exemplo, as “Oito
paisagens de Omi” (Omi hakkei, perto do lago Biwa), ou aquelas de Kanazawa
(perto de Yokoyama). Isto não quer absolutamente dizer que as paisagens, em
Omi ou em Kanazawa, se assemelhem de fato àquelas da China central, mas
que poetas e pintores um dia as celebraram enquanto tais. Trata-se,
propriamente, de um “ver comum” – de uma metáfora, e não dos traços
objetivos do ambiente.
A paisagem à européia
7
Trata-se, bem entendido, de manifestações (ondas cerebrais, radiações da epiderme, etc.) do
qi e não do próprio qi, o qual se mantém fisicamente inacessível. Estes fenômenos são
mensuráveis, mas inexplicáveis nos termos da física atual. Cf. Y. SHINAGAWA e K. KAWANO,
Ki no kagaku, Tokyo, Sogo Horei, 1993.
que pode ser considerado os primórdios de uma concepção relativista, portanto
pós-newtoniana e pós-moderna do espaço. Deste ponto de vista, o pós-
modernismo arquitetônico não terá sido mais do que um sintoma tardio e
derrisório desta relativização do espaço iniciada há mais de um século.
8
E. PANOFSKY, La Perspective comme forme symbolique, Paris, Minuit, 1975 (1924).
paisagens em escala real a ponto de se poder falar em “morte da paisagem” 9 .
Em suma, a paisagem à européia nasceu com a modernidade, mas esta
acabaria por matá-la...
9
F. DAGOGNET (dir.), Mort du paysage? Seyssel, Champ Vallon, 1982.
Tal oposição seria inconcebível na China (abstração feita, evidentemente, à
influência do Ocidente) onde, ao contrário, a cosmologia e a paisagem não
deixaram de se confirmar reciprocamente. A China jamais conheceu a
alternativa entre mundo físico e mundo fenomenal, que ao mesmo tempo
fundou e fendeu a modernidade europeia.
Por que o mundo engendrado pela alternativa moderna não podia durar?
Porque esta o engaja em uma série de dissociações e de contradições que
tendem a esvaziá-lo de sentido. Primeiramente, dissociação entre o verdadeiro
– referido, a partir de então, à universalidade neutra do mundo físico –, de um
lado, e, de outro, o belo e o bom, que continuam referidos aos valores
humanos. Mais tarde, dissociação entre o belo e o bom (a arte moderna,
finalmente, libera-se da moral). Tríplice separação do sujeito em relação ao
mundo – quer se trate de seu ambiente físico (visto a partir de então como
objeto), social (o individualismo desintegrando a velha comunidade), e mesmo
de seu próprio corpo (a partir de então medido pela ciência do mesmo modo
que os objetos do ambiente). O corpo, para Descartes e para a anatomia, é
apenas uma res extensa, uma coisa da qual se abstrai a consciência do sujeito.
Em uma palavra, esta série de dissociações tende a decompor o mundo.
Na verdade, foi uma utopia, que se pretendeu como substituta da unidade real
do mundo ambiente. Ao invocar um espaço universal e abstrato (o espaço
absoluto de Newton), a despeito dos lugares concretos, esta utopia engendrou,
em particular, os axiomas do movimento moderno em arquitetura. De fato, ela
tendeu a se exprimir ali – notadamente em Le Corbusier – pela ruptura
Paisagem e ecúmeno
Se a questão da paisagem se colocou com acuidade cada vez maior nos fins
do século XX, não foi somente porque a modernidade degradou nosso
ambiente; foi porque este não pode mais ser considerado como um simples
objeto. A distinção ontológica, anteriormente operada pela alternativa moderna,
invalidou-se a si própria diante desta evidência sempre mais gritante: o
ambiente está impregnado pela nossa subjetividade. Não estamos somente
imersos biologicamente nele; ele condiciona também nossa identidade e nossa
personalidade através dos valores que nós lhe apomos. Em outras palavras:
enquanto paisagem.
Contudo, a modernidade nos lega, nesta área, uma dupla ilusão, proveniente
de seu duplo caráter de civilização paisagística e física; a saber, a redução da
paisagem a uma forma visível, que não seria outra senão a do próprio
ambiente.
Ora, a história nos ensina, por um lado, que a paisagem não é o ambiente – o
qual existe objetivamente sempre e em toda parte –, mas uma entidade
relacional que não aparece senão em certas condições. Por outro lado, o
exemplo da China mostra que a paisagem é mais que uma forma exterior
oferecida à visão; e, mais uma vez, uma entidade relacional que envolve toda
nossa sensibilidade. A paisagem não existe fora de nós, que também não
existimos fora da nossa paisagem. É por isso que falar de paisagem é sempre
um pouco uma auto-referência.
10
No sentido – nada menos do que óbvio – do “estado atual da criminalidade”. Mas pode-se
pensar que há paisagens desumanizadas a ponto de levar ao crime ou ao suicídio, no que
seriam, efetivamente, paisagens criminais!
11
“(...) a mediança vem definida como o sentido ou a idiossincrasia de um certo meio, ou seja, a
relação de uma sociedade com seu ambiente. Ora, este sentido vem justamente do fato da
relação em questão ser assimétrica. Ela consiste, na verdade, na bipartição do nosso ser em
duas “metades” que não são equivalentes: uma é investida no ambiente técnica e
simbolicamente, a outra é constituída por nosso corpo animal. Estas duas metades não
equivalentes são, contudo, unidas. Elas fazem parte do mesmo ser. Assim, esta estrutura
ontológica faz sentido por si mesma, estabelecendo uma identidade dinâmica a partir de suas
duas metades, uma interna, a outra externa, uma fisiologicamente individualizada (o topos que
é nosso corpo
perspectiva, animal), watsujiana
a definição a outra difusa no meio
(referente (a chôrajaponês
ao filósofo que é Tetsuro
nosso corpo medial).
Watsuji Nesta
[1889-1960].
N.T.]) de mediança adquire todo seu sentido. A mediança é justamente o momento estrutural
instaurado pela bipartição, específica do ser humano, entre um corpo animal e um corpo
medial.” A.BERQUE, Ecoumène; introduction à l'étude des milieux humains , Paris, Belin, 2000,
p.128 (N.T.).
os chineses chamaram de “intenção” (yi) da paisagem ou a “propensão” (shi)
das coisas 12 . Ela transcende, na verdade, a cisão moderna entre sujeito e
objeto, impregnando com nossa subjetividade o mundo que nos envolve, e nos
engajando, reciprocamente, na tendência objetiva deste mundo – nosso meio.
Nem subjetiva, nem objetiva, a mediança é, por conseqüência, trajetiva
(trajective). Ela realiza uma trajeção (trajection), isto é, a conjugação, ao longo
do tempo da história e no espaço dos meios, dos fatores subjetivos e dos
fatores objetivos que concorrem para a elaboração dos meios.
Em uma outra escala, o mundo não é mais esta res extensa que o projeto
moderno tinha utopicamente assimilado ao espaço absoluto de Newton. Por
sua finitude, a Terra é vista agora como a morada condicional da humanidade.
12F. JULLIEN, La Propension des choses. Pour une histoire de l’efficacité en Chine , Paris, Le
Seuil, 1990.
13
R. NASH, Wilderness and the American Mind, New Haven & London, Yale University Press,
1973.
apenas com a condição de reconhecer que os meios são marcados por
subjetividade, envolvendo sempre pessoas humanas, que poderemos fundar
ontologicamente a ética ambiental de que necessitamos para sobreviver. Não
é, de modo algum, tratar a Terra como sujeito de direito, o que ela só poderia
ser às custas de uma deserção da condição humana; é compreender que ela
não pode mais ser considerada como um objeto, a partir do momento em que
ela só existe para nós na trajetividade do ecúmeno, onde não somente se
funda nossa própria existência, mas que também envolve todo nosso ser. E
isto, esta realidade que ultrapassa a utopia moderna, são as paisagens que
nos fazem vivenciar no cotidiano14 .
14
As ideias resumidas neste artigo estão desenvolvidas em:Le Sauvage et l’artifice. Les
japonais devant la nature, Paris, Gallimard, 1986; Médiance. De milieux en paysages,
Montpellier, RECLUS (diffusion: Documentation Française, Paris), 1990; Du Geste à la cité.
, Paris, Gallimard, 1993; Les Raisons du paysage. De
Formes urbaines et lien social au Japon
la Chine antique aux environnements de synthèse , Paris, Hazan (no prelo). Propus igualmente
termo mesologia
omediança (mésologie)portanto,
, aí compreendidas, para designar o estudocomo
as paisagens dos meios (enquanto
entidades relações)
relacionais. e de sua
Deve-se o
nome mesologia a Louis-Adolphe Bertillon (1821-1883), que a definiu – enquanto estudo dos
meios – em um sentido que poderia ser hoje interpretado como uma combinação de ecologia e
de sociologia. Em seguida, o termo caiu em desuso. No século XX, raros autores o utilizaram,
limitando seu sentido ao estudo físico do ambiente.