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Epahei Iansã!

Música e resistência na Nação Xambá: uma


história de mulheres.

DISSERTAÇÃO SUBMETIDA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO


EM MÚSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA COMO
REQUISITO PARCIAL À OBTENÇÃO DO GRAU DE
MESTRE EM MÚSICA – ETNOMUSICOLOGIA.

LAILA ANDRESA CAVALCANTE ROSA

SALVADOR - BAHIA

FEVEREIRO/2005
Resumo

O terreiro Ilê Axé Oyá Meguê ou Seita Africana Santa Bárbara, regido pelo

orixá Iansã, carrega mais de sete décadas de história no percurso de sua construção

religiosa, musical e identitária. Este terreiro possuiu como protagonistas desta construção

duas filhas de Iansã – Maria das Dores da Silva, conhecida como Maria Oiá e Severina

Paraíso da Silva - Mãe Biu. A presença de Iansã nesta casa de nação Xambá, localizada em

Olinda, Pernambuco, conduziu a pesquisa a uma compreensão da história de suas filhas e à

importância desse orixá e de sua música.

O repertório musical dedicado a Iansã representa um elemento catalisador e

gerador de complexo um único que abarca histórias, construções, gênero e resistência

cumprindo um papel fundamental. A música atrelada às diversas faces de Iansã é aqui

concebida como um significante veículo não apenas em direção ao divino, mas também em

direção ao humano.

iii
Abstract

The terreiro Ilê Axé Oyá Meguê or Seita Africana Santa Bárbara, lead in the

name of orixá Iansã which has more than seven decades of history in the construction of its

music, religion and identity. This terreiro has as major protagonists of this construction

two “Iansã’s daughters”, Maria das Dores da Silva, known as Maria Oiá and Severina

Paraíso da Silva – Mãe Biu. The presence of Iansã in this house of the Xambá “nation”,

from Olinda, Pernambuco, leads this study to the understanding of the story of its

“daughters” and to the importance of this orixá and its music.

The musical repertory dedicated to Iansã played a fundamental role catalizing

and leading to a unique complex that embraces stories, constructions, gender and

resistance. This music related to different aspects of Iansã is seen here as a significant

vehicle that is not only directed to the divine, but also to the human being.

iv
Agradecimentos

À Iansã, Pai Ivo e sua esposa Rosinha e a todas (os) da nação Xambá pelo

aprendizado de vida e pela abertura.

Às filhas e filho de Iansã, Maria Oiá e Mãe Biu (in memorian), Dona Zeza,

Cacau, Cristina, Zeca, Adriana, Lourdinha, à pequena e musical Iassanã, Luana, Dona

Zeza (esposa de Seu Maurício) e todas as demais que fazem parte deste terreiro.

Aos meus “professores”, os ogãs Seu Maurício, Sandro Paraíso e Guitinho.

Ao paciente e sábio Seu Juvenal. À Raulino e sua esposa, Yrlã e Lene, a

pequena Cíntia, Ailton e Carmelita, Ziza, Dona Lourdes, Dona Nair, Gogó, Leila, Dona

Cau e Gerlane, Seu Marcos e esposa.

À Hildo Leal, professor das questões existenciais mais profundas. A João

Monteiro e Valéria Costa, todos pesquisadores (as) e xambanianos (as) que me ajudaram

através dos diversos intercâmbios.

A todo o povo-de-santo do Xambá que, embora não tenha guardado nomes,

muito contribuíram para a realização dessa pesquisa e para meu amadurecimento como

pessoa.

À minha orientadora, amiga e grande companheira dos momentos mais críticos

e de crescimento Sonia Chada, ímpar.

v
À Angela Lühning, pessoa que enxerga o mundo com beleza e generosidade,

além da academia.

À FAPESB (Fundação de Amparo à Pesquisa na Bahia) que me concedeu

bolsa de estudos por dois anos, o que possibilitou a realização desta pesquisa.

À Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, lugar que me

proporcionou tanto crescimento, da orquestra de câmara aos porteiros, todos muito

queridos.

Aos professores Paulo Lima, educador, compositor e poeta, a todos os

‘Manuéis’ do Manuel Veiga e à incansável professora-pianista-educadora Diana Santiago,

cujo apoio sempre pude contar. A Pedro Moraes e Maísa Santos pela força e paciência.

Ao meu “mestre” Teodoro Salles que através do violino ensinou tantas

questões sobre aprender, ser e viver.

A Carlos Sandroni, meu primeiro orientador, referência inesquecível que

semeou muitas idéias aqui desde os quase longínquos tempos do Núcleo de

Etnomusicologia.

As (os) minhas (eus) professoras (es) e amigas (os) da Universidade Federal de

Pernambuco. Especialmente à Cristiane Almeida, Guiomar Ribas, Flávio Medeiros,

Dierson Torres, Fernando Rangel, Ricardo Brafman, Paulo Lima e José Amaro.

Aos meus amigos e amigas de Recife que sempre deram grande incentivo, em

especial à Renata, Denise, Aninha, Jean-Jacques e família, Arnoldo e Patrícia.

A Juliano, Ana Holanda (in memorian), Júlio, Jorge e família pelo apoio e

carinho.

A Serafim, Danielly, Raone, Ramon e Guida, pessoas que cruzaram e

transformaram meu caminho.

vi
À minha mãe Sandra, pelo amor, pelo incentivo. Aos meus avós Elza e Pedro

(in memorian) por minha formação. Ao meu pai e amigo Lulinha.

Às minhas irmãs Samantha e Michelle, meus sobrinhos Ícaro e Victor. Às

minhas também irmãs (de coração e de vida) Mary, Liu e Lela e seus rebentos.

À Edênia, Fernando, Raquel e Ramon, pelo apoio e pela acolhida.

Aos meus amigos e amigas Flávia, Cidinha, Flávio, Mateus, Lucas e Gabriela,

Aaron, Talita, Lana, Pedro e Cláudia pelo apoio e pelas farras. A Ático Razera, Pedro

Kröger e todas (os) as (os) outras (os) que além de terem apoiado de alguma maneira

semearam de idéias, visões...

A todas (os) da Fundação Pierre Verger que disponibilizaram fotos e sempre

estiveram abertas (os) para o diálogo: Mãe Cici, Xavier, Negrizu, Alex, Dione, Eliane,

Luiza, Dona Margarida, Noélia, Jorge e recentemente minha amiga Iraildes Andrade com

quem tanto tenho aprendido sobre questões raciais e de gênero.

vii
Sumário

Resumo iv

Abstract v

Agradecimentos vi

Capítulos

1. Introdução - “Êmidebô Cilê” 1

2. O trabalho de campo - olhares e vozes em diálogo... 6

2.1. Reflexões sobre abordagens (e posturas) científicas - Concepções e

transformações 6

2.1.1. Eu – sujeito não-oculto 9

2.1.2. Ele – a voz ativa do outro 12

2.1.3. Elas – as escritas 14

2.1.3.1. A escrita - seu poder de inclusão/exclusão social 14

2.1.3.2. A transcrição musical – a busca pela pluralidade 17

2.1.4. Nós I – fundamentação do diálogo 21

2.2. Nós II – a realização do diálogo 23

2.2.1. Primeiros contatos – eu e meu “outro interno” 23

viii
2.2.2.Caminhos e percalços das “descobertas” mútuas – do humano ao

musical 27

3. Uma história de construções e re-significações... 30

3.1. Xambá e xangô – a nação no universo da religião afro-brasileira 30

3.1.1. Antecedentes históricos – tristes equívocos 31

3.1.2. Conceitos – um passeio sobre diversos olhares 38

3.2. A re-significação do conceito de nação – uma tentativa de acomodação 45

3.3. Sincretismo – a busca pelo “eu” nacional em terra estrangeira 53

4. Uma história de resistência 67

4.1. As religiões afro-brasileiras – discriminações e desencontros 67

4.2. A nação Xambá - a incompreensão de uma identidade diferenciada 87

4.2.1. A localização atual do terreiro – construção cultural do espaço

urbano 101

4.2.2. O terreiro Xambá – uma história de mulheres 106

4.2.3. Os filhos e filhas do Xambá – uma história familiar 109

4.2.4. Homens e mulheres - diferentes atuações 112

4.2.5. A “saída de iaô” – renascimento e descobertas 118

4.2.6. Os freqüentadores do Xambá – o olhar externo do fascínio 123

4.2.7. Batuque e louvação – o encontro com os orixás 124

5. Epahei Iansã! – a deusa dos ventos e das tempestades... 139

5.1. Oiá – suas faces 139

5.2. Oiá – suas cerimônias 150

5.2.1. Louvação à Oiá 151

5.2.2. Toque de Iansã 163

ix
5.2.3. Toque de Balé 165

5.3. Oiá – suas músicas 176

5.3.1. As toadas de Iansã 176

5.3.2. Os cantos para Oiá 187

5.3.3. Os ritmos de Oiá 213

5.4. Oiá – seus gestos 255

5.5. Iansã, as mulheres e a música – gênero na Etnomusicologia 240

6. Conclusão 251

Anexos 257

1. Glossário 258

2. Textos das Cantigas 252

3. Lista com as músicas do CD 278

Bibliografia 279

x
Para Rafael

xi
“É tão pouco cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Maurício,
que sejam novos e comovidos.”

Carlos Drummond de Andrade

xii
1. “Emidebô Cilê”1 - Introdução

Epahei Iansã!2

Trago aqui um pouco do que se pode colocar em palavras sobre a experiência de

conhecer, trocar, dialogar com outras pessoas. No meu caso que não sou do candomblé, do

Xambá3, nem tampouco afro-descendente,este “outro” universo religioso, cultural e musical

se transformou para mim numa verdadeira escola. Decidi escrever na primeira pessoa pois

apesar de respeitar a questão do estilo de quem não a adota, acredito na diferença entre se

colocar como sujeito presente e ativo no processo de pesquisa, além da possibilidade de

1
Esta é uma cantiga para Iansã. A primeira, que possui a importante função de “chamar as Iansãs”, é
uma cantiga de invocação.
2
Esta é a saudação que se faz para Iansã. Cada orixá possui a sua particular. A saudação está
totalmente relacionada à música e aos diferentes repertórios das divindades. Sempre é proferida no momento
de começar a cantar para o orixá, que é o momento de sua invocação. Também é muito utilizada quando o
orixá está presente, ou, como diz o povo-de-santo, “em terra”.
3
No decorrer do texto o termo xangô como designativo para religião, será escrito em minúsculo,
assim como candomblé ou catolicismo. Quando referente ao orixá de mesmo nome – Xangô -, será escrito em
maiúsculo - por este corresponder a um nome próprio. Xambá será escrito em maiúsculo por se referir a uma
nação afro-brasileira, assim como nação Nagô, Jeje ou Angola. Mesmo quando corresponde ao local de culto,
que é apenas um terreiro, a escrita em maiúsculo será mantida. O termo Xambá virá em minúsculo apenas
quando referente à etnia africana “xambá”, “tchambá” ou “chamba”.
dinamizar a leitura e a escrita do presente trabalho, questão subjetiva com a qual me

identifico.

Esta pesquisa foi realizada a partir da tríade nação Xambá – Iansã - música.

Esses três elementos formam uma parte do que representa esta nação afro-brasileira e não

devem ser concebidos de forma hierárquica, mas de forma complementar e integrada.

Procurar entender esta nação, sua história e sua música, me levou diretamente à busca de

alcançar a compreensão da representatividade de Iansã para este terreiro. Por conseguinte,

me levou também à percepção de que a história deste terreiro é uma história de mulheres,

não negando absolutamente a importância dos homens para esta construção.

A figura de Iansã, considerada mãe dos “xambanianos” gera um complexo: a

história do terreiro, um percurso árduo de resistência religiosa e cultural diante do contexto

de repressão e intolerância religiosa; as filhas deste orixá que protagonizaram sua história

por décadas; e, naturalmente, a música de Iansã que apresenta um panorama rico de

significados culturalmente construídos pelo povo-de-santo do Xambá, sobre o que

representa esta divindade. Mas a música não cumpre apenas o papel de um poderoso

veículo humano em direção ao divino, ela constrói também, aqui “em terra”, uma

perspectiva histórica através de suas cantigas e de seus toques, que também estão

relacionadas às pessoas que são, e que foram importantes para sua dinâmica.

Para construir este trabalho apresento pequenas, mas acredito, valiosas

incursões, aos vários universos que julguei relevantes para compreensão da tríade Xambá –

Iansã – música. A primeira incursão é, sobretudo, humana, onde as questões vivenciadas no

trabalho de campo foram colocadas. Neste capítulo, abordo o contato que tive com este

universo afro-brasileiro, religioso e musical, como cheguei ou fui levada à Iansã e,

certamente, como foram relevantes os diálogos nesta construção, classicamente colocada

2
como “êmica e ética”4, ou, mais poeticamente dita por Oliveira (2000): “polifônica”. Antes

da exposição desses ricos diálogos que tive o prestígio de participar, julguei importante

realizar um pequeno e introdutório “passeio” sobre as diversas abordagens e posturas

científicas. Para refletir sobre estes olhares foi importante dialogar também com seus

“produtos”, ou seja, as escritas – o estilo acadêmico de escrita e a transcrição musical, uma

das ferramentas mais utilizadas na Etnomusicologia. Realizar este “passeio” foi importante

para pensar sobres as atuações e olhares que foram múltiplos e, hoje muitas vezes são

considerados obsoletos, no entanto, fizeram história e trouxeram importantes contribuições

para as pesquisas científicas da atualidade. A partir desse debruçar sobre outras abordagens,

penso também na construção de minha própria postura como pesquisadora, nesse papel e

responsabilidade de falar sobre o “outro” e sua música, mas, sobretudo, a partir daí, pensar

numa verdadeira e igualitária troca.

A segunda incursão foi de construção. A partir de uma abordagem sobre o

Xambá, nação muitas vezes desconhecida no contexto das demais nações afro-brasileiras, e

etnomusicologicamente, nunca antes abordada. Para isso, foi imprescindível discutir

diversos conceitos relacionados ao Xambá, assim como o próprio conceito de nação, em

sua re-significação teológica. Tentar reconstruir um pouco dos tristes equívocos históricos

representou também um passo importante para pensar em religião, cultura e música afro-

brasileira. A reconstrução seria limitada se omitisse um dos maiores reflexos da capacidade

de adaptação e re-significação que o povo africano, em solo brasileiro possuiu: os diversos

4
Geertz (1997, 87) aborda os termos êmico e ético como resultantes da distinção lingüística entre as
classificações fonéticas e fonêmicas dos sons: as primeiras corresponderiam às estruturas internas da
linguagem, enquanto que as segundas corresponderiam às estruturas relacionadas ao som propriamente dito,
uma classificação sob uma perspectiva externa. Em Etnomusicologia pode-se aplicar tais termos como
designativos para o que diz respeito ao que é interno da cultura, a visão “de dentro”, de quem a integra, como
uma visão êmica e “de fora” como uma visão ética.

3
“compartilhamentos” religiosos e musicais. O chamado “sincretismo” esteve e está presente

no culto e na música da nação Xambá, assim como das diversas nações afro-brasileiras, em

níveis particulares a cada contexto. Está diretamente atrelado ao dinamismo da tradição, da

cultura, das pessoas, das próprias divindades, e como todo dinamismo, gera dentro de si

próprio, a sua negação, construindo novos discursos e novas identidades.

Pensar sobre religião, concepção de mundo, e, no contexto das religiões e da

música afro-brasileira, nos conflitos de percepções, foi a premissa básica para construir a

terceira incursão deste trabalho. Esta fala sobre resistência, termo que mesmo recorrente,

não deveria ser banalizado, quando pensado em sua real dimensão de se manter íntegro nas

diferenças. Principalmente quando essas diferenças compõem um universo de uma minoria

discriminada e perseguida, mesmo após o fim de sua condição de ser humano escravizado.

Dentro deste contexto, emergem várias questões históricas, que estão atreladas à

própria história do terreiro pesquisado. Dentre estas questões, surgem iniciativas positivas

como abordagens de médicos psiquiatras sobre o xangô pernambucano, precursores dos

estudos sobre religiões afro-brasileiras, pois, lançaram um primeiro olhar sobre as mesmas.

Embora estes olhares tenham sido, naturalmente, condicionados por seu contexto histórico

de preconceitos, contribuíram muito para a visibilidade destas religiões e a própria

construção de sua história. Em relação à música destas religiões, especificamente em

Pernambuco, a Missão de Pesquisas Folclóricas desempenhou papel fundamental. Em

pleno contexto de perseguição aos cultos afro-brasileiros na década de trinta, a Missão

realizou vários registros do xangô pernambucano que são de extremo valor histórico para

retomar a questão da transcrição, das abordagens, das concepções. Recondicionados

historicamente, estes olhares fomentam tamanha clareza sobre as concepções que se tinha

sobre pesquisa das religiões afro-brasileiras e sobre suas músicas.

4
Retomando, ainda nesta incursão sobre resistência, a história do terreiro

representa o ponto central. A localização deste, que deve também ser considerada um fato

histórico, a hierarquia religiosa, as diferentes atuações de homens e mulheres no culto e em

relação à inclusão do iniciando ao universo desta nação, e o público que freqüenta as festas

do Xambá também compuseram esta parte do trabalho. A última parte contempla o

calendário religioso, com as respectivas considerações sobre a estrutura de um toque

público e a música dedicada para os orixás, onde homens e mulheres atuam de maneiras

distintas, e onde a discussão sobre gênero na música é reforçada.

A quarta e última incursão contemplou a “estrela” do Xambá e da minha

pesquisa – Iansã. Pensar neste orixá pressupõe pensar em todo o percurso histórico desta

nação, sua identidade religiosa e musical. Para entender um pouco sobre o “complexo-

Iansã” no Xambá, foi preciso considerar vários aspectos referentes à ela, suas diversas faces

que estão presentes em suas três cerimônias, faces estas que refletem em suas músicas, seus

cantos e seus toques e, por fim, são materializadas através de sua dança. Para finalizar esta

parte, a discussão sobre música e gênero é retomada, a partir de uma nova tríade que é

pensada dentro do universo do Xambá: Iansã - as mulheres - a música.

As cantigas, fotografias e demais tipos de registro integram o corpo do texto na

medida em que emergem das discussões. Exceto os textos das cantigas que, além de

estarem presentes nas próprias transcrições, estão também em anexo de forma que

complementem as cantigas. As conclusões até aqui obtidas partem da premissa de que uma

visão panorâmica da música de Iansã e de todas as questões atreladas a esta é fomentada

através desse diálogo, na esperança de que este formato construa uma reflexão sobre o rico

universo em questão que não só merece, como fornece vários outros complexos que

fomentariam tantas outras incursões...

5
2. O trabalho de campo - olhares e vozes em diálogo. . .

2.1. Reflexões sobre abordagens (e posturas) científicas – concepções e

transformações.

“Acreditar ser possível a neutralidade


idealizada pelos defensores da objetividade
absoluta é apenas viver uma doce ilusão.”

Roberto Cardoso de Oliveira (2000, 24).

É bem sabido por quem pesquisa que embora a dita objetividade acadêmica

seja um ideal longínquo representa, porém, a meta a ser alcançada acima de tudo. A idéia

de neutralidade do pesquisador remonta a tempos em que relatos de viajantes

representavam a “matéria-prima” para o analista de laboratório. O chamado pesquisador de

gabinete - aquele que não ia a campo ver ou ouvir por si mesmo o que estava disposto a

abordar em seu laboratório -, acreditava na possibilidade de realizar análise minuciosa de

um determinado elemento, música, ou mesmo cultura, à distância, fora de seu contexto de

origem sem que isso prejudicasse ou limitasse sua abordagem científica. Essa concepção é
herdada das ciências naturais e sua utilização de métodos que trabalhavam os elementos

coletados no campo por terceiros em laboratório. A própria Etnomusicologia, emergindo

da Musicologia Comparativa (1880), objetivava estudar as diversas músicas de tradição

oral proveniente das culturas ditas “exóticas”, ou seja, fora do âmbito urbano europeu

numa atuação marcada pelo pensamento oriundo das ciências exatas (Krader 1980, 275).

Com o surgimento do pensamento antropológico em busca da constituição de uma ciência

humana (no Século XVIII) o homem passa a representar o objeto de estudo a partir de uma

perspectiva menos laboratorial (Laplantine 2000, 13).

A partir do Século XX a perspectiva de gabinete ou “laboratorial” foi sendo

gradativamente extinta para dar lugar à pesquisa de campo realizada pelos próprios

pesquisadores, na intenção de melhor entender a música da cultura em foco1. A etnografia

surge do reconhecimento da observação direta, realizada pelo próprio pesquisador, como

elemento inerente à pesquisa (Laplantine 2000, 75). Tal reconhecimento, a princípio não

pressupõe um diálogo no campo ou entre as partes em questão - êmica e ética -, mas

carrega certo caráter de “extração cultural” ou coleta de dados, a partir do contato com

informantes. Durante muito tempo o pesquisador concebe a pessoa com quem vai se

relacionar no campo e pesquisar sua cultura e música como mero informante, mantendo

dela certa “distância” etnográfica – para adotar uma postura “neutra”-, não se preocupando

com sua postura em relação à ela e a um possível retorno da pesquisa. Por fim, situações

diversas e adversas que envolvem questões como ética, por exemplo, emergem nesse

contato travado entre pesquisador e “pesquisado” juntamente com novas posturas:

O pesquisador compreende, a partir desse momento, que ele deve deixar


seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem
ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e

1
Graças à Antropologia e à idéia de um estudo devidamente contextualizado que emerge em fins
do século XIX e início do século XX com Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942).

7
sim como hóspedes que o recebem e mestres que os ensinam (Laplantine
2000, 78).

Em meio a toda essa discussão acerca das posturas científicas que se

transformaram ao longo dos anos emerge a questão da escrita – concebendo-a como

produto não apenas de relatos de campo e posterior análise, mas, sobretudo, de concepções

que dialogam com diferentes experiências e percepções (a êmica e a ética). A questão

estilística permanece presente no que tange à questão da escrita acadêmica – aquela que

busca discutir em termos científicos a música de determinada cultura ou grupo social, no

caso da Etnomusicologia, e que se mantém, de certo modo, presa a um ideal doutrinário

científico da negação do eu – a pessoa que realiza a pesquisa, seu olhar, sua subjetividade,

que independente dos preceitos acadêmicos, carrega consigo sua formação, sua construção

individual de enxergar o mundo e a música do outro. E esse “outro” deixa gradativamente

de representar um mero informante para representar realmente outra pessoa, aquela que

porta uma história, sua própria construção individual e cultural de conceber o mundo à sua

volta e sua própria música. Em meio a esse confronto de valores, formações, histórias e

músicas é de extrema relevância que se busque travar um diálogo que fomente a verdadeira

interação onde não serão apenas coletados dados acerca de quaisquer aspectos relacionados

à música pesquisada, mas uma interação de vivências. Sob tal perspectiva, o campo, a

princípio, representa realmente um palco de visões, vozes e percepções de dois universos

musicais distintos – mesmo quando apenas um está sendo pesquisado. No campo as

formações pessoais são confrontadas e duas percepções distintas (eu e o outro) de um

mesmo evento corresponderão ao resultado de tal interação.

Conforme o ideal estilístico vigente de postura científica os dois universos (do

pesquisador e do “pesquisado”) exigiriam uma abordagem permeada por um ideal de

neutralidade acadêmica. Para poder alcançar a legitimação científica, o trabalho

8
acadêmico, quase sempre é caracterizado por uma escrita inacessível às pessoas que não

fazem parte desse universo de pesquisa de uma elite pensadora. Calcada no rigor científico

que por vezes é tomado como fim em si próprio, não apenas como produção de

conhecimento, mas como o produto final de uma pesquisa que infelizmente, na maioria das

vezes, se destina às prateleiras.

Proponho aqui considerar algumas abordagens que discutem a postura

científica que se concebe “neutra” considerando o trabalho de campo, as relações entre

pesquisador e “informante” e suas concepções e responsabilidades. Diante desse contexto é

imprescindível relacionar todas as questões anteriormente citadas com as escritas – a

escrita em si e a transcrição musical, em busca de uma construção identitária também do

pesquisador, ou seja, uma escrita que não anule sua subjetividade, mas busque uma

interação entre esses dois universos (êmico e ético).

2.1.2. Eu – sujeito não-oculto. . .

“Sem percepção e pensamento, como então


podemos conhecer?”

Roberto Cardoso de Oliveira (2000, 18).

Pode-se considerar de certa forma redundante ressaltar que tanto o perceber

quanto o pensar correspondem a atos carregados de extrema subjetividade. Contudo, tal

subjetividade muitas vezes não só permanece ignorada como é severa e comumente

refutada. Sobre pesquisa participante, Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira (1990, 24)

lançam a pergunta: “de onde vêm nossas próprias idéias?”, o que nos faz pensar que um

9
processo de pesquisa corresponde à relação protagonizada por atores que desempenham

diferentes papéis, mas de igual valor e sujeição à esfera da interação:

Somos atores e protagonistas de nossa história da mesma maneira que


somos definidos e condicionados por ela. Dentro desta relação de
interação, não há mais lugar para um pesquisador separado de seu objeto
de pesquisa. O pesquisador é um homem ou uma mulher com uma
inserção social determinada e com uma experiência de vida e de trabalho
que condicionam sua visão de mundo, modelam o ponto de vista a partir
do qual ele ou ela interage com a realidade.

Em relação ao trabalho de campo e ao “trabalho do antropólogo”2 Oliveira

(2000, 12) aponta para as “faculdades do entendimento sócio-cultural”, ou seja, olhar,

ouvir e escrever. O processo de pesquisa seria composto pelo diálogo entre essas

faculdades onde, ainda que interagindo com todo um arcabouço teórico prévio, tais

processos corresponderiam à percepção (do pesquisador ou outsider) sobre o outro

(“pesquisado” ou insider)3. Claude Lévi-Strauss (1996, 34) relaciona a percepção do

pesquisador sobre o “outro” permeado pela “busca do poder” afinal, o detentor da

experiência e do relato possui, de certo modo, o poder de manipular as informações e o

conhecimento produzido sobre a realidade em questão. A propósito dos relatos de viajantes

do Século XVI, o autor ressalta a visão distorcida sobre os fatos e o que era realmente

observado. Não haveria como considerar de absoluta fidedignidade os tais relatos por

representarem frutos da subjetividade do pesquisador e da sua impressão do mundo.

Entretanto, por isso mesmo possuem extremo valor, pois correspondem justamente a

relatos de pessoas de um determinado contexto e concepção e, por esse mesmo motivo,

irão fornecer uma idéia de como se pensava naquela época e os propósitos em voga, desde

que sob olhar crítico. Sobre os relatos de viajantes Lévi-Strauss (1996, 36) acrescenta:

2
Idéia de trabalho de campo, postura ética e científica que pode ser ampliada para pesquisadores
de outras áreas, como a Etnomusicologia, por exemplo.

10
O narrador, por mais honesto que seja, já não pode entregá-los em sua
forma autêntica. Para aceitarmos recebê-los, precisamos, por uma
manipulação que entre os mais sinceros é apenas inconsciente, selecionar
e joeirar as lembranças e substituir o estereótipo pela vivência.

Na pesquisa, no entanto, o olhar está absolutamente formatado pela bagagem

prévia e pela formação do pesquisador que precisa ser ampliada com uma fundamentação

teórica, ou seja, aquilo que já foi produzido sobre a temática que se está pesquisando. A

orientação teórica apontada anteriormente por Oliveira (2000, 12) representa o alicerce

fundamental, um guia para a observação e análise do pesquisador sobre seu foco de estudo

em diálogo com a realidade observada, mas, sobretudo, vivenciada. Segundo o autor

(2000, 19) a realidade observada pelo olhar etnográfico sofreria uma refração dentro de um

prisma orientado pelos paradigmas da área na qual se está atuando. Dentro desta

perspectiva é da mesma forma importante atentar às questões relacionadas às figuras do

insider e outsider – da concepção do trabalho de campo ao produto final que é a escrita e,

na Etnomusicologia – as escritas. Nettl (1983, 265) adverte que os etnomusicólogos

outsiders afetam o campo e a sua presença, naturalmente pode integrar o âmago de sua

própria pesquisa. Diante desta constatação percebe-se que não é possível estabelecer um

limite tão claro entre os dois universos, não há como separar esses dois personagens da

cena composta pelo chamado encontro etnográfico.

Segundo Paulo Freire (1990, 35) é através da postura do pesquisador e de seus

propósitos que a abordagem a ser adotada vai emergir. Sob tal perspectiva, os atores

sociais devem ser concebidos como sujeitos do conhecimento imersos na dialética entre a

subjetividade e a objetividade do contexto da pesquisa. Se minha postura (do observador) é

de reconhecer o dinamismo presente em tais relações e não encará-las sob uma perspectiva

3
O termo insider pode ser lido como referente à pessoa que faz parte da cultura ou grupo
pesquisado, aquela que é “de dentro”, que a integra, enquanto outsider corresponderia àquele que é “de fora”,
ou seja, o pesquisador.

11
estática, devo também reconhecer a questão dos papéis em voga no âmbito das

circunstâncias de uma pesquisa de campo. Continuando, Freire ressalva também a estreita

relação entre abordagem científica - onde podemos ler escrita, forma de expor e analisar os

dados etnográficos -, e engajamento político, afinal, dentro de tantos questionamentos

sobre a pesquisa surge a grande questão: “por que se faz pesquisa?”, o que não deixa

absolutamente de estar relacionado a “para quem se faz pesquisa?”, ou seja, quais

interesses estão em jogo.

2.1.3. Ele – a voz ativa do “outro”. . .

“Se a realidade se dá a mim não como algo


parado, imobilizado, posto aí, mas na relação
dinâmica entre objetividade e subjetividade,
não posso reduzir os grupos populares a meros
objetos de minha pesquisa. Simplesmente não
posso conhecer a realidade dos que participam
a não ser com eles como sujeitos também
deste conhecimento que, sendo para eles, um
conhecimento anterior (o que se dá ao nível da
sua experiência cotidiana) se torna um novo
conhecimento.”
Paulo Freire (1990, 35).

Pensar sobre o outro numa perspectiva dinâmica é considerar a premissa

lançada por Paulo Freire que aquele comumente “pesquisado” - muitas vezes dissecado

com a frieza e distanciamento de um objeto de laboratório –, representa o sujeito ativo na

produção do conhecimento, o co-investigador que não está alheio ao que é produzido a seu

respeito. Sobre as relações, presentes no âmbito da pesquisa, DaMatta (1978, 24) aponta

três planos distintos onde os papéis êmico e ético são de igual relevância e estão

intimamente relacionados, no entanto, sob um olhar inexperiente, podem se apresentar

divorciados:

12
1. Teórico-intelectual - corresponde ao que o autor chama de excesso

de conhecimento dissociado da realidade. Esse plano se restringe aos “manuais

científicos”, às teorias e à ignorância do estudante e pesquisador em relação à realidade dos

fatos;

2. Período prático - correspondente à própria experiência no trabalho de

campo que irá resultar naturalmente em relatos, observações e interpretações sobre a

realidade observada e vivenciada;

3. Pessoal ou existencial – aquele que de forma alguma anula a postura

e o aprendizado que o pesquisador deve adotar e extrair a partir de sua experiência. Esse

terceiro plano é o que mais interessa à presente discussão por representar aquela

ambigüidade muitas vezes temida pelos pesquisadores. DaMatta (1978, 25) ressalta que o

plano existencial e a etnologia devem ser, sobretudo, integradores: “ela (a etnologia) deve

sintetizar a biografia com a teoria e a prática do mundo com a do ofício”.

Partindo dessa explanação podemos pensar e reconhecer uma integração e, na

mesma medida, a impossibilidade do divórcio entre quaisquer das partes envolvidas no

decorrer de uma pesquisa e isso inclui totalmente a(s) escrita(s). Todos os elementos estão

imersos em olhares e percepções que não acontecem unilateralmente.

Pensar na voz ativa do outro não parte apenas de uma iniciativa proveniente

dos mais sensíveis, mas representa uma resposta a uma situação que passa a exigir tal

postura. O dito “informante” passa a repensar a situação de pesquisa e exigir o que concebe

como justo – exigências quanto aos procedimentos do pesquisador, que correspondem a

um desejo de estar devidamente a par do que se diz sobre ele como indivíduo/ator social e

sua cultura (Nettl 1983, 265). O desejo de tomar aspectos de sua cultura a partir de seu

próprio universo não é só natural como é intrínseco à realidade de qualquer sociedade. As

concepções êmicas passam a integrar o campo do desejo de troca. Os instrutores e

13
“informantes” passam a exigir que sua música seja respeitada e a ser tratado como um ser

humano não reduzido ao papel de “informante-robô” (Nettl 1983, 265). Outro ponto de

igual importância para a compreensão dessa inversão de desejos é a preocupação dos

atores sociais a respeito do que é produzido sobre sua música, o desejo de que o material

coletado seja utilizado de acordo com suas idéias ou, no mínimo, com a sua aprovação.

Com a mudança da postura êmica novas questões emergem e obrigam o

pesquisador a repensar suas análises e interpretações. É de extrema relevância que o

pesquisador busque perceber a existência dos diferentes critérios adotados pelo insider, no

que se refere a sua música, que devem ser considerados e certamente irão interferir no seu

próprio olhar, bem como, no seu trabalho final. O outsider pode não só aprender com o

insider, mas também contribuir para a compreensão dele em relação a seu próprio

universo. As possibilidades presentes num processo de pesquisa refletem a importância do

diálogo entre as partes num processo onde a visão êmica seja considerada e o informante

corresponda a um co-investigador da pesquisa.

2.1.4. Elas – as escritas. . .

2.1.4.1. - A escrita - seu poder de inclusão/exclusão social. . .

“Coisa estranha é a escrita. Tudo indicaria que


sua aparição não poderia deixar de determinar
mudanças profundas nas condições de vida da
humanidade. . .”
Claude Lévi-Strauss (1996, 282).

Claude Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos (1996, 278), escreve um capítulo

intitulado “Lição da escrita” onde discorre sobre a história da escrita e sua permanente

14
associação a culturas “civilizadas” em contraposição às “primitivas” e relacionadas ao

poder e à subordinação. Em sua expedição etnográfica pelo Brasil Central, o antropólogo

vivenciou experiências com os Nambiquara que reforça a idéia de poder da escrita - esses

índios não conheciam a escrita nem o desenho, contudo, ao observar o fato do pesquisador

tomar notas constantemente, o chefe logo passa a imitá-lo na intenção de adquirir maior

respeito e poder em seu grupo:

Ora, mal ele reunira todo o seu pessoal, tirou de um cesto um papel
coberto de linhas tortuosas que fingiu ler e nas quais procurava, com uma
indecisão afetada, a lista de objetos que eu devia dar em troca dos
presentes oferecidos (. . .) Essa encenação prolongou-se por duas horas.
Que esperava ele? Enganar a si mesmo, talvez; Mais, porém, surpreender
seus companheiros, convencê-los de que tinha participado na escolha das
mercadorias, que obtivera a aliança com o branco e que partilhava de seus
segredos (1996, 280).

A escrita é abordada por Lévi-Strauss (1996, 282) como uma memória artificial

que por muito tempo serviu para distinguir a civilização da barbárie. Aponta para as fases

em que a humanidade não conhecia a escrita, como as fases mais criativas e relaciona-a a

questão da tradição oral, da transmissão e da memória, processos complexos, ricos e

dinâmicos. A conotação política da escrita mais uma vez é ressaltada pelo autor (1996,

283) numa abordagem histórica onde sempre esteve entrelaçada à formação de cidades e

impérios e ao poder:

Em todo o caso, esta é a evolução típica à qual assistimos, desde o Egito


até a China, no momento em que a escrita faz a sua estréia: ela parece
favorecer a exploração dos homens, antes de iluminá-los.

O processo que promove uma maior interação entre os envolvidos não deixa de

estar relacionado com a escrita, afinal esta representa o produto final de todo um conjunto

de percepções acerca de uma realidade, que na Etnomusicologia paira sobre a questão

musical, mas não de maneira isolada. Pensar em escrita acadêmica comumente

corresponde pensar em um texto carregado de linguagem complexa e inacessível:

15
“Pesquisa é coisa de intelectual, de universitário, que não tem nada que ver com a vida

real” (Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira 1990, 17). Não obstante, mesmo que a escrita de

um trabalho científico represente uma tradução de uma determinada realidade para a do

pesquisador, se ele busca realmente um ideal de interação deveria também buscar o

equilíbrio e o diálogo entre os dois universos – o do insider e o do outsider e essa busca

também se refletirá na postura adotada no decorrer da pesquisa como um todo.

No campo das Ciências Sociais e também da Etnomusicologia é recorrente a

postura da neutralidade acadêmica refletida no produto final, a escrita. Paulo Freire (1990,

37) discute sobre a busca dos cientistas sociais - e isso também se aplica aos

etnomusicólogos que trabalharam durante longo período enfocando a “música per si”4 sem

buscar maiores contextualizações -, pela apresentação da “forma pura” de pesquisa, ou

seja, a idéia de que o diálogo entre as concepções êmicas e éticas prejudica a própria

cientificidade. O trabalho interpretativo que o pesquisador realiza não acontece isolado de

sua própria subjetividade: “Em última análise, sua subjetividade interfere na “forma pura”

dos seus descobrimentos” (Freire 1990, 37).

Referindo-se ao cientista que adota um discurso neutro envolto em sua “forma

pura” de pesquisa Rubem Alves (2002, 11) nota a dificuldade de se alcançar uma

explicação para a aparente distância entre conhecer e experimentar5:

Como explicar essa distância entre conhecimento e experiência? Simples!


Não é necessário que o cientista tenha envolvimentos pessoais com
amebas, cometas e venenos para compreendê-los e conhecê-los.

4
Merriam (1969, 216-21) utiliza esta designação para a abordagem que visa estudar a música
como objeto de estudo isolado. A concepção de estudo da “música per si” teria em contraposição o estudo da
“música em um contexto amplo.”
5
O autor aborda especificamente a questão da experiência religiosa em contraposição ao universo
científico, no entanto, tal discurso torna-se relevante e aplicável à discussão presente por ser comum perceber
uma conotação quase que religiosa e dogmática nas posturas acadêmicas.

16
Nesta abordagem que aos olhos acadêmicos nada teria de científico devido a

sua conotação humorística - apesar de crítica -, podemos refletir sobre os resquícios que as

ciências humanas - e também podemos incluir neste quadro a Etnomusicologia -, herdaram

do ideal científico das ciências exatas onde, a princípio, se teria um controle sobre o que se

pesquisa. Ainda sobre a abordagem científica calcada no ideal de neutralidade Miguel e

Rosiska Darcy de Oliveira (1990, 22) observam a perspectiva positivista ainda tão

imperativa no decorrer de uma pesquisa - desde a postura adotada no campo, ao produto

final, a escrita -, onde se “disseca” os fatos sociais com um olhar laboratorial de distância e

frieza: “O pesquisador isola seu objeto de estudo e se isola a fim de examiná-lo sem risco

de contaminação”. Por trás desse ideal positivista podemos refletir sobre a diferença

fundamental entre a constatação e o questionamento, ambos na construção de caminhos

que se apresentam opostos no âmbito da pesquisa e na postura do pesquisador (idem 1990,

27).

2.1.4.2. A transcrição musical – a busca pela pluralidade. . .

Falar sobre transcrição musical engloba uma série de questões que vão desde

concepções culturais – no caso a construída no ocidente -, a questões técnicas – tentativas

diversas de transcrição mecânica em busca de maior objetividade. Ellingson (1992, 110)

define transcrição musical como a escrita dos sons musicais que, guiada por um ideal de

objetividade presente nas ciências exatas, traria para a área da Etnomusicologia uma

validade científica calcada no “método quantificável e analisável”. Assim como o poder de

inclusão/exclusão social da escrita discutida anteriormente, a transcrição também teve seu

17
papel nas aquisições coloniais, visto que representou ferramenta principal da

Etnomusicologia quando esta ainda se restringia à pesquisa de culturas “exóticas”, ou seja,

culturas diferentes do lugar de origem do pesquisador - geralmente as colônias de seu país

europeu de origem:

Os descobridores e conquistadores da Europa carregaram não apenas


ouro e jóias, mas também instrumentos musicais, notações, escritos sobre
teoria musical e às vezes até mesmo músicos (. . .) Transcrição então
surgiu como meio para capturar e preservar experiências sensoriais
exóticas (Ellingson 1992, 112)6.

Nettl (1983, 65) aponta para uma conscientização de que transcrever

representa, sobretudo, “difícil e intricada tarefa” e que a sociedade urbana ocidental a

concebe como uma maneira especial de registro musical. Na realidade, há uma necessidade

ocidental da materialização visual da música representando uma concretização do

fenômeno musical legitimado através da partitura. É importante ressaltar que as diferenças

entre as tradições oral e escrita representam elementos primordiais à área da

Etnomusicologia, porquanto os etnomusicólogos a partir da realização de estudos de

músicas de tradição oral passaram a se empenhar em reduzir a necessidade ocidental do

estritamente visual. Contudo, o etnomusicólogo ainda está preso - conforme a concepção

ocidental na qual está inserido -, ao registro visual da música que irá possibilitar a análise

posterior do fenômeno musical pesquisado. Diante deste dilema, fica claro que a

transcrição musical é sinônimo de problema etnomusicológico sendo, portanto,

amplamente discutido.

Durante o curso da história da Etnomusicologia surgiram diversas tentativas de

elaboração de mecanismos para a transcrição musical. Em busca de uma ótica mais

abrangente passou-se a utilizar outros sistemas de notação, gráficos, etc. (Ellingson 1992,

18
Seeger 1992 e 1991, Nettl 1983). A maior dificuldade em relação à transcrição consiste

mais na tarefa de encontrar um equivalente musical ao fenômeno sonoro em si do que na

representação gráfica fiel e absoluta do fenômeno sonoro. Outro ponto importante é a

separação da transcrição da descrição e da análise que consistem em processos anteriores à

mesma (Nettl 1983, 66).

Numa abordagem cronológica percebe-se que a concepção e o papel da

transcrição vem mudando gradativamente. Por volta de 1950 era vista como a

característica fundamental do trabalho do etnomusicólogo. Em 1955 surgiram métodos

diversificados de transcrição. E, em 1958, Charles Seeger lança conceitos diferentes de

notação para propósitos diferentes de pesquisa (Nettl 1983, 68):

1. Notação prescritiva (êmica ou cultural) – contém o essencial para a

performance englobando a percepção aural dos elementos previamente apreendidos na

cultura em questão;

2. Notação descritiva (ética ou analítica) – se propõe mais completa

para a análise musical. Em 1970 foi utilizada com o propósito de resolver problemas

específicos que exigiam tipos particulares de transcrição.

Durante muito tempo se acreditou que a notação tradicional ocidental fornecia

noção mais realista tanto de estilo quanto do texto musical ou então que era sinônimo da

evidência de sua existência (Nettl 1983, 70), visão oriunda das ciências exatas – concepção

de música “medível e captável por um espírito analítico” (Lühning 1991, 110). A grande

maioria da notação ocidental presente nas pesquisas sobre música até a atualidade é

essencialmente descritiva, pois é realizada com intuito de análise. Diante dos problemas e

dilemas enfrentados pelos etnomusicólogos, inclusive em estabelecer limite nítido entre os

6
The discoverers and conquistadors of Europe carried back onto only gold and jewels, but also
musical instruments, notations, music theory writings and sometimes even musicians (. . .) Transcription thus
began as a medium for capturing and preserving exotic sensory experiences.

19
campos êmico e ético, passou-se a reconhecer a transcrição como meio subjetivo/pessoal e

não mais como forma absoluta de registro musical, pois “a mesma música não será

transcrita igualmente por pessoas diferentes, o que denota o fato de que representa uma

aproximação do fato musical real” (Lühning 1991, 118).

Considerando principalmente o que se deseja mostrar através da transcrição

musical e na importância de se alcançar a coerência proposta por Ellingson (1992, 141), de

que devemos passar do estágio da definição gráfica a conceitos essenciais presentes no

universo musical pesquisado, busquei dialogar com o que aprendi convivendo com o

Xambá, observando e conversando com seus ogãs e filhos e filhas-de-santo. A transcrição

sem esse diálogo é pobre, pois carrega somente o olhar do pesquisador. Ao contrário,

ouvindo das pessoas o que pensam sobre sua música, o que ela significa, como é executada

e por quê, pude alcançar uma clareza muito maior e extremamente enriquecedora. Como o

próprio Ellingson (1992) nota, a transcrição consiste principalmente em conhecimentos e

conceitos na tentativa de compreender a música. Esses conhecimentos são possíveis apenas

quando frutos do trabalho de campo, onde são observadas a performance e a

aprendizagem, resultando numa “notação aural”, ou seja, aquela que se baseia no conjunto

das percepções e vivências musicais que são transmitidas não só oralmente, mas através da

observação e convivência – processo de transmissão musical vivenciado pelo próprio

pesquisador.

Nesta pesquisa os aspectos musicais serão apreciados a partir de uma

perspectiva etnomusicológica onde a música é concebida como produto das relações

sociais e culturais não podendo ser enfocada de maneira isolada do contexto ao qual está

inserida. Parto de uma aproximação descritiva proposta por Seeger (1992, 89) como

facilitadora para a transcrição musical, pois contempla o processo do escrever sons e

escrever como os sons são concebidos e como estes influenciam as pessoas e os processos

20
musicais. Nesta perspectiva, a transcrição será contemplada como um dos meios analíticos

que dialoga com os diversos fatores musicais e extramusicais já citados anteriormente.

Mesmo consciente de que a transcrição musical, por corresponder a um produto humano, é

carregada de subjetividade e bagagens musicais prévias que delineiam o olhar do

pesquisador (Merriam 1964, 60), acredito que não deixa de representar importante

ferramenta no decorrer da pesquisa e da compreensão acerca do universo musical a ser

abordado, quando atrelados aos demais fatores que a compõe.

2.1.5. Nós – fundamentação do diálogo

“Não era à toa que ela entendia os que


buscavam caminho. Como buscava
arduamente o seu! E como hoje buscava com
sofreguidão e aspereza o seu melhor modo de
ser, o seu atalho, já não ousava mais falar em
caminho. Agarrava-se à procura de um modo
de andar, de um passo certo. Mas o atalho
com sombras refrescantes e reflexo de luz
entre as árvores, o atalho onde ela fosse
finalmente ela, isso só em certo momento
indeterminado da prece ela sentira. Mas
também sabia de uma coisa: quando estivesse
mais pronta, passaria de si para os outros, o
seu caminho era os outros. Quando pudesse
sentir plenamente o outro estaria a salvo e
pensaria: eis o meu porto de chegada. Mas
antes precisava tocar em si própria, antes
precisava tocar no mundo.”
Clarice Lispector (1998, 57).

Pensar na pesquisa de campo em Etnomusicologia pressupõe refletir sobre

universos distintos – êmico e ético, pensar sobre pessoas, olhares que são recíprocos apesar

de por longo período e mesmo no presente ainda serem míopes em relação a essa questão.

É de extrema importância ter consciência da existência de um grande hiato entre a minha

percepção sobre o outro e o outro em si. Tentar perceber o outro em diálogo com a

21
percepção desse outro sobre si e sobre mim como pesquisadora não significa buscar

transpor as diferenças culturais e tornar-me insider, mas ter na interação um ideal a ser

atingido, consciente das diferenças e de que elas carregam a riqueza da diversidade.

Lévi-Strauss (1996, 56) concebe etnografia como a responsável de pôr em jogo

o eu e o mundo:

A etnografia proporciona-me uma satisfação intelectual: como história


que une por suas duas extremidades a do mundo e a minha, ela desvenda
ao mesmo tempo a razão comum de ambas.

A partir do momento que busco compreender o outro também passo a me

compreender melhor. Oliveira (2000, 30) propõe uma “antropologia polifônica”, ou seja,

aquela que “oferece espaço para as vozes de todos os atores do cenário etnográfico”. Para

tentar alcançar algo próximo de uma Etnomusicologia “polifônica” é importante estar

consciente da responsabilidade e da voz do pesquisador. O referido autor (2000, 25) aborda

também a escrita como a configuração final dos momentos do olhar e ouvir que se dá fora

do campo, mas que deve levar em consideração todas as questões inerentes a ela.

Continuando, alerta para a importância da escrita em primeira pessoa não se restringindo a

um tom intimista, mas de forma que não se oculte o papel do pesquisador. Sob essa

perspectiva é natural alcançar uma compreensão desse movimento entre o que percebo,

dialogando com a minha formação, meu olhar, minha visão de mundo - eu em relação ao

outro, externo a esse meu universo. Não obstante, essa percepção não representa via de

mão única. Há certamente um jogo de percepções e, na realidade, quando se pesquisa

pode-se ter a certeza de que também se está sendo pesquisado.

22
2.2. Nós II – realização do diálogo

2.2.1. Eu e meu “outro interno”- Primeiros contatos . . .

A escolha da nação Xambá como objeto de estudo partiu do contato que tive

com esta religião, em 1999, quando fui bolsista de iniciação científica sob a orientação do

Prof. Dr. Carlos Sandroni7. Até então nunca havia ido a um terreiro de xangô. Por conta

desta pesquisa passei a ler sobre o assunto e a assistir alguns toques públicos da Casa

Xambá durante esse ano. Estudar uma nação que integra o universo do xangô

pernambucano pressupõe certa familiarização e, ainda que o terreiro seja localizado numa

região próxima a onde nasci e cresci, até então nunca tenha tido um contato direto com

essa religião. Oliveira (2000, 39) classifica esse processo de pesquisar manifestações

culturais ou religiosas no seio de sua própria cultura como o processo do “antropólogo e o

seu outro interno”. As pesquisas desenvolvidas no seio da própria cultura do pesquisador

com um “olhar” (Oliveira 2000, 19) lançado sobre a sociedade da qual, a princípio, ele faz

parte, forneceria uma visão diferenciada se comparada a alguém totalmente “estrangeiro” a

esse universo, não entrando no mérito de que o primeiro “olhar” seria melhor ou pior, mas

que se não atento para os diálogos inerentes a tal processo, se reduziria a um “colonialismo

interno” (2000, 41). Mesmo tendo um olhar para “o meu outro interno” – o Xambá, tenho

também a consciência do que eu represento para eles, da minha responsabilidade e do que

pode e deve ser revertido para eles a partir desta pesquisa, que espero contribua para sua

história.

7
Rosa (2000).

23
Após ter realizado uma outra pesquisa com Sandroni, com nova temática, nos

dois anos seguintes (2000-2001), não voltei mais ao Xambá, embora nunca o tenha

esquecido. Com a possibilidade do mestrado, considerei a possibilidade de voltar ao

terreiro. Meu ex-orientador também foi muito importante nessa decisão. Levei meu

anteprojeto ao babalorixá Ivo e aos historiadores e também pesquisadores e filhos-de-santo

desta nação, Hildo Leal e João Monteiro. Foram inúmeras as conversas com Hildo, em que

ele me ajudou a compreender essa nação afro-brasileira, assim como tantas outras pessoas

que surgirão no decorrer deste trabalho. Com um sinal positivo da parte do Xambá,

ingressei no curso e passei a ler tudo que encontrava a respeito das religiões afro-

brasileiras, candomblé, xangô pernambucano e o pouco que encontrei sobre o Xambá. No

entanto, no ano de 2003 não houve toque público. Nesse ano, aconteceram apenas, o Toque

de Balé, dedicado a Iansã de Balé (dos eguns, mortos), no dia 27 de janeiro8 e a Louvação

a Oiá – cerimônia característica do Xambá, no dia 13 de dezembro, pois a ialorixá Mãe

Tila faleceu no mês de março, no mesmo mês em que me mudei para Salvador para iniciar

os meus estudos.

Quando voltei ao Recife para assistir a Louvação a Oiá pude estabelecer um

contato maior com os filhos e filhas-de-santo do terreiro e também presenciei a Obrigação

para os caboclos, realizada no início de janeiro de 2004 e, em seguida o Toque de

Obaluaiê, orixá das doenças e da cura, no dia 18 de janeiro desse ano.

Embora esse não tenha sido o primeiro contato, na realidade estava há três anos

sem freqüentar o terreiro, tudo era ainda muito novo e resolvi primeiro me familiarizar um

pouco mais com o universo do Xambá. Tive muitas conversas informais também com

Maria do Carmo de Oliveira (Cacau), filha de Iansã e figura ímpar que teve muita

8
Realizada no mesmo dia do aniversário da morte da segunda ialorixá da Casa, que esteve à frente
da mesma por mais de quatro décadas – Mãe Biu.

24
paciência com as minhas dúvidas e falta de saber9, com José Cleyton da Silva (Guitinho)

filho de Ogum e ogã do terreiro que também muito me ajudou através de diversas

conversas e “consultas telefônicas”, assim como com sua mãe, filha de Iemanjá, Glória

Maria Oliveira da Silva (Gogó) e com Leila Luiza Oliveira da Silva, sua irmã e filha de

Orixalá. Não posso deixar de mencionar as conversas e elucidações que tive com seu

Juvenal José Ramos, filho de Xangô e com Raulino Sales, filho de Iemanjá, que

confeccionou a minha “volta”10 de Iemanjá11. Ailton Paraíso, filho de Xangô e irmão do

babalorixá, ainda hoje me fornece informações preciosas sobre a história do terreiro, sobre

sua mãe, a falecida ialorixá e fundadora do terreiro e sobre Iansã.

Retornei para o toque de Oxum em fevereiro e já pude assistir também à

Obrigação que antecede o toque. Esta cerimônia não é pública, acontece após o ritual de

limpeza dos filhos e filhas-de-santo e consiste no sacrifício de animais para os orixás12. A

Obrigação é destinada principalmente ao orixá ao qual será dedicado um toque no dia

posterior. Nessas cerimônias comecei a gravar os toques num pequeno gravador portátil e

intensifiquei as diversas conversas que aconteciam espontaneamente pelos corredores,

visto que a Obrigação ocorre durante um Sábado inteiro. O próximo toque, dedicado à

Iemanjá e em seguida a Ogum, aconteceu no mês de maio, pois em abril, mês que

normalmente se toca para Ogum um filho-de-santo da casa faleceu.

9
Cacau, como prefere ser chamada é uma das responsáveis pela administração do terreiro visto
que o babalorixá trabalha fora e não dispõe de muito tempo para assumir essa função.
10
Colar de contas transparentes que simbolizam o orixá. Cada filho-de-santo possui a sua “volta”
de acordo com os elementos e cores que caracterizam o seu orixá.
11
Através do jogo de búzios feito por Pai Ivo, sou filha deste orixá feminino – rainha do mar, mãe
de quase todos os orixás.
12
Começa por volta das 07:00 horas da manhã e acaba por volta das 07:00 horas da noite, após a
saída do “ebó”, o despacho no rio Beberibe, do que restou das obrigações e dos pratos dedicados aos orixás.
A “Obrigação” faz jus ao termo utilizado, pois representa um dia inteiro de trabalho árduo dedicado aos
orixás. É o momento também de maior contato entre filhos e filhas-de-santo me proporcionando também
maior contato com todos.

25
No mês de junho desse ano realizei diversas entrevistas com Maria José Batista

de Araújo (D. Zeza) - “Oiá da casa”, Maria do Carmo de Oliveira (Cacau), Teresa Cristina

Batista (Cristina), José Walter Paraíso (Zeca), Adriana Paraíso, Maria José de Menezes

(Zeza, que é do Nagô, mas freqüenta também o Xambá e é esposa do padrinho e ogã da

casa, Seu Maurício César da Silva), além do babalorixá Ivo, pessoa extremamente ocupada

e conversas informais com Seu Marcos da Silva, filho de Obaluaiê e irmão de Seu

Maurício.

Aos poucos fui me familiarizando com o terreiro e com as pessoas da mesma

forma que fui percebendo a recíproca dessa familiarização, um momento muito importante

para mim como pesquisadora e como pessoa. Apesar de ter consciência de não fazer parte

deste universo religioso, por mais que haja a familiaridade, esta naturalmente difere dos

que realmente integram o Xambá, não ser vista apenas como pesquisadora foi um estágio

importante para trabalhar com elas e com eles, da mesma forma que estas (es) passaram a

não achar tão estranha a minha presença. Assisti a todos os demais toques de orixás do

calendário religioso e todas as Obrigações que os antecederam: em junho para Xangô; em

julho para Orixalá, com “saída de iaô” de Orixalá e Nanã, da única filha de Nanã da Casa;

em setembro para os Bêji e, novamente em dezembro a Louvação e o Toque de Oiá –

Iansã, o orixá que, inspirada pelos depoimentos que ouvi, pela história deste terreiro de

Iansã, resolvi centrar como foco de estudo buscando compreender a sua importância, a de

suas filhas (e poucos filhos) e a sua música na construção da história e da identidade do

Xambá.

26
2.2.2. Caminhos e percalços das “descobertas mútuas” – do humano ao musical

Estudar a nação Xambá representou uma aprendizagem profunda, uma releitura

das concepções ocidentais de mundo, de religião, de relacionamento humano e, sobretudo

de música, enfim, de toda a minha formação.

A princípio, como pessoa que não integrava este universo, a sensação de ser

uma “estrangeira” representava uma constante. As pessoas da nação Xambá foram

extremamente receptivas e isso se reflete na abertura que deram e dão para pesquisas sobre

o terreiro, assim como para fotografias ou filmagens dos toques públicos. Os próprios

filhos e filhas registram momentos do contexto religioso. É comum que filmem seu “obori”

e sua “saída de iaô”13. O próprio terreiro tem planos de registrar todos os toques do

calendário religioso, o que naturalmente é uma coisa recente. Todos os filhos e filhas falam

que nos “tempos de Mãe Biu e Mãe Tila” determinados registros não eram permitidos.

Contudo, mesmo com esta abertura é natural que haja restrições no cotidiano religioso para

com estranhos. No início, com meus poucos conhecimentos sobre esta nação, foi difícil

entender uma série de questões e sentir abertura para perguntar ou pedir para participar,

fotografar e gravar. Momentos delicados de uma pesquisa de campo que não estão

relacionados a nenhuma teoria etnomusicológica, mas a relações humanas.

Meu próprio enfoque aconteceu a partir desse contato humano. Entender a

importância, a personalidade, a dança e a música de Iansã era o mesmo que aprender um

novo idioma. Para essa aprendizagem tive “entrevistas-aulas” com o ogã Sandro Paraíso14

que apesar de muito jovem (cerca de vinte anos) é uma referência musical para o terreiro,

13
Cerimônias de iniciação que abordarei no capítulo 4.
14
Filho de Oxum.

27
pois cresceu nesse universo, toca os três tambores, conhece profundamente o repertório

musical, além de ser um dos cantores solistas nos toques para orixás15. Sandro foi

fundamental na minha aprendizagem musical sobre Iansã e os demais aspectos presentes

na nação Xambá, tanto musicais quanto extramusicais. Todas as “entrevistas-aulas”

realizadas com este filho do Xambá foram gravadas, transcritas, e depois ele, com toda

paciência as corrigia. A partir desse contato fui desenvolvendo a capacidade de diferenciar

os toques, identificar as cantigas, os textos. . . Num Toque público essa identificação é

praticamente impossível. Naturalmente não há nos toques ou em qualquer momento do

contexto religioso uma preocupação acústica ou qualquer coisa do tipo. Todos cantam e

nem sempre é possível ouvir claramente o solista. Para quem não conhece, só depois de

ouvir muitas vezes é possível identificar e compreender as cantigas.

Depois de um contato mais prolongado os toques foram se revelando, de forma

que eu começava a compreender momentos particulares, como quando um orixá “em terra”

puxa a sua própria toada e as funções das cantigas, que apesar de não possuírem uma

tradução literal dos textos, são profundamente conhecidas pelo povo-de-santo e estão

relacionadas à mitologia, às condutas e às coreografias16. Todos esses “estágios” e muitos

outros que não caberiam aqui, compuseram o percurso desta pesquisa. Várias

transformações ocorreram em seu percurso e foram imprescindíveis para a realização deste

15
Normalmente Pai Ivo inicia o toque, depois passa para Sandro Paraíso e Ailton Paraíso, que se
revezam e, posteriormente Pai Ivo retoma e finaliza o toque.
16
Vatin (2001, 14) afirma que “as cantigas representam o último refúgio da identidade cultural,
mesmo quando suas letras não são entendidas por aqueles que as cantam.” O autor também reforça o fato de
que a música se situa “no coração de um sistema que coloca em ação as representações simbólicas, espirituais
e religiosas de toda a comunidade” (2001, 10). Música, religião e cultura compõem um estreito elo, não
sendo possível compreender um elemento isoladamente. Dentro da música existem os diferentes papéis das
entidades que se apresentam através dela. Como resposta ao fato musical está o humano, o público, a
receptividade e distinção que as pessoas fazem sobre as divindades, bem como os papéis delas próprias no
culto.

28
trabalho e para a compreensão da nação Xambá como um todo. Logicamente essa

compreensão é limitada diante da visão de quem a integra a vida inteira.

Entender o orixá Iansã e sua música dentro do universo Xambá dependeu de

diversos fatores e caminhos. Estes só foram possíveis a partir dos diversos momentos,

conversas, entrevistas e aulas que foram mencionados anteriormente. Oiá é considerada a

mãe dos xambanianos e é concebida como uma divindade que se mescla com outra

ancestral quase que divinizada, a falecida ialorixá Mãe Biu. Tanto o repertório musical de

Iansã quanto o da Oiá17 específica de Mãe Biu, são de extrema representatividade para

filhas e filhos-de-santo do Xambá. Ouvir os vários depoimentos, observar os diversos

momentos do terreiro, abordar as suas cantigas e toques significou entrelaçar as duas

figuras femininas para a partir daí realmente ouvir a música de Oiá, que se apresentou tão

rica e complexa.

17
Iansã e Oiá são o mesmo orixá.

29
3. Uma história de construções e re-significações. . .
“É preciso criar de novo, Luis Maurício.
Reinventar nagôs e latinos, e as mais
severas inscrições, e quantos ensinamentos
e os modelos mais finos, de tal maneira a
vida nos excede e temos de enfrentá-la com
poderosos recursos.”
Da poesia “A Luís Maurício, infante”
Carlos Drummond de Andrade
(1993, 64-69)

3.1. Xambá e xangô – a nação no universo da religião afro-brasileira

A história da nação Xambá é carregada de referências africanas, mais

especificamente dos negros que foram trazidos e escravizados pelos portugueses. Nesta

infeliz realidade e de forma muito ampla, esses africanos contribuíram para a formação da

cultura brasileira em diversas esferas – do sagrado ao profano. Sabe-se que a cultura

africana em solo brasileiro foi submetida a diversas tentativas do governo português e dos

senhores de escravos para a promoção de sua fragmentação, visando seu enfraquecimento


político. Mesmo sob as diversas tentativas de seu esfacelamento este povo deixou um

legado ímpar e não pode ser desconsiderado ao se falar em uma nação afro-brasileira.

É de extrema relevância ressaltar que esse contexto histórico de influências

culturais não deve ser tomado de maneira unilateral. Abordar tal universo pressupõe

considerar também as influências que a cultura africana aqui sofreu, compondo um

processo complexo e polêmico nas diversas discussões acerca desta realidade histórica que

remonta aos tempos do Brasil-colônia. Na discussão sobre os antecedentes históricos

emerge ainda, mais especificamente para a realidade pernambucana, a questão conceitual

das religiões afro-brasileiras, para uma melhor compreensão do universo ao qual a nação

Xambá encontra-se inserida.

3.1.1. Antecedentes históricos – tristes equívocos

René Ribeiro (1970, 11) afirma que grande parte dos historiadores considera

que até o governo de Tomé de Souza (1549) o papel do negro escravizado se restringia ao

âmbito doméstico e que a intensificação da importação de africanos escravizados

aconteceu, sobretudo, a partir da proibição da escravidão indígena pelo Papa Urbano VIII

no ano de 1639. Contudo, mesmo sendo recorrente na literatura sobre os estudos afro-

brasileiros a lacuna histórica que se tem a respeito de dados precisos acerca da introdução

de africanos escravizados no Brasil, Ribeiro (1970, 9) levantou a hipótese de que a

presença destes em Pernambuco data já da primeira metade do século XVI, para a

substituição da mão-de-obra indígena nas plantações de cana-de-açúcar, baseado em cartas

deste período, para o Rei de Portugal, pedindo a importação de africanos escravizados. É

31
recorrente nessa literatura o fato de que os índios não eram considerados “apropriados”

para o trabalho escravo.

Outro fator apontado sobre a impossibilidade de se reconstituir precisamente

esse hiato da nossa história, diz respeito ao episódio da destruição dos arquivos referentes à

escravidão dos negros no Brasil pelo então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em 1891

(Ribeiro 1970, 11; Valente 1977, 31, Verger, 1987). Especificamente sobre a dificuldade

da reconstrução do contexto das religiões afro-brasileiras em Pernambuco, Valente (1977,

31) afirma ter ocorrido sob a justificativa de “evitar que a mancha da escravidão deixasse

vestígio.” Numa abordagem mais crítica desta atitude, Verger (1987, 16) afirma serem

outras as “razões reais deste ‘auto de fé’ abolicionista”, ou seja, na realidade o maior temor

consistia no possível ressarcimento do governo aos antigos proprietários de escravos no

período pós-abolição, causando um gasto de grandes proporções aos cofres públicos.

Para a complementação dos dados expostos anteriormente por Ribeiro, é

importante considerar a abordagem de Rodrigues (1988, 14), lembrando que a escravidão

africana era prática comum na Europa antes do descobrimento do Brasil pelos portugueses

e que em relação ao contexto brasileiro foi contemporânea ao período da colonização.

Logo, podemos afirmar que a história da construção do Brasil e de nossa identidade

brasileira esteve por todo esse período, imersa numa certa familiaridade com a

discriminação deste povo que foi retirado de sua terra natal para servir a propósitos

comerciais da maneira mais indigna que um ser humano pode ser submetido – a

escravidão. Podemos considerar que posteriormente, através de diversos meios legais ou

socialmente ‘camuflados’, a discriminação foi atualizando-se gradativamente, mesmo com

a extinção desta em 1888. Sobre a familiaridade portuguesa e, posteriormente a brasileira à

escravidão Bastide (1989, 48) faz importante reflexão:

32
Portugal, entretanto, se ressentia da falta de mão-de-obra, mesmo para a
sua agricultura local; grande parte desse país embora pequeno,
continuava no século XVI carente de homens, quase sem cultura, pois as
guerras de conquista, as pestes, as epidemias, fizeram grandes claros na
população. É por isso que a colonização americana vai tomar uma forma
especial, vai se fazer sob o signo da escravidão. Aliás, Portugal a isto já
estava habituado, pois que fizera trabalhar em seus campos os
descendentes de árabes conquistados e depois os prisioneiros de guerra
feitos na África do Norte. Tinha mesmo adotado, em seguida à sua
exploração das costas africanas, a escravidão dos negros; sabe-se que,
em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era composta de
escravos negros. Bastava, pois, transportar este costume da metrópole ao
Brasil e fazer trabalhar nas plantações que aí se iam instalar a massa de
indígenas escravizados sob o controle e em benefício de uma minoria
branca.

Referindo-se à questão da introdução de africanos escravizados no Brasil,

Ribeiro (1970, 16) considera o contexto pernambucano como similar ao baiano. É

importante citar o fato de que o tráfico acima da linha do Equador foi considerado pirataria

pelos ingleses a partir de 1815 e em todo Atlântico em 1830. Ribeiro (1970, 22) e Verger

(1987, 9) dividem o tráfico de escravos em quatro ciclos distintos que nos remete à

diversidade das procedências africanas que foram trazidas ao Brasil nos diversos períodos:

1. Ciclo da Guiné – no século XVI;

2. Ciclo de Angola – no século XVII;

3. Ciclo da Costa da Mina e do Golfo da Guiné – no século XVIII até

1815;

4. Fase ilegal do tráfico onde é retomado o comércio com Angola – do

século XIX até 1850/51;

Sobre a história do tráfico negreiro no Brasil e particularmente em

Pernambuco, torna-se necessário relembrar dois pontos: o primeiro diz respeito à

impossibilidade de considerar os dados acerca do tráfico como realmente fidedignos pelas

várias razões já expostas anteriormente. As designações desses lugares se modificaram

historicamente. Um bom exemplo disto é a região da Guiné, que no passado representava

33
uma região de grande extensão abrangendo diversos portos utilizados durante o tráfico, que

não mais corresponde à região de mesmo nome, sem dados precisos sobre o que se

considerava Guiné naquele período.

Mesmo com documentos da época do Brasil-colônia em mãos, deve-se

considerar o pensamento escravocrata e os interesses comerciais que pairavam sobre o

referido contexto. Era comum haver determinadas preferências por africanos de nações

específicas e como resposta a essa preferência os senhores afirmavam que estes eram de

procedência diferente da que realmente eram.

O outro ponto a ser considerado sobre a história escravocrata em Pernambuco é

a Invasão Holandesa que interferiu no ciclo escravocrata, seja reduzindo o fluxo de

escravos na região por conta da guerra, seja desta forma, proporcionando a expansão dos

quilombos que já existiam independentemente do contexto, mas que se fortaleceram com a

guerra. Segundo Ribeiro (1970, 12):

É natural que durante a conquista e ocupação holandesa decrescesse o


número de escravos africanos em Pernambuco. A resistência e retirada
dos pernambucanos para a Bahia, a desorganização da vida nos engenhos
e o abandono e destruição destes, bem como as próprias condições do
estado de guerra, teriam facilitado a fuga nos negros e a descontinuidade
do tráfico. Sabe-se, por exemplo, que nessa época expandiram-se
consideravelmente os quilombos, como ambos os contendores
alforriavam escravos que lutavam a seu lado.

Continuando, o autor (1970, 13) menciona que apenas com o governo de

Maurício de Nassau no século XVII (1636-1643) houve a recuperação gradativa da

economia açucareira em Pernambuco e, conseqüentemente, do sistema escravocrata.

Entretanto, mesmo com as diversas imprecisões históricas que pairam sobre as

origens africanas no Brasil e em particular em Pernambuco, as diferenças presentes nos

cultos afro-brasileiros são notórias, e isto se deve não só ao contexto local, mas também às

origens dos africanos que levavam sua cultura, religião e música. Tanto Ribeiro (1970)

34
quanto Rodrigues (1988) afirmam a significativa presença de uma cultura angolana e

congolesa em Pernambuco. Ribeiro (1970, 17) adverte sobre a presença da cultura banta

neste Estado já desde os primeiros momentos do tráfico:

Não se deve, porém, desprezar o contingente bantu e semi-bantu


representado pelos negros de Angola e do congo de cuja presença em
Pernambuco ao lado dos da Guiné, nessa primeira fase do tráfico, há os
indícios mais evidentes.

Rodrigues (1988, 34) considera como herança congolesa em Pernambuco, a

coroação dos reis de Congo que datam já do século XVIII e que hoje são relembradas no

maracatu. Esta manifestação popular afro-brasileira não só carrega uma identidade musical

própria e notadamente de influência africana, como também uma ligação religiosa com o

xangô em diversas esferas. Para o autor:

Assim, fundas e radicadas se revelam em Pernambuco as práticas


fundadas pelos congos ou a eles referentes: fracas e insubsistentes na
Bahia, onde, nos documentos escritos, elas desaparecem um século antes
e não deixam memória nas tradições locais. Desta notável diferença só
pode dar justa explicação a maior importância dos colonos congos ou
angolas em Pernambuco.

A citação acima não deve ser considerada em termos absolutos, visto que Nina

Rodrigues representou um ícone da defesa de uma supremacia iorubá sobre as demais

nações na Bahia. Todavia, não deixa de ser uma abordagem válida sobre o contexto

pernambucano. Seguindo, acrescenta (1988, 35):

Ao tempo a que se referem às observações e desenhos de Debret1, os


sudaneses promoviam na Bahia as guerras santas em que era de todo
nula a ação dos bantos. A esta desigualdade na procedência dos negros
introduzidos na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, se há de
atribuir parece, o engano dos escritores avisados como Silvio Romero e
João Ribeiro. Os estudos e observações de ambos particularmente se
referem a Pernambuco e Rio de Janeiro e do que ali observaram foram
provavelmente induzidos a generalizar, para todo país, o predomínio da
gente banto. Tão errôneo, todavia, como supor que os negros bantos

1 Debret, Voyage pittoresque et historique ao Brésil ou séjour d’un artiste française ao Brésil
depuis 1816 jusqu’en 1834 inclusivement, Paris, 1835, vol. 30, pág. 75.

35
predominaram em todo país, seria concluir-se do que aqui deixamos
apurado, que só na Bahia tivessem tido ingresso os negros sudaneses.
Um documento do século XVII é bem positivo sobre a existência, em
Pernambuco, de negros desta procedência2.

Mesmo reconhecendo a real possibilidade da presença de maioria banto em

Pernambuco, a partir de extensa pesquisa histórica, Ribeiro (1970, 23) ressalta, por outro

lado, as influências significativas da cultura iorubá. Embora seja um discurso inserido no

universo da primeira metade do século XX em que conceitos como primitivismo e

aculturação, atualmente obsoletos, eram defendidos, o autor faz uma importante

consideração em relação ao contexto pernambucano, nos remetendo aos processos de

reinterpretações culturais de forma mais abrangente:

Embora em Pernambuco numericamente os bantus pareçam ter


sobrepujado os sudaneses – é que se tornaram os introdutores aqui de
estilos de vida, modos de conduta, sistemas de interpretação do
sobrenatural, próprios às suas culturas nativas. Apesar do processo
aculturativo que sucedeu ao seu encontro com representantes das culturas
ameríndias e européia, muitos dos elementos das culturas negras –
reinterpretados ou até preservados em forma bem reconhecível – ainda
podem ser identificados de nossa população mais densamente penetrados
pelos descendentes dos primitivos escravos africanos aqui introduzidos.

Ribeiro (1970, 23) cita também um importante registro realizado por Aires da

Mata Machado Filho (1945). O referido documento consiste numa lista correspondente aos

assentos de batismo dos membros das Irmandades do Rosário e das Mercês de Diamantina

em Minas Gerais no período de 1779-85. A lista em questão contém referências às diversas

procedências dos africanos inclusive de alguns que se declararam Xambá:

Da lista (...) podemos aferir a proveniência dos escravos africanos


existentes naquele distrito (...): Congo e Angola 67%; Guiné e Mina 23%;
Moçambique 9%. Do Cabo Verde aparece apenas um negro e três
disseram-se Xambá.

2 O autor cita carta escrita por Henrique Dias em 1648 onde menciona a predominância banto
naquele Estado e as características particulares de diversas nações. Essa carta foi transcrita por Pereira da
Costa, no artigo “A idéia abolicionista em Pernambuco” escrito para a Revista do Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano, 1891, p. 247.

36
A referência deste autor é de grande relevância para a nação Xambá, pois

representa o primeiro registro histórico que se tem notícia sobre africanos desta origem no

Brasil. Vale a pena mencionar que pouco se sabe sobre as origens desta nação e o próprio

povo-de-santo, consciente deste fato, realizou extensa pesquisa que resultou numa cartilha

(Leal 2000, 10). Nesta o povo xambá ou tchambá foi encontrado como habitante da região

ao norte dos Ashanti (Costa do Ouro) e também nos limites da Nigéria com Camarões, nos

Montes Adamawa, Vale do Rio Benué, regiões atualmente correspondentes à África

Ocidental Sub-Saariana.

A iniciativa de pesquisar as próprias origens possui extremo valor no sentido

de promover uma consciência da própria história e tradição, além de considerar possíveis

relações entre o “tchambá” africano (possível ancestralidade) e a tradição da nação Xambá

mantida no terreiro do Portão do Gelo, bairro de São Benedito, em Olinda, Pernambuco.

Desta pesquisa resultou um outro importante registro sobre este povo: uma carta da

Embaixada dos Camarões em resposta a Hildo Leal (um dos filhos-de-santo que trabalhou

na pesquisa e realização da cartilha citada anteriormente) afirmando a existência de

diversas famílias atualmente com o nome Xambá, acrescentando que esse povo lutou

arduamente pela independência daquele país. Mesmo que as relações de ancestralidade

africana não sejam a tônica dessa pesquisa, pois assim como as demais nações afro-

brasileiras, a questão étnica por diversas ocorrências históricas não pode mais ser

comprovada, a busca de tal iniciativa consiste em se reafirmar como nação afro-brasileira

perante as demais nações e sociedade em geral que muitas vezes desconhece a existência

desta nação afro-brasileira.

A relação entre o povo xambá e o Vale do Benué também foi apontada por

Meek (1931, 3) em sua obra sobre o povo Jukun da Nigéria. O autor cita não uma nação

Xambá numa perspectiva religiosa de culto aos orixás, mas o povo “chamba” que habitava

37
a região do vale do Benué, Nigéria por volta do século XIX e ressalta os aspectos

lingüísticos: dentre os seis dialetos do povo “Jukun”, o “wakari” corresponderia ao mais

antigo, sendo resultado do contato com outros povos, inclusive os “chamba”. Meek

assinala o povo “chamba”, bem como os “fulani”, como responsáveis pelo dilaceramento

do reino Kororofa no século XIX:

O dilaceramento final do Reino Jukun de Kororofa foi causado pelos


grupos chamba que, foram precursores dos Fulani, saquearam toda a
região da bacia do Benué3.

Sobre essa abordagem, deve-se considerar o contexto histórico ao qual estava

inserido (década de 30), onde ainda predominava uma concepção descritiva e nem sempre

aprofundada e contextualizada, não deixando de representar, no entanto, um importante

registro, visto que, como já afirmamos, são raras as referências a este povo.

3.1.2. Conceitos - um passeio sobre diversos olhares

A nação Xambá representa uma das diversas nações afro-brasileiras que

compõem o universo do candomblé ou xangô em Pernambuco. Carvalho (1984, 54)

considera duas principais nações em Recife: a Nagô e a Xambá, embora muitas das

pessoas iniciadas por Arthur Rozendo, principal babalorixá do Xambá, tenham adotado o

culto Nagô. Sobre os diversos termos presentes nos cultos afro-brasileiros, Verger (1992a,

96) realiza uma distinção a partir da utilização de termos locais. De acordo com ele:

As cerimônias do mesmo gênero são conhecidas sob os nomes de xangô


em Recife, candomblé na Bahia, macumba no Rio de Janeiro, tambor em

3 “The final disruption of the Jukun Kingdom of Kororofa was brought about by groups of
Chamba who, as the precursors of the Fulani, ravaged the whole of the Benue basin”.

38
São Luís e batuque em Porto Alegre. Todos estes termos, com exceção
de xangô são nomes de instrumentos de música, de origem banto, das
regiões da África ao Sul do Equador. Atualmente o termo “candomblé”
tomou maior extensão, representando o culto dos deuses africanos em
todo o Brasil.

Motta (1997, 16) define xangô como culto aos orixás que correspondem a

divindades iorubás e que no Brasil são sincretizadas com santos católicos. O autor utiliza o

termo “sacrificial” para classificar esta religião que tem por base a crença na reciprocidade

entre povo-de-santo e orixás – os primeiros dão oferendas aos últimos que atendem aos

seus pedidos. Acrescenta ainda que parece ser particular do xangô pernambucano a

presença simultânea de pai e mãe-de-santo no comando do terreiro ou de rituais

importantes dentro do mesmo4.

Fonseca (1999, 65) estudando o terreiro de Pai Edu em Olinda, Pernambuco,

apresenta uma síntese bem geral sobre o xangô. Destaco aqui o que se refere às crenças e

aos ritos:

Crenças: Traços predominantemente de origem africana na doutrina e nos


rituais; Teologia centrada nos orixás; Crenças e ritos com tendências à
padronização, poucos sujeitos a inovações.
Ritos: Predominância dos ritos sacrificiais; Festas públicas voltadas para
os Orixás; Iniciação complexa constando de várias cerimônias de
recolhimento; Práticas divinatórias (Jogo de Búzios).

Tais caracterizações, por serem gerais, podem ser estendidas ao universo do

candomblé e demais religiões afro-brasileiras similares por corresponderem a

características que são compartilhadas por todas. Seguindo, o autor alerta sobre sua

abordagem generalizante que, todavia, soma na medida em que fornece uma abrangência

de maneira sintetizada.

4 A hierarquia do terreiro de xangô será abordada de forma mais detalhada no capítulo 4.

39
Segato (1995, 18) refere-se ao xangô como variante local da religião afro-

brasileira de culto aos “orixás”, ou deuses africanos, que também é chamado de

“candomblé”, termo que é mais remetido a uma tradição baiana. E, acrescenta que os

terreiros ou “casas de santo” onde tais religiões são praticadas também são chamadas de

“xangôs”.

No livro Shango Cult in Recife, Brazil os autores Carvalho e Segato (1992, 9)

definem xangô como:

Culto de possessão formado por elementos culturais trazidos para o Brasil


pelos escravos e que se mesclou com crenças católicas. Foi
provavelmente consolidado como forma similar ao que é hoje nos anos
seguintes à abolição da escravatura, que foi proclamada no Brasil
tardiamente em 18885.

Em Pernambuco, apesar do termo candomblé também ser utilizado, o xangô

ainda representa o termo mais adotado. Ribeiro (1970, 40) atribuiu a denominação xangô

para os cultos afro-brasileiros realizados neste Estado à popularidade do orixá de mesmo

nome. Tanto esta concepção como a popularidade do termo foi reforçada pelos filhos e

filhas-de-santo da nação Xambá devido ao fato de muitos babalorixás ou ialorixás serem

identificados pelo seu orixá, que, em grande maioria, corresponderia ao orixá Xangô. As

(os) adeptas (os) do Xambá6 usam as duas designações: “ir ao Xambá” (como designativo

para terreiro, local do culto) ou “ir ao xangô” (como designativo do culto em si). É comum

também, entre o povo-de-santo do Xambá a utilização dos termos xangô e xangozeira (o)

5 “Possession cult formed with cultural elements brought to Brazil by slaves and which were
mingled with Catholic beliefs. It was probably consolidated with a form similar to that of today in the years
following the abolition of slavery, which was proclaimed in Brazil as late as 1888.”
6 O termo Xambá é empregado por seus filhos e filhas para designar a nação como um todo,
referente às origens africanas, mas, também é utilizada para se referir aos preceitos religiosos em geral, o
culto em si, sua característica particular e, por fim, o próprio terreiro, o local onde as cerimônias são
realizadas.

40
para designar o culto afro-brasileiro e os seus adeptos e adeptas, respectivamente. Existem

vários terreiros de xangô em Pernambuco e o Xambá corresponde a mais um. Contudo, as

diferenças são reforçadas pelo povo-de-santo que a considera uma nação à parte das

demais, correspondendo, aliás, a única em Pernambuco e pode-se até arriscar afirmar no

Brasil. Até o momento não encontramos registro de nenhuma outra.

Com o objetivo de contextualizar a nação Xambá no universo das religiões

afro-brasileiras e desta forma obter um panorama geral de olhares diversos em relação aos

conceitos de Xambá, xangô e candomblé, realizei uma pesquisa em dicionários e

enciclopédias brasileiras onde foi possível constatar que infelizmente não se tem uma

abordagem abrangente, salvo algumas exceções. O Dicionário de Cultos Afro-brasileiros

de Olga Cacciatore (1977, 263), único a apresentar um verbete dedicado ao Xambá, define-

o como:

Culto em extinção, mesclado de elementos bantos (muxicongos) e


indígenas, tendo atualmente poucos terreiros no Nordeste (principalmente
na Paraíba, Pernambuco e Alagoas). Tribo da fronteira Nigéria com
Camerum.

O verbete xangô, quando abordado, restringe-se basicamente ao orixá, sendo

descrito de maneira breve ou, para designar, também de forma abreviada, a casa de culto

ou terreiro afro-brasileiro. Mesmo que o termo candomblé tenha se tornado gradativamente

nacional, xangô ainda é concebido por diversos autores como um termo característico para

designar o culto afro-brasileiro no Recife, como já foi exposto, pelo próprio povo-de-santo.

Sob esta perspectiva, a ocorrência do verbete como religião e não como o orixá,

especificamente, foi demasiadamente reduzida e quando encontrado foi sob abordagem

pouco aprofundada.

Mauro Vilar (1982, 896-897) define xangô como culto presente em todo o

Brasil que “por vezes se realiza em padrões extremamente iguais da ortodoxia africana”

41
guardando muitas semelhanças com as práticas tradicionais trazidas pelos africanos

escravizados da Àfrica ao Brasil. Defende também a idéia já destacada por Ribeiro (1970,

40) de que o fato da popularidade do orixá deu nome à religião no Recife. Olga Cacciatore

(1977, 250) aborda o xangô recifense como o padrão para os cultos jêje-nagô das demais

localidades. A popularidade do orixá também é enfatizada em sua definição. Câmara

Cascudo (2000, 748-749) considera xangô como:

Culto trazido pelos escravos de Togo, Daomé, Lagos, Barra do Níger,


Golfo do Benin (. . . ) no Recife denomina a organização e mesmo o local
do culto afro-brasileiro, sendo equivalente, em muitos aspectos, ao
candomblé baiano. As primeiras casas de xangô surgiram no século XIX,
inicialmente no Recife, depois em Campina Grande, Maceió, João
Pessoa, Natal (. . . ).

Carvalho e Segato (1992, 9) confirmam o dado levantado por Cascudo de que

por volta de 1880 teria sido fundado o primeiro terreiro de xangô no Recife, chamado de

“Pátio do Terço”, no bairro de São José, onde atualmente não existem terreiros de xangô

nesse bairro comercial do centro desta cidade.

O termo candomblé, nesta literatura, apresentou maior ocorrência. Talvez por

ser considerado de maior abrangência e prestígio, teve maior aprofundamento por parte dos

autores. Mauro Vilar (1982, 856-859), por exemplo, inclui em seu verbete sobre o

candomblé, concepções de vários autores, entre eles Pierre Verger. Explica que o termo a

princípio esteve restrito à Bahia e, posteriormente, tornou-se nacional. De acordo com ele,

foi empregado pela primeira vez no ano de 1828 para designar a revolta de negros no

Cabula, em Salvador. No candomblé a concepção de morte é abordada como rito de

passagem onde os mortos seriam encaminhados para uma morada mística ou cosmo

harmonizado, diferindo frontalmente da concepção católica de morte. Sobre as entidades,

Vilar afirma que, na África, os negros tinham nos orixás e voduns seus patriarcas, suas

maiores referências culturais e espirituais. Os orixás nada mais eram que antepassados

42
mitificados cuja memória se perpetuava, sendo proporcionada a convivência com eles nas

festas religiosas. No Brasil essa característica foi alterada e as relações não se repetem

exatamente da mesma maneira como acontecia com seus antepassados.

No Dicionário Enciclopédico Brasileiro Ilustrado de Álvaro Magalhães (1957,

373), o termo candomblé surge como folclore, designando:

Cerimônias festivas de negros africanos ou crioulos, em que há


intermédios de batuques. É uma das manifestações de culto fetichista
afro-brasileira.

Considerando o ano de publicação desta informação, percebe-se claramente seu

momento histórico, onde ainda era defendida uma visão de menor relevância à religião

afro-brasileira, sendo então considerada apenas como uma manifestação folclórica. Outro

dado relevante neste verbete é a presença da música como fator intimamente relacionado

ao seu contexto.

Durante essa revisão bibliográfica panorâmica7, embora sintética, foi muito

recorrente a visão de cunho pejorativo das religiões afro-brasileiras como “feitiçaria”,

“fetiche” e “folclore”, como pode ser constatado na última citação. Mesmo ciente de que

estas concepções estavam imersas num contexto de algumas décadas atrás é importante

reconhecer que são também válidas para a obtenção de um olhar histórico e reflexivo. As

transformações conceituais felizmente ocorreram e naturalmente compõem um processo

que não cessa. Relacionar não só as abordagens descritivas e limitadas, mas também as

transformações de abordagem, na medida em que dicionários atualizados foram

consultados, foi válido para percebê-las como reflexo de uma reformulação de

pensamento, englobando maior respeito para com essas religiões. A pesquisa nesse tipo de

7 Embora não tenham sido transcritas todas as abordagens no texto, por serem repetidas, quinze
títulos foram pesquisados.

43
literatura foi importante também por que são essas referências que alcançam grande parte

da população e a familiariza com a concepção preconceituosa que durante tanto tempo foi

recorrente. Sabe-se que o acesso à educação no Brasil, num sentido amplo de geração de

conhecimento, é restrito a uma minoria e que o acesso a esse tipo de literatura e abordagem

pode ser pensado muito mais numa perspectiva de restrição a outras fontes de informação

de maior amplitude que de forma opcional. Chauí (1996, 172) levanta essa importante

questão:

A injustiça social que, limitando a escolaridade e impedindo o acesso aos


livros (pelo preço, de um lado, pelo cansaço e excesso de trabalho, de
outro), oferece às classes dominadas uma subliteratura enciclopédica
como paliativo e substituto ao desejo de saber.

O outro lado da moeda é que informações vinculadas por dicionários e

enciclopédias, uma vez ali situadas, tendem a se eternizar. Obras de referência nacional e

de inegável utilidade têm de alimentar-se de contribuições de especialistas locais e

regionais, uma vez que não se cogita reduzir o Brasil às dimensões que uma concentração

de recursos no eixo Rio-São Paulo acarreta. (Veiga e Garcia 2004, 2).

Rita Segato (1995, 15) já havia delineado um olhar crítico sobre a conotação

política de uma pesquisa. No contexto do xangô pernambucano a autora ressalta a visão da

elite sobre os cultos afro-brasileiros e, neste caso, podemos ampliar para a elite brasileira

em geral, inclusive a que sempre escreveu e escreve verbetes em dicionários e

enciclopédias. A longa miopia dessa elite diante dos mesmos que, segundo Segato (1995,

15), os julgavam “ilegítimos, marginais e menos merecedores de prestígio” representa fato

histórico rapidamente constatado numa pesquisa como a realizada. O próprio René Ribeiro

já na década de cinqüenta afirmava que o xangô pernambucano não tinha o mesmo

“esplendor” dos candomblés baianos, pelo caráter ritual mais fechado diante de todas as

represálias policiais que sofreu. Segato (1995, 18) reforça a afirmação do autor mais de

44
quarenta anos depois e ressalta que em Recife esses cultos não tiveram de longe o prestígio

baiano em razão do interesse dos intelectuais pelo candomblé daquele Estado. A autora

toca também numa questão de maior amplitude – o racismo à brasileira -, que não pode ser

pensado fora da academia e da produção científica e literária em geral e tem por base gerar

conhecimento e inegavelmente, por ser produto humano, deturpações. Dentro destas

deturpações está a concepção folclorizada e reducionista de religião afro-brasileira que foi

constantemente encontrada nas referências pesquisada e exposta anteriormente. De acordo

com Segato (1995, 16):

Esse menosprezo das elites pode ser um efeito do racismo à brasileira,


isto é, um racismo marcado pelo medo da familiaridade. O termo
“racismo” denomina e confunde, a meu ver, operações diversas de
discriminação. Porque, enquanto os racismos nórdicos excluem o negro
justamente por percebê-lo como um “outro”, ou seja, como alguém
verdadeiramente alheio e desconhecido, entre nós o negro é discriminado
e os rituais de distanciamento em relação a ele são incansavelmente
encenados na vida pública justamente por uma motivação oposta: o que
se teme é ser “o mesmo”, o que ameaça é a possibilidade de
desmascaramento da mesmidade. Portanto, a exclusão do negro no Brasil
é a exclusão de alguém precisamente por estar imbricado, por ser
próximo e de dentro e, por isso mesmo, acenar com o perigo da
contaminação. Habitamos um mundo onde sobre nós pesa a suspeita de
ser uma humanidade defectiva, incompleta, empobrecida. Por isso, a
história do negro, de repente, poderia ser a nossa própria história, e seu
destino, guarde-nos Deus, nosso também.

3.2. A re-significação do conceito de nação – uma tentativa de acomodação

A organização tardia dos cultos afro-brasileiros ocorreu como reflexo da

situação de fragmentação cultural durante todo o período da escravidão, ainda que se

reconheça que os africanos nunca abandonaram sua cultura e suas crenças desde que

45
chegaram ao Brasil. Prandi (1996, 66) toca na questão dessa organização tardia das

religiões negras como estritamente relacionada à fixação dos africanos nas cidades, no

período final da escravidão, o que possibilitou uma maior interação entre os negros de

diversas origens em geral e, conseqüentemente, na organização dos cultos das diversas

nações. O autor realiza importante classificação para os estudos das religiões afro-

brasileiras distinguindo-os a partir dos diferentes troncos lingüísticos:

1. Tronco iorubá ou nagô – corresponde ao candomblé queto, efã e ijexá

na Bahia, nagô ou eba em Pernambuco, oió-ijexá ou batuque no Rio Grande do Sul, mina-

nagô no Maranhão, e a quase extinta “nação” xambá de Alagoas e Pernambuco. O

autor ressalta que o candomblé queto exerceu grande influência sobre as demais nações,

que passaram a incorporar diversos de seus elementos rituais.

2. Tronco banto: nação angola, que adotou o panteão dos orixás iorubás

(embora chame pelos nomes de seus esquecidos inquices, divindades bantos), também

incorporou práticas iniciáticas do queto. Sua linguagem ritual, também intraduzível,

originou-se predominantemente das línguas quimbundo e quicongo. Nessa “nação” tem

fundamental importância o culto aos caboclos, que são espíritos de índios, considerados

pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais brasileiros, portanto os que

são dignos de culto no novo território em que foram confinados pela escravidão. Foi

provavelmente o candomblé de caboclo que deu origem a umbanda. Há outras nações

menores de origem banto como a congo e a cambinda, hoje quase inteiramente absorvidas

pela nação angola;

3. Tronco ewê-fon ou jeje – os voduns são suas entidades centrais. As

tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com

predominância iorubá. Deste grupo estão as nações jeje-mahin, da Bahia e jeje-mina, do

Maranhão.

46
Ainda que ciente do fato de que a linguagem ritual dos cultos presente nas

cantigas não seja mais traduzível, visto terem se transformado com o tempo e muito ter se

perdido neste percurso histórico-escravocrata é importante evidenciar neste processo, que

as suas funções litúrgicas são de total domínio do povo-de-santo. Mesmo a questão

lingüística tendo se modificado, a classificação de Prandi não deixa de representar um

importante esquema para a compreensão das distinções entre as diversas nações afro-

brasileiras que por mais que tenham se transformado em território brasileiro, possuem

heranças lingüísticas distintas ainda presentes em seus cultos.

Na tentativa de uma classificação das religiões afro-recifenses Motta (1997)8

propõe uma divisão em quatro tipos principais, dos quais, o Xambá se encontra imerso em

diferentes níveis de aprofundamento9, nos dois primeiros:

1. Catimbó (ou Jurema) - culto aos mestres, que seriam, em princípio,

espíritos curadores de origem luso-brasileira, aos quais com o tempo se teriam

acrescentado entidades africanas, e dos caboclos, também curadores, mas como o nome

pareceria indicar, de origem indígena. Também tradicionais no Catimbó são os espíritos

ciganos, apesar de não ser sempre fácil diferenciá-los dos caboclos e dos mestres. O

Catimbó – também denominado Jurema – se enraíza em áreas rurais do Nordeste (...)

onde por mais tempo se conservou a identidade e memória indígena. (...) Aos mestres,

caboclos e ciganos, acrescentaram-se, na segunda metade do século XX (...) os exus

(masculinos) e as pomba-giras (exus femininos) (Motta 1997, 12-13);

8 Importante frisar que esta não corresponde a uma classificação êmica em sua totalidade.
9 O Xambá corresponde a uma nação afro-brasileira de culto aos orixás, contudo, à parte deste
culto também faz obrigações rituais para as entidades da Jurema num espaço distinto do qual se cultua os
orixás. É importante destacar que não é todos o povo-de-santo que participa deste culto que acontece à parte
do calendário religioso da casa.

47
2. Xangô - representa muito aproximadamente o equivalente do

Candomblé da Bahia. Isto é, trata-se do culto dos orixás que, como se sabe, são

divindades de origem, sobretudo iorubá, tradicionalmente sincretizadas com certos santos

do Catolicismo popular (1997, 16);

3. Umbanda Branca – submetida à influência Kardecista. Quanto mais

forte a Kadercização, maior a valorização da palavra, que se acompanha, ao menos

tendencialmente, da dissolução do sistema sacerdotal e hierárquico do Xangô e da virtual

abolição do sacrifício e outros aspectos considerados como demasiadamente primitivos

(1997, 21);

4. Xangô Umbandizado – ao mesmo tempo em que adota certos elementos da

sistematização Kardecista (classificação das entidades em linhas e falanges, maior ênfase

sobre a palavra, etc.), conserva os toques, as danças, a hierarquia (ou pelo menos a

nomenclatura) dos terreiros de Xangô e de Candomblé (1997, 23);

Para compreender os conceitos referentes ao xangô, no qual o Xambá está

inserido, é importante abordar também o conceito de nação e a partir de então, reforçar o

fato de que Cacciatore (1977, 263) e Prandi (1996, 66) atribuem origens quase opostas à

nação Xambá, mas que diante de seu contexto de sincretismo, anteriormente exposto,

procedem. Lühning (1990a, 5) sugere que o conceito de “nação” deve ser abordado como

designativo para grupos étnicos num sentido amplo. Ressalta as diferentes concepções

pelas quais o conceito passou durante todo o seu percurso histórico desde os tempos da

escravidão (1990a, 8) e define-o como:

Termo que foi utilizado para designar os escravos oriundos das diferentes
regiões da África, a fim de inseri-los, de certa forma, num determinado
grupo étnico. Era freqüente, porém, que uma nação não correspondesse
inteiramente ao grupo que designava. (1990a, 233).

48
Ao buscar um conceito amplo de nação devemos considerar seus diversos

significados e os interesses contidos nos mesmos. Podemos ressaltar as conotações

meramente comerciais e políticas em que predominava o interesse dos senhores donos de

escravos para diferenciá-los na hora da venda. É sabido que muitas vezes, as distinções de

nações se restringiam ao nome do porto de embarque, gerando deste processo

classificatório uma lacuna histórica no momento de precisar realmente as origens dos

africanos trazidos para o Brasil. Por outro lado, deve-se avaliar as transformações e re-

significações pelas quais o conceito passou na ótica dos próprios afros-descendentes.

Atualmente:

O conceito de nação limita-se quase que exclusivamente à sua acepção


de tradição religiosa, já que o fato de alguém pertencer etnicamente a
uma nação não pode ser mais comprovado (Lühning 1990a, 8).

Vivaldo Costa Lima (1984, 20) reforça que o conceito de nação foi

gradativamente perdendo sua conotação política para se transformar, sobretudo, num

conceito teológico. Em outro artigo o mesmo autor (1976, 70) relaciona as nações

africanas que foram trazidas ao Brasil com o tráfico negreiro e que hoje compõem grande

parte dos cultos afro-brasileiros. São elas:

1. Jeje - segundo Lima (1976, 72) o termo jeje está relacionado a grupos

étnicos do Baixo Daomé (fon e gã) e tem origem na língua iorubá “ájèji” que quer dizer

“estrangeiro”. O autor ressalta as origens pejorativas dos termos designativos das

diferentes nações. Por outro lado, Verger (1999, 23) afirma que o termo “djèjè”

corresponde à deformação da palavra “adja”, espécie de sino de campânula dupla ou

simples presente no contexto ritual africano que até hoje está presente no candomblé;

2. Nagô-ketu - O termo nagô pode ser tomado como sinônimo de iorubá.

Lima (1976, 74) assegura que esta nação teria origem de um antigo apelido pejorativo que

49
os iorubás do Daomé receberam dos fons (ou jejes): “anago”, “nago” ou “anagu”. Os

termos utilizados significavam “sujos”, “piolhentos”, pois segundo o autor “os nagôs, isto

é, os iorubás – quando chegaram de Egbabo, fugindo de suas guerras intertribais,

encontravam-se em estado lastimável”. Contudo, tal significado se transformou e o termo

nagô passou a ser assimilado pelos próprios iorubás;

3. Angola - De origem banto (grupo lingüístico mais ao sul da África,

distinto do jeje e nagô, respectivamente, do Daomé e Nigéria) Segundo Vivaldo Costa

Lima (1976, 21) os terreiros de Congo e Angola foram trazidos para o Brasil antes dos

nagôs e jejes.

Há um consenso entre os diversos autores que pesquisam as religiões afro-

brasileiras de que essas nações eram oriundas de regiões diferentes da África e com

características, divindades e línguas próprias. As distintas nações, no entanto, mesclaram-

se umas com as outras compondo um movimento de transformação e, sobretudo,

resistência cultural e religiosa negra que está presente até hoje nos cultos afro-brasileiros:

Em nenhuma instância, nem mesmo nos candomblés mais ortodoxos e


ostensivamente zelosos de suas origens, deixou de existir, factual e nítido,
o processo das modificações estruturais causadas pelas acomodações
situacionais; pela diminuição ou mesmo supressão de algumas
prescrições rituais, sobretudo aquelas referentes à duração de períodos de
reclusão ritual e interdito comportamental e por outros de ordem sócio-
econômica (Lima 1984, 13).

Sobre o compartilhamento entre as nações Cacciatore (1977, 79) aborda as

chamadas “nações compostas”, ou seja, nações que por uma questão de interação entre si,

em prol da manutenção do culto, optaram ou naturalmente reuniram elementos distintos

num mesmo culto. A Nação jêje-ijexá é um exemplo dessa mescla que reúne elementos

presentes tanto na Nação Jeje quanto na Ijexá. Essa nação se faz presente em Porto Alegre

– RS sob a denominação de Batuque jêje-ijexá (Braga 1998, 41), onde o Jeje (Benin)

encontra-se associado aos rituais das casas Ijexá (Iorubá) através da inclusão de algumas

50
cantigas rituais e da presença de alguns orixás, dentre outros elementos. O processo se

tornou também comum e atuante como resposta à situação dos africanos escravizados que

mesmo sendo de diferentes nações se adaptaram ao novo contexto religioso e conseguiram,

através desta adaptação, manter o culto.

Outro exemplo de adaptação pode ser notado no culto ao caboclo que, em

Salvador, segundo Garcia (2001, 2) apresenta uma fusão de elementos de procedências e

naturezas diversas: europeus (católico popular e espírita), africanos (ritual e toques),

indígenas e regionais (temática, adereços e designações) e, orientais (designações de

caboclos como sultão e turco). O Candomblé de Caboclo, reunindo essas diversas

influências em seu culto, contempla também uma característica marcante – o nacional:

Talvez a única característica comum seja o fato de serem brasileiros,


representando uma nova categoria mitológica que foi absorvida pelos
candomblés baianos.

Como citado anteriormente, Prandi (1996, 66) aponta a nação Xambá como

uma das nações em extinção do tronco iorubá que atua nos estados de Alagoas e

Pernambuco. Olga Cacciatore (1977, 263) por outro lado, também aponta esta nação como

culto em extinção e presente em Pernambuco, porém, ao invés de relacioná-lo à cultura

iorubá, como o fez Prandi, afirma ser um culto mesclado de elementos bantos e indígenas.

Prandi e Cacciatore entram, a priori, em contradição, pois iorubás e bantos possuem

origens e histórias distintas no Brasil. Os iorubás representam os africanos da nação Nagô,

composta por negros oriundos, sobretudo da Nigéria, África Ocidental, os chamados

sudaneses que falavam os diversos dialetos da língua iorubá. Os nagôs estariam

subdivididos em diversos grupos como Oyo, Ketu, Ijesha, Egbá, entre outros. (Lühning

1990a, 6). Os bantos corresponderiam às nações cambinda, congo, angola, benguela, entre

outros, da África Central. Segundo Pierson (1971, 120) os iorubás foram mais utilizados

51
nas cidades como escravos domésticos. Os bantos, por sua vez, foram mais utilizados nas

plantações, no interior do Brasil, tiveram contato com a cultura indígena e hoje são

relacionados com os cultos que mesclam estes elementos como o candomblé de Caboclo

(Garcia 2001). A divisão dos africanos que foram trazidos ao Brasil em sudaneses e bantos

se deve, sobretudo, a aspectos lingüísticos. Outra diferença entre os dois grupos, conforme

a concepção dos autores considerados ‘clássicos’, consistiria em suas posturas a priori

distintas: enquanto os sudaneses, sobretudo os islamizados, em alguns aspectos, assumiram

uma postura de maior resistência cultural em adotar elementos da cultura luso-brasileira, os

bantos, por sua vez, assimilaram alguns elementos da cultura brasileira a seu corpo de

referências culturais até pelo próprio contexto de integração que teve.

Em relação às origens da nação Xambá é possível considerar tanto as

afirmações de Prandi (1996) quanto às de Cacciatore (1977), pois no Brasil, os diversos

cultos isolados reuniram-se formando um novo complexo. Com isso, atualmente em um

mesmo terreiro são cultuados vários orixás cujo panteão pode variar de uma casa para

outra a depender de sua tradição. É notório nesta nação o fato dela cultuar os orixás em sua

tradição iorubá, mas também à parte, os caboclos e os mestres que representam figuras que

compõem o quadro mítico da tradição banto, que está presente em outro tipo de culto

denominado Catimbó ou Jurema. A respeito da presença de orixás e, à parte, caboclos em

uma mesma casa em Salvador, Garcia (2001, 187) ressalta que o fato de haver o culto aos

caboclos dentro do âmbito de uma casa tradicional de candomblé não deve ser concebido

como elemento que a descaracterize, pois ambos os cultos ocorrem em espaços sagrados

distintos. O mesmo aplica-se ao terreiro da nação Xambá de Portão do Gelo.

Em termos de tradições similares, encontramos no campo das religiões afro-

brasileiras, uma unidade diversificada, onde há uma identidade afro-brasileira marcada

pela junção de tradições oriundas da África que chegaram ao Brasil pelo contexto

52
escravocrata e que aqui desenvolveram um novo formato. Estas adaptações ocorreram com

designações e características próprias. A partir do contexto histórico os cultos se

transformaram. Diversas adaptações ocorreram seja a nível local - adaptar em função do

contato com outra cultura já estabelecida localmente, como é o caso da mescla da cultura

angolana com a indígena -, seja a nível nacional, no que era concebido como tal

“oficialmente” – em busca de uma identidade brasileira – como foi o caso da relação e

assimilação por grande parte das religiões afro-brasileiras em relação à religião católica.

Dentro desta discussão, as designações também são diversas e particulares em cada

contexto.

3.3. Sincretismo – a busca pelo “eu” nacional em terra estrangeira. . .


“O vocábulo “ambíguo” não goza de boa
reputação. Sinônimo de incerto,
indeterminado, duvidoso, dúplice, sugere o
que é pouco rigoroso, do ponto de vista
teórico, e pouco digno de confiança, no plano
moral.”
(Chauí 1996, 121).

O discurso sobre as tradições afro-brasileiras deve considerar a premissa da

pluralidade, da construção de identidades próprias que se firmaram em solo brasileiro ao

mesmo tempo em que são baseadas na tradição de antepassados africanos. Essa pluralidade

é resultante também do percurso marcado por um misto de “conformismos e resistências”

(Chauí 1996) e permeado por um caráter muitas vezes concebido como pejorativo – o de

ambigüidade. A ambigüidade em questão corresponde ao processo que contempla

elementos freqüentemente tomados como contraditórios, no caso das religiões afro-

brasileiras - a tradição, normalmente pensada em termos de cristalização de valores e

53
rituais versus a inovação/adaptação/sincretismo. Chauí (1996, 121) refuta a idéia de

ambigüidade como sinônimo de incerteza e argumenta que:

A clareza e distinção das idéias e das coisas exigem que sejam ou isto ou
aquilo. Jamais isto e aquilo ao mesmo tempo e na mesma relação (...)
ambigüidade não é falha, defeito, carência de um sentido que seria
rigoroso se fosse unívoco.

Continuando, ressalta também a limitação de um olhar dicotômico (1996, 122):

Quando alguém vê uma piscina, vê águas dançantes, ladrilhos


tremulantes, a paisagem circundante habitando as águas. O intelectualista
e o empirista dirão que percebem água, ladrilhos e reflexos. Além de
separar elementos, consideram que vêem os ladrilhos apesar da água e
que enxergam a água apesar dos reflexos. Com esse olho assim
purificado, conseguem, finalmente, não perceber o que estão vendo, isto é
a piscina. Pois a piscina é o ladrilho visto graças à água – caso contrário
não seria ladrilho-de-piscina -; é a água vista graças aos ladrilhos e à
paisagem dançante – caso contrário não seria água-de-piscina -; é a
paisagem vista graças às águas, estando aqui, na mobilidade líquida, e
ali, na região aérea circundante – caso contrário não seria paisagem-à-
volta-da-piscina. Perceber a piscina não é ver elementos discretos, mas
uma totalidade sui generis que transmuta o sentido que as partes teriam se
pudessem ser isoladas. A piscina é ambígua.

O xangô pernambucano, do qual o Xambá faz parte, pode ser pensado nessa

perspectiva por evidenciar certa ambigüidade em suas relações e percepções através do

sincretismo religioso10. Ainda que fruto de imposições é também o resultado de uma longa

história de re-significações, transformações, fusões e apropriações: ambíguo. Dentro de um

propósito que, a priori, correspondeu à imposição cultural e religiosa portuguesa aos

africanos que eram considerados um povo sem “alma” e sem cultura. Nas mãos dos

africanos e seus descendentes se transformou na busca de uma identidade brasileira, ao

mesmo tempo relacionada com o seu passado, a sua história, a sua herança, a sua

resistência. Esse processo de re-significações possui configurações distintas em cada

10 É preciso ressaltar que essa ambigüidade não é exclusividade dessa religião, a premissa básica é
que pureza absoluta é um ideal que não corresponde à realidade, visto que no decorrer da história os povos
travaram contato, se transformaram. Esse é o processo vivo e não cristalizado da cultura onde a religião
compõe um alicerce fundamental, mas não isolado e inatingível de vivenciar transformações.

54
contexto, não sendo exposto aqui de maneira generalizante. De certo, em solo brasileiro e

falando a língua portuguesa, os cultos se transformaram e seus adeptos representaram e

representam os juízes da medida de sua tradição e da aceitação de inovações que acreditam

ser importante e legítimo.

Por não fugir de nossa tradição histórica de incompreensões e preconceitos

essas religiões foram inúmeras vezes alvos de perseguições. Hoje a discussão sobre

“sincretismo” è protagonizada pelos próprios afrodescendentes que buscam a

reafricanização de seus cultos. Não refuto aqui o ideal de reafricanização, o acho de

extrema legitimidade, mas penso também no sincretismo como reflexo de postura marcada

por um misto de conformismo e resistência tomado de forma não dicotômica. É recorrente

a concepção de oposição neste processo: ou se é conformista - visão que alguns adeptos

mais radicais aos processos de reafricanização pelos quais os terreiros das religiões afro-

brasileiras têm assumido-, ou se é resistente no sentido de negar absolutamente o

sincretismo para afirmar a cultura africana ancestral. Defendo aqui a compreensão do

sincretismo que foi marcado pelo diálogo entre as duas posturas, diferenças e anseios

gerados por elas: complementaridade. Como Chauí (1996) já havia destacado é difícil

reconhecer isto e aquilo ao mesmo tempo, mas acredito ser esse o rico processo de

construção e reconstrução que percebo estar pulsando no âmago da construção Xambá.

Os elementos que auxiliam na construção de uma identidade cultural e

religiosa são diversos. Na Nação Xambá talvez o mais marcante seja que esta representa

uma nação à parte das demais, ou seja, ela não é apenas um terreiro, é uma nação com

traços característicos e história própria. Diante deste panorama o sincretismo religioso

como sinônimo de “fusão de configurações distintas, mas de algum modo compatíveis”

(Garcia 2001,114) se faz presente também em seu contexto:

55
Crucifixo e figa, símbolos do catolicismo popular que
ficam expostos na entrada do terreiro.

O sincretismo é reconhecido por seus adeptos e concebido como elemento que

caracteriza parte de sua história, embora gradativamente os mais jovens tenham expressado

o desejo de transformá-lo e reduzi-lo de alguma maneira, apesar de respeitarem-no.

Segundo Lühning (1990a, 12) o sincretismo corresponderia, desde seu surgimento, a um

estratagema no sentido de possibilitar a continuidade dos cultos trazidos pelos africanos

escravizados e reprimidos por seus donos. Sob tal perspectiva, seria uma:

Transposição da sua própria religião para a terminologia da religião de


seus amos, com a finalidade de, sob o pretexto da adoração dos santos
católicos, poderem dar continuidade ao culto aos orixás.

Deve-se destacar também o contexto em que esse processo ocorreu. Bastide

(1989, 55) nos alerta sobre a importância de fazer a distinção entre a herança portuguesa e

a africana:

Portugal importa sua sociedade ao mesmo tempo em que sua civilização.


A escravidão, pelo contrário, destrói a sociedade africana, e o negro não

56
pode trazer consigo, nos costados dos navios negreiros, mais que seus
valores culturais.

Pensar na falta de opção e na dor vivida pelo negro fatalmente nos remete a

uma negação da cultura portuguesa, aqui também transformada e influenciada pela cultura

negra. Contudo, é preciso buscar uma maior amplitude para reconhecer as transformações

como fatos históricos que também se modificaram. O sincretismo vem primeiro como uma

adoção forjada da cultura dominante pelos negros, mas a continuidade dessa postura só foi

possível diante das relações entre os diferentes sistemas religiosos:

A superposição de imagens e nomes de santos católicos aos de orixás


africanos, como divindades equivalentes, no fenômeno denominado
sincretismo religioso, tem sido geralmente explicada invocando-se fatores
históricos. Os escravos teriam precisado disfarçar seus deuses sob os
nomes e representações pictóricas de santos católicos para poderem
preservar sua religião. Assim, o equivalente católico escolhido para cada
divindade africana não foi necessariamente o mesmo em diferentes partes
da Afro-América, e mesmo dentro do Brasil, apresentando variações de
uma cidade para outra (Segato 1995, 140-141).

Segato menciona também a necessidade contemporânea que os cultos afro-

brasileiros passaram a ter de preencher as lacunas de sua mitologia fragmentada pelo

contexto escravocrata. Prandi (1996, 67) ressalta também o fato do culto católico aos

santos, numa dimensão popular politeísta, ter se ajustado ao culto dos panteões africanos

devido a similitudes presentes em ambos. Assim como os africanos louvavam os diferentes

orixás, os católicos das camadas sociais mais baixas louvavam os seus diversos santos.

Pensar nesse complexo processo sob a ótica de uma conotação reducionista é

menosprezar a capacidade de discernimento desses afrodescendentes que passaram a

adotar em sua concepção religiosa alguns elementos não mais da cultura dominante, mas

do que aqui se transformou num caldeirão cultural em busca de sua identidade. Prandi

contextualiza esse polêmico percurso de re-significação da seguinte forma:

57
Desde sua formação em solo brasileiro, as religiões de origem negra têm
sido tributárias do catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha
sido capaz de manter no Brasil nos séculos XVIII e XIX, e até hoje,
muito de suas tradições religiosas, é fato que sua religião enfrentou-se
desde logo com uma séria contradição: a própria estrutura social e
familiar às quais a religião dava sentido aqui nunca se reproduziu. As
religiões dos bantos, iorubás e fons são religiões de culto aos ancestrais,
que se fundam nas famílias e suas linhagens. O tecido social do negro
escravo nada tinha a ver com família, grupos e estratos sociais dos
africanos nas suas origens. Assim, a religião negra só parcialmente pôde
se reproduzir aqui. A parte da religião original mais importante para a
vida cotidiana, constituída no culto aos antepassados familiares e da
aldeia, pouco se refez, pois a família se perdeu, a tribo se perdeu.

Para Prandi (1996, 68) a questão do sincretismo está diretamente relacionada à

construção de uma identidade cultural, onde ser brasileiro representava ser católico:

Se a religião negra, ainda que em sua reconstrução fragmentada, era


capaz de dotar o negro de uma identidade negra, africana, de origem, que
recuperava ritualmente a família, a tribo e a cidade perdidas para sempre
na diáspora, era através do catolicismo, contudo, que ele podia se
encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade dos
brancos dominadores, responsável pela garantia de sua existência, não
importa em que condições de privação e dor. Qualquer tentativa de
superação da condição escrava, como realidade ou como herança
histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo branco. E
logo passava a significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer
brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem ser católicos.

Foto de Padre Cícero -


ícone do catolicismo
popular nordestino, que
pertence ao acervo do
terreiro e fica à
exposição logo na
entrada.

58
O ideal de pureza foi uma constante na história das religiões afro-brasileiras.

Esse ideal foi fundamentado pelo discurso dos intelectuais e pesquisadores que a partir de

Nina Rodrigues passam a construir uma idéia de supremacia cultural sudanesa. Gonçalves

Fernandes (1941, 39), fruto dessa geração, afirma que “o que não se pode negar é que o

negro sudanês tinha um aparelhamento cultural superior aos bantos”. Essa foi a postura

adotada pela sociedade em geral e inclusive pelo próprio povo-de-santo que atribui até hoje

um status maior para os candomblés Ketu. O autor acrescenta que:

As sobrevivências africanas no Brasil não se mostram em estado de


pureza. Aliás, desde os primeiros tempos da escravidão, as culturas
negras se apresentam misturadas. Misturadas e deformadas pela
influência da condição de escravo (Fernandes 1941, 36).

Kubik (1997, 381) refuta a concepção de cultura “pura” e defende a idéia de

multiculturalidade:

Toda e qualquer cultura, identificável no presente, ou no passado, na


Europa, em África, ou noutra parte do mundo, já é, por definição,
multicultural, ou seja, em cada período da sua história sempre foi o
resultado passageiro de inovação, e de empréstimos de outras culturas.
Por outras palavras, não existem culturas “puras”, tão pouco existiram no
passado.

Sobre os diversos intercâmbios que distingue como “sócio-lingüísticos” e

musicais, Kubik (1997, 385) ressalta que resultaram na construção de uma linguagem

própria. O grupo assimila elementos lingüísticos e musicais de um outro grupo e,

posteriormente, não mais se identifica com sua expressão anterior à mudança.

Para Carvalho e Segato (1994, 4) o ideal de pureza musical, fruto também

desse ideal de pureza cultural e religioso, é ilusório. Este foi alimentado pelas pesquisas

“estruturalizantes” da tradição musicológica que sempre buscaram uma “Ursatz”, ou

“princípio gerador”. Os autores acrescentam que essa almejada estrutura nuclear definiria,

segundo os preceitos dessas pesquisas, “um estado puro e reconhecível de todo estilo” que

59
seria “essencialmente platônico – por que recusa as anomalias próprias da empíria”. Nesta

perspectiva:

Os aspectos trans-étnicos dos fenômenos musicais sempre estiveram


presentes na criação, mas esse fato tem sido sistematicamente
obscurecido pelos idiomas e discursos sobre a música, tanto os dos
nativos, quanto os dos analistas (1994, 4).

O fato de percebermos esses intercâmbios na atualidade não quer dizer que só

agora passaram a existir. Ao deixarmos de buscar estruturas nucleares e percebermos as

estruturas marginais, ou seja, os processos “trans” das margens, nos deparamos com o que

a princípio não seria concebido como “coerente”, pois como já alertou Chauí (1996), seria

estranhamente “ambíguo”:

O fato de que agora se torne transparente a inclusão de elementos plurais,


trans-étnicos, nos gêneros musicais contemporâneos, não se deve tanto a
que esse tipo de síntese seja uma novidade, mas que pelos fatores
apontados (fatores tecnológicos, econômicos e filosóficos), o paradigma
intelectual da época mudou a nossa perspectiva e deslocou o foco para as
margens, para as passagens, ou seja, para os aspectos mais fluidos dos
processos de produção cultural e já não nos seus possíveis núcleos e
estruturas totalizadoras (Carvalho e Segato 1994, 9).

Assim como as demais nações afro-brasileiras, a nação Xambá está

intimamente envolvida com questões em torno da busca de uma identidade, a partir das tão

perseguidas e reforçadas origens. Essa busca pode ser explicada como uma resposta ao

histórico de perseguições e preconceitos sofrido. Pensar nas origens pressupõe pensar nos

processos de continuidade e mudança presentes na dinâmica cultural geradora da música.

Não cabe aqui um discurso de “tradicional” relacionado a uma certa “pureza”, mas um

discurso sobre a constatação da pluralidade cultural e musical em seus processos que

englobam tanto a manutenção da tradição quanto às renovações da mesma.

Tais questões tornam-se uma das tônicas da Etnomusicologia que tenta, através

de uma aproximação holística já discutida pela Antropologia, adotar também uma postura

60
de pesquisa abrangente que considere essas questões. Nettl (1983, 182) defende uma

concepção holística de estilo afirmando que o processo da mudança musical pressupõe

uma mudança estilística e associa essa concepção à antropológica de que a música muda

como um todo. O papel da música nesse contexto é considerado como sinônimo de

simbologia abstrata que engloba formas de caráter e valores culturais.

Continuando, Nettl (1983, 183) aborda ainda a questão da postura do

etnomusicólogo em relação à crença da mudança em seu aspecto geral. Aponta para

algumas posturas sob a perspectiva de perceber a música e, portanto, sua mudança atrelada

a fatores comportamentais e a práticas essencialmente humanas, não como elemento

independente. Na distinção proposta a mudança interna corresponderia a padrões culturais

estabelecidos, enquanto os resultados, os contatos externos estariam sujeitos a variáveis

constituintes das próprias relações interculturais:

Nós sabemos que são componentes que mudam, que existem razões para
mudar, direções típicas, fatores internos e externos. Isto pareceria que
uma possibilidade é ver o processo de mudança como dependendo de um
equilíbrio entre vários fatores (Nettl 1984, 186)11.

Diante destas constatações cabe ao etnomusicólogo refletir sobre sua própria

concepção de mudança procurando aprender sobre a percepção da continuidade e mudança

não só no âmbito musical, mas no cultural como um todo do outro subjetivo.

Ponderando sobre transformações e permanências, Merriam (1964, 304)

adverte sobre a importância da discussão das causas e resultados da mudança musical,

onde a dinâmica cultural deve ser enfatizada em lugar da abordagem meramente descritiva,

muitas vezes presente nas pesquisas científicas. Seguindo, acrescenta que a importância da

observação e análise da mudança dentro de todo um processo é importante para a

11 “We know there are components which change, that there are reasons for change, typical
directions, internal e external factors. It would seem that one possibility is to view the process of change as
depending on equilibrium among various factors.”

61
promoção de uma compreensão, não restrita apenas à constatação da mudança ou

continuidade em si, mas, sobretudo, para seus processos e razões (Merriam 1964, 318). A

constatação engloba processos que devem ser tomados a partir de si próprios e não em

comparação aos demais. O mesmo deve ser tomado em relação às religiões afro-brasileiras

e fatores inerentes às suas realidades, para então, compreender a sua música.

É importante abordar o sincretismo, pensando que o repertório musical gira em

torno dos orixás que são considerados como correspondentes aos santos católicos, não

numa esfera de igualdade, mas talvez em termos de tradução cultural, e que as

características dos mesmos, que muitas vezes se assemelham são enfatizadas nos cânticos,

bem como nas danças.

O repertório musical dedicado à Iansã nos toques públicos do Xambá é

composto de cerca de vinte e nove cantigas, cantadas, a priori, em língua iorubá com

diversas modificações que compõem esse processo de tradução cultural vivenciada pelas

religiões afro-brasileiras. O texto das cantigas é cantado num iorubá que se transformou a

partir da inserção de diversos elementos da língua portuguesa, compondo um

aportuguesamento de alguns termos, ou mesmo uma re-significação através de palavras de

sonoridades semelhantes entre iorubá e português. A identidade religiosa e individual das

filhas (os) e suas diferentes Iansãs está imersa no texto, pois é principalmente a partir do

texto que as pessoas identificam a toada específica de seu orixá. Essas toadas são cantadas

em sua maioria de forma silábica refletindo o caráter atribuído à Iansã, de força, ímpeto,

decisão e rapidez (Carvalho e Segato 1992, 40).

“Oiá Meguê numa batalha” é uma cantiga desta nação, representativa dos

vários processos apontados, como a tradução cultural, fruto das adaptações lingüísticas e

religiosas. Entoada em português, num canto silábico e enérgico, reforça a personalidade e

atuação de Mãe Biu, mulher guerreira, assim como a de Oiá, seu orixá. Através desta

62
cantiga (faixa 11 do cd em anexo) os filhos e filhas-de-santo do Xambá pedem força para

Oiá e Mãe Biu:

A indicação de semínima e tempo representa uma aproximação do andamento real. Optei


por fazer a transcrição sem barras de compasso e armadura de clave por razões que
explicitarei mais adiante. O agogô executa a linha rítmica de oito pulsos, tomada como base
para o canto juntamente com as palmas executadas pelo coro, compondo a estruturação do
acompanhamento. A presença de ambos (agogô e palmas) abaixo da melodia executada pelo
solista e coro ilustra a relação entre melodia e ciclo rítmico explicitando também a relação
prosódica que o texto estabelece com esses ciclos visto que os toques geralmente reforçam
as sílabas tônicas das palavras cantadas. A pequena vírgula que sempre aparece indica o fim
de cada ciclo rítmico do agogô. ‘Adarrum’ é o toque de 8 pulsos que acompanha a cantiga e
que será abordado mais adiante também.

A presente discussão é relevante por representar elemento latente no seio da

Nação Xambá, bem como nas demais nações afro-brasileiras que buscam suas matrizes

africanas e muitas vezes negam outras influências que não sejam consideradas africanas. A

linguagem nacional deve ser pensada como um todo no processo que contempla a

63
construção de identidade. Tudo se mescla no decorrer de uma história que perpassa a

constelação de processos e adaptações, para então promover a manutenção de uma tradição

que na realidade e felizmente sempre foi e é dinâmica.

O repertório musical da nação Xambá apresenta, como já mencionado, alguns

“empréstimos”. A discussão sobre empréstimos é complexa, não sendo possível afirmar

quem “tomou emprestado” de quem, por isto, utilizo este conceito atrelado a uma idéia de

“compartilhamento musical”. Esses empréstimos são, sobretudo, das nações Nagô e

Angola e podem se apresentar em diversas esferas. Um exemplo da presença Nagô neste

repertório musical é a utilização, pelo Xambá, dos toques Eco e Sete por Um, padrões

rítmicos de 12 pulsos que acompanham uma parte das cantigas desta nação. Contudo há

também um toque chamado Jeje, também de 12 pulsos mas que é acompanhado por

padrões de 16 pulsos e que a princípio indica também um compartilhamento com esta outra

nação afro-brasileira, mesmo que esse apenas consista no nome do toque. Há também o

toque da Despedida de 16 pulsos, padrão considerado por vários autores como

característico da tradição banto, portanto, da nação Angola (Vatin 2001, Garcia 2001 e

Mukuna 1979). Na parte dedicada à Jurema (universo de tradição Banto) há o toque

chamado Umbanda, de 8 pulsos (pode ser considerado um compasso binário característico

do samba). Este toque acompanha uma toada dedicada à Oiá de Mãe Biu (faixa 13 do cd

em anexo):

64
Tanto as cantigas quanto os toques podem estar também presentes em outros

terreiros, contudo, a identidade desta casa, é ressaltada, entre outros aspectos, através da

performance musical que atua como elemento diferenciador. A forma de cantar, tocar e os

andamentos das cantigas caracterizam o universo musical desta nação na ótica de quem a

integra.

65
Abordar a música no candomblé ou xangô pressupõe, sobretudo, considerar

aspectos diversos inerentes ao seu amplo contexto, seja quanto à esfera social, seja quanto

à social. Para entender esse universo religioso é imprescindível contextualizar seu espaço

no âmago da religião afro-brasileira, suas relações e similaridades marcadas por processos

de continuidade e mudança, suas adaptações e adequações a uma nova realidade e, por

conseguinte, a questão do sincretismo e da construção de uma identidade.

O xangô concebe a música como um elo entre o universo divino e o humano. A

música atua como meio de transporte do conteúdo histórico-literário, engloba os processos

de transmissão da tradição oral, relaciona-se com as questões sobre identidade afro-

brasileira e suas origens africanas. A música representa também um importante fator para a

interação social não acontecendo de forma isolada, com propósito e finalidade em si

mesmo, mas representa o elemento que perpassa diversos níveis de relações sociais,

míticas, musicais, culturais, entre outros, que interagem compondo um complexo cosmo de

percepções e olhares muitas vezes incompreendidos por uma análise externa. A respeito

desse conflito estético de olhares, Lühning (2001, 129) comenta:

Talvez uma festa de candomblé também seja o afloramento da


sensibilidade, o que, sem dúvida, leva à catarse, a qual ocorre em muitas
outras religiões. Entretanto, no candomblé, ela se baseia em todos os
aspectos visuais, sensíveis e audíveis, incluindo o tátil, quando um orixá
manifestado abraça os fiéis, compartilhando sua energia.

66
4. Uma história de resistência. . .

4.1. As religiões afro-brasileiras – discriminações e desencontros

“É lamentável não termos à nossa disposição


uma palavra mais precisa que “religião” para
designar a experiência do sagrado. Este termo
traz consigo uma história longa, se bem que
culturalmente bastante limitada. . .”
(Eliade 1989, 9).

Ao estudarmos uma manifestação religiosa é importante constatar as diversas

concepções a seu respeito na tentativa de melhor compreendê-la e de também compreender

os diversos olhares que pairam sobre as múltiplas formas de conceber o mundo.

O termo religião, etimologicamente, significa obrigação. Cícero faria alusão ao

termo relegere – aqueles que cumpriam cuidadosamente todos os atos do culto divino,
enquanto Santo Agostinho consideraria o termo religare – re-ligar o homem com o divino,

o que, a priori, havia se perdido. Para Nicola Abbagnano (1998, 846-52), religião é a

“crença na garantia sobrenatural de salvação” e, para possibilitar tal garantia, o fiel deveria

apoiar-se em “técnicas” que abrangeriam as práticas de culto. A preocupação ou garantia

religiosa estaria situada no campo do sobrenatural, ou seja, além dos limites dos poderes

humanos de atuação. A maior questão existencial consistiria no fato de que o poder

religioso atua segundo a crença, no inatingível do ser humano, no mistério da condição e da

impotência humana diante do universo que o cerca.

A definição exposta por Abbagnano refere-se, no entanto, a uma concepção

ocidental de religião, permeada pela culpa cristã e necessidade de salvação espiritual que

não se faz presente nos cultos afro-brasileiros. Como já afirmou Eliade (1989, 9), o termo

“religião” por si já é limitado, pois generaliza as diversas vivências culturais e religiosas e

muitas vezes a partir dessa generalização emerge o preconceito e a intolerância:

Fica a pensar-se como é possível aplicá-lo indiscriminadamente ao


Próximo Oriente antigo, ao Judaísmo, ao Cristianismo e ao Islamismo ou
ao Hinduísmo, Budismo e Confucionismo bem como aos chamados povos
primitivos. Mas talvez seja demasiado tarde para procurar outra palavra e
“religião” pode continuar a ser um termo útil desde que não esqueçamos
de que ela não implica necessariamente na crença em Deus, deuses ou
fantasmas, mas que se refere à experiência com o sagrado e,
consequentemente, se encontra relacionada com as idéias de ser, sentido e
verdade.

Incluindo na citação anterior as religiões afro-brasileiras e para isto seria

necessário fazer uma concessão à utilização do termo “primitivo” pelo autor, enfoque

recorrente em sua época, torna-se necessário traçar um paralelo entre duas concepções

religiosas distintas (Lühning, 2001):

68
1. As religiões ocidentais cristãs – doutrinárias, marcadas pela

racionalização da fé;

2. As religiões afro-brasileiras - que expressam o diálogo entre humano

e divino através da experiência corporal.

Vários são os pontos de distinção entre as duas concepções, entre eles podemos

citar a “incorporação” da (o) filha (o)-de-santo pelo orixá ou, como é recorrente na

literatura, o transe, presente nas religiões afro-brasileiras e definido por Lühning (2001,

115) como sinônimo da “expressão do religioso pelo corpo e pela dança ritual”.

Para Hildo Leal, filho-de-santo do Xambá, “incorporação” é o momento

“quando a divindade, ou o espírito, ou o orixá toma o corpo de uma pessoa”. Ressalta ainda

que popularmente se pode falar “receber o santo, ou o orixá ou, ainda o “santo chegar”. No

Xambá o termo “irradiação” é também utilizado para designar o momento em que o orixá

“está chegando” ou, no caso das pessoas que não “incorporam”, mas sentem a presença do

orixá, para indicar o que ele chama de “manifestação superficial do orixá, sem a

incorporação total”.

Outro ponto que distingue as categorias mencionadas1, podendo ser estendido a

religiões como o Islamismo e o Judaísmo, por exemplo, é a legitimação da fé através da

escrita, ou seja, dos considerados livros sagrados, pelas religiões ocidentais cristãs,

enquanto que nas religiões afro-brasileiras os preceitos religiosos são transmitidos

oralmente e aprendidos através, sobretudo, da observação.

1 Quero deixar claro que o fato de não considerar outras categorias religiosas não pressupõe sua
exclusão absoluta, mas que no presente contexto é esse o conflito em questão. O primeiro conflito
naturalmente se deu com a cultura indígena desde os tempos do Brasil-colônia até hoje, visto que continuam a
existir as diversas “missões” religiosas em áreas indígenas.

69
Um momento de
aprendizagem
no Toque de
Obaluaiê
(janeiro de
2004).

Ao se pensar e analisar a religião e os conflitos religiosos2, além de todas as

diferenças religiosas, existiu e ainda existe a questão política e econômica. As religiões

afro-brasileiras sofreram diversas perseguições e discriminações por representarem, a

priori, a cultura dos escravos e, posteriormente, dos negros de baixa renda. Evidenciam um

conflito de noções não só do campo religioso em termos de crença, mas também do campo

2 Não posso deixar de mencionar o conflito declarado pelas Igrejas Pentecostais às religiões afro-
brasileiras, consideras pelas primeiras como “religiões do demônio”.

70
estético. As inter-relações entre seus elementos acontecem de maneira singular e distinta

quando comparada às relações presentes nas religiões ocidentais cristãs.

A história de perseguições e incompreensões que marca o percurso religioso

das religiões afro-brasileiras pode ser explicada a partir de uma intolerância da cultura

ocidental quanto às diferenças inerentes nesses cultos. A partir da constatação de que o

outro é diferente, surge não só a incompreensão do ‘por que’ dessa diferença, mas ainda a

errônea e etnocêntrica visão de que a primazia do racional e doutrinário, elementos

intrínsecos à concepção religiosa ocidental, seja ‘evoluída’ e o diferente disso ‘primitivo’

ou puramente ‘sensual’:

As diversas perseguições aos candomblés e adjacências representaram


muito mais um conflito de percepções estéticas, onde para os ocidentais, o
ritmo é concebido como organização temporal (música ou poesia), na
cultura africana significa ‘impulso’ criador de movimento, algo tanto
material quanto ideal (Senghor por Lühning 2001, 118).

A respeito desse conflito Lühning (2001, 116) acrescenta que dentro de

sistemas filosóficos que atribuem a primazia ao racional, certamente “a inclusão do

corporal numa experiência religiosa pode parecer uma heresia, enquanto para as outras

culturas não ocidentais o porquê da exclusão da experiência corporal do divino pode ser

incompreensível”.

Chauí (1996, 131) refletindo sobre o conflito entre as concepções religiosas

brancas e negras assegura que:

Por possuírem estrutura religiosa onde prevalece a interação entre humano


e divino, opostos a verticalização que separa esses dois mundos nas
religiões “oficiais”, as religiões afro-brasileiras evidenciam uma
concepção distinta, um olhar religioso oposto ao pré-estabelecido.

71
A sociedade ocidental “esqueceu” que foi através da experiência com o sagrado

que houve a construção das diferenças conceituais e perceptivas entre o real e o concreto de

um lado, e o “caótico e perigoso fluxo das coisas”, de outro (Eliade 1989, 9). O sagrado

passa a representar elemento inerente à consciência, construindo um pensamento

sistemático sobre um mundo com sentido diante de sua complexa organização (Eliade

1969, 10). É a partir dos símbolos religiosos que se forma uma congruência entre estilos de

vida que vão do particular ao metafísico – do humano ao Cosmos e essa congruência pode

ser tomada grosso modo, como a religião em si que Geertz (1989, 104) define como um

sistema cultural. Sobre a atuação desses símbolos na vida do indivíduo acrescenta:

Os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para


sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que,
compreendendo-o, dêem precisão a seu sentimento, uma definição às suas
emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável
ou cavalheirescamente (1989, 120).

Historicamente a progressiva secularização do mundo ou a “luta para esvaziar o

Cosmos” trouxe muitas interpretações, por vezes limitadas. Em contrapartida a esta postura

é importante rever conceitos e lançar novos olhares sobre a religião. Eliade (1989, 34)

sabiamente afirma: “Com efeito, um facto religioso ‘puro’ é coisa que não existe. Um facto

religioso é sempre também um facto histórico, sociológico, cultural e psicológico, para

designar apenas os contextos mais importantes”.

Como referências clássicas aos estudos das religiões Weber (2002, 23-7) e

Durkheim (1996, 14) já no início do século XX (1904-05 e 1912, respectivamente)

imprimem colocações vanguardistas a respeito do pensamento religioso. Weber associou o

pensamento religioso ao desenvolvimento do sistema capitalista. O homem considerado

“pré-capitalista” passa a ser totalmente desvalorizado e a religião passa a ser configurada

72
como um elemento “desnecessário” ao capitalismo, que sempre esteve calcado no

pensamento racionalista - no lugar de Deus – a razão (2002, 60). Como resposta a essa

transformação capitalista que naturalmente atingiu a crença de muitos, veio a

racionalização da fé e, a partir daí, a incompreensão das “outras” religiões que não

adotassem a mesma postura, formulando uma concepção de superioridade X inferioridade.

Durkheim (1996, 14) baseado em Weber, aprofundou algumas questões sobre a

vida religiosa. Segundo o autor:

Não há um instante radical em que a religião tenha começado a existir, e


não se trata de encontrar um expediente que nos permita transportar-nos a
ele em pensamento. Como toda instituição humana, a religião não começa
em parte alguma. Assim, todas as especulações desse gênero são
justamente desacreditadas; só pode consistir em construções subjetivas e
arbitrárias que não comportam controle de espécie alguma.

Continuando (1996, 476), reforça também a importância de se perceber o

conflito entre ciência e religião, onde emerge no pensamento científico racionalista (e

capitalista) a “idéia inexata” sobre a religião como uma realidade ou “sistema de fatos e

dados” que buscam organizar o cotidiano do homem, nascendo a própria ciência desta

realidade.

A propósito das transformações no pensamento religioso apontadas por Weber

e Durkheim, Rubem Alves (1999, 9) no século XX, narra a seguinte trajetória:

Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião eram
raros. Tão raros que eles mesmos se espantavam com a sua descrença e
escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato era. Tanto
assim que não foram poucos os que acabaram queimados na fogueira,
para que sua desgraça não contaminasse os inocentes. (. . .) Mas alguma
coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O céu, morada de Deus e seus
santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas.
Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre
em lugares distantes com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia
avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era
necessário como hipótese de trabalho.

73
O autor ressalta dois pontos essenciais sobre o pensamento religioso e,

naturalmente, sua pluralidade:

1. A dessacralização do mundo atrelada a novos dogmas – aqueles

restritos ao universo científico, emergindo aí a clássica dicotomia conhecer X crer;

2. O desenvolvimento tecnológico carregou consigo a ausência de Deus

e são diversos os símbolos desta ausência, entre eles, o desligamento do homem da

natureza, sendo este justamente um dos pontos de conflito com as religiões afro-brasileiras.

A premissa de Geertz (1989, 139) de que “a diversidade das crenças está

intimamente relacionada à diversidade humana” relaciona-se com a simples e ao mesmo

tempo desafiadora proposta de Rubem Alves (1999, 117) do abandono do ateísmo

científico para que possamos compreender religião:

E é isso que teremos de fazer agora, pedindo o silêncio do cientista que


em nós habita, a fim de permitir que fale, talvez, um pedaço de nós
mesmos: pedaço que, sem invocar nomes sagrados, insiste em desejar, em
esperar, enviando seus gritos silenciosos de aspiração e protesto pelos
buracos sem fim dos momentos de insônia e sofrimento. Pode ser que não
acreditemos em deuses, mas bem que desejaríamos que eles existissem.
Isso tranqüilizaria nosso coração. Teríamos certezas sobre coisas que
amamos e que vemos, com tristeza, envelhecer, decair, sumir. . . Ah! Se
pudéssemos ficar grávidos de deuses. . . E é assim que passamos para um
outro mundo em que a fala não está subordinada aos olhos, mas ligada ao
coração.

Especificamente sobre o estudo das religiões afro-brasileiras devemos refletir

sobre os conselhos de Verger (1999, 16), fundamentados em sua larga experiência do

candomblé, de que para compreendê-las devemos substituir postulados cristãos de bem e

mal, pecado e divina providência por conceitos de eficácia que englobam a “luta pela

existência em que tudo se ganha, se merece, se conquista.”

74
As religiões ou as diversas experiências religiosas, distintas e muitas vezes

opostas pressupõem experiências musicais diferentes. Distante da experiência musical

ocidental, especificamente da católica - religião “oficial” do Brasil por muito tempo, que

louvava a Deus através do canto gregoriano no máximo acompanhado por um órgão, ou das

religiões protestantes e seus inúmeros corais para louvar a Deus, as religiões afro-

brasileiras louvam os orixás com tambores que são considerados sagrados – uma heresia

para os ocidentais. Os cânticos são acompanhados por tambores que exercem uma função

imprescindível no culto – são eles que chamam os orixás “a terra”:

Muito mais do que meros instrumentos musicais que servem para


acompanhar as cantigas e danças religiosas. São considerados seres
dotados de alma e personalidade. São batizados e, de vez em quando é
necessário infundir-lhes uma nova força por meio de oferendas e
sacrifícios (Verger, 1999, 25).

Em presença da necessidade de catalogação do mundo, inerente ao pensamento

racionalista e científico que acreditava e ainda acredita que dessa forma o domine e o

entenda, surge a oposição básica entre religião e magia (Dantas 1988, 179). A considerada

“magia” ou “fetiche” traz consigo outro elemento incompreensível para os brancos, a

música em iorubá ou misto de iorubá e português. Cantados fora do âmbito da tão venerada

harmonia tonal, os cânticos sagrados são executados em sua maioria em escalas

pentatônicas e hexatônicas e através de uma emissão vocal muito particular ao universo

afro-brasileiro. Alvarenga (1950, 214) referindo-se à “música de feitiçaria” afirma que:

A música e a dança são os principais fatores dos fenômenos de possessão


que se observam nesses cultos mágicos. O ritmo violento dos tambores e a
repetição intérmina dos cantos, produzindo fadiga da atenção e
amortecimento conseqüente da consciência, levam iniciados e crentes a
um verdadeiro estado de hipnose.

75
Gonçalves Fernandes (1937, 15), por sua vez, descrevendo o universo musical

do xangô pernambucano declara:

Estavam deante a um centro de macumbeiros. Assim o provaram o


batuque monótono dos tambores e as toadas africanas – preces e
invocações a Ogum – que vezes lentamente, vezes agitada, num delírio de
turba enfurecida, subiam para o céo, entoadas em conjunto por dezenas de
bocas.

Nesse contexto, existia ainda a questão política, imersa na “permissão” que os

negros escravizados tinham para realizar os seus “batuques”. Apesar da incompreensão dos

brancos sobre aquelas culturas africanas, havia o interesse primeiro de fortalecer as

diferenças étnicas numa política de “dividir pra reinar”. Sobre a música e a dança, numa

perspectiva inerente ao pensamento do início do século XX, Nina Rodrigues (1988, 156)

afirma:

Assim, nos negros, que são amantíssimos da dança. Ao som dos ruidosos
tambores e das melopéias africanas, tão monótonas, passam, eles noites
inteiras e às vezes, a fio em trejeitos e esgares coreográficos, em dança e
saltos indescritíveis.

As declarações de Alvarenga, Fernandes e Rodrigues refletem bem a concepção

que se tinha sobre a música religiosa afro-brasileira, reduzida ao conceito de “batuque” e

“feitiçaria”, termos de conotação pejorativa que estabelecem parâmetros entre religião e

música “oficial” versus “religiosidade, feitiçaria, seitas” e seus “batuques”. Assim sendo,

ressurge em relação à abordagem dessa música religiosa, a necessidade de mais uma

abstração, desta vez musical, de nossa concepção tonal de música, afinação, entre outras,

para aprendermos a ouvi-la e a entender o seu significado sagrado para o universo afro-

brasileiro – a música como veículo do sagrado, materializada através da dança – conjunto

de gestuais correspondente a cada um dos orixás.

76
Inerente ao discurso da intolerância ou da redução das religiões afro-brasileiras

e suas músicas está a imposição da “fronteira invisível” apontada por Carvalho e Segato

(1994, 4):

Quando se pensa o mundo a partir de um centro, postula-se a existência de


uma fronteira: paradoxalmente, essa fronteira parece esfumaçar-se quando
dela tentamos nos aproximar.

A incompreensão se fundamenta na falta de conhecimento e, sobretudo, de

identificação. Há um esforço de se construir barreiras, de tornar tais experiências religiosas

e musicais, as “outras”, como algo que não seja similar ao “oficial”, ou seja, a cultura

religiosa e musical de origem do pesquisador. A concepção “oficial” age como se no plano

humano a cultura ocidental se encontrasse num plano “elevado”, pois muitas vezes, além da

escrita e seu poder de legitimação doutrinário há o acesso a elementos como a tecnologia

que muitas vezes não se relacionam, não integram o universo pesquisado. Essa falta de

acesso não configura mais uma característica de país “exótico” e distante. Muitas vezes

esses “outros” religiosos e musicais estão na cidade, no seio de um contexto urbano, mas

por uma questão histórica e econômica de discriminação e exclusão social também se

encontram isolados de forma similar aos “lugares míticos e musicais distantes, nunca antes

desbravados”.

Nessa história de desencontros e perseguições emerge também a possibilidade

de encontro. Surge a busca da construção de uma identidade nacional em inícios do século

XX, justamente o período mais árduo de perseguições vivenciado pelas religiões afro-

brasileiras. A partir do desejo dos brasileiros de conhecer o Brasil e, por conseguinte de

construir símbolos nacionais, intelectuais e artistas começam a desenvolver pesquisas sobre

77
esses “outros universos” e a utilizar os elementos presentes na cultura afro-brasileira e na

cultura considerada “popular”.

É importante reforçar que as perseguições às religiões afro-brasileiras e ao

candomblé ou xangô, especificamente, incidiram inclusive no que se refere aos aspectos

musicais, como já foi visto, sendo até mesmo desconsiderados como religião. Nas décadas

de 1920 e 1930, esse quadro sofreu, por outro lado, significativas reformulações, dando

lugar a um gradativo interesse pela música exótica de origem africana e pelas religiões afro-

brasileiras em geral.

Um dos importantes marcos para as discussões acerca da importância e

reconhecimento de tais origens, foi o I Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife-PE,

em 19343. Como reflexo da preocupação emergente de não apenas valorizar, mas também

de conhecer as músicas do xangô, surgem nessa época iniciativas de pesquisa e registro

dessas músicas. Atreladas a essas iniciativas, estão presentes questões fundamentais da

pesquisa etnomusicológica, no que se refere ao trabalho de campo, ao papel do pesquisador

e suas relações com as pessoas que realizam essas “outras músicas” e, por conseguinte, a

transcrição musical.

Para poder compreender a perspectiva etnomusicológica presente no Brasil nas

primeiras décadas do século XX, é imprescindível perceber a dimensão histórica na qual

esta se encontrava inserida. Um primeiro momento seria marcado pela construção de uma

identidade nacional, representada por uma arte brasileira calcada na valorização de

elementos presentes no que seria a verdadeira “alma brasileira” ou, segundo Burke (1999,

3 Os jornais recifenses, Diário de Pernambuco, de 16/11/1934, e Jornal Pequeno, de 12/11/1934 e


16/11/1934, abordam esse Congresso e a sua importância sobre as questões da intolerância religiosa e
valorização de suas músicas.

78
17), a “descoberta” da cultura popular de tradição oral. A cultura, sob esse ponto de vista,

representaria um sistema de significados e valores compartilhados, bem como suas formas

simbólicas. A cultura popular, por sua vez, seria sinônimo de uma cultura não oficial

proveniente das classes subalternas (Burke 1999, 21 - 25).

A Missão de Pesquisas Folclóricas, realizada em 1938, representa, nesse

cenário, um marco para os estudos sobre música e cultura de tradição oral e para a

construção do embrionário pensamento etnomusicológico brasileiro. Idealizada por Mário

de Andrade, a Missão viajou pelo Norte e Nordeste do Brasil pesquisando e registrando a

música de tradição oral (Sandroni 1999)4. Para a presente pesquisa, especificamente, a

“Missão” é importante por ter incluído em sua constelação musical de tradição oral, os

cantos do xangô do Recife, através de vários registros e inclusive, de transcrições musicais,

um outro elemento importante para se pensar a etnomusicologia brasileira há quase sete

décadas atrás.

Comentando sobre Mário de Andrade e a pesquisa etnomusicológica no Brasil,

Reily (1994, 90) afirma que embora os métodos de pesquisa utilizados sejam hoje

obsoletos, podemos relacioná-los às perspectivas etnomusicológicas, estando a Missão de

Pesquisas Folclóricas inserida nessas perspectivas. O contexto da Missão estava

diretamente relacionado às questões de identidade nacional, apontadas pela autora (1994,

76), onde se buscava a afirmação de um caráter nacional fundamentado nas raízes

populares – as “verdadeiras origens”, o desejo de mostrar “o Brasil aos brasileiros” (Toni,

4 A Missão era constituída por um grupo de quatro pessoas, escolhidas por Mário de Andrade: Luis
Saia, como técnico geral, Martin Braunwieser, músico, Benedicto Pacheco, técnico de gravação e Antonio
Ladeira como auxiliar.

79
34)5. Contudo, o perfil do pesquisador naquele momento estava voltado ao âmbito de uma

abordagem minuciosamente descritiva, reflexo de uma preocupação puramente de coleta de

dados que englobava a transição do considerado patrimônio imaterial (tradição oral) para

sua materialização, através da coleta etnográfica6.

A respeito da importância do trabalho de campo em Etnomusicologia, Nettl

(1983, 249) afirma que este representa processos de aprendizagens e interpretações que

devem ser vividas e, portanto, dificilmente podem ser ensinadas, pois estão baseados nas

experiências pessoais, fatores de extrema relevância para a compreensão da música do

outro. Sob tal perspectiva, o informante (insider) representa não mais uma “fonte de

informações” de maneira restrita, mas pessoa através da qual o pesquisador (outsider)

aprende uma cultura e seus modos (Nettl 1983, 250).

Continuando, Nettl ressalta também a importância de uma abordagem musical

interdisciplinar, onde se realize o estudo da cultura musical como um todo, a partir da

constatação da inexistência de caminho único sobre as tarefas e os papéis da

Etnomusicologia. Dessa forma, considerações sobre essa diversidade de possibilidades são

fundamentais, ponderando que a pesquisa não representa mera coleta de dados e, o respeito

para com o “outro” seja de extrema relevância para a fomentação de uma interação social

etnográfica, ou como já havia definido Oliveira (2000, 24) um “encontro etnográfico”.

5 Argumento utilizado pela Missão com o então interventor de Recife, Agamenon Magalhães, para
registrar os xangôs, proibidos de funcionar pela polícia.
6 Béhague (1999), apesar de afirmar que a história das pesquisas etnomusicológicas no Brasil foi
“pouco coerente até o ano de 1980”, destaca diversas abordagens de extrema relevância para os estudos sobre
a música na América-Latina e no Brasil, especificamente. O autor (1999, 42) aponta para o período entre os
anos de 1920 e 1930 como marcados, sobretudo pela produção literária das primeiras histórias musicais dos
países latino-americanos, abordando também a música de tradição oral e declara, no entanto, que essas
produções eram marcadas por uma metodologia limitada e descritiva e dispensava pouca atenção ao trabalho
de campo e à perspectiva êmica.

80
A discussão é importante para a compreensão de abordagens realizadas tanto no

passado, o contexto da Missão de Pesquisas Folclóricas, quanto no presente. A

Etnomusicologia representaria o equilíbrio entre o campo e o laboratório, atuando na busca

de bases teóricas que contribuiriam diretamente para formulação de problemas e, no

contexto brasileiro, para a compreensão daquele “meu outro interno” (Oliveira 2000, 19)

que sou eu, ao mesmo tempo.

As críticas às abordagens realizadas por pesquisadores como Mário de Andrade

e utilizadas em iniciativas como a Missão de Pesquisas Folclóricas são fundamentadas na

realidade brasileira de muitos anos. Todavia, é importante ressaltar também a

representatividade de tais registros, ainda que necessitados de maior contextualização,

desconsiderando muitas vezes dados sobre informantes para possíveis reconstruções

históricas e sua devolução aos seus respectivos descendentes. Esses enfoques somam-se de

maneira significativa à construção de uma abordagem etnomusicológica brasileira, servindo

de referência a inúmeros estudos e discussões sobre o tema. No contexto do xangô

pernambucano, marginalizado e perseguido durante longo tempo, a Missão realizou

importantes registros que, talvez para a época, serviram de denúncia da realidade sofrida

por esta tradição, caso da foto que segue:

81
Foto dos tambores
apreendidos pela
polícia em Recife.
Tirada pela
Missão em
fevereiro de 1938
(Toni, 37).

Durante longo período, as pesquisas musicais realizadas no Brasil limitaram-se

ao registro sonoro de maneira descontextualizada, como já destacado por Béhague (1999),

desconsiderando-se seus usos e significados. Ao realizarmos uma abordagem musical,

torna-se imprescindível adotar uma ótica relativizada no que se refere ao contexto, à

concepção vigente do período em que foi realizada e, enfim, ao produto final dessa

abordagem que seria na etnomusicologia a transcrição musical em diálogo com todos os

demais fatores presentes no universo musical. A fonte escrita fornece dados valiosos que

devem ser recondicionados ao seu tempo para então representar elemento somatório ao

discurso musical.

Pensar na música do xangô pressupõe pensar não apenas em aspectos

melódicos, nos cantos dos orixás, mas em seu diálogo com os aspectos rítmicos que, por

sua vez, dialogam com os aspectos corporais e religiosos: “a dança não existe sem a

música, que inclui canto e ritmo, e, tampouco, sem a manifestação do orixá mediante estado

de transe” (Lühning 2001, 121). Dessa forma, embora os registros da Missão representem

82
marcos na história dos estudos sobre música, por outro lado representam também uma

lacuna para o estudo etnomusicológico. A música era abordada de forma isolada, ou como

diria Merriam (1969, 216) “a música per se”, limitada ao âmbito dos elementos

estritamente musicais e desprovida de maiores contextualizações culturais. Como resposta a

esses procedimentos o referido autor (1969, 226) propõe a busca de uma compreensão não

apenas do som musical com um objetivo em si próprio, mas nas relações com o por que do

fazer musical e toda a gama de elementos carregados de significados inerentes a ele.

Nessa fase, era comum o registro apenas dos textos, ou no máximo, das

melodias das diversas músicas de tradição oral, religiosas ou não. A questão rítmica era

ignorada pelos estudiosos quase por completo, abordagem adotada inclusive por Martin

Braunwieser, músico que realizou as transcrições musicais do xangô do Recife (Alvarenga

1946). Braunwieser transcreveu “de ouvido” as melodias cantadas por alguns informantes

do xangô, não se preocupando com a transcrição dos tambores. Isso talvez possa ter

acontecido devido à repressão aos cultos afro-brasileiros gerando registros

descontextualizados, ou seja, fora do âmbito do terreiro e da religião, a preocupação maior

consistindo na coleta dos cantos7.

Por outro lado, no contexto da Missão, a transcrição musical era baseada em

preceitos ocidentais, apresentando limitações por não buscar uma representação desta

escrita mais próxima da outra realidade musical. Para ilustrar melhor essa discussão,

apresento uma toada de Iansã transcrita por Braunwieser onde há nitidamente a tentativa de

7 Procedimento similar foi realizado pelo compositor Camargo Guarnieri, em Salvador, na


transcrição da música do candomblé (Lühning 1997 e Garcia 2001), que transcreveu apenas as melodias de
mais de uma centena de cantos dedicados aos orixás e também pelo etnomusicólogo Melville Herskovits
(1946), que apesar de falar sobre os tambores e seus executantes, enfatiza os textos das cantigas em
detrimento dos aspectos rítmicos.

83
enquadrá-la numa perspectiva musical ocidental, com a utilização de barras de compasso,

síncopas e armadura:

A presença da síncopa, representante de uma concepção ocidental de música,

não se enquadra na estrutura rítmica da música afro-brasileira, mesmo assim está presente

na maioria das transcrições de Braunwieser. Os toques, de extrema importância nesse

contexto, como já mencionamos anteriormente, foram desconsiderados nessas transcrições,

impossibilitando assim a compreensão da música na sua totalidade. O conceito da time-line,

utilizado como uma resolução musical importante nesse contexto, pois se baseia na

acentuação assimétrica de uma pulsação geralmente tocada pelo agogô, servindo de base

para o ritmo do grupo instrumental e da dança (Garcia 2001 e Lühning 2001), também foi

desconsiderado. Considerações referentes às escalas utilizadas pela música afro-brasileira

também representam uma constante nas discussões acerca dessas transcrições. No caso da

84
toada de Iansã, transcrita por Braunwieser, é utilizada a armadura de clave, procedimento

não recomendado atualmente, por restringir a perspectiva melódica mais uma vez a uma

concepção ocidentalizada.

A transcrição realizada por Braunwieser é concebida aqui como um importante

registro para discutir e reformular não apenas a concepção de notação musical, que

naturalmente deve ser pensada dentro do contexto da época, mas também a questão da

manutenção da tradição, visto que a mesma cantiga, dentre algumas outras, está presente no

Xambá e apresenta similitudes com a da Missão:

85
A transcrição desta cantiga de Iansã presente no Xambá apresenta critérios

utilizados em todas as demais cantigas apresentadas no corpo deste trabalho, na busca de

um distanciamento da notação ocidental que não dá conta de uma estrutura musical afro-

brasileira. Naturalmente que este ‘distanciamento’ também carrega suas limitações, como a

questão do timbre dos tambores e das alturas melódicas que não são evidenciadas. Buscar

uma outra forma de transcrever esse tipo de música representa uma iniciativa que julgo

legítima para repensar a notação ocidental, os valores que carrega e a transcrição musical

em si. Dentre os critérios para a transcrição musical que foram adotados está a ausência de

compasso, barras de compasso e armadura de clave. O canto em geral no total das cantigas

se baseia no padrão do agogô de 8, 12 ou 16 pulsações. No caso em questão a toada “Oiá é

do mal” é realizada num padrão de 8 pulsos, pensando na linha-guia realizada pelo agogô e

também nas palmas executadas pelo coro. Os acidentes quando presentes, são repetidos

apenas quando começa cada novo ciclo realizado pelo agogô. As alturas das melodias

muitas vezes são colocadas de forma aproximada, assim como o próprio ritmo. O canto do

solista geralmente apresenta nuances rítmicas particulares aos estilos dos diferentes solistas

do Xambá, difíceis de precisar numa partitura. É importante ressaltar que as transcrições

apresentadas no decorrer do texto foram feitas a partir de diversas gravações tanto em

contexto como fora de contexto, portanto não correspondem à gravação anexada a este

trabalho. A gravação serviu como suporte para analisar o conjunto instrumental juntamente

com os solistas e o coro.

Anthony Seeger (1992, 89), referindo-se a transcrição, ressalta que uma

aproximação descritiva deve contemplar o processo de escrever sons e escrever como os

sons são concebidos, feitos, apreciados e como influenciam as pessoas e os processos

musicais. A discussão é extremamente válida para a compreensão da transcrição e,

86
sobretudo, sua concepção. No caso do Xambá seria atrelar a transcrição não apenas aos

seus aspectos musicais, mas a sua concepção e execução e relaciona-los à figura de Iansã,

considerando tanto a mitologia quanto à história desse terreiro. Com isso, surgem novas

questões conceituais, não sendo possível abraçar um conceito estático e auto-suficiente

quanto à adoção de uma determinada abordagem. Tais questões representam a busca de

indicações de possíveis inclinações teóricas e metodológicas na construção de um olhar

holístico e, portanto, não excludente. Para tanto, é importante relativizar também os

diversos olhares presentes no decorrer de uma história musical brasileira. O “olhar e ouvir”

da Missão contemplou não apenas a música popular de tradição oral, mas também a música

dos cultos afro-brasileiros. E nosso olhar sobre o “olhar” realizado pela Missão deve

considerar não somente suas lacunas, mas o valor que tais iniciativas representaram no

âmbito do estudo etnomusicológico no Brasil.

4.2. A nação Xambá - a incompreensão de uma identidade diferenciada

A Nação Xambá foi levada a Pernambuco, em 1920, pelo babalorixá Artur

Rozendo, que fugindo da repressão policial aos cultos afro-brasileiros no Estado de

Alagoas, mudou-se para Recife8.

8 Depoimentos do povo-de-santo a partir de registros do terreiro Xambá e de estudiosos sobre o


assunto.

87
Braga (1995, 21) referindo-se à perseguição aos cultos afro-brasileiros ressalta

o conflito de padrões e concepções sociais brancas de classe econômica alta e negra de

classe econômica desfavorável:

A repressão policial aos candomblés da Bahia tinha propósitos mais


largos e ambiciosos e o que se pretendia verdadeiramente era atingir
mortalmente as bases de uma cidadania diferenciada.

Continuando, Braga (1995, 27) relata o mesmo contexto de perseguição

religiosa e as conseqüências desta para a música, no Estado de Alagoas, Estado de origem

de pai Rozendo:

Já nos vizinhos Estado de Alagoas, a perseguição foi tão cruel que o


povo-de-santo teve praticamente que reestruturar o culto; eliminando o
uso dos instrumentos de percussão como os atabaques, e “tirando” os
cânticos em baixa voz, para que não fossem admoestados pela polícia.

Gonçalves Fernandes (1941, 09), sobre o contexto afro-alagoano assegura que a

partir das perseguições surgiu uma “nova seita afro-brasileira – o Xangô-rezado-baixo”:

Si no Recife houve época em que os “xangôs” viveram mascarados em


sociedades carnavalescas e centros espíritas, para fugir à ação repressora
da polícia, na cidade de Maceió a grande perseguição desencadeada em
1912 (que levou para o abandonado museu da Sociedade Perseverança
magníficas peças de escultura religiosa e objetos de culto negro) e
vigilância mantida até agora, crearam um novo aspecto, inteiramente
inédito, em liturgia negro-fetichista: o Xangô-rezado-baixo, com que os
negros de Alagoas dissimulam as suas práticas.

Prandi (1991, 250), por sua vez, reforça a posição da nação Xambá diante das

demais nações afro-brasileiras como praticamente extinta e relaciona tal “extinção” à

perseguição policial sofrida pela mesma. O autor afirma que o Xambá corresponde à:

Antiga nação de candomblé, hoje praticamente extinta, que teria se


formado no Estado de Alagoas até os anos vinte, de origem
predominantemente iorubana. Sua quase extinção se deve à forte
perseguição policial que os candomblés ou xangôs sofreram nos anos

88
vinte. Algumas casas migraram para Recife, aonde vieram a se refundir
com nações locais, formando a nação atualmente denominada nagô
pernambucana.

A afirmação de Prandi é refutada pelo povo-de-santo do Xambá que faz questão

de reforçar o fato de que já são quatro gerações que fazem parte desta nação e que a mesma

estaria longe de entrar num processo de “extinção”. Contudo, ao pensarmos no contexto

afro-brasileiro, percebemos como mencionado anteriormente, que não existem outras casas

Xambá e no entanto, nem por esse motivo podemos condená-la a uma classificação de

“praticamente extinta”. Embora esta nação não tenha uma projeção nacional como algumas

outras, continua a manter sua tradição e a se popularizar. Por outro lado, as considerações

de Prandi são importantes também para entender as diversas adaptações que o contexto de

perseguição policial obrigou as nações em geral e, especificamente, a Xambá a adotar. Este

representa um outro ponto polêmico, pois embora filhas os filhos-de-santo reconheçam

empréstimos ou compartilhamentos musicais com outras nações, afirmam categoricamente

que sua tradição religiosa é própria, particular. Em conversas com o povo-de-santo do

Xambá, por várias vezes os ouvi mencionar referências negativas por parte de pessoas de

outras nações, que afirmam ser o Xambá uma “invenção” dos “xambanianos”. O próprio

Prandi (1991, 222) relata entrevista com um filho-de-santo em São Paulo que fala sobre o

Xambá de forma pejorativa. Segundo esse depoimento, esta nação “pegou prestígio, mas

não “fazia” (iniciava) ninguém”. Essa visão reflete os conflitos internos do âmbito afro-

brasileiro no que diz respeito às diferenças rituais, dentre outras.

Seguindo, o autor ressalta também que a iniciação religiosa, por exemplo, onde

no Nagô-ketu se raspa e pinta a cabeça do iniciando, em algumas nações, entre elas o

Xambá, não se “raspava nem pintava” por conta da polícia:

89
Não se raspava em Pernambuco nem em Sergipe até vinte ou trinta anos
atrás, mesmo nos grupos de origem iorubana, e até hoje não se raspa em
algumas casas de origem muito antiga” (. . .) “raspar a cabeça e abrir curas
era exatamente o mesmo que entregar-se à polícia, o poderoso inimigo
dessa religião.

A perseguição policial aos cultos afro-brasileiros legalizou não apenas o

preconceito acerca dessa identidade incompreendida pelo branco, mas legitimou o

tratamento psiquiátrico para pais, mães-de-santo e o povo-de-santo em geral,

institucionalizando a intervenção de médicos nessa área.

Em Pernambuco foi criado o Serviço de Higiene Mental (SHM), representado

pela figura ilustre do médico psiquiatra Ulysses Pernambucano de Melo (1892-1943), que

atuava nos terreiros, exercendo um certo controle prévio à atuação policial. Dantas (1988,

175) afirma que uma das preocupações de Ulysses Pernambucano era continuar a

abordagem de Nina Rodrigues lançada na Bahia por Artur Ramos, seu discípulo. A autora

(1988, 177) sugere que em Pernambuco parece ter havido maior intensificação dos estudos

afro-brasileiros numa perspectiva médica e vinculados a uma instituição psiquiátrica,

mesmo que não tenha partido de lá tal abordagem. Segundo Valente (1982, 24):

Em Pernambuco, foi Ulisses Pernambucano quem primeiro se preocupou


com o problema do negro. Particularmente, com o problema das religiões,
cujo controle científico conseguiu realizar no Serviço de Higiene Mental,
sob sua direção.

De acordo com Gonçalves Fernandes (1937, 109) “o estado de santo observado

nas cerimônias religiosas dos terreiros é um dos ângulos de interesse para o Serviço de

Higiene Mental”. Segundo a concepção do autor, refletindo o pensamento de sua época, a

“possessão” e a “magia” corresponderiam a “processos ligados à histeria e a estados

90
diversos de modificação da personalidade” (1937, 112)9. Sobre a atuação do SHM o autor

(1937, 119) declara:

O Serviço de Higiene Mental de Pernambuco investigando as religiões


chamadas inferiores, no Recife, acompanhando de perto as suas práticas e
atividades, tem em mãos o seu controle para qualquer intervenção
profilática necessária.

Gonçalves Fernandes (1937,13) que como tantos outros, era médico psiquiatra

e colaborador de Ulysses Pernambucano, relata as relações entre a polícia, representada

pela “Secção de Costumes e Repressão a Jogos” e o SHM em Pernambuco:

Meses depois o capitão Jurandyr Mamede, então secretário da Segurança


Pública solicitou a cooperação da Assistência a Psicopatas, afim de que a
repressão pudesse tornar-se mais eficiente, separando-se os
desequilibrados mentais daqueles que fossem simplesmente e
conscientemente exploradores do primarismo e da ignorância dos
fanáticos.

Embora tenha havido julgamentos restritos, de âmbito psiquiátrico, das

religiões afro-brasileiras em geral, não se pode deixar de pensar nas contribuições que

alguns destes representantes realizaram nesse contexto10. Um exemplo representativo dessa

contribuição foi a realização do já mencionado I Congresso Afro-brasileiro. Em meio a

protestos dos babalorixás (Gonçalves Fernandes 1937, 30) Ulysses Pernambucano foi o

organizador do evento que reuniu diversos estudiosos, assim como a participação, ainda

9 Esta relação entre abordagens psiquiátricas e transe ainda não está totalmente abolida. Em agosto
de 2003 (de 27 a 31) tive a oportunidade de participar do Encontro Alaiandê Xirê, no terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá. Na mesa redonda sobre “êxtase e transe como veículos do sagrado” dentre os palestrantes havia a
presença de médicos psiquiatras. Lins (1992) observou festas públicas do Xambá para a elaboração de sua
dissertação em Antropologia pela UFPE sobre transe, orientada pelo médico e antropólogo René Ribeiro.
Essa pesquisa enfocou o transe como fenômeno psiquiátrico.
10 É possível encontrar na literatura registros pioneiros realizados por médicos psiquiatras sobre
candomblé e transe, sendo Nina Rodrigues (1862-1906) a grande referência para as gerações seguintes.

91
que restrita, de pais-de-santo. O próprio babalorixá Artur Rozendo teve o seu terreiro

visitado pelos participantes (Diário de Pernambuco de 16 de novembro de 1934).

Por outro lado, é também a partir do contato entre médicos e cultos afro-

brasileiros, que se obtém uma visão um pouco menos preconceituosa em relação aos

mesmos. Por mais esdrúxulo que pareça, o reconhecimento restrito dessas religiões por

parte da sociedade gera uma “regulamentação” dos cultos, ao invés da total proibição.

Segundo Gonçalves Fernandes (1937, 30) essa “regulamentação”, (de 21 de julho de 1935)

gerou uma restrição ao calendário religioso e, conseqüentemente a redução dos toques

públicos, bem como de terreiros propriamente ditos, pois existia uma distinção entre os

“respeitáveis” e os “exploradores”. De acordo com Dantas (1988, 179) essa diferenciação

entre os terreiros e os pais e as mães-de-santo apresentava-se como uma oposição entre

religião e magia era concebida como bem e mal, respectivamente. A autora ressalta que

essa distinção partia dos próprios pesquisadores que buscavam a “pureza” africana

traduzida como religião, enquanto que os demais cultos situavam-se à margem e eram ainda

mais perseguidos:

O eixo central da argumentação, no fundo, é o mesmo utilizado por Nina


Rodrigues e Artur Ramos. O Xangô africano mais puro é verdadeira
religião. A perda dessa pureza leva à identificação do pólo misturado e
moderno com feitiçaria, degenerescência e exploração, passível, portanto,
de combate, não só pela polícia, mas por aqueles que trabalhavam pela
elevação moral do negro. Desse modo, no Recife, a tentativa de
legalização dos cultos, na década de 30, utilizando, sobretudo a oposição
entre tradicional e moderno, remete, através de uma outra linguagem, à
legitimação dos “puros” e desclassificação dos “misturados”.

Ainda comentando a “regulamentação” dos cultos Gonçalves Fernandes (1937,

23) acrescenta:

92
Como formalidade, a polícia exige para os centros espíritas e seitas
africanas a apresentação dos seus regulamentos, documento essencial para
a concessão da licença de livre funcionamento.

O próprio Xambá expõe até hoje, na parede do terreiro, uma licença para seu

funcionamento até a data de 31/12/1975, cerca de quatro décadas após o livro de Gonçalves

Fernandes ser publicado (1937) e três décadas após o fim do Estado Novo (1937-1945),

período em que a perseguição aos cultos foi intensificada:

Licença de
funcionamento do
Terreiro do
Xambá em nome
de Severina
Paraíso (Mãe Biu)
de 1975

Gonçalves Fernandes (1937, 13) nos presenteou também com uma pesquisa

realizada em jornais11 recifenses da década de trinta, relatando várias notícias sobre o

fechamento de terreiros e descobertas de que grande parte dos mesmos funcionavam em

sedes de maracatus ou se autodenominava “centro espírita” na tentativa de passar

desapercebidos aos olhos desatentos da polícia.

11 Lühning (1996, 195-220) realizou extensa pesquisa em jornais baianos sobre a perseguição
policial no contexto afro-baiano relativo ao período entre 1920 a 1940.

93
Sob a orientação do prof. Dr. Carlos Sandroni, da UFPE, realizei pesquisa

(Rosa, 2000) em jornais recifenses de 1937 e 1938 na tentativa de comparar a represália

policial aos cultos nesse período12. A partir desta pesquisa foi possível constatar que com o

surgimento do Estado Novo varguista (em fins de 1937), a ocorrência dos fechamentos de

terreiros era praticamente diária nas seções policiais dos jornais. Constatamos também que

o terreiro de Artur Rozendo, localizado na rua da Regeneração, número 1043, no bairro de

Água Fria, Recife, foi fechado em 1938 pela polícia, tendo seus objetos de culto

apreendidos e sendo preso o babalorixá. A prisão de Rozendo foi anunciada numa nota

policial (Jornal Diário da Manhã, 13/02/1938) cuja manchete refletia bem o julgamento da

sociedade para com as religiões afro-brasileiras: “Xangô, babalorixá e polícia – importante

diligência da delegacia de investigações e capturas – verdadeira profanação aos sentimentos

católicos do nosso povo”.

Por conta da atuação do SHM era comum que seus membros recebessem

convites oficiais dos babalorixás e ialorixás, que percebendo a situação de perseguição

policial, procuravam manter uma relação cordial com os mesmos. Gonçalves Fernandes

(1937, 21) transcreve duas cartas redigidas por Pai Rozendo, importantes documentos para

a história do Xambá:

Carta 1:

“Illmo. Sr. Dr. Ulisses Pernambucano,


Venho por meio desta comunicar ao Dr. que tendo que
realisar hoje um toque em meu terreiro, com alta
consideração convido o Dr. e a família a fim de assistir ao
referido toque.
Sem mais ordens,
Artur Rozendo Pereira.”

12 Foram pesquisados os meses de fevereiro e março de 1938 do Jornal do Commércio e no Jornal


Pequeno e, no Diário de Pernambuco, novembro de 1937.

94
Carta 2:

“Recife 11 de Maio de 1934.


Saudações Dr. Olicio. Participo que toco amanhã 12 do
corrente principio às 10 horas e convido-lhe para vir apricial
o nosso toque.
Do criado,
Artur Rozendo Pereira.”

Entender este contexto representa premissa básica para pensar na história e na

tradição da Nação Xambá que, como tantas outras nações afro-brasileiras, sofreu os

percalços de um caminho difícil desde suas origens de cisma africano até a coerência da

manutenção de uma identidade diferenciada. Neste contexto, Pai Rozendo representa uma

figura de grande importância para a história desta nação por ter iniciado, em 1927, Maria

das Dores da Silva (Maria Oiá). Esta ialorixá, posteriormente, fundou sua própria casa de

culto aos orixás, Seita Africana Santa Bárbara, em 1930 que ficava localizada na Rua da

Mangueira, nº 137, no bairro de Campo Grande, em Recife, Pernambuco.

Maria Oiá foi obrigada pela polícia a fechar seu terreiro em 1938 e, segundo as

(os) filhas(os)-de-santo do Xambá, entrou em depressão e morreu no ano seguinte. Após o

falecimento de Maria Oiá, em 1939, Severina Paraíso (Mãe Biu) deu prosseguimento à

tradição do culto aos orixás conforme os preceitos da nação Xambá que foram transmitidos

por Rozendo para Maria Oiá e, para ela, Mãe Biu. Maria Oiá e Mãe Biu, duas filhas de

Iansã, apresentavam também relação de parentesco antes mesmo da religiosa, pois o pai de

Mãe Biu quando viúvo de sua mãe – falecida quando Mãe Biu era ainda muito jovem -,

casou-se com a irmã de Maria Oiá. Com o falecimento de Maria Oiá, seus filhos e filhas-

de-santo passaram a procurar Mãe Biu e sua irmã consangüínea, Mãe Tila, ambas iniciadas

95
por Maria Oiá, que quando tiveram condições reabriram o terreiro, doze anos após seu

fechamento devido à perseguição policial.

Mãe Biu foi uma referência religiosa e familiar fundamental para esta nação.

Congregou em torno de si e da religião sua numerosa família e várias (os) adeptas (os). Foi

a fundadora, em 1950, do terreiro que deu continuidade ao que havia sido forçosamente

fechado pela polícia no contexto da repressão aos cultos afro-brasileiros. Este terreiro

instalou-se inicialmente na Estrada do Cumbe, 1012, no bairro de Santa Clara, em Recife,

Pernambuco e, no ano seguinte transferiu-se para o Portão do Gelo, no bairro de São

Benedito, em Olinda, Pernambuco, endereço onde funciona ininterruptamente desde sua

reabertura. O nome do terreiro de Maria Oiá foi mantido13. Atualmente o povo-de-santo

acrescentou a designação em iorubá: Ilê Axé Oyá Meguê, que significa “Casa do Axé de

Oyá Meguê”, ao nome original do terreiro.

Os filhos e filhas-de-santo mesmo após o falecimento de Mãe Biu, em 1993,

guardam sobre sua memória uma referência fundamental que alimenta profundamente o

sentido de continuidade à tradição do Xambá. Com o falecimento desta ialorixá o terreiro

passou a ser dirigido por um babalorixá – Adeildo Paraíso ou Pai Ivo que além de filho-de-

santo é também filho consangüíneo de Mãe Biu. Pai Ivo é considerado o primeiro homem a

dirigir o terreiro das filhas de Iansã – Maria Oiá e Mãe Biu. Segundo Hildo Leal14, Pai

Rozendo apesar de ter iniciado Maria Oiá no contexto da repressão não exerceu por muito

tempo o papel de seu babalorixá. Quando na reabertura do terreiro por Mãe Biu, em 1950,

já havia falecido, segundo Carvalho (1984, 57) em 1947.

13 É importante ressaltar que Santa Bárbara, no sincretismo religioso com o catolicismo representa
o orixá que rege o terreiro - Iansã.
14 Historiador e filho-de-santo do Xambá em entrevista realizada em 23/07/04.

96
Pai Ivo juntamente com Mãe Tila, falecida em março de 2003, deram

prosseguimento aos preceitos desta nação. Atualmente o babalorixá divide com outra tia

materna e mãe-de-santo da casa, Dona Lourdes, Seu Maurício e Dona Nair – padrinho e

madrinha do terreiro respectivamente -, as responsabilidades do culto em diversas esferas –

sejam organizacionais, sejam religiosas.

Retomar a discussão de nação é importante para refletir sobre a realidade do

Xambá e a busca que os seus filhos e filhas realizam para se legitimarem perante o contexto

afro-brasileiro. Como já exposto anteriormente, o povo-de-santo desta nação tem

consciência e se ressente com o fato do Xambá ser considerado por alguns autores como

quase extinto e afirma que cresce gradativamente o número de filhos e filhas-de-santo que

são iniciados neste terreiro. Em Olinda por exemplo, pode-se dizer que foi aberta uma nova

casa de uma filha-de-santo feita no terreiro Xambá no ano de 2000 - Dona Marinalva de

Oxum, tendo total respeito e incentivo dos demais filhos-de-santo do terreiro. Segundo

Hildo Leal15:

Pode-se considerar uma Casa Xambá, mas ainda não obedecendo todos os
preceitos. Por que Dona Marinalva já tinha uma casa de Jurema. Ela teve
que adaptar a casa dela pra receber o orixá. Mas ainda é uma exigência do
orixá dela que ela tenha um salão separado para o orixá. No mesmo salão
que toca para orixá, não se toca pra Jurema. E nesse momento ela ainda
tem as duas coisas no mesmo lugar, embora em pejis separados, mas ela
ainda não centrou nessa exigência que se faz lá em casa. Mas todo culto lá
é feito exatamente como se faz lá em casa.

Diante das circunstâncias, Dona Marinalva ainda não possui filhos e filhas-de-

santo no culto aos orixás, mas apenas no culto da Jurema. Embora cultue Oxum, seu orixá

principal e os demais orixás que possui, está sempre presente nos toques do Xambá, assim

15 Entrevista realizada em 23/07/04.

97
como, tanto quando realiza o toque pra Oxum em sua casa, no mês de fevereiro, quanto as

obrigações aos seus outros orixás, todas(os) as(os) adeptas(os) do Xambá prestigiam a sua

festa e as suas obrigações.

Outro caso de afiliação religiosa do Xambá é o de Messias, filho de Xangô, que

após o falecimento de Mãe Biu, mesmo tendo levado os pertences de seu orixá para sua

própria casa, freqüenta os toques e as demais cerimônias deste terreiro. Hildo Leal

acrescenta que:

A mãe dele já tinha sido feita no Nagô. Mesmo que tenha sido feita no
Nagô, o orixá aceitou receber obrigação no Xambá. Depois do
falecimento de Mãe Biu resolveram (ela e os filhos) sair do Xambá e
levaram seus assentamentos pra casa. Ele cultua como Xambá. Ele
pessoalmente pode ser considerado como uma continuação Xambá, pois
declarou que sempre realizou obrigações como Xambá, e Ivo é seu pai-de-
santo. No ano passado ele deu uma obrigação grande e Ivo e todo pessoal
do Xambá foi lá. Tudo foi feito como costumes e rituais do Xambá. Mas a
casa não é dele, é da mãe dele.

Vale ressaltar que embora esta nação possua apenas um terreiro, visto que os

casos de Dona Marinalva e Messias ainda não configuram novos terreiros em termos

absolutos, não significa que esteja em extinção. Sua dinâmica reside no fato de que ela é

composta por filhas e filhos-de-santo que em sua maioria possuem laços consanguíneos e

não sentem necessidade de abrir seus próprios terreiros, preferindo manter a característica

nuclear do tempo da falecida ialorixá Mãe Biu. Entre o povo-de-santo do Xambá há um

vínculo constante com o terreiro do Portão do Gelo. Mesmo que passem a realizar seus

próprios toques e iniciar novos filhos e filhas-de-santo, o que ainda não é o caso, o vínculo

será mantido, pois a hierarquia é mantida: Dona Marinalva pode ser mãe-de-santo, mas seu

pai-de-santo continuará sendo Ivo, sua mãe-de-santo Dona Lourdes, seu padrinho o Seu

98
Maurício, sua madrinha a Dona Nair e os rituais são realizados seguindo a orientação dessa

hierarquia.

Durante mais de quarenta anos Mãe Biu esteve à frente do terreiro e tornou-se

mãe-de-santo de prestígio dentro do contexto afro-pernambucano. Distinto do contexto

soteropolitano que teve em sua tradição grandes nomes de ialorixás, o pernambucano foi

marcado por uma maioria de babalorixás:

A Ialorixá Mãe Biu torna-se uma sacerdotisa pernambucana de destaque,


nos anos 1950/60, período no qual apenas os homens eram conhecidos
como grandes lideranças religiosas. Além do mais, entre as várias pessoas
iniciadas na tradição Xambá, em Pernambuco, a mais importante
liderança e divulgadora deste culto, destacando-se primeiro por ter sido
entre as principais lideranças religiosas, a que mais tempo passou à frente
da casa. Segundo, por ter evitado “traçar” o culto xambá com outras
influências religiosas afro-brasileiras. Fato ocorrido com vários sacerdotes
e sacerdotisas, quando Arthur Rosendo faleceu (Costa 2003, 1).

Valéria Costa (2003)16 ressalta em seu artigo dois pontos importantes para a

compreensão da história do Xambá e a atuação de Mãe Biu, não apenas destacando a

postura de resistência cultural e religiosa adotada pela ialorixá diante dos demais terreiros

de xangô, mas sobretudo a tradição que esta filha de Iansã deixou para as gerações futuras.

Mãe Biu legou a seus descendentes uma afirmação de singularidade a ser seguida, uma

concepção de “tradição Xambá” única que não foi “traçada”, ou seja, que não se mesclou,

com as demais nações afro-brasileiras. Essa concepção tão complexa de “tradição pura

Xambá” é recorrente entre o povo-de-santo, ainda que todos admitam compartilhamentos

musicais, por exemplo, em seu culto. Mesmo que existam e que tais compartilhamentos

sejam reconhecidos por filhas e filhos-de-santo as diferenças são reforçadas e são

16 Historiadora e filha-de-santo do Xambá que vem desenvolvendo pesquisa de mestrado na área


de história sobre o terreiro e a atuação de Mãe Biu.

99
delineadoras na construção da identidade cultural, religiosa e musical desta nação afro-

brasileira.

O texto que segue representa uma ácida crítica às consideradas

“descaracterizações” adotadas por pais e mães-de-santo, segundo a ótica do repórter do

Diário de Pernambuco (Cidade Alerta, sábado, 18 de outubro de 1956) que considera Mãe

Biu como uma das poucas que conseguiu manter a postura considerada tradicional na

manutenção do culto Xambá. É com orgulho que filhos e filhas-de-santo tomam esta

declaração como parte de sua história:

Afora terreiros famosos dos tempos passados que ainda hoje existem
como os de Manuel Mariano, em Beberibe, da Nação Nagô; de Severina,
em Beberibe, da Nação Xambá; de Mãe Lídia, em Regeneração, da
Nação Nagô; José Romão, na Estrada Velha da Nação Gegê-nagô; Pai
Apolinário em Casa Amarela da Nação Congo; Vicente Tavares na Linha
do Tiro da Nação Gegê-nagô e o terreiro de Das Dores na Linha do Tiro
da Nação Nagô. São os que ainda permanecem na antiga linha,
cultuando as mais puras tradições do culto negro. Os demais vêm
fazendo concessões, degenerando, descaracterizando-se e alguns já
passam do misticismo negro às mistificações mais tortas, constituindo-se
verdadeiros casos de polícia” (Grifo meu).

100
4.2.1. A localização atual do terreiro – construção cultural do espaço urbano

“Afastados de outras casas, no meio de sítios


ou cercados, em arrabaldes de grande
densidade de população pobre, eram
apontados os Xangôs no Recife como centro
de bruxaria. Dessas casas modestas de taipa
dos negros a imaginação dos moradores mais
próximos fazia séde de praticas demoníacas.”
(Gonçalves Fernandes 1937, 6).

O atual terreiro da Nação Xambá, como já mencionado anteriormente, fica

situado na localidade de Portão do Gelo, no bairro popular de São Benedito (Olinda –PE).

Desde sua fundação, o terreiro possuiu diversas sedes que sofreram repressão policial e

foram forçadas a fechar.

Terreiro Xambá, Portão do Gelo, bairro de São Benedito, Olinda, PE.

Já na década de cinqüenta, Ribeiro (1970, 37) levantou a questão da localização

dos terreiros: “Localizam-se eles de preferência nos subúrbios da cidade, principalmente

101
naqueles ocupados pela nossa população de nível econômico e social mais baixo”. A

importância do anonimato dos terreiros por conta da perseguição policial também é

enfatizada (Ribeiro 1970, 38): “Razões econômicas e o propósito de não atrair a atenção,

especialmente da polícia, parecem-nos as principais razões de tal anonimato”. Há ainda na

localização dos terreiros a conotação social, visto que a grande maioria serve como moradia

para os filhos-de-santo, caso também da Nação Xambá,:

De um modo geral a mor parte dessas casas de culto são edifícios não
somente adaptados às exigências do culto afro-brasileiro, mas que ainda
servem de residência aos sacerdotes e suas famílias de recolhimento para
os fiéis submetidos aos rituais de iniciação, ou ocasionalmente de abrigo
aos membros do culto em dificuldades econômicas ou de outra ordem.
(Ribeiro 1970, 38).

Segundo Brandão (1997, 45), a localização das casas de culto é resultado de

fatores históricos e, portanto, não casuais. A maioria dos terreiros afro-brasileiros encontra-

se em regiões suburbanas não apenas por estas corresponderem a bairros populares onde os

negros residiam e ainda residem, mas devido à rigorosa repressão policial e do afastamento

dos subúrbios em relação ao centro. Continuando (1997, 45), assegura que os cultos afro-

brasileiros no Recife muitas vezes tinham como sede agremiações carnavalescas das quais

os fiéis eram integrantes, sendo esta, também uma das formas de manter o anonimato do

culto devido a já citada perseguição policial.

Gonçalves Fernandes (1937, 10) destacou que a pressão da polícia aos cultos

afro-brasileiros foi tão grande que os terreiros adotaram a estratégica “camuflagem” através

de sedes de maracatus ou mesmo de centros espíritas que em sua maioria ficavam

localizados nos subúrbios, em “mocambos” de extrema pobreza. A “camuflagem”

denunciada pelo autor foi o mecanismo mais eficaz encontrado como saída para a

manutenção dos cultos afro-brasileiros - sua resistência:

102
Da pressão da polícia resultou camouflarem de sociedade carnavalesca e
centro espírita os terreiros afro-pernambucanos. Maracatú e Centro
Espírita aparecem de tal maneira que fez desconfiar.

Seguindo, Gonçalves Fernandes (1937 15-6) narra também uma atuação

policial num terreiro de xangô que se denominava centro espírita:

No Centro Espírita Caridade e Amor em Jesus Cristo – hontem, Quarta-


feira, seria dia de função, segundo adeantara o denunciante. Uma turma de
investigadores da Secção de Costumes, cerca das 24 horas, encaminhou-se
para o Centro Caridade e Amor em Jesus Cristo. Ainda a uma certa
distância perceberam os policias os sons das cantigas e o ritmo
compassado dos pés batendo em cadencia no solo. Já nas proximidades da
casa – um mocambo de miserável aparência – verificaram que a taboleta
afixada à porta de entrada – Centro Espírita Caridade e Amor em Jesus
Cristo – era como de costume pura e simples tapeação.

Gonçalves Fernandes (1937, 18) também apresenta uma lista com a localização

de diversos terreiros do Recife. Dentre eles existem dois registros importantes para o

Xambá: os terreiros de Artur Rozendo, Seita Africana São João, localizado na Rua da

Regeneração 1045, Água Fria ver p.24 e o de Maria das Dores, Maria Oiá, na Rua da

Mangueira 137, Campo Grande, Recife. Sobre a questão da localização, o autor acrescenta

a seguinte observação:

Ocupavam ruas afastadas de arrabaldes distantes do centro da cidade,


sendo que na zona correspondente às estradas de Beberibe e Campo
Grande se encontram em sua grande maioria esses terreiros, alguns de
difícil acesso aos que não conhecerem bem a topografia da região (1937,
20) (Grifo meu).

Para Brandão (1997, 45) o “grande celeiro de concentração desses cultos ficava

na Zona Administrativa de Beberibe e Encruzilhada” áreas de extrema pobreza e de grande

concentração negra. Essa região parece ser a mais antiga que possui xangôs no Recife e

representa importante referência para a presente pesquisa pela grande proximidade que tem

com o lugar onde funciona atualmente o terreiro da nação Xambá, pois o bairro de São

103
Benedito – Olinda, PE é apenas separado do bairro de Beberibe pelo rio de mesmo nome e

há algumas décadas atrás era normal considerá-lo pertencente à referida região. A

proximidade com a área tradicional reforça a questão histórica em relação ao terreiro em e

sua tradição em relação ao contexto afro-pernambucano, um ponto importante para a

compreensão do seu passado e da sua realidade no presente.

Trecho do rio Beberibe, um dos mais importantes de Pernambuco que corta


praticamente toda a cidade de Recife e divide as duas cidades Recife e Olinda.

Para refletir sobre a localização do terreiro Xambá é imprescindível considerar

sua história e as pessoas que a construíram com inúmeros obstáculos a superar. As questões

referentes à localização do terreiro são importantes não só para compreender o contexto

histórico do xangô pernambucano, especificamente do Xambá e da região onde funciona

desde 1950, mas também da conotação social de seu funcionamento e de sua estrutura

interna e econômica. Mãe Biu foi uma figura de representatividade ímpar tendo sido até

104
líder da associação de moradores e organizadora do carnaval do bairro, extremamente

articulada e de iniciativa, seguida por muitos dos seus filhos e filhas-de-santo:

Mãe Biu além da atuação como Ialorixá, atuou também como uma
articuladora sócio-cultural, contribuindo para o desenvolvimento urbano
dos bairros populares, através do assentamento e construção da sede
própria de seu terreiro, em 1952 no Portão de Gelo – Beberibe. Desta
forma, após o assentamento da nova sede da Casa de Culto Xambá, a
Ialorixá passou a organizar a ocupação do espaço geográfico aos
arrebaldes de seu “xangô”, auxiliando seus filhos e filhas de santo na
construção de suas habitações. Tal atitude deu início ao processo de
urbanização do bairro, antes apenas um local baldio. (Costa 2003, 2).

Costa (2003, 1) destaca o fato de que diversos autores apontam para a relação

entre os terreiros de cultos afro-brasileiros e os maracatus e afoxés, em Pernambuco;

escolas de samba, no Rio de Janeiro, bem como, dos afoxés e blocos afros, na Bahia. Assim

como os demais terreiros afro-pernambucanos, o Xambá estava imerso no universo de

perseguição policial e também se utilizou de uma manifestação musical profana para louvar

suas entidades e naturalmente ter uma forma de entretenimento com música e dança. No

Xambá, a mesma autora ressalta que esta relação era com o coco de roda, o “brinquedo”

escolhido por Mãe Biu para louvar os caboclos e demais entidades presentes no culto da

Jurema, tradição mantida pelos filhos e filhas-de-santo mesmo após seu falecimento, no dia

de São Pedro (29/06):

O terreiro xambá com Mãe Biu buscará como brinquedo uma outra
manifestação profana, o coco de roda. Segundo ela, era festa para
caboclos, estava ligada ao santo, não deixando passar um festejo junino
sem homenagear os “caboclos” e entidades da Jurema, sem reunir a
comunidade em volta dos tocadores de coco, estes iniciados no culto
xambá, para festejar São Pedro.

105
4.2.2. O terreiro Xambá – uma história de mulheres

O terreiro Xambá funciona numa casa simples de porte médio de subúrbio

contendo: um salão principal que comporta cerca de duzentas pessoas, um peji com as

moradas ou assentamentos dos orixás, um cômodo para jogo de búzios, um quarto para as

mulheres e outro para os homens que ali descansam ou trocam de roupa em dia de

obrigação ou toque. Há também a copa e a cozinha onde geralmente são servidos o

tradicional mungunzá, após os toques públicos para todos os presentes, ou as obrigações17

aos orixás, em dia de Obrigação18. Ao lado da cozinha encontra-se um quarto para os

caboclos, os pretos-velhos e as entidades da Jurema. Fora da casa principal fica o Quarto de

Balé, onde são feitas as obrigações para Iansã de Balé. O acesso a este quarto é vetado às

mulheres. Todas as obrigações de Balé são realizadas apenas pelos homens.

Além da casa principal há o “Memorial Severina Paraíso”, fundado no ano de

2000 em homenagem ao centenário de Maria Oiá (25/07/1900), aos setenta anos da

inauguração do terreiro aberto por esta ialorixá (07/06/1930) e aos cinqüenta anos da

reabertura do terreiro por Mãe Biu (16/06/1950)19, representando iniciativa ímpar para a

história do terreiro, pois possui um acervo de fotografias, os pertences de Mãe Biu,

17 Animais sacrificados e devidamente cozidos e preparados que após serem ofertados às


divindades no peji, são consumidos pelos filhos e filhas-de-santo.
18 A obrigação geralmente antecede o toque público. Tive a oportunidade de participar desta
cerimônia graças à compreensão e abertura que tive do babalorixá e dos filhos e filhas-de-santo, já que esta é
fechada ao público externo.
19 Dados extraídos da Cartilha da Nação Xambá (Leal 2000, 4) lançada com o mesmo propósito de
homenagem a partir de extensa pesquisa realizada por Hildo Leal e com a colaboração dos filhos-de-santo do
Xambá e dos preciosos depoimentos do babalorixá Ivo Paraíso da Silva, da atual ialorixá do terreiro Maria de
Lourdes da Silva (Dona Lourdes) e de Donatila Paraíso do Nascimento (Mãe Tila).

106
ingomes utilizados nesta casa20, além de uma pequena mas promissora biblioteca que

possui títulos, em sua maioria, sobre a história das religiões afro-brasileiras para utilização

do povo-de-santo.

Ao lado do memorial está o pequeno salão da Jurema onde são realizadas as

obrigações destinadas às entidades ancestrais brasileiras como caboclos e caboclas, pretos-

velhos e pretas-velhas, ciganos e ciganos, exus e pomba-giras. Esse culto ocorre à parte do

calendário religioso voltado aos orixás e em espaço físico distinto. Ao redor do terreiro se

localizam algumas casas de filhos e filhas-de-santo que pertencem à família consangüínea

de Mãe Biu e uma pequena horta onde são cultivadas as plantas sagradas. Do lado direito

do terreiro, ao lado do salão, está situada a casa onde residia Mãe Biu e hoje residem seus

dois filhos - no primeiro andar fica a casa do babalorixá Ivo e no térreo, a casa de seu irmão

Ailton Paraíso.

20 Tambores sagrados para o Xambá também chamados de “ilús”.

107
Planta do terreiro21

O terreiro Xambá carrega consigo uma história de mulheres, que veio desde a

sua abertura sempre com filhas de Iansã à frente – primeiro Maria Oiá, depois Mãe Biu e

suas irmãs, todas integrando a tradição deixada por Maria Oiá. Os próprios filhos e filhas-

de-santo afirmam que essas mulheres representaram o esteio de suas famílias. Por conta

dessa atuação feminina ocorreu uma maior abertura em relação à música. As mulheres

podem tocar nos tambores sagrados durante as obrigações, a própria Mãe Biu tocava. Essa

abertura ainda se configura dentro de parâmetros e hierarquizações estabelecidas pelos

homens, visto que a participação feminina dentro do universo masculino é restrita. Não há o

incentivo para as meninas tocarem nos tambores como há para os meninos, logo, é uma

21 As dimensões são apresentadas em termos aproximados não correspondendo às dimensões reais


do terreiro.

108
minoria de meninas que toca, número de certo modo irrelevante diante dos meninos que

tocam. Contudo, mesmo essa pequena representatividade deve ser destacada se comparada

ao universo da maioria dos demais terreiros de candomblé em que o acesso aos tambores é

absolutamente negado às mulheres.

4.2.3. Os filhos e filhas do Xambá – uma história familiar

Diferente do que acontece com a maioria dos terreiros de xangô, o Xambá

possui uma família-de-santo cuja maioria é de familiares consangüíneos. A família é muito

valorizada e já compõe quatro gerações. Valéria Costa (2003, 3) sintetiza o terreiro Xambá

da seguinte forma:

Assim, o terreiro Santa Bárbara – Ilê Axé Oya Meguê, assentado por Mãe
Biu, ficou conhecido como a única casa, que possivelmente, preservou o
cultuar orixás dentro da tradição xambá. Tendo herdado de Maria Oyá tal
tradição, passou para seus familiares, de forma que ficou o “xangô do
xambá” referencial, em Recife, de divulgação da herança afro-brasileira,
que tem por base a oralidade e a propagação entre os familiares, sendo os
filhos/as sanguíneos os principais herdeiros do axé.

O mesmo se aplica à hierarquia onde o babalorixá é filho de Mãe Biu, a ialorixá

Mãe Lourdes é irmã de Mãe Biu, o padrinho da casa seu Maurício é filho de Mãe Lourdes e

a madrinha Dona Nair, cunhada de Mãe Biu. O cargo que na nação Ketu corresponderia a

iabá, ou seja, a pessoa responsável pela organização do terreiro, é exercido por Maria do

Carmo de Oliveira (Cacau), prima de Pai Ivo. Não há nesta nação o cargo de ekede. Na

realidade, todo filho ou filha do terreiro que não está “incorporado” cuida das entidades e

109
dos filhos e filhas-de-santo quando incorporados para que não se machuquem, tira as

“voltas”, ou seja, os colares com as cores dos orixás, os brincos e os sapatos dos filhos que

entram em transe, cuidam do terreiro, da comida, entre outros. Os ogãs, aqui

exclusivamente aqueles que tocam os tambores sagrados, particularmente nesta nação

entram em transe, inclusive podendo acontecer no momento em que estiverem tocando.

Neste caso, são substituídos por outros que não estiverem com o orixá. Nunca vi acontecer,

não é algo que ocorra com freqüência, mas durante a pesquisa várias pessoas mencionaram

a possibilidade.

A hierarquia do terreiro é de extrema importância para a sua manutenção. Oiá,

orixá que rege o terreiro, é quem determina através dos búzios o que deve ou não ser feito.

Abaixo de Oiá fica o babalorixá. É ele quem joga os búzios e estabelece a comunicação

com os orixás, aconselha os filhos e filhas-de-santo quanto a seus problemas pessoais,

dirige as obrigações assim como os toques, “puxa” os cantos, “abre” e “fecha” os toques e

também conduz a cerimônia de iniciação religiosa. Para que a atuação do babalorixá seja

eficaz são necessárias experiência e capacidade de negociação com as diferentes gerações

que integram o povo-de-santo desta nação. Ao lado do babalorixá está a ialorixá, Maria de

Lourdes da Silva, que participa de todas as cerimônias, exceto do Balé. É ela quem substitui

o pai-de-santo, cargo de muita responsabilidade.

A importância do babalorixá ou ialorixá pode ser entendida a partir do próprio

significado dos termos que, segundo Verger (1992, 96) vêm do iorubá e correspondem a

“pai” e “mãe-em-santidade”, respectivamente, ou “a primeira pessoa na coisa sagrada”. De

igual modo, filho ou filha-de-santo significa “pessoa de menor grau na coisa sagrada”

(Verger 1992, 96). O padrinho e a madrinha do terreiro trabalham juntamente com o

babalorixá e a ialorixá. O padrinho, Seu Maurício César da Silva é quem realiza os

110
sacrifícios. Sendo também o ogã mais experiente pode substituir Pai Ivo, sobretudo em

situações em que Mãe Lourdes como mulher não o pode fazer. A madrinha, Dona Nair

Paraíso, é a responsável pela organização das obrigações e dos toques, pelo preparo dos

pratos sagrados, pela orientação aos mais jovens e pelos diversos serviços que por ventura

surjirem, assim como a sua realização.

Sobre a estrutura social dos terreiros de xangô pernambucanos Carvalho e

Segato (1992, 11) apontam uma mobilidade que em parte não se aplica ao Xambá: as regras

de descendência familiar não existem como elementos absolutos, assim como casamento,

divisões e papéis conforme o gênero. Certamente que “em termos absolutos” é perigoso

afirmar que não haja uma postura de vetar a quem possua parentesco consangüíneo, mas a

maior incidência de filhos e filhas é realmente familiar e assim também se reflete

hierarquicamente.

No Xambá os sacramentos da religião católica são respeitados. Há o incentivo

dos casamentos formalizados pela igreja católica e civil. As crianças que ainda não tenham

sido batizadas na igreja católica não podem ser levadas ao salão principal do terreiro. Por

outro lado, há a aceitação também de outras formas de relacionamentos, pois não existe, a

discriminação com homossexuais do sexo masculino, por exemplo. Como Segato (1995,

444) já havia destacado, em relação a relacionamentos amorosos entre mulheres há uma

certa “invisibilidade”. De qualquer forma, esses elementos são “invisíveis” para o olhar

externo, mas certamente o olhar interno é de compartilhamento e aceitação religiosa, visto

que o xangô representa uma religião totalmente inclusivista (Carvalho 1992, 189).

111
4.2.4. Homens e mulheres - diferentes atuações

É importante pensar que na nossa sociedade ocidental as diferenças geralmente

englobam hierarquizações e estas se estendem para as relações de gênero. Contudo, embora

seja difícil generalizar essas hierarquizações numa realidade religiosa afro-brasileira que

engloba diversas outras questões como a própria hierarquia dentro da religião, é possível

perceber nuances hierárquicas nas atuações de homens e mulheres. No Xambá se percebe

claramente a diferença entre as atuações destes e destas. Embora todos trabalhem no

terreiro na execução de diversas tarefas – desde limpar o chão a lavar os pratos ou cozinhar,

as tarefas domésticas realmente são exercidas pelas mulheres enquanto os homens realizam

o trabalho considerado mais pesado como carregar panelas enormes ou despachar o ebó, o

que sobrou das obrigações - comida sagrada, no rio Beberibe em dia de Obrigação. Ambas

as atividades são concebidas como importantes, embora realizar atividades domésticas não

seja exclusivamente feminino, o despacho é exclusivamente masculino, exceto nos tempos

de Mãe Biu, que também acompanhava esse momento. Contudo, na concepção do povo-de-

santo, essas diferenças são naturalizadas e não são questionadas, pois sempre foram feitas

deste modo.

Como são as mulheres que realizam as tarefas domésticas e cuidam do terreiro

a questão da aprendizagem relacionada a elas é significativa. Os homens realizam a

matança, mais uma vez não há uma reciprocidade entre ambas as tarefas, na primeira, todos

podem executar, já na segunda, apenas os homens. As mulheres ensinam aos mais jovens,

geralmente também do sexo feminino, como os pratos das obrigações devem ser preparados

112
e como devem ser costuradas as roupas tradicionais do Xambá: os típicos casaquinhos

utilizados pelas filhas-de-santo. No ritual público, como já mencionado, sempre há a figura

feminina encarregada de recolher os brincos e os colares das filhas e filhos-de-santo que

incorporam o orixá, para que não se machuquem. A aprendizagem acontece através da

convivência, da observação. É também com as mulheres a maior convivência das “iaôs”

durante a iniciação religiosa.

Às mulheres, maioria numérica, fica a responsabilidade de organizar a casa, que

vai desde os preparativos das cerimônias até o preparo das comidas rituais. Cabe a elas o

cuidado em observar e vetar atitudes que vão de encontro com os preceitos da nação,

caracterizada pela rigidez de certas normas morais, desde a proibição da entrada no terreiro

de bebidas (alcoólicas ou não) e do cigarro, ao veto de mulher menstruada no salão e às

regras das vestimentas22. Sardenberg (1994, 320) propõe a construção de uma “sócio-

antropologia da menstruação”. A partir de uma análise das “‘ordens prático-simbólicas da

menstruação e construção social do ser mulher” (idem, p. 321).é possível constatar que este

não consiste num fenômeno estritamente biológico, mas cultural, visto que implica às

mulheres menstruadas diversos poderes ou não poderes, conforme o contexto. São diversas

as concepções culturais acerca da menstruação, assim como da gravidez e da sexualidade.

Estas concepções refletem a estrutura social e familiar de uma sociedade ou grupo cultural,

22 Além de não poderem entrar no salão menstruadas, as mulheres só podem transitar pelo mesmo
vestidas de saia e blusa, certamente que num ambiente religioso não deva ser permitido qualquer tipo de
roupa ou comportamento, assim se estende para os homens também, contudo, é importante analisar esse não
poder feminino a partir da menstruação não apenas no Xambá, como no contexto afro-brasileiro em geral, que
é constituído em sua maioria por mulheres, mas estas só podem exercer determinadas atividades quando
“tornam-se homens”, ou seja, não menstruam mais, entram na menopausa.

113
bem como refletem também as distintas atuações de homens e mulheres. A menstruação

está sujeita a interpretações diversas, frutos de crenças e costumes específicos:

Sem dúvida, numa perspectiva transcultural, a menstruação aparece como objeto de


interpretações e significados múltiplos, inseridos em ordens culturais das mais
diversas, sendo motivo de crenças e costumes aparentemente tão exóticos e díspares
quanto à criatividade humana tem se permitido imaginar e pôr em prática em torno de
um simples ‘fato da natureza’. Mas isso apenas significa que não se trata de um
simples fato biológico, mas de um fenômeno de dimensões sociais e culturais.” (idem,
p. 320)

O papel das mulheres na música é fundamental nas respostas aos cânticos

“puxados” pelo solista, geralmente o babalorixá, ou seu irmão Ailton Paraíso ou ainda o

ogã e também parente Sandro Paraíso. É importante ressaltar que não existe um repertório

específico para homens e mulheres, a diferença consistiria nos momentos em que o mesmo

repertório é trabalhado e da forma que é enfatizado. Neste momento a hierarquização é

nítida, diante do fato de que o coro não considera que canta, mas que apenas ‘responde’,

reduzindo de certo modo, sua importância musical, visto que não há canto que seja

‘puxado’ que não exija uma ‘resposta’, e para dá-la é necessário conhecer o extenso

repertório na mesma proporção que o solista.

Os homens estão envolvidos tanto no processo de transmissão musical,

referente ao aprendizado dos toques, pois os tambores são considerados sagrados e restritos

em contexto ritual ao universo masculino, quanto à manutenção da tradição no que se refere

à participação no culto e na matança. A discussão sobre transmissão e tradição permeia

todo o âmbito conceitual etnomusicológico e trata de concepções e relações de

aprendizagem. Nettl (1983, 189) afirma que a tradição oral atua restringindo, limitando,

dirigindo o que é criado até mais que a própria escrita. Envolve as limitações da memória,

papéis da estética, coibição dos padrões estabelecidos e formação de um repertório musical

114
que consiste em peças aceitas e aprendidas por membros da comunidade, contrastando com

a tradição escrita em que o músico compõe e pode executar sua música apenas uma vez.

Sobre transmissão, Nettl lança o conceito de “aural” ou seja, percepção global do indivíduo

no que se refere à apreensão dos elementos transmitidos. O processo de transmissão,

segundo o autor, representa ponte entre processos do fazer musical dinâmico e mudanças e

processo de acumulação do saber musical.

No terreiro as mulheres desempenham importante papel na transmissão do

repertório musical - no que se refere aos cantos dos orixás, assim como suas danças e

demais códigos e comportamentos da religião visto que sempre carregam seus filhos no

colo e geralmente estão junto dos mais novos. Quando pensamos no processo de

transmissão, aliado à tradição religiosa do terreiro Xambá, percebemos que estão

intimamente relacionados. De certo modo estes processos estão a cargo das mulheres, seja

por uma questão de tradição familiar – sempre ter havido mulheres na família que

participavam ativamente da religião, seja a partir da própria história, a casa adotou a divisão

de funções baseado no que sempre aconteceu e funcionou, surgindo o reconhecimento geral

do papel delas na manutenção da tradição, embora essa esteja sempre em movimento.

Merriam (1964, 145) afirma que conceitos e comportamentos devem ser

aprendidos e em cada forma de cultura, o processo de conhecimento está de acordo com

seus próprios ideais e valores. Na Nação Xambá, de forma sistemática (período iniciático)

conhecimentos são transmitidos pelas mulheres no culto aos orixás e, pode-se dizer que,

informalmente, ou de maneira não doutrinária, é aprendido pela comunidade religiosa que a

figura feminina representa importante papel para a manutenção da tradição do terreiro.

Valores sobre esses papéis são construídos e reforçados. Considerar a música neste

processo pressupõe abordar como ocorre o tratamento ao repertório musical e, pensando

115
nos cantos, as mulheres atuam não apenas no contexto da transmissão musical como

também para o processo da performance em si, no qual sua resposta é imprescindível. Silva

(1989, 251) ressalta que:

Como toda religião organizada, o xangô tem vários cerimoniais. Cada


cerimonial tem o seu próprio rito e sua própria música sendo esta o
elemento propiciador do axé ou energia que tem enorme influência
dinâmica, porque é o ponto de concentração de toda comunidade religiosa
em função do ritual, O canto é o centro aglutinador do assunto essencial
da cerimônia.

Às mulheres também é permitida a participação, ainda que restrita, ao universo

masculino dos ogãs nas obrigações fechadas ao público. Esta abertura também pode ser

discutida em termos de aprendizagem culturalmente estabelecida, onde segundo Merriam

(1964, 145), o som musical mantém-se através dos conceitos sobre música que alteram ou

reforçam comportamentos e eventuais mudanças ou fortalecem a prática musical. No

Xambá, a prática musical representa uma tônica, partindo da formação vocal dada pelas

mulheres aos filhos e filhas-de-santo, em diálogo com os tambores. O universo feminino

nesta nação encontra-se relacionado à questão da transmissão da tradição religiosa em geral

– o processo de iniciação religiosa é um exemplo significativo dessa atuação e,

especificamente, à transmissão musical no que se refere à parte vocal.

Segundo Nettl (1983, 189) o processo de transmissão representa uma ponte

entre o processo do fazer musical dinâmico e a acumulação do saber musical. Questões

como a da transmissão musical refletem as concepções vigentes no grupo social acerca da

motivação social e é no processo de transmissão que são reforçados, adaptados ou mesmo

abandonado o valor cultural e religioso. Seguindo (1983, 47), afirma que a performance

musical atua como um fator central que justifica a continuidade da existência do grupo

social, dessa forma, se a música não estiver presente, muitos rituais são afetados ou mesmo

116
extintos. A respeito do comportamento social do músico na sociedade, Merriam (1964,

123) pondera que ele possui papel e status específicos dentro da sociedade ou grupo social

e, consequentemente existem diversas expectativas em relação a tais funções. Outro fator

apontado pelo autor de extrema relevância à nossa discussão é que também existem

diferenciações desses papéis em todas as sociedades que podem ocorrer de maneiras

diversas, inclusive a partir do sexo (Merriam 1964, 144):

Quem o músico é, como ele pensa, o que a sociedade pensa dele, e por
que tais padrões emergem são questões de importância vital para o
entendimento da música como comportamento humano23.

A discussão sobre gênero na Etnomusicologia é válida para constatar que

papéis e comportamentos específicos estão igualmente presentes tanto em sociedades não-

letradas quanto na sociedade ocidental - que a princípio é letrada -, fomentando a

compreensão do comportamento do músico e da sociedade em relação a ele como

fenômenos humanos e refletindo sobre as relações de poder inerentes a estas atuações.

Musicalmente o terreiro da nação Xambá reflete uma atuação mais representativa, em

relação aos demais, para as mulheres que normalmente, como já mencionamos, são

proibidas de se aproximarem dos tambores sagrados – configurando relações de poder (e

não poder) do universo masculino e feminino, respectivamente. Atualmente pai Ivo afirma

que o fato de não ser tão comum mulheres tocando representa mais uma tradição adotada

do que uma restrição de gênero, o que na realidade, não deve ser pensado de forma tão

simplificada pois a restrição é também assimilada pelas mulheres.

23 “Who the musician is, how he behaves, what society thinks of him, and why these patterns
emerge are questions of vital importance to a through understanding of music as human behavior.”

117
O universo musical das mulheres é sem dúvida o vocal, acontecendo também

uma inibição dos homens em relação ao canto. Tais posturas não representam regras,

existindo tanto homens que cantam quanto as mulheres que tocam (embora seja uma

minoria), sendo ambos respeitados. É importante ressaltar também que além da

identificação pessoal, a aprendizagem acontece de acordo com os estímulos culturais e que

diferentes papéis são executados no terreiro conforme o sexo, tanto musicalmente quanto

na estrutura organizacional do mesmo.

4.2.5. A “saída de iaô” – renascimento e descobertas

Quando se pensa na realidade das religiões afro-brasileiras, rapidamente se

associa a processos rituais cercados de códigos que representam toda uma gama de riqueza

cultural, religiosa e musical que é transmitida pelas (os) mais experientes e apreendida aos

que desejam adotar a religião. A questão da transmissão da identidade religiosa e dos

segredos muitas vezes gira em torno da iniciação religiosa. Contudo, os processos de

transmissão e aprendizagem ocorrem durante toda a vida religiosa da (o) filha (o)-de-santo

de maneiras diversas dentro do contexto ritual ou fora dele.

O período iniciático é caracterizado pela transmissão oral realizada pelas (os)

mais experientes – iniciadas (os) há mais tempo na religião -, às (os) aspirantes à feitura de

santo e, segundo Béhague (1984, 227) é, sob ponto de vista religioso e musical, de grande

importância. Tal processo é marcado pela transmissão oral, executada na Nação em

questão, em grande parte por mulheres, por outro lado, não corresponde à via de mão única,

118
representando uma interação de valorização recíproca entre mestre e aprendiz, que pode ser

exercida por ambos os sexos. Estudar o processo de transmissão não se limita aquele que

ocorre no período iniciático, pois no caso do terreiro Xambá, nunca aconteceu de se iniciar

alguém que já não freqüente a casa por muito tempo e, decorrente desse fato, já conhece

seus preceitos, inclusive seu repertório musical.

Segundo o próprio povo-de-santo o processo de transmissão no período

iniciático é de suma relevância para se compreender o contexto da Nação Xambá, pois nele

estão contidas não apenas as questões da tradição religiosa – na construção do servir aos

orixás-, mas também a questão da identidade, representada por um ritual fechado sendo o

acesso restrito às pessoas diretamente envolvidas. A privacidade desse ritual está

intimamente relacionada à identidade cultural e religiosa (Lühning 2001, 115), tendo no

processo de transmissão a sua consolidação.

A inclusão da (o) inicianda (o) ao universo Xambá corresponde a um processo

que acontece em longo prazo. Todas (os) que “fazem iaô”, nesta nação, ou seja, que são

teoricamente iniciadas (os), na realidade não é ali que se “iniciam” na religião. As (os) iaôs

são em sua maioria, pessoas que já fazem parte do terreiro há anos, conhecem o repertório

musical, dão “obrigações” para seu orixá e inclusive já o “incorporavam” enfim, na prática

já são considerados filhos e filhas-de-santo da casa.

O objetivo da “iniciação” é o de equilíbrio na vida da (o) iaô. A partir desse

momento os laços com o orixá, o dono de seu “ori” - de sua cabeça, que é considerada o

templo sagrado que recebe o orixá -, são estreitados. Muitas vezes a pessoa passa por

momentos de dificuldade, doença, e através dos búzios o orixá revela a necessidade de sua

“feitura”. A iniciação ocorre no período de um mês, ficando a (o) “iaô” recolhida (o) no

terreiro por uma semana, recebendo um tratamento especial, se alimentando de pratos

119
específicos, dormindo no chão. Durante esta semana a (o) iaô só se comunica, o

estritamente necessário, com as pessoas do terreiro encarregadas de cuidar delas (es).

A entrada da (o) “Iaô” no terreiro acontece em uma quarta-feira. Nesse mesmo

dia é realizado o “obori” - ritual de feitura da cabeça, ou seja, ritual em que o “ori” da (o)

“iaô” é “batizada (o)” com o sangue de animais sacrificados24. Esta cerimônia simboliza o

momento de renascimento do indivíduo, no qual o sangue representa um elemento da vida,

é realizada durante a madrugada, no peji, e é cerimônia fechada.

No domingo seguinte acontece a “Saída de iaô”, primeiro momento público da

(o) inicianda (o) após esse período de reclusão. É um momento inesquecível para esta (e)

que usa roupas especialmente confeccionadas para esse dia, com todos os adereços

correspondentes ao seu orixá e escuta a sua cantiga de “saída de iaô” que em nenhum outro

momento de sua vida será novamente cantado para ele novamente.

24 “Ori” é o guardião da “cabeça”, mas também é concebido como a própria cabeça, a “força
vital”, ou seja, simboliza um indicador do estado geral de vitalidade ou vulnerabilidade da pessoa e,
“fortalecer o ori” é o mesmo que fortalecer a vitalidade de uma pessoa (Carvalho e Segato 1992, 21).

120
Alá de iaô de Orixalá (Leila).

Quando o babalorixá canta o repertório do orixá dessa (e) “iaô” que está sendo

iniciada (o), esta (e) é retirada (o) do peji sob o “alá” – manto sagrado -, por um orixá

escolhido através do jogo de búzios, de alguém já “feito”, paramentado com suas

respectivas roupas de “iaô”. Esse momento simboliza uma relação de respeito que o filho

ou filha que está sendo feita (o) deve ter com quem já é feito, assim como com o orixá

daquela pessoa. Após circular pelo salão e dançar (“incorporada (o)” ou não), a (o) “iaô”

retorna ao peji, recebe os cumprimentos dos demais filhos e filhas-de-santo, permanecendo

no terreiro até a quarta-feira seguinte. Mesmo após sua saída do terreiro o iaô deverá

manter uma postura de reclusão por um mês. Não poderá ingerir bebidas alcóolicas, fumar

ou ter relações sexuais, nem se alimentar ou beber água que não sejam devidamente

preparados no terreiro. Ao término desse período de trinta dias, o “iaô” deverá assistir a

uma missa em uma Igreja Católica – um elemento do sincretismo religioso presente na

história das religiões afro-brasileiras.

121
Gerlane e Leila, iaôs de Nanã e Orixalá respectivamente (de Nanã à esquerda de pé,
com roupa lilás e de Orixalá à direita de pé com roupa branca e a bengala, símbolo
deste orixá). Estas estão acompanhadas pelas filhas de Xangô (com capa vermelha e
coroa) e Iansã (capa rosa e coroa) que as tiraram do peji e também de pessoas
queridas Lola, Hildo e Gogó (da esquerda pra direita), esta última a mãe de Leila.

As restrições que simbolizam a morte e o renascimento do indivíduo que

assume um compromisso religioso que afetará toda a sua vida são diversas:

Uma vez designados pela divindade, esses filhos ou filhas-de-santo devem


nascer para uma nova vida, a da seita. Passam por um período de
recolhimento e de iniciação, que pode durar de um a dezoito meses. Essa
iniciação não comporta forçosamente a revelação de um segredo. Na
verdade, consiste no aprendizado do comportamento quase inconsciente
que os noviços deverão ter ao serem montados pelos deuses durante as
cerimônias Verger (1999, 25).

No Xambá várias dessas restrições são particulares à sua tradição e não são

comuns a outras nações afro-brasileiras. A (o) filha (o)-de-santo, depois da iniciação,

permanece como iaô por sete anos, depois se torna um filho ou filha-de-santo como os

demais de seu mesmo tempo de feitura. Não há um termo que designe essa etapa, assim

como não há uma cerimônia de renovação como nas demais nações.

122
4.2.6. Os freqüentadores do Xambá – o olhar externo do fascínio

O público freqüentador do terreiro cresce a cada dia, chegando a alcançar o

número de mais de trezentas pessoas num dia de toque, o que é muito para o seu espaço

físico. Diante de seu histórico de discriminação do universo afro-brasileiro, o terreiro

Xambá abre suas portas ao público externo e com orgulho permite que as festas públicas

sejam fotografadas ou filmadas, desde que previamente consultados, com o intuito de

divulgar a nação, não tão conhecida, e de reforçar sua identidade própria.

Com o fechamento do Sítio de Pai Adão, terreiro muito tradicional do Recife,

situado no bairro de Água Fria, muitos filhos e filhas-de-santo deste terreiro passaram a

freqüentar os toques públicos do Xambá, assim como também pessoas oriundas de outros

terreiros de Recife e Olinda. É comum que o povo-de-santo “se freqüente”, ou seja,

recebam pessoas de outros terreiros, assim como as (os) próprias (os) xambanianas (os)

assistem a toques em outros terreiros. Cresce também o número de pessoas que não são do

candomblé, como estudantes25 e estrangeiros, que vão motivados pela curiosidade e

fascínio por esse universo religioso e por esta nação que se declara a única do Brasil.

25 No ano de 2003 um grupo de estudantes de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco


(UFPE) realizou pesquisa no terreiro e construiu uma maquete do terreiro com a possível reforma que
acontecerá daqui a algum tempo, ampliando-o e melhorando a sua estrutura física atual. No ano passado
também foi desenvolvida uma pesquisa sobre as ervas sagradas cultuadas no Xambá por uma estudante de
biologia da UFRPE.

123
4.2.7. Batuque e louvação26 – o encontro com os orixás

No Xambá são cultuados catorze orixás ao todo. Estes orixás são “assentados”

no peji, ou seja, são estabelecidas as suas moradas, em diversas pedras chamadas otás

correspondentes a cada orixá específico de cada filho e filha-de-santo. Junto a cada

assentamento estão os adereços de cada orixá e uma quartinha, abastecida com água, que

será ingerida após a “incorporação” do filho ou filha-de-santo pelo orixá. Embora dividam

um mesmo espaço físico, os assentamentos são separados entre si. Abaixo segue a ordem

dos assentamentos, acrescida dos nomes dos respectivos santos católicos correspondentes

conforme o sincretismo religioso (Leal 2000, 12-32):

Ordem dos assentamentos Santos católicos correspondentes

1. Exu São Pedro


2. Ogum São Jorge
3. Odé Santo Expedito
4. Bêji Santos Cosme e Damião e Doum
5. Nanã Santa Ana
6. Obaluaiê São Sebastião
7. Euá Sem correspondente
8. Xangô São João Batista
Santa Bárbara
9. Oiá/Iansã
Santa Joana D’Arc
Santa Luzia
10. Obá Santa Joana D’Arc
11. Afrequête Santa Joana D’Arc
N. Sra. da Saúde
12. Oxum
N. Sra. do Carmo
13. Iemanjá N. Sra. da Conceição
14. Orixalá Jesus Cristo - Senhor do Bonfim

26 Expressão característica no Xambá, sugerida por Sandro Paraíso, designando o momento


subseqüente após se cantar para todos os orixás.

124
O toque sempre acontece aos domingos e tem a duração de cerca de quatro

horas. Começa impreterivelmente às 16:00 h e termina por volta das 20:00h. A estrutura do

toque acontece conforme a hierarquia dos orixás e dos momentos que caracterizam a

tradição do Xambá: 1. canta-se para Exu; 2. canta-se para os demais orixás; 3. é realizada a

“volta dos tambores”; 4. Os tambores tocam os onikás dos principais orixás que possuem

filhos (as) no terreiro. Ao terminar de cantar pra Exu, canta-se para Ogum, momento em

que o“ xuxu”, cumprimento aos tambores e aos filhos com o mesmo tempo de iniciação é

realizado. Abaixo segue resumidamente a estrutura ritual, dividida nos quatro momentos

distintos já mencionados acima, do toque público dedicado aos orixás na nação Xambá:

1. O canto para Exu - nesse momento não se dança, apenas se louva Exu

para que como mensageiro, “abra os caminhos” e faça com que tudo corra bem no toque.

O canto pra Exu no Toque de Obaluaiê (janeiro de 2004)

125
3. O canto para todos os orixás – Começa com Ogum, e é neste momento que todos os

filhos e filhas-de-santo realizam o “xuxu”, cumprimento aos tambores, ao pai e mãe-de-

santo, padrinho e madrinha. O xuxu é realizado também entre as pessoas que possuem o

mesmo tempo de feitura e pode ser concebido como um sinal de respeito, tanto em

relação aos tambores que “trazem os orixás à terra”, quanto à hierarquia do terreiro e ao

próximo, aqueles que compartilham mesmo tempo na religião:

Acima Dona
Lourdes, mãe-de-
santo, ao lado Dona
Nair, a madrinha do
terreiro, fazendo o
xuxu.

126
Dona Nair e Pai Ivo fazem o xuxu. Todos os filhos e filhas se cumprimentam no início
do toque, é um momento de comunhão e respeito não só aos orixás, mas também entre o
povo-de-santo.

Após o xuxu, canta-se normalmente para Ogum e demais orixás. Não há um

número específico de cantigas entoadas para cada orixá, pode variar entre três a dez

cantigas, a depender das divindades que estejam “em terra”. O maior tempo é dedicado ao

orixá do dia, mas isso não impede que os demais, no momento em que é entoado o seu

repertório musical, também “desçam”.

3. A ‘volta dos tambores’ – após se cantar para Iemanjá e Orixalá (os últimos

do panteão), os tambores são carregados pelos filhos-de-santo enquanto os ogãs continuam

tocando-os a fim de dar, literalmente, três voltas no salão. Após as três voltas retornam aos

seus lugares de origem. Há uma cantiga específica para esse momento onde todos os orixás

são citados. Segundo Sandro Paraíso esta volta é realizada com o objetivo de pedir a benção

127
para os tambores e para os ogãs: “é como se fosse uma limpeza, pois todo mundo chega e

abraça o orixá, nem todo orixá abraça os ogãs, pois são os tambores que trazem o orixá a

terra”27. Esta é uma parte exclusivamente instrumental. O oniká é composto de melodia,

texto e toque, mas nesse momento só o toque é executado, o oniká na íntegra é executado

apenas uma vez no ano, no dia específico do toque daquele orixá.

27 Sobre o fato de serem dadas três voltas, o filho-de-santo Raulino Sales declarou que “tudo para
orixá é ímpar, geralmente três ou sete.”

128
A volta dos tambores. Na página anterior Seu Maurício tocando
o inhã e acima Sandro toca o mele ancó.

4. Os onikás - após retornarem aos seus lugares os ogãs tocam os onikás dos

principais orixás, ou seja, aquele toque que o caracteriza. Nesse momento não se canta

apenas a salva do orixá homenageado com a sua saudação específica. São salvos todos os

orixás, começando por Ogum e terminando com Orixalá. No momento em que se entoa o

oniká do orixá homenageado, toca-se mais tempo para ele, as (os) filhas (os)-de-santo

incorporados com esse orixá podem retornar “à terra” para se despedirem. Ao final todos

aplaudem sendo esse o momento do “batuque e da louvação”.

A ordem em que se canta para os orixás é a seguinte: Exu, Ogum, Ode, Nanã,

Bêji, Obaluaiê, Euá, Obá, Xangô, Oiá, Afrequête, Oxum, Iemanjá e Orixalá. Há uma

pequena mudança entre a ordem dos assentamentos dos orixás no peji e a seqüência das

toadas que são cantadas: nos assentamentos os Bêji vêm antes de Nanã e Obá vem depois

129
de Xangô e Iansã, conseqüentemente, na ordem em que são cantadas as toadas, Nanã é

saudada antes dos Bêji e Obá antes de Xangô e Iansã. Não obtive a resposta do por quê

dessa ocorrência, muitas vezes as filhas (os) alegaram que a geração anterior (de Mãe Biu)

era “muito fechada para explicar o por quê” das condutas e procedimentos religiosos e foi

aprendido que a tradição deveria ser assim mantida.

A questão da ordem pode estar relacionada a diversos fatores, dentre eles,

talvez o principal seja a hierarquia. Deve-se começar por Exu, por ser ele quem “abre os

caminhos” e terminar com Orixalá, pai dos orixás, que fecha a casa. Carvalho e Segato

(1992, 13) destacam que a relação de parentesco entre os orixás representa elemento de

grande relevância para compreender a ordem com que se canta os diferentes repertórios

musicais. De um lado estaria o status do orixá e sua idade cronológica: a avó Nanã, a mais

velha, Obaluaiê, das doenças, já um senhor, Iemanjá, a mãe e a rainha ou mesmo Orixalá, o

pai, também ancião. De outro, há os diversos atributos e talentos específicos, podendo

exercer influência sobre os demais se é rei como Xangô, um guerreiro como Ogum, uma

rainha dos eguns como Iansã, ou a deusa da beleza e da riqueza como Oxum.

Há uma relação mítica entre os orixás onde Ogum e Odé são divindades

guerreiras. O primeiro é o deus do ferro e da guerra, o segundo, das matas, é caçador,

ambos solitários. Nanã e Obaluaiê são os mais velhos, a primeira é a deusa do barro, da

lama e da sabedoria, o segundo, das chagas, da doença e da cura, orixás temidos e

respeitados. A presença de Nanã, no entanto, é também apontada por Ferreti (1996, 120) na

Casa das Minas do Maranhão como vodun da linha28 Davice29 que auxilia a linha

28 Cada vodun pertence a uma linha que está relacionada a forças da natureza.
29 Família real, constituída de voduns que são nobres, reis ou príncipes. A Casa das Minas tem o
nome jeje de Querebentã. Segundo Dona Deni, Querebentã é o nome do palácio do povo de Davice (idem,
100).

130
Quevioçô, a mesma linha de Averequete. O autor (idem) afirma ainda que Nanã é de

origem nagô, mas que é adorada na Casa das Minas.

Obá é uma das esposas de Xangô, vem logo antes dele. Xangô, rei dos orixás, é

relacionado à justiça e ao trovão, é também marido de Iansã, logo são reverenciados juntos

(em seqüência). Iansã, por sua vez, é a rainha dos ventos e das tempestades, orixá guerreiro

que acompanhou Xangô, seu marido, à guerra, portanto é cultuada ao seu lado. Oxum é a

deusa da beleza, da riqueza, das águas doces, também esposa de Xangô e ao mesmo tempo

filha adotiva de Iemanjá e Orixalá, fica antes destes dois.

Iemanjá e Orixalá são os pais de quase todos os orixás. Ela é a rainha do mar, a

dona do “ori” de todos os filhos e filhas-de-santo, a mãe legítima. Ele é o velho, o orixá da

paz e da sabedoria, o patriarca30.

Os orixás Bêji (Cosme, Damião e Doum), Euá, associada à beleza e, Afrequête

que, no Xambá alguns apontam como vodun outros simplesmente afirmam que é um orixá

desconhecido, ficam mais ou menos entre os demais. Os Bêji, Obá, Euá e Afrequête não

possuem filhos ou filhas-de-santo no terreiro. Os trigêmeos realmente não possuem filhos

por que são crianças e os demais por que nunca aconteceu, mas não deixam de ser

30 No Xambá este orixá tem a particularidade de ser saudado como orixá feminino. O “otobalé”,
cumprimento que se faz aos orixás, é diferenciado por sexo, se o orixá foi masculino, a pessoa deve deitar de
bruços no chão aos seus pés, se for feminino, deve deitar primeiro de um lado, depois de outro. O otobalé para
Orixalá é feito como se ele fosse um orixá feminino. Há quem afirme entre o povo-de-santo que, no Xambá,
Orixalá é mulher, mas Pai Ivo afirma que não, Orixalá é mesmo o pai dos orixás, do sexo masculino, e que
seu otobalé faz parte da tradição Xambá.

131
reverenciados e possuem repertório reduzido comparado aos demais. Segundo Hildo Leal

Obá e Euá sempre estiveram presentes no Xambá apenas no canto e na dança31.

A presença de Afrequête no Xambá é, por vezes, polêmica. Exceto no Tambor

de Mina no Maranhão (Pereira, 1979 e Ferreti, 1996), em Pernambuco não se tem

conhecimento de outros terreiros que a cultuem na atualidade. Alvarenga (1948, 5) cita um

orixá “Anifraquete” no terreiro de Apolinário Gomes da Mota, em Recife, PE. No

depoimento deste babalorixá ele diz que “Anifraquete” não possui toque especial. E mesmo

possuindo uma única toada era obrigatório cantar para ela. Embora Alvarenga não tenha

transcrito a melodia, o texto desta toada é o mesmo cantado no Xambá. O babalorixá

também revelou que este orixá “não descia”, ou seja, não possuía filhos e, portanto, não

havia a “incorporação”, concebida como sua presença na terra. A autora cita ainda a

presença deste orixá em outro terreiro importante de Recife na década de quarenta - o

“terreiro da Guida” - Idida Ferreira Mulatinho. O nome Afrequête é apontado por Verger

(1999, 426) como possível corruptela de “Avlekete” - vodun feminino do trovão (entidade

da nação Jeje) ou “Avrèkété” - vodun feminino da água. Num artigo sobre Pai Rozendo,

Ribeiro e Verger (1949, 28) chamam a atenção para a “criatividade” deste babalorixá e

mencionam, num tom pejorativo, a presença de Afrequête, que na realidade corresponderia

ao vodun feminino “Avrèkété” mencionado antes por Verger.

31 Até 2000 estes orixás femininos não possuíam assentamento no peji nem recebiam obrigações.
Neste ano o Xambá ofereceu uma grande obrigação no terreiro, o boi para o Xangô mais antigo cultuado no
terreiro, Aguângua Baraim. O assentamento de Euá fica junto com o de Nanã e Obaluaiê enquanto o de Obá
fica num canto, junto ao assentamento de Xangô (entrevista realizada em 23/07/04).

132
Pereira (1979, 34) cita a presença do vodun masculino Avérêquête na

tradicional Casa das Minas, de origem jeje, no Maranhão. Segundo o autor, este vodun, da

linha Quéviôçô, seria um dos poucos que quando ‘baixam’ nas vodunsi ou filhas-de-santo,

fuma e fala. É chamado também de Toi Avérêquête, ou seja, o pai, o “dono do céu” (idem,

32). Ferreti (1996, 120) afirma que: “Na Casa das Minas a família de Quevioçô é nagô e é

constituída pelos voduns dos astros, do céu e das águas, que controlam as chuvas, os raios,

os trovões, e combatem as ventanias e tempestades”. Continuando, o autor acrescenta que

Averequete, juntamente com Abe (vodun feminino) são os mais novos que representam os

mais velhos, sendo também os únicos que falam, pois os demais se comunicam através de

sinais, quando ‘incorporam’ os corpos de suas filhas32. Ferreti (1996, 125) destaca que

Averequete possui o nome privado de Adunoble e é considerado “uma estrela caída nas

águas do mar”. Relacionando o vodun jeje maranhense Averequete ao orixá ou vodun

Afrequête no Xambá, percebe-se a semelhança com Iansã, que também é rainha dos ventos

e das tempestades. Na casa Xambá ambos os orixás são femininos e vestem a mesma cor:

rosa, possuindo uma relação mais próxima.

O Xambá só realiza toque para os orixás que possuem filhas (os) feitas (os) na

casa, ou seja, para aqueles que “descem”33. O calendário religioso é distribuído da seguinte

forma:

32 Na Casa das Minas só as mulheres recebem os voduns, os homens tocam os tambores, podendo
ser substituídos por mulheres que tocam. Segundo o autor este representa um “grupo de culto
eminentemente feminino” (Ferreti, 1996, 84).
33 Na tabela que segue está o calendário religioso, onde se constata que não se toca para Ode
(possui apenas um filho iniciado), não se toca para Exu (embora o mês de agosto seja dedicado a ele, mas
em cerimônias fechadas), Nanã (só possui uma filha ‘feita’), Eua, Obá e Afrequete (que não possuem filhas
(os).

133
CALENDÁRIO RELIGIOSO
Toque de Obaluaiê
Janeiro
27/01 - Toque de Balé (não é público)
Fevereiro Toque de Oxum

Março Não há toque (mês dedicado às obrigações do culto da


Jurema)

Abril Toque de Ogum

Maio Toque de Iemanjá


Toque de Xangô
Junho
19/06 - Coco da Xambá – (homenagem ao aniversário de
Mãe Biu)
Julho Toque de Orixalá

Agosto Não há toque (mês dedicado À Exu e às obrigações do culto


da Jurema)

Setembro Toque de Bêji

Outubro Toque do Inhame34

Novembro Não há toque (mês dedicado às obrigações do culto da


Jurema)
13/12 - Louvação a Oiá
Dezembro
Toque de Oiá (domingo subseqüente a Louvação)

34 Nesse mês não se toca para nenhum orixá específico, o Toque do Inhame é dedicado a todos os
orixás. Leal (2000, 37) destaca que “No mês de outubro não há sacrifícios de animais. Todos os orixás
recebem obrigações secas com inhame. É considerada a quaresma dos orixás. A grande Obrigação do Inhame
ocorre em uma quinta-feira e no sábado seguinte todos os orixás recebem obrigação de arroz com camarão,
além da garapa com inhame, oferecida a Orixalá, finalizando com o toque do inhame no domingo.” Sobre o
Toque do Inhame, ver Bastide (1945) e Silva (1989).

134
De acordo com Prandi (2001, 20) para os iorubás tradicionais e para os

seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare

ou Olorum a incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles responsável

por alguns aspectos da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição

humana. O autor acrescenta ainda que:

Os iorubás acreditam que homens e mulheres descendem dos orixás, não


tendo, pois, uma origem única e comum, como no cristianismo. Cada um
herda do orixá de que provém sua marca e característica, propensões e
desejos, tudo como está relatado nos mitos. Os orixás vivem em luta uns
com os outros, defendem seus governos e procuram ampliar seus
domínios, valendo-se de todos os artifícios e artimanhas, da intriga
dissimulada à guerra aberta e sangrenta, da conquista amorosa à traição.
Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são
conquistados, amam e odeiam. Os humanos são apenas cópias esmaecidas
dos orixás dos quais descendem (Prandi 2001, 24).

Sobre o culto aos orixás, Verger (1999, 38) afirma que:

O culto aos Orisa dirige-se, portanto, a dois elos que se juntam – parte
fixada da força da natureza e ancestral divinizado – e que servem de
intermediário entre o homem e o incognoscível.

Fonseca Júnior (1999, 65), por sua vez, aponta o xangô do Recife como uma

religião de predominância de ritos sacrificiais que culminam no final de cada ciclo de

atividades ritualísticas nos toques públicos representando o momento de mostrar a religião

à sociedade:

As festas ocupam uma posição central na estrutura das religiões afro-


brasileiras. Desempenham um papel religioso, pois é o momento
privilegiado de contato com os deuses. Cumprem também um objetivo
proselitista, possibilitando o recrutamento de novos adeptos e a
consolidação dos antigos (Fonseca Júnior 1999, 89).

O toque público é um ritual onde a música domina todo um sistema simbólico.

Seu propósito consiste na comemoração da finalização do ciclo de oferendas (as

135
obrigações), além da expectativa da presença do orixá. Esse momento é de total comunhão

onde a comunidade de indivíduos estabelece contato com a comunidade de divindades:

O temperamento de cada orixá revela-se mais plenamente nos toques do


que nas oferendas porque neles todos os repertórios são executados,
exibindo num espaço delimitado de tempo o sistema integral de idéias
associadas com os orixás. Nesse sentido, cada personagem e sua
representação musical aparece como distintiva e única pelo contraste com
todas as demais (Segato 1999, 240).

Todo toque público no Xambá, exceto o para os gêmeos Bêji e o do Inhame35,

exige uma cerimônia que o anteceda chamada “Obrigação”, que sempre acontece no sábado

anterior. Segundo Costa (2004b, 8) as “obrigações” para orixá representam:

Oferecimentos de “bichos de pena” (galinhas, pintos e galos) e “bichos de


quatro pés” (bodes e cabras) aos orixás em agradecimento à vida e tudo
aquilo que a natureza e os orixás consagram aos devotos do culto.

Estas cerimônias são similares aos toques públicos, onde se toca e canta para os

orixás e estes “descem” para responder às filhas e filhos. O diferencial é justamente a

“matança” dos animais. Contudo, na Obrigação não são todos que vão ser homenageados,

apenas os que “recebem a obrigação”. Um diferencial nestas cerimônias é a ausência do

agogô, simbolizando a prioridade que se confere aos tambores nesta nação. São eles que

“puxam” os toques, diferentemente do candomblé Ketu, onde é o agogô que fornece a linha

guia para os atabaques. Para Sandro Paraíso “é o canto do coro que exerce a função

reguladora do andamento”.

35 Como os Bêji não possuem filhas e filhos, também não recebem sacrifícios. Contudo, no toque
dedicado para esses orixás, as filhas e filhos os ‘incorporam’,voltando a ser crianças mas só nesse dia.
Embora sejam semelhantes aos caboclos recebidos na Jurema, guardam uma diferenciação ressaltada pelo
povo-de-santo que configura justamente a diferenciação do universo de orixás e caboclos. O Toque do
Inhame, como já exposto, representa a “quaresma dos orixás” em que todos recebem “obrigações secas”, ou
seja, não há a matança. (Leal 2000, 37).

136
O trio de “ingomes” nessas cerimônias é acompanhado pelo abê ou xequerê e

exerce um papel importante: enriquece o timbre da orquestra rítmica e está sempre presente

nos rituais do Xambá36. Nesta cerimônia há um elemento fundamental para a manutenção

da tradição do terreiro: o momento de aprendizagem dos tambores. Aqui é permitido aos

jovens e as crianças de ambos os sexos tocarem os ingomes e o abê, sendo a execução

orientada pelos mais experientes.

Na obrigação a ordem em que são entoadas as cantigas para os orixás é a

mesma do toque público, considerando-se somente os orixás a quem são ofertados os

animais37. Cantam-se cantigas específicas para o momento da “matança”, que acontece no

peji38, onde cada toada possui sua função específica.

Antes da obrigação há o ritual de “limpeza” em que se passam os “bichos de

pena” em todas as pessoas presentes para mandar embora todas as possíveis energias

negativas da pessoa e estas sejam eliminadas no sacrifício. Mesmo na “limpeza” a

hierarquia religiosa é absolutamente respeitada: primeiro “são limpas (os)” as (os) que têm

mais tempo de iniciação, depois os mais jovens e por último as crianças e quem não é

iniciada (o). Para Gogó:

A obrigação é um ato muito importante por que o orixá necessita do sacrifício do


bicho. Por que às vezes tem um problema e a gente quer resolver sozinho e é melhor a
obrigação. Ela é até mais importante que o Toque, pois é quando você cumpre a coisa
certa, agradou ao orixá, fez resguardo. A obrigação sustenta o ori e é a cabeça que
sustenta o corpo.

36 No candomblé de Salvador sua presença não é regra, a esse respeito Lühning (1990a, 37)
considera a possibilidade de ter tido maior freqüência no passado: “em Recife é utilizado no xangô sendo
chamado de agbé (em iorubá significa cabaça), o chefe do grupo de tocadores de agbé chama-se alagbé
(literalmente tocadores de cabaça). Isto significa que a denominação dada ao chefe dos percussionistas no
candomblé – alabê – derivou, provavelmente, daquela atribuída ao chefe dos tocadores de cabaça, sendo
transferida para o chefe dos tocadores de atabaques”.
37 Exceto Exu para o qual obrigatoriamente se canta, independente do orixá homenageado.
38 As filhas e filhos que não participam dessa cerimônia permanecem no salão, ajoelhados em sinal
de respeito.

137
Os processos de transmissão e tradição presentes tanto nos momentos privados

quanto nos públicos são considerados como performances distintas. A privada corresponde

às obrigações realizadas pelas (os) filhas (os)-de-santo para os orixás que são cultuados em

cerimônias fechadas ao público externo. Segundo Béhague (1984, 228):

De um ponto de vista estritamente litúrgico, as cerimônias privadas geralmente


manifestam um maior significado que as cerimônias públicas. A privacidade desses
eventos (limitados a membros essenciais do terreiro – todos iniciados) é necessária por
que é o princípio mais vital da vida do candomblé – o axé – é invocado.

138
5. Epahei Iansã! – a deusa dos ventos e das tempestades. . .

5.1. Oiá – suas faces


“Oiá representa mulher guerreira que criou
seus filhos sem ajuda de homem nenhum. Ela
foi o único orixá que foi buscar Exu dentro do
cemitério, por isso ela é tida como a rainha, a
deusa dos eguns. É esposa de Xangô, por isso
o título de rainha, por que Xangô é o rei. É um
orixá de muita bravura, é um orixá de muita
força, é um orixá de muita beleza, muita
sutileza.”
Sandro Paraíso (16/06/04)

Oiá possui várias faces. Todavia, nesta diversidade há uma unidade

simbolizada pelo conjunto das diversas atitudes e relações míticas presentes neste orixá,

marcadas pela coragem, independência, agilidade e sensualidade, que são tanto narradas

pelas filhas e filhos-de-santo do Xambá, quanto relatadas nas obras dos pesquisadores das

religiões afro-brasileiras. Segundo Prandi (2001, 26) os valores e ritos das religiões afro-

brasileiras se baseiam num conhecimento mítico que na ausência dos dados históricos,

explicariam a presença de condutas e elementos desta religião. Como muito dessas


narrativas míticas africanas se perderam no contexto da diáspora, o sincretismo religioso

passou a desempenhar esse papel preenchendo as lacunas históricas em solo brasileiro, não

em termos de sobreposição, mas de equivalência:

É de interesse assinalar aqui o fato de que os membros do culto


consideram a sua mitologia incompleta. Eles têm consciência de que seus
mitos provêm não somente de um ambiente remoto no tempo, mas
também de um continente distante, do qual seus antepassados foram
removidos pela força sem terem conseguido reter nada que, além do
complexo sistema ritual e de extensos repertórios musicais, não fosse um
conjunto vago, idealizado e nostálgico de noções. A conseqüente
necessidade de preencher as lacunas do quebra-cabeça constituído pelos
fragmentos mitológicos recebidos da tradição parece estar expressa no
modo particular pelo qual o sincretismo é usado no culto. (Segato 1995,
140).

Para Jung (1977, 93): “o papel dos símbolos religiosos é dar significação à vida

do homem”. A construção dessa significação é complexa e assim como tantas coisas da

vida, misteriosa, condição intrínseca a qualquer experiência religiosa. Na literatura afro-

brasileira é possível encontrar várias narrativas mitológicas relacionadas a este orixá, que

explicam a sua relação com os diversos elementos presentes nesta religião e em suas

cerimônias. Reconhecendo a importância da mitologia para a compreensão deste orixá e

das expectativas e atribuições à ele conferidos considero algumas narrativas coletadas por

Verger (1999) e recentemente por Prandi (2001, 294-311). Sobre Oiá Prandi revela:

Oiá ou Iansã dirige o vento, as tempestades e a sensualidade feminina. É


a senhora do raio e soberana dos espíritos e mortos, que encaminha para
outro mundo. (Prandi 2001, 22) .

Considero aqui apenas as narrativas presentes no Xambá e que, no entanto,

nem sempre podem ser explicadas através da mitologia e sim da tradição na sua totalidade.

O povo-de-santo, algumas vezes, afirma seguir a tradição embora não consiga explicar a

presença de um ou outro elemento específico, mas obviamente dominam o sentido do todo,

outras vezes, certas informações são restritas às pessoas do terreiro. Abaixo enumero

140
trechos das narrativas sobre Iansã presentes no Xambá e que contribuem para a construção

de sua identidade:

1. Oiá ganhou vários atributos de seus amantes como o direito de

utilizar a espada que ganhou de Ogum, pai de seus nove filhos, para se defender e defender

os demais. A espada é um elemento que compõe a sua indumentária no Xambá e é

apontada como uma ferramenta que “corta o mal”. Sobre a relação entre Oiá, Ogum e

Xangô, Verger (1999, 388) relata que: “Oya era mulher de Sango (. . .) foi casada antes

com Ogum, mas este era tão malvado que ela fugiu pra junto de Sango, desposou-o e ficou

com ele”.

Espada utilizada por


Mãe Biu quando
incorporada. Hoje
fica no assentamento
de Iansã, no peji do
terreiro.

141
2. A partir do momento que Oiá soprou o fogo da forja de Ogum para

ajudá-lo, pois este precisava fabricar mais armas para a guerra em que Oxaguiã lutava, Oiá

passa a dominar os ventos e as tempestades.

Santa Bárbara vestida de rosa, dominando as tempestades e os


raios como Iansã. Esse quadro pertence ao acervo do terreiro
Xambá. Apesar de uma imagem como esta não substituir a do
orixá, serviu por muito tempo como um preenchimento das
lacunas mitológicas. Hoje esta imagem é contestada pelos mais
jovens no contexto da reafricanização e negação de elementos do
catolicismo neste culto.

142
3. Oiá foi dividida em nove partes (“Iyámesan” - a mãe transformou-se

em nove) pela varinha mágica de Ogum e este, que antes havia compartilhado os segredos

da varinha com Oiá, foi dividido em sete partes (Ogum Mejê).

4. Oiá, deusa dos raios e dos ventos, utilizou seus poderes para libertar

Xangô, seu marido depois de Ogum.

5. Oiá ganha de Obaluaê o reino dos mortos e passa a ser chamada de

Rainha Oiá Igbalé, a condutora dos espíritos. No Xambá como nos xangôs em geral Oiá

Igbalé é chamada de Iansã de Balé. A palavra “Balé” viria do iorubá “Igbalé – quarto

secreto” que Cacciatore (1977, 62) define como a:

Casa dos mortos – pequena peça fora da casa, no terreiro de candomblé e


também em muito de umbanda. No chão, ao longo das paredes, há potes
ou buracos cavados na terra que guardam o espírito dos mortos até sua
partida definitiva para o astral. Aí são colocadas oferendas de comidas
realizadas nas cerimônias a que só os homens podem assistir. Também é
chamado quarto de Balé e Ilê-saim.

6. Egungum (egun) é o nono filho de Oiá, “o antepassado que fundou

cada família, o ancestral que fundou cada cidade”. Egungum só se curva diante de Oiá, em

sinal de respeito.

7. Oiá realiza uma cerimônia denominada posteriormente de axexê em

homenagem ao seu pai adotivo que havia falecido e “Olorum, que tudo via, emocionou-se

com o gesto de Oiá e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orun”1.

8. Prandi narra o poder que a “santa” tinha de se transformar num

búfalo. Nos depoimentos das filhas e filho de Oiá do Xambá esta narrativa é destacada

simbolizando sua transformação de mulher “pra bicho” quando contrariada.

1
O “axexê” consiste num ritual funerário que também está presente no Xambá.

143
9. Oiá não “come” carne de carneiro por ter sacrificado este animal

para conseguir ter filhos. Por ter gerado nove filhos passou a ser chamada de Iansã, a mãe

de nove filhos2.

10. Verger (1999, 389), baseado em depoimentos de africanos, explica

por que Oiá é chamada de Iansã:

Osun é a mulher de Sango. Oya já está velha, vai ao encontro de Sango e


o acha muito belo. Diz que quer casar com ele. Sango replica que ela é
velha demais. Ela responde que sabe que é velha, mas que está decidida
a desposá-lo. Sango diz-lhe que ela vá então buscar seus pertences e
volte, e ele se tornará seu marido. Depois que eles se instalam, Oya não
quer que Sango saia com outras mulheres. Diz-lhe que desde o dia em
que ela nasceu e até sua morte pertence a ele e morrerá no mesmo dia
que ele. Sango diz a si mesmo: “A velha que chegou esta noite juntou o
amor das outras mulheres em seu coração. É por isso que a chama a mãe
da noite, Iya (o) san”. No dia em que Sango voltou pra sua terra, Yansan
acompanhou".

Ao considerar as narrativas relacionadas à Iansã é preciso também destacar a

ótica de quem não as concebe como mitologia, mas como parte de sua história. Pai Ivo3

refuta a idéia de que os orixás sejam mitos e afirma que este tipo de tratamento só se deu

em relação às religiões que representam minorias como um mecanismo de desvalorização

das mesmas:

Eu não digo nem mitologia, por que mitologia é mito. Digo que é
história, que pode ser uma história real. Quando se conta que Noé pegou
todos os animais e botou dentro de uma barca, não dizem que é mitologia
da religião, dizem que é a história (. . .) A civilização européia foi mais
moderna, então eles começaram a registrar mais a história do que a nossa,
então a nossa história eu conto como história.

Iansã ou Oiá é uma divindade especial para a nação Xambá. Orixá da falecida

Mãe Biu e guardião do terreiro, todas as decisões são tomadas a partir de sua consulta

2
Iansã no Xambá “come” cabra vermelha, galinha vermelha, perua, acarajé, inhame e bagre, no mês
de outubro (Leal 2000, 26).
3
Entrevista realizada em 16/06/2004.

144
através do jogo de búzios. Mãe Biu tinha, na realidade, Ogum Cecê, deus do ferro e da

guerra como orixá “de cabeça” sendo iniciada como filha deste orixá e, Oiá Meguê como

“ajuntó”. Oiá Meguê seu segundo orixá ou “ajuntó” tomou o lugar de Ogum na fundação e

administração do terreiro. A Iansã de Mãe Biu exigiu a continuidade do terreiro de Maria

Oiá que também era regido por Iansã – Oiá Dupé4.

Cada “santo”5 possui características e qualidades específicas que são

identificadas pelo nome particular de cada orixá dentro de sua própria categoria. Iansã ou

Oiá, por exemplo, representa uma categoria que engloba diversas Iansãs ou Oiás que são

particulares. Duas pessoas não possuem a mesma Oiá o que torna o universo religioso

individualizado, embora também compartilhado em relação à categoria de seu orixá. Outro

aspecto importante em relação aos nomes, que configura também a identidade particular de

cada filha ou filho, é que este não representa um fato público, pelo contrário, as filhas e

filhos-de-santo não revelam a qualidade do seu orixá. Os nomes são conhecidos apenas

pelas pessoas do terreiro ou por pessoas mais íntimas. É algo que absolutamente não se

deve perguntar pois é muito particular. No Xambá o “orixá em terra” não revela seu nome

aos presentes. Para saber a “qualidade do santo” é necessário jogar os búzios.

Os reajustes ou negociações religiosas, como o caso de Mãe Biu, que assumiu

o terreiro sendo regida por seu orixá “ajuntó”- Oiá Meguê, são questões complexas. A

partir deste contexto pode-se afirmar que apesar dela não ter Iansã como “orixá de cabeça”,

esta exercia um papel muito forte na vida da ialorixá e nas questões do terreiro, sendo, por

isso, considerada como filha de Iansã. Sobre as negociações religiosas deste âmbito

presentes no xangô do Recife, Segato (1995, 233) afirma que os diferentes traços da

4
Uma mesma pessoa pode ser filha de um ou mais orixás, até mesmo três ou quatro. O comum é
que um filho-de-santo tenha dois: o “orixá de cabeça” - aquele que rege a vida da pessoa com maior ênfase -,
e o “ajuntó”- adjunto ao principal.
5
Outra designação para os orixás utilizada pelo povo-de-santo do Xambá.

145
personalidade do indivíduo são equilibrados entre seu orixá “de cabeça” e o “ajuntó” tendo

às vezes até a atuação de um terceiro ou quarto orixá que complementa a atuação dos dois

primeiros. Nesta perspectiva, o ori ou a cabeça representa um templo sagrado que a autora

(1995) define como a arena onde são reproduzidos os confrontos e alianças entre as

divindades do panteão mitológico que atuam diretamente na construção da identidade de

cada pessoa. A assimilação da personalidade do orixá pelo indivíduo pode ser concebida

como um “encontro de eus” que são distintos, mas complementares:

O eu tem um papel de administrador e é percebido como um agente


não-autocrático que faz as vinculações com o orixá, amparando-se
e afirmando-se através da associação com ele. Às vezes o eu se vê,
se sente interpelado pelo santo. Outras vezes ele o interpela.
Porém, de forma geral, o santo é concebido como o termo forte
nessa relação (Segato 1995, 22).

Em relação à Iansã há também uma menção significativa do povo-de-santo em

relação às suas filhas como mulheres de personalidade forte que marcam a história do

terreiro, a começar pelas falecidas ialorixás Maria Oiá e Mãe Biu. Pensar neste orixá

corresponde pensar na atuação feminina – as mulheres de Iansã desempenham papéis

fundamentais na manutenção da tradição do terreiro, sendo muitas vezes caracterizadas por

um perfil marcante de guerreiras, assim como a própria divindade. É importante destacar

que a personalidade da filha (o) e da divindade se confundem compondo alicerce

fundamental tanto na construção da identidade individual como na do grupo religioso, bem

como nas significações musicais, visto que o filho se identifica com o repertório de seu

orixá:

Esta (pessoa) assume a identidade que lhe foi imputada e acomoda-se a


ela, respondendo à expectativa de comportamento que sobre ela pesa.
Esse processo é reforçado ainda pelo fato de que cada filho-de-santo
incrementa sua auto-estima, tendo como referência seu orixá (Segato
1995, 52)

146
A construção da personalidade da filha ou filho, bem como a elevação de sua

auto-estima a partir do contato e da referência em torno do orixá presente no universo do

Xambá, é ricamente abordada por Verger (1999, 24):

Eles extraem esse sentimento de orgulho da fé real que conservaram em


relação ao poder de seus Orisa e Vodun, que, para eles, nos momentos
penosos, são o amparo mais seguro contra a angústia e as humilhações e
que, nos momentos de alegria, lhes proporcionam o sentimento exaltado
do gênio de sua própria raça (. . .) durante as cerimônias, o corpo dos
adeptos é visitado pelos deuses e, quando estes partem, permanecem em
seus filhos reflexos que os engrandecem e enobrecem. De empregadas
domésticas e lavadeiras humilhadas, de carregadores e operários mal
pagos, eles se tornam filhos e filhas de Deus, respeitados, admirados,
cortejados.

Iansã como já mencionado, é marcada por um perfil de mulher independente,

guerreira, corajosa, sensual e bonita, traços que também são atribuídos às suas filhas e

filhos. Este orixá carrega consigo um forte senso de justiça além de uma relação com a

morte (o universo dos eguns). Na ótica de seus filhos e filhas é muito respeitada por

possuir o poder de protegê-los do mal e da morte. Ao mesmo tempo em que “qualidades”

são ressaltadas, seus “defeitos” também são reconhecidos como particulares, como o de ser

intempestiva. Como conseqüência, suas filhas (os) também possuem esta característica.

Todavia, toda concepção generalizante é limitada e isso também dever ser destacado, logo,

ninguém é igual, assim como também não existe uma Iansã igual.

Esta divindade, por reger o terreiro, atua também como mãe e protetora. Seu

Maurício César da Silva (padrinho e ogã do Xambá)6 expõe uma concepção muito presente

no universo desta nação:

Pelo fato de ser o orixá da casa, há vontade de render homenagem à ela.


A gente se encoraja muito, dá força para nós. Uma mulher guerreira. Sou
filho de Xangô, minha mãe é Iansã.

6
Entrevista realizada em 15/06/2004.

147
Em relação às crianças, esta nação possui a particularidade da predominância

feminina de filhas de Iansã. Até ser realizado o jogo de búzios para saber qual o orixá da

criança, independente do sexo, é comum vesti-las de cor de rosa, a cor de Oiá. Todas essas

questões são importantes para reforçar a importância desta divindade para o Xambá e

conseqüentemente de Mãe Biu que, como líder religiosa, construiu uma imagem de

referência também como filha de Iansã, estendida para o terreiro. As concepções de

tradição e gênero presentes nesta casa são guiadas por uma linhagem de guerreiras: Iansã,

Maria Oiá e Mãe Biu, sendo a última a maior referência. Para o ogã Cleyton José da Silva

(Guitinho), o sonho de toda menina do Xambá é ser filha de Iansã. A citação ilustra bem o

significado do orixá e de sua filha mais representativa para a dinâmica do terreiro e sua

identidade.

Costa (2004b), abordando o universo cotidiano do terreiro Xambá, constrói

uma bela narrativa sobre as outras lideranças femininas que trabalharam arduamente ao

lado de Mãe Biu na manutenção da tradição do terreiro, enfrentando situações adversas e

afirmando-o como “um universo de domínio feminino”: Donatila Paraíso do Nascimento,

Tia Tila, dedicou toda sua vida aos orixás e sucedeu a sua irmã Mãe Biu como ialorixá;

Maria Luíza de Oliveira, Tia Luíza, liderança política do bairro, manteve em sua própria

casa a sede da Associação dos moradores e, junto com sua irmã, Mãe Biu, organizou o

carnaval do bairro e outras festividades e, Laura Eunice Batista, Tia Laura, filha-de-santo

que morava no terreiro e era responsável pelas questões internas, da decoração ao preparo

das comidas sagradas. Continuando, Costa (2004b, 1) sintetiza a importância das famílias

Paraíso, Oliveira e Batista para a formação da história do Xambá através, principalmente,

da atuação destas:

Mulheres que através de suas ações, heranças e de suas experiências de


vidas contribuíram para a manutenção da religião afro-brasileira, nas
décadas de 1950, preservando o Culto Xambá, e das articulações sociais,

148
políticas e culturais na localidade. Através de uma fundação de
associação de moradores, organização das folias de momo, captação de
recursos e/ou incentivando seja através de uma palavra de orientação ou
fazendo valer sua força espiritual, pedindo aos orixás proteção e ajuda
para seus/as filhos/as-de-santo, parentes e amigos/as para obterem casa
própria, levando a alegria ao promoverem festas do dia das crianças, das
mães, de carnaval, bingos, além das animações com os preparativos em
dias de toques nas festas dos orixás.

Todas essas questões compõem a história do terreiro e complementam a

atuação da líder religiosa Mãe Biu, que confundida com seu orixá Iansã era considerada

pessoa de iniciativa e coragem, além de ser leal às filhas e filhos que a tinham como

referência para todas as questões da vida, do religioso ao cotidiano. Hoje, pensar em Oiá

Meguê significa pensar em Mãe Biu. As duas figuras se confundem representando uma

mesma referência. Ao se cantar as toadas deste orixá é o mesmo que homenagear a falecida

ialorixá, e, a cada ano são confeccionadas camisas com sua foto e frases de homenagem e

saudade. Muito embora Pai Ivo seja respeitado como babalorixá, a referência religiosa e

histórica do Xambá continua sendo “o xangô de Mãe Biu” simbolizando a sua

representatividade mesmo após sua morte, o que é facilmente compreensível, visto que

esteve à frente do Xambá por mais de quatro décadas.

149
5.2. Oiá – suas cerimônias

“Oya ni o to iwo efon gbe”


Oya é a única que pode agarrar os chifres do
búfalo” 7.

Cada orixá possui um repertório musical específico. Assim como a música das

demais divindades, a executada para Oiá é singular e reconhecida pelas (os) filhas (os)-de-

santo por diversos elementos como o texto, a melodia, o ritmo, além de características

próprias relacionadas à divindade. As cantigas possuem significados que são interpretados

subjetivamente, mas dentro de um senso conceitual comum. Para Pai Ivo8 :

A música é um recado. Cada música é um recado do orixá contando uma


história, a epopéia do orixá. Essas coisas todas não foram passadas pra
gente e hoje não posso dizer a você com exatidão. Mas os orixás são
trazidos pela música. Em toda religião a música é como um chamamento
de toda espiritualidade.

Na nação Xambá, Iansã é homenageada em três cerimônias anuais que

apresentam caráter distintos: Louvação, Toque e Toque de Balé.

7
Verger (1999, 405) – “orikis de Oyá – forma de saudação – louvação aos Orisa – exaltação do
poder, fatos, proezas do ancestral divinizado”.
8
Entrevista realizada em 16/06/2004.

150
5.2.1 Louvação à Oiá

“Oya toto hun”9


Oya, respeito

À esquerda, trono de Oiá no salão, à direita, no memorial da nação Xambá.


Este era utilizado por Mãe Biu e representa o símbolo da cerimônia de
Louvação à Oiá. Com o falecimento da ialorixá ninguém mais senta no trono.

Cerimônia que acontece anualmente, no dia 13 de Dezembro, data da primeira

coroação realizada por Pai Rozendo, em 1927, como ritual conclusivo da iniciação

9
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).

151
religiosa da primeira ialorixá da nação Xambá – Maria Oiá. Consistia na coroação da

ialorixá, “incorporada”10 com Iansã utilizando sua espada, coroa e trono.

Coroa, espada e trono de Mãe Biu.


Memorial Severina Paraíso.

10
Este é um dos termos utilizados pelos filhos-de-santo para designar o estado de transe, assim
como “rodar com o santo”.

152
Mãe Biu incorporada com Iansã, carregando sua espada.
Foto do acervo do Xambá

Com a espada Iansã, na dança, realiza gestos com as mãos que indicam “cortar

o mal”. A coroa e o trono simbolizam a consolidação deste orixá feminino como rainha dos

eguns. Um dos momentos mais marcantes da “louvação” consistia na homenagem em que

as filhas e filhos-de-santo já iniciados no Xambá e também “incorporados” com seus

orixás prestavam à Mãe Biu, “com Iansã”, em seu trono de rainha. Esta cerimônia tem a

duração de apenas uma hora, no entanto, é representativa pois, não se realiza nenhuma

outra cerimônia similar para nenhum outro orixá. Só Iansã recebe essa homenagem no

calendário religioso desta nação.

Após o falecimento de Maria Oiá, Mãe Biu retomou a cerimônia mantendo a

tradição, na mesma data, até o seu falecimento. Todas as indumentárias deste orixá só

153
foram utilizadas por mulheres – Maria Oiá e Mãe Biu, fato destacado pelo povo-de-santo

que afirma que só uma filha de Iansã poderá sentar novamente no trono. É importante

ressaltar que foi Maria Oiá quem iniciou, em 1932, Mãe Biu e que a decisão da última em

continuar a louvação se deu a partir do jogo de búzios onde Iansã expressou tal desejo.

Mãe Biu com Iansã no trono de rainha dos xambanianos.


Foto do acervo do Xambá.

154
A cerimônia que acontece por volta do meio-dia caracteriza a tradição da nação

Xambá, única nação afro-brasileira a realizá-la e consiste basicamente na entoação de

cantos e toques para Iansã. O repertório musical é praticamente o mesmo cantado nas

cerimônias públicas. Pai Ivo explica que:

No dia 13 só canta pra Iansã. Por que é como o coroamento de Iansã. É a


única festa que não se canta pra Exu. Canta pra Iansã, depois de cantar
pra Iansã, os orixás vêm, por que são filhos da casa e são filhos de Iansã.
E depois se canta pra cada orixá que veio de Ogum a Orixalá. E se
encerra cantando pra Iansã.

Atualmente a manutenção da “Louvação” representa uma forma de dar

prosseguimento à tradição do terreiro retomada por Mãe Biu. Contudo, devido ao fato do

atual dirigente, Pai Ivo, ser do sexo masculino não há a coroação, mas isso não impede que

esta se transforme num momento solene em que todos querem prestar homenagem à Iansã,

a fim de manter a tradição do Xambá com respeito e alegria.

Louvação à Iansã no terreiro de Arthur Rozendo.


Fotos de Pierre Verger (Revista O Cruzeiro, 19/11/1949).

155
Durante o tempo em que realizei essa pesquisa assisti a duas cerimônias de Louvação à

Oiá. A primeira em 2003, única cerimônia realizada nesse ano, devido o falecimento de

Mãe Tila, consistiu na entoação dos cantos e toques para Iansã, após a execução de seu

toque específico de tambor – o Ecó ou Egó (faixa 2 do cd em anexo). Segundo Sandro

Paraíso este toque representa o “símbolo musical” de Iansã pois acompanha o oniká deste

orixá. É realizado sobre um padrão de 12 pulsos que está transcrito juntamente com o

padrão realizado pelo agogô e as palmas executadas pelo coro:

A transcrição do Melê, último do trio dos tambores (do grave ao agudo), é reduzida
apenas à execução das mãos direita (haste para cima) e esquerda (haste para baixo),
diferenciadas apenas pelos acentos que são empregados. A escolha para a
transcrição é tomada como uma simplificação dos padrões executados pelos outros
dois tambores. É importante observar a relação que o Melê mantém com o agogô e
com as palmas executadas pelo coro e vice-versa, assim como também se observa
em relação ao canto e aos padrões realizados por estes.

Nessa cerimônia as filhas e filhos-de-santo “feitos” receberam seus orixás, mas

não usaram suas roupas de “iaô” como se usava nos tempos de Mãe Biu e sim a roupa do

seu orixá correspondente11.

11
Após a morte de Mãe Biu o trono deixou de permanecer no salão, por ninguém mais poder sentar-
se nele. Com a construção do Memorial Severina Paraíso em 2000, o trono passou a ficar em exposição,
sendo esse o seu lugar atual.

156
A segunda Louvação, ocorrida em 13 de dezembro de 2004 apresentou três

elementos novos: a realização da “Alvorada” pela manhã, a presença do trono de Iansã

utilizado por Mãe Biu e a utilização das roupas de “iaô” pelas filhas e filhos-de-santo da

casa12. A “Alvorada” antecede a Louvação e consiste numa cerimônia que é restrita ao

povo-de-santo. Acontece por volta das cinco horas da manhã e possui a duração de uma

hora. Nesta cerimônia são cantadas apenas as toadas de Oiá, estando esta presente “em

terra” através de suas filhas e filho, sendo também homenageada por outros orixás que

fazem à ela suas reverências. Ao término da cerimônia há uma salva de fogos para

homenageá-la13.

Como na primeira cerimônia, esta Louvação iniciou com a execução do Ecó,

acompanhando o “oniká” de Iansã, num andamento bastante lento. Neste momento todos

ficam ajoelhados em sinal de respeito. O oniká é executado apenas uma vez por ano, no dia

do Toque Público do orixá homenageado. No caso específico de Iansã o “oniká” (faixa 2

do cd em anexo) é executado duas vezes, na Louvação e no Toque:

12
Pai Ivo consultou Oiá através dos búzios e esta lhes deu a devida autorização.
13
Desde que Mãe Biu faleceu não se fazia a “Alvorada”.

157
Segundo Pai Ivo, esta cantiga no Nagô é cantada como uma toada normal do repertório de

Iansã, enquanto que no Xambá representa sua louvação. É fácil compreender o ‘por que’

desta diferença, pois a toada menciona Oiá Meguê.

158
O momento do oniká representa o momento da Louvação, em que o santo é

especialmente reverenciado. A foto abaixo foi tirada no dia do Toque de Orixalá

(25/07/2004). Pai Ivo está com o “xere” de Xangô em mãos, posteriormente usa a “sineta”

característica de Orixalá. No chão, ao centro Nanã está presente e também é reverenciada.

Após cantar o “oniká” o babalorixá “puxa” a toada para “chamar as Iansãs à terra”. Esta

toada é acompanhada pelo toque de Despedida, característico de Iansã (faixa 3 do cd em

anexo). O agogô realiza um padrão rítmico de 16 pulsos acompanhado pelos tambores.

Esta cantiga apresenta vários elementos que serão abordados posteriormente:

159
Ao mesmo tempo em que cantava, Pai Ivo passava a mão nas cabeças dos

filhos e filhas que estavam “irradiados”, ou seja, o estágio intermediário do transe, para

que estes recebessem o orixá. Após todos os orixás terem “descido” são levados ao peji, o

160
quarto dos santos, para vestirem suas roupas de “iaô”. Devidamente vestidos todos saíam

do quarto e seguiam ao trono para homenagear Iansã e, conseqüentemente Mãe Biu,

prestando a saudação do “otobalé”.

A Louvação é também um momento de diálogo, de recados dos orixás para

suas filhas e filhos. Na época de Mãe Biu, Iansã através dela, transmitia recados para as

pessoas, do seu trono de rainha e estes eram atentamente ouvidos. Nas Louvações de hoje,

os orixás dão seus recados e são homenageados através de suas cantigas. Conforme a

tradição dos Toques em geral, para finalizar o momento dedicado à Iansã é puxada a toada

para “mandar as Iansãs embora”, “despachá-las” transcrita abaixo, e a Louvação termina

sendo servido o tradicional almoço aos presentes, o momento de confraternização. Esta

cantiga (faixa 24 do cd em anexo) é acompanhada pelo toque Adarrum, padrão de 8 pulsos:

161
Como já mencionado anteriormente cada ciclo do agogô está separado pela pequena
vírgula, neste caso, o padrão é de 8 pulsos. Assim como nas demais cantigas é
possível perceber a relação deste juntamente com as palmas e com o canto, bem
como, com o toque de tambor Adarrum, cuja transcrição será apresentada mais
adiante.

162
5.2.2. Toque de Iansã

“Oya aroju b(a) oko ku-Oya”14


Oiá que morre corajosamente com seu marido.

O toque de Iansã é realizado no mês de dezembro, no domingo subseqüente à

“Louvação”15. Tem a duração de aproximadamente quatro horas. Canta-se para todos os

orixás, começando por Exu e terminando com Orixalá. Em seguida é realizada a “volta dos

tambores” e a execução instrumental dos “onikás” dos principais orixás do terreiro. No

caso do Toque de Iansã, no momento que se cantar para ela um número maior de cantigas16

é “puxado”.

Os procedimentos musicais da Louvação são aqui repetidos: toca-se o Ecó,

seguido por seu “oniká” e em seguida, puxa-se a toada para “chamar as Iansãs”17.

Depois todas as Oiás serem saudadas e, se desejarem, puxarem suas próprias

cantigas, o babalorixá canta a cantiga “Oiá Deô boim uló” para “despachá-las”, terminando

assim a parte dedicada à Iansã. Após o “despacho” das Iansãs canta-se para Afrequête,

14
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
15
Neste ano de 2004 aconteceu no dia 19.
16
Neste ano o trono de Oiá, que foi retirado do Memorial Severina Paraíso para o salão principal do
terreiro por causa da Louvação do dia 13 de dezembro, permaneceu no salão para o Toque de Iansã e
continuou a ser constantemente reverenciado pelos orixás “em terra” através do “otobalé”.
17
Cantou-se muito pra Iansã, inclusive várias toadas que são características do Toque de Balé e que
normalmente não estariam presentes em toques públicos, mesmo quando fosse cantar pra este orixá. Neste
dia houve também a “saída de Iaô” de um filho de Oxum que foi retirado do peji pelo Xangô de Giselda
Paraíso da Silva (Ziza), ou seja, esta “incorporada” e com suas roupas de “iaô” é a primeira a dançar quando
tira o “iaô” do quarto para dançar e ser cumprimentado pelos demais. No momento de Iansã, o “iaô” já estava
recolhido no peji, sendo um momento dedicado apenas à “santa”. Durante sua especial parte dentro do
Toque, várias Iansãs estavam “em terra” e “puxaram” suas próprias toadas, aquela específica da identidade
de sua qualidade de Oiá, que já foi discutida anteriormente. E aconteceu de Pai Ivo começar a cantar a toada
para “mandá-las de volta” e uma Iansã começar a cantar a sua toada, sendo esta respeitada e todos passarem a
cantar com ela e o babalorixá então volta a assumir seu posto de solista.

163
Oxum, Iemanjá e Orixalá. Há ainda a tradicional volta dos tambores e quando os ogãs

retornam para tocar os “onikás”, detendo-se mais no de Iansã, algumas Oiás retornam aos

corpos de suas filhas e dançam18.

Nos toques a quantidade de cantigas varia conforme a memória do solista e às

exigências das “Iansãs” que podem puxar a sua própria toada19, contudo, a seqüência das

toadas deve ser respeitada pelo fato de cada cantiga possuir significado e função específica.

Como já foi colocado, o orixá desempenha um papel extremamente

significativo na religião. Diretamente relacionado aos traços da personalidade de seus

respectivos filhos, o orixá traça condutas e exige a realização de “obrigações” ou ritos

sacrificiais que culminam nos toques públicos:

São lhes feitos em privado, sacrifícios de animais e oferendas diante dos


respectivos pegi (altares), os quais são seguidos de cerimônias públicas
no barracão - uma vasta sala na qual os deuses são homenageados com
cantos e danças executados ao som de tambores. Os deuses, respondendo
a estes apelos, vêm reencarnar-se nos corpos dos filhos e filhas-de-santo
que lhes estiverem consagrados. (Verger 1992, 97).

No dia anterior ao toque de Iansã é realizada a “Obrigação”. Esta cerimônia

consiste no sacrifício de um “bicho de quatro pés” dedicado especialmente à Oiá e mais

vários “bichos de pena”, além de “obrigações” das filhas e filhos para seus orixás. A

“obrigação” representa um longo dia de trabalho e dedicação aos orixás onde canta-se,

toca-se e é feita a “limpeza” em filhas e filhos e em todos que derem “obrigações”. Nesta

cerimônia o sangue do animal sacrificado é utilizado para reforçar o “ori” da pessoa. Após

o sacrifício os bichos são preparados (assados ou cozidos), ofertados às divindades e

levados ao peji. Depois de ofertadas, são distribuídas entre os filhos e filhas comem as

18
A estrutura ritual do toque pra Iansã é a mesma do demais toques públicos. Ver capítulo 4.
19
No Xambá aquele orixá que tiver o “axé de fala” pode se comunicar verbalmente com as pessoas,
inclusive puxar sua própria cantiga. Este é um estágio avançado, possível apenas para os orixás que
incorporam nos filhos e filhas já feitas.

164
obrigações e, em comunhão, compartilham entre si suas diferentes ofertas. Por volta das

18:00 horas canta-se para a saída do “ebó”, ou seja, o que sobrou das obrigações que não

deve ir pra o lixo, mas para a natureza, para as divindades configurando uma relação de

troca, de reciprocidade.

Todos esses momentos carregam um significado de louvação dedicado aos

orixás, como já destacou Costa (2004b, 8), “em agradecimento à vida”. Consistem também

de momentos de comunhão entre o povo-de-santo que passa o dia inteiro no terreiro

trabalhando e compartilhando. A música configura um elemento sintetizador estando

presente em todo ritual. Em resposta a essa homenagem Iansã “desce em terra”,

exclusivamente para compartilhar esse momento singular de diálogo entre humano e

divino.

5.2.3. Toque de Balé

“Afefe iku”20
Vento da morte

O toque de Balé possui um caráter fúnebre e é realizado anualmente, no dia 27

de janeiro, data do falecimento de Mãe Biu. Apresenta dois momentos distintos que são

realizados em espaços sagrados também distintos: a “obrigação” de Balé - acontece no

quarto de mesmo nome onde só os homens participam e o Toque de Balé - ocorre no salão

assim como os que são dedicados aos demais orixás, porém não é aberto ao público

20
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).

165
externo. Glória Maria Oliveira da Silva (Gogó)21 menciona que a restrição às mulheres na

Obrigação de Balé pode ser explicada através da mitologia de Iansã que “ao descobrir os

segredos do culto aos eguns, também restrito ao universo masculino, foi castigada por ter

entrado no Quarto do Balé e, apesar dela passar a ser a rainha dos eguns, tal castigo se

estendeu às demais mulheres”. Mãe Biu foi a única mulher a participar das obrigações

realizadas por seu pai-de-santo, Manoel Mariano, em seu terreiro Nagô, embora todos

ressaltem que, como a tradição exige, Mãe Biu não tocava nos objetos sagrados. Sua

presença refletia o poder e prestígio que possuía como ialorixá.

Após a morte de Mãe Biu as obrigações e também o Toque de Balé passaram a

ser dirigidos por Pai Ivo no terreiro Xambá. Mesmo no momento de restrição de gênero da

“obrigação” as mulheres têm participação indireta, pois ficam à porta do quarto

respondendo aos cantos puxados pelo babalorixá. É comum ouvir das filhas-de-santo:

“mulher não participa da Obrigação de Balé, a gente só faz cantar”, no entanto esse “só

cantar” certamente reforça a importância de seu papel musical para esta nação e seu

conhecimento em relação ao repertório musical, mesmo quando este é realizado “apenas”

por homens.

No Toque homens e mulheres participam normalmente do ritual. O repertório

para Iansã Balé é entoado quase que exclusivamente nos dois momentos anteriormente

citados (Obrigação e Toque). Quando esse repertório é entoado nos toques públicos ocorre

em número muito reduzido. Por conta dessas restrições este repertório só é mencionado

neste trabalho quando presente nos toques públicos. No Toque de Iansã realizado em 2004,

21
Entrevista realizada em fevereiro de 2005. “Gogó” é filha-de-santo do Xambá, filha de Iemanjá e
também filha de Luiza Oliveira da Silva. Dona Luiza foi uma das mulheres que marcou a história do terreiro
Xambá ao lado de sua irmã Mãe Biu. “Gogó” como é carinhosamente chamada, é também mãe de Cleyton
José da Silva (Guitinho, filho de Ogum) e Leila Luíza Oliveira da Silva (filha de Orixalá que foi iniciada no
ano passado, em 2004).

166
algumas cantigas de Balé foram cantadas para homenagear este orixá. De forma geral

pode-se afirmar que estas cantigas não apresentam um caráter diferente das demais

cantigas, embora sejam executadas em andamento mais lento. São entoadas pelo povo-de-

santo com tristeza por serem relacionadas à morte.

“Gogó”22 declarou que assim como as demais mulheres do Xambá, nunca

entrou no Quarto de Balé, mas que este representa a morada dos eguns. Quando uma filha

ou filho-de-santo morre seus pertences devem ser devidamente “despachados”. Todos os

seus objetos “assentados” no peji como quartinhas, guias e adereços do seu orixá são

“despachados” conforme os fundamentos do seu orixá, se é do mar, do rio ou da mata.

Musicalmente há uma continuidade em relação às cantigas das Iansãs das

pessoas falecidas. Estas cantigas geralmente continuam presentes nos toques públicos

sendo esse um momento de rememoração dos que já foram e tendo a música como veículo

principal.

Em relação à Iansã de Balé e suas filhas e filhos há uma restrição à

“incorporação”. As filhas de Iansã de Balé possuem suas cantigas particulares, mas não

recebem o orixá, pois seria o mesmo de receber o “vento da morte” narrado no “oriki”

exposto anteriormente (Verger 1999, 405). As cantigas de Iansã de Balé carregam este

perfil embora nem sempre sejam lentas e com canto melismático. É o caso das três cantigas

que seguem, executadas apenas no toque de Iansã. A primeira toada com andamento rápido

é acompanhada pelo toque Jeje, cujo padrão é do agogô é de 16 pulsos, embora o melê

execute padrão de 12. Normalmente este toque acompanha cantigas cujo caráter não é

associado ao universo de Balé. Esta cantiga (faixa 21 do cd em anexo) menciona uma

22
Entrevista realizada em Fevereiro de 2005.

167
“Iansã de Umbanda” que todos afirmam ser dona de um caráter arredio e, ao mesmo tempo

temeroso:

168
Assim como a cantiga anterior, a cantiga abaixo (faixa 22 do cd em anexo)

apresenta um caráter mais ativo ou menos “pesado” do Balé. Esta é acompanhada pelo

toque da Despedida que acompanha tanto as cantigas mais lentas quanto as mais rápidas:

169
Acompanhada pelo toque Adarrum de 8 pulsos, a próxima cantiga (faixa 23 do

cd em anexo) é um pouco mais lenta que as duas anteriores. Esta ilustra o fato de que

mesmo no repertório do Balé, há um compartilhamento musical. Este toque acompanha

várias cantigas dos diferentes orixás.

170
O próximo grupo de cantigas dedicadas à Iansã de Balé já carrega, segundo a

concepção do povo-de-santo “o pesar do universo fúnebre”. Com cantos melismáticos, um

“flutuar” sobre as notas e o tempo, mostram figuras mais longas em relação à agilidade do

canto silábico presente na maioria das cantigas de Iansã, inclusive nas cantigas anteriores e

o andamento é bastante lento. As próximas “Mambaloê” e “Oiá de Malê” (faixas 10 e 16

do cd em anexo), são acompanhadas pelo toque Sete por Um, padrão de 12 pulsações:

171
Mais lento que os demais toques do repertório de Oiá, o toque Sete por Um é

acompanhado por um agogô e palmas que executam apenas a marcação do tempo. Por

conseguinte, o canto apresenta melismas, ao invés de atacar as notas diretamente o solista

“passeia” por cada nota e cada transição melódica. Na toada Oiá de Malê há também a

ocorrência de um estilo de cantar semelhante à Mambaloê em que se “passeia” pelas notas

ao invés de atacá-las claramente.

172
A próxima cantiga que segue (faixa 19 do cd em anexo) é a única de Balé

presente nos toques públicos, que é acompanhada pelo toque Ecó, num andamento muito

lento cujo padrão é de 12 pulsações:

173
A cantiga abaixo também integra o repertório de Balé. Cantada nos toques

públicos apresenta características “pesadas” do canto do Balé. Esta sempre é seguida por

duas toadas que possuem caráter distintos: Apalajô (pág. 198) e Afunelé adê que está em

seguida. Analisando o conjunto formado pelas três toadas citadas percebe-se um

movimento crescente de andamento e caráter que vai desde o mais lento, do Balé (Oiá

Gambeô) à transição (Apalajô) e, por fim, ao “clímax” do universo do repertório dos

toques públicos de andamento mais rápido (Afunelé adê). “Oiá Gambeô” (faixa 6 do cd em

anexo) apresenta várias notas longas e melismas onde as notas não são diretamente

atacadas, mas alcançadas suavemente, expressando o caráter da Iansã de Balé:

174
Pelo fato da cantiga a seguir (faixa 6 do cd em anexo) vir sempre “emendada”

com “Oiá Gambeô” e “Apalajô”, o solista canta junto com tambores e agogô. Não há o

solo absoluto como normalmente acontece. O mesmo se aplica às toadas “Apalajô” (pág.

198) e também “Oiá Bainha Balaxó” (pág. 203), sendo esta última cantada sempre após

“Oiá Barelô” (pág. 185).

175
5.3. Oiá – suas músicas

“O palemo bara bara” 23


Ela põe ordem em seus negócios rapidamente.

5.3.1. As toadas de Iansã

O tamanho real do repertório dedicado à Iansã não pode ser determinado. No

decorrer de uma festa pública podem ser ouvidas cantigas pouco conhecidas, fato que está

intrinsecamente relacionado ao domínio do repertório musical das pessoas e divindades

presentes às cerimônias. Uma determinada Iansã pode puxar sua própria cantiga, podendo

esta ser ou não, relacionada ao âmbito do Balé, ou mesmo o solista pode se lembrar de uma

cantiga pra Oiá não tão conhecida e cantada. Durante o período dessa pesquisa foram

coletadas vinte e nove toadas dedicadas à Oiá. Essas cantigas são acompanhadas por seis

toques diferentes executados pelo grupo instrumental.

A execução musical é realizada “em cadeia”, ou seja, todos os elementos que a

compõe são interligados: cada cantiga é acompanhada por um toque específico de tambor,

seguidos por padrões também específicos do agogô e do abê, e esta associação é imediata,

todos reconhecem o toque de uma toada específica e seus respectivos acompanhamentos.

As toadas dedicadas à Iansã podem ser divididas em duas categorias24:

1. As que são cantadas para as diversas qualidades de Iansã das filhas e

filho do Xambá e, especialmente para Oiá Meguê, a Iansã de Mãe Biu;

23
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
24
Apesar de não me propor estudar as toadas específicas “de Balé” por fazerem parte de uma
cerimônia que não é pública – o Toque de Balé e, portanto não permitida também para divulgação e estudo,
estas surgiram em alguns toques públicos como também as registrei, acrescento-as aqui. Nestes toques
cantou-se mais para Iansã de Balé, na Louvação e no Toque de Iansã, momentos especialmente dedicados à
ela, onde se canta um número bem maior de cantigas em relação aos demais orixás. Apesar de se cantar
menos para Oiá nos toques para outros orixás, algumas cantigas de Balé também foram cantadas no decorrer
do ano, inclusive toadas que nunca havia ouvido antes e que, por serem de Balé, Sandro Paraíso não as
cantou para mim fora do contexto das cerimônias.

176
2. As que são dedicadas à Iansã de Balé e que normalmente não são

cantadas nos toques públicos.

De uma forma geral, essas cantigas são narrativas das mitologias de Iansã,

havendo uma correspondência direta entre a música e a sua personalidade. São cantadas

num misto de iorubá e português e suas melodias e toques são caracterizados por

elementos que configuram um compartilhamento musical, seja entre as próprias nações

afro-brasileiras, seja entre a religião afro-brasileira e a cultura branca ocidental.

Carvalho (1993, 129-33) auxiliado por colegas africanos, a partir das gravações

realizadas em terreiros de xangô de Recife, traduziu para o iorubá e depois para o

português, alguns dos textos das toadas registradas25. A maioria das cantigas já havia se

transformado lingüisticamente no seu percurso histórico e não puderam ser traduzidas

literalmente: “A rigor, trata-se de textos errantes, sem pátria, mesoatlânticos: a articulação

de significantes surgiu de uma experiência histórica nigeriana, enquanto as traduções

ficcionais e os comentários pertencem à experiência afro-brasileira” (idem, 23). O autor

menciona críticas do povo-de-santo das casas consideradas ortodoxas no contexto afro-

recifense à nação Xambá, que “apresentavam um domínio muito menor do idioma e da

música ritual” , fato comprovado pelas gravações que realizou juntamente com sua esposa

e também etnomusicóloga Rita Segato no momento da tradução (idem, 22). Contudo, em

algumas de suas traduções foi possível encontrar similitudes com cantigas para Oiá

presentes na nação Xambá de Portão do Gelo. Nas tabelas que seguem são reproduzidas

trechos de alguns dos textos das cantigas do Xambá, onde foi possível encontrar

semelhanças fonéticas e, ao lado, trechos dos textos em iorubá e suas traduções para o

português, apresentados por Carvalho (idem, 129-133):

25
Terreiro de Pai Adão (Nagô), em Água Fria.

177
“Oiá Dê Mampariô” (cantiga transcrita na pág. 188)

XAMBÁ IORUBÁ (Carvalho 1993, TRADUÇÃO


texto 1, 129-130)
1. Oiá Dê Mampariô 1. Oya dé ariwo 1. Oya chegou: gritem
2. Oiá Messã Orô é de Jangoló 2. Oyamésàn rorò j’oko lo 2. Oyamésàn é mais forte que
um marido
3. Oiá da Guiri Pampã, Oiá da 3. Oya de Oya e ta gìrì pápá 3. Oya chegou: trema
Guiri Pampã interiormente (por causa de sua
presença)
4. Oiá Dê Orixá de Pampã” 4. Oya de Oya e f’ògiri g’àjà 4. Vai para o teto subindo pela
parede (esta expressão indica
igualmente como os fiéis devem
tremer na presença de Oya)

“Ê aguerê ilê ô” (cantiga transcrita na pág. 173)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 3, 130) TRADUÇÃO26


1. Ê aguere ilê ô guerê iê, 1. Ó g’orí (g’oro) ilé o girigiri 1. Ela trepa rapidamente
guerê iê dentro da casa
2. Orômi xequé 2. ile ni ay Djegbe 2. Ela trepa ligeiro dentro da
3. Ê aguerê ilê ô gará, gará 3. O g’oro (g’oro) ilé o casa
gàràgàrà 3. A mulher Ìdòwú trepa
ligeiro dentro da casa
4. Omenin Doum guerê ilê ô 4. Obìnrin Ìdòwú g’oro ilé o 4. Ela vai embora com o
Guereguê axé bareló Girigiri ó nb’óko omo rè lo marido da filha.

“Ô jamitô” (cantiga transcrita na pág. 179)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 4, 131) TRADUÇÃO


1. Ô jamitô ita l’Oiá 1. K’ò jé mi d’ókè Oya 1. Ela não nos deixa
2. Ô jamitô e l’Oiá ô atravessar o rio Oya
3. Ogunitá (ou Egunitá) ela é 2. ò je ka d’ókè Oya 2. Ela atravessou o rio Oya
4. Ô jamitô ita l’Oiá 3. Ògúnìta Èrere 3. Outro nome de Oya
4. ò jé d’ókè Oya 4. Ela atravessou o rio Oya

26
O colaborador do autor comenta que esta toada: “exibe o caráter aterrador, desavergonhado e
despreocupado de Oya, que não tem escrúpulos em fugir com o marido da sua própria filha. Ela faz o que
mais lhe apraz. Oya se desvia como quer dos padrões estabelecidos de conduta.”

178
Segundo Sandro Paraíso o trecho “egunitá ela é” desta toada sempre foi cantado

desta forma, pois se referiria aos eguns. Após a morte de Mãe Biu, passaram a cantar

“ogunitá ela é”, mencionando o orixá Ogum da ialorixá. Contudo, Carvalho traduz

“Ogunitá” como um outro nome de Oiá. Essas questões são importantes para ilustrar que

as duas possibilidades são extremamente válidas, tanto a tradição do canto originalmente

em iorubá que menciona um dos nomes de Oiá como a re-significação de uma possível

mudança percebida pelo ogã, que reflete sobre esta mudança conforme a história do

terreiro e a atuação de Mãe Biu.

179
“Afunelé adê” (cantiga transcrita na pág. 175)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 7, 131) TRADUÇÃO


1. Afunelé adê, afunelé 1. Èfùfù lèlè ajé èfùfù lèlè 1. Epíteto: Vento forte que
2. O l’Oiá Minibu onikó sejó, traz lucro
afunelé adê 2. Oya onígbó omo jojojo 2. Oya onígbó – Oya dona da
èfùfù lèlè ajé floresta
Jojojo – Sons musicais, é
provável que seja também um
advérbio de modo que descreve
a força do vento de Oya

“Oiá é do mal” (cantiga transcrita na pág. 85)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 8, 132) TRADUÇÃO


Oiá é do mal ata Oya Lanumo Ata ae ae ae Lanumo Ata – nomes de Oya
Oiá, Oiá é do mal aê

“Emidebô Cilê” (cantiga transcrita na pág. 160)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 10, 132) TRADUÇÃO


1. Emidebô Cilê 1. A ile bo sire 1. Não possui tradução
É a l’Oiá, é a l’Oiá ê 2. èrù l’Oya, èrù l’Oya 2. èrù l’Oya – Oya é medo

“Mambaloê” (cantiga transcrita na pág. 171)

XAMBÁ IORUBÁ (1993, texto 11, 132) TRADUÇÃO

1. Mambaloê, mambaloiá 1. Baba Ayòré omo Oloya 1. Pai da alegria; filhos de


2. Bairá com dedé, maroiá, 2. Obaírá kùn dèdè omo Oya
maroiabá Oloya ‘bá 2. Obaírá murmura
dèdè – Advérbio: o modo como
se murmura, se rumoreja. Em
sentido lato, este termo pode
significar o ruído de fundo
durante uma tempestade. No
presente contexto, parece
indicar que Oyá oferece ajuda a
seu marido Sàngó, deus do
trovão.
3. Oiá Messã bamiô 3. Oyamésàn gbà mí o 3. Oyamésàn salve-me
4. Olê dinã, ô borossã baô 4. Oya o l’èjìmó o t’óbiri as 4. A morada de Oya
ba ro

180
Outro ponto importante a ser ressaltado é baseado na identidade pessoal e

religiosa através dos nomes ou “qualidades” (Segato 1995, 86) das diferentes Iansãs que

estão presentes e servem também como meio de distinção tanto pessoal - cada Iansã possui

suas próprias cantigas-, quanto religiosa - para diferenciá-las dentro da categoria maior

Iansã. A maioria das “qualidades do orixá” funciona apenas como nomes, sendo de certa

forma desprovida de conteúdo literal, embora esse seja certamente construído pela filha ou

filho-de-santo (Segato 1995, 86). No repertório musical do Xambá é possível notar menção

a vários tipos de Iansã como:

Iansã de Balé; Iansã Gigã; Oiá Barelô; Oiá Bendicá; Oiá Cararô; Oiá Denina;
Oiá Dupé; Oiá Egunitô; Oiá Ladê; Oiá Laincê; Oiá de Malê; Oiá Meguê; Oiá
Messã; Oiá Minibu.

Em seu livro Santos e Daimones, Segato (1995, 87) cita algumas “qualidades

de Iansãs” presentes no Nagô, também presentes nas cantigas do Xambá como “Oiá Ladê”

e “Oiá Dupé”. O fato sinaliza um compartilhamento de “panteão dentro do panteão” entre

as duas nações, que também compartilham alguns orixás da categoria principal (os nomes

genéricos do orixá).

A única diferença claramente perceptível e declarada pelo povo-de-santo nesse

grupo de cantigas está entre as dedicadas à “Iansã de Balé” e às que correspondem às

“santas” particulares das pessoas do Xambá. Como as cantigas são quase que pessoais há

também a possibilidade, ainda que rara, do próprio orixá “trazer” a sua própria toada, ou

seja, ao invés dele “descer” e puxar uma toada que já integra o repertório de Iansã, o filho

ou filha-de-santo “incorporada” apresenta uma cantiga inédita que vai ser ouvida e

aprendida pelo povo-de-santo. Normalmente quando isso acontece, essas cantigas são

acompanhadas pelo toque Ecó ou pelo toque Despedida específicos deste orixá, para

acompanhar a toada.

181
A ordem em que são cantadas as toadas é relacionada à importância da função

que desempenham no culto. Embora essa seqüência possa sofrer variações sutis a depender

do solista, a ordem das cantigas para Oiá é praticamente a mesma em todos os toques:

sempre começa e termina com as toadas que possuem as funções opostas de “chamar as

Iansãs à terra” e “mandá-las de volta”, respectivamente. Na tentativa de resumir a lógica e

a tradição da ordem estabelecida das cantigas de Iansã na nação Xambá, esta seqüência

pode ser subdividida em três momentos distintos:

1. Evocação – o momento de convocar as diversas Iansãs para que

“desçam” através dos corpos de suas filhas e filhos para serem homenageadas;

2. Louvação - o momento de rememoração, tanto das pessoas que já se

foram, através das cantigas de suas Iansãs, quanto das que estão presentes e “recebem”

suas próprias Iansãs;

3. Despedida – o momento em que as Oiás devem partir para os demais

orixás também sejam louvados.

A seguir, apresento três possibilidades de ordem das cantigas dedicadas à

Iansã, baseadas na escolha do três solistas da nação Xambá, Pai Ivo, Sandro e Ailton

Paraíso. Estas diferentes ordens foram estabelecidas a partir de uma média geral dos

toques, não sendo totalmente previsíveis e podendo sofrer modificações:

182
Ordem das toadas de Iansã

MOMENTOS PAI IVO SANDRO PARAÍSO AILTON PARAÍSO


1 Evocação Êmidebô Cilê Êmidebô Cilê Êmidebô Cilê
2. Louvação Ó l’Oiá Bendicá Ó l’Oiá Bendicá Ô jamitô
Fara com fá Fara com fá Fara com fá
Oiá Gambeô (de Balé) Lauré Guanguá Iansã e baía
Apalajô agô inhã Oiá Barelô Sobomi sobô
Afunelé Adê Oiá Egunitô Oiá Gambeô (de Balé)
Lauré Guanguá Oiá Gambeô (de Balé) Apalajô agô inhã
Oiá Denina Apalajô agô inhã Afunelé Adê
Oiá Ladê Afunelé Adê Oiá Denina
Oiá Laincê Ê Aguerê ilê ô (de Oiá Ladê
Balé)
Anda, anda Oiá de Oiá Laincê
Umbanda Mambaloê,
Oiá é do mal
Mambal’Oiá
Oiá Messã Pampã
Oiá Meguê numa
Oiá Dê Mampariô
Oiá Cararô batalha
Oiá Denina
Oiá Meguê numa Oiá Meguê num agailê
batalha Oiá Ladê
Oiá Laincê
3. Despedida Oiá Dêo boim uló Oiá Dêo boim uló Oiá Dêo boim uló

As variações na ordem das cantigas refletem a questão pessoal do solista e o

contexto, que mesmo seguindo a tradição de uma ordem preestabelecida, pode modificá-la

conforme sua preferência depois da interferência das Iansãs. Mesmo em uma tradição

quase secular, pois todos afirmam que a ordem das toadas de Oiá que Pai Ivo obedece é a

mesma seguida por Mãe Biu, há a dinâmica através da presença de pequenas variantes que

são permitidas e que, no entanto não descaracterizam a tradição musical dessa nação afro-

brasileira, além é claro, da vontade das Iansãs homenageadas, não sendo este último, um

momento que possa ser previsto, podendo até não ocorrer.

Segato (1984, 536-40) em sua tese de doutorado transcreve algumas cantigas

para Oiá e seus respectivos toques de tambor que apresentam certas similaridades com os

183
executados no Xambá. A tabela a seguir apresenta os nomes das cantigas e dos toques para

Oiá presentes no Xambá e nomes das cantigas e toques similares citados pela autora. A

ordem disposta na tabela é a mesma utilizada por Segato não correspondendo à ordem das

cantigas no Xambá:

NAÇÃO XAMBÁ NAÇÃO NAGÔ


(Segato 1984, 536-540)

Cantigas Toques Cantigas Toques

1. Êmidebô cilê 1. Despedida 1. Erún debó siré 1. Batá

2. Afunelé adê - 2. Despedida 2. Afunelé ayé 2. Batá

3. Oiá oiá é do mal 3. Jeje 3. Oiá Oiá enumauatá 3. Batá


atá

4. Oiá Gambeô 4. Despedida 4. Oiá gambeó 4.Batá

5. Apalajô agô inhã 5. Despedida 5. Iabaladô agô iá 5. Batá

6. Oiá Barelô 6. Despedida 6. Oiá bareló 6. Batá

As duas nações embora apresentem em suas cantigas textos um pouco

diferentes, com algumas palavras modificadas, são bastante semelhantes melodicamente.

Segundo as transcrições de Rita Segato, as seis cantigas são acompanhadas pelo mesmo

padrão rítmico – Batá. Na nação Xambá cinco dessas cantigas são acompanhadas pelo

toque da Despedida, e uma pelo Jeje. Abaixo seguem as duas transcrições da cantiga “Oiá

Barelô” (do Nagô e do Xambá) para melhor ilustrar diferenças e similitudes:

184
“Oiá Barelô” – Xambá (faixa 14 do cd em anexo):

185
“Oiá Bareló” - Nagô (Segato 1984, 540):

As duas cantigas apresentam várias semelhanças melódicas. Imediatamente o


intervalo de quarta justa inicial confirmando uma idéia tonal de V-I e a finalização
no possível V grau de uma tonalidade menor, dentre várias outras relações
intervalares que se pode perceber. Ritmicamente também apresentam várias
semelhanças de caráter “vivo”, ou seja, canto silábico e andamento rápido.
Em relação aos toques, apesar da semelhança, não se pode afirmar que
correspondam a um mesmo toque, embora apresentem um mesmo padrão de 16
pulsos que Segato transcreve num compasso quaternário.
No Xambá esta cantiga é cantada em praticamente todos os toques, caracterizando,
juntamente com um outro grupo de cantigas de mesmo caráter, o clímax do
repertório de Iansã. Esta toada sempre vem seguida de “Oiá Bainha Balaxó”. No
Xambá não existe nenhum toque para Iansã chamado de “Batá”.

186
Em relação à seqüência das cantigas, no Xambá a toada “Emidebô Cilê” é a

primeira a ser executada. “Afunelé Adê” é cantada após “Oiá Gambeô”, consideradas

praticamente como uma única cantiga, “Oiá Oiá é do Mal Atá” não é uma toada cuja

presença seja tão significativa quando comparada às demais e a toada “Apalajô Agô Inhã”

sempre é cantada depois de “Oiá Barelô”, consideradas uma única cantiga e geralmente é

uma das primeiras a serem cantadas, uma pequena semelhança com o Nagô segundo

Segato. Essa pequena tabela comparativa tem o propósito de ilustrar pequenos

compartilhamentos e diferenças que algumas vezes são comuns em terreiros diferentes de

uma mesma nação ainda que cada terreiro possui sua própria história. As duas nações

mesmo que baseadas em uma mesma tradição, apresentam características próprias.

5.3.3. Os cantos para Oiá

“O kankan ti kan (o) ri eke mole”27


Ela bate a cabeça do mentiroso no chão com
toda força

Neste universo escalas e modos não são parte explícita da teoria musical

nativa. Isso fomenta definições arbitrárias de parâmetros projetando possivelmente os

próprios conceitos do pesquisador sobre a música do “outro”. Não foi possível construir

um esquema classificatório que fosse totalmente baseado num vocabulário da própria

comunidade. Dessa forma, as decisões analíticas aqui tomadas podem ser contestadas, mas

não são arbitrárias.

Em princípio são consideradas escalas a mera e abstrata ordenação das alturas.

Assim, considerando as 29 cantigas transcritas temos nada menos do que 21 disposições: 2

tetratônicas, 7 pentatônicas, 5 hexatônicas e 7 heptatônicas (3 modais e 4 tonais). A

visualização dessas disposições será melhor apresentada nos quatro esquemas seguintes

27
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).

187
onde são consideradas as categorias e seus diferentes subtipos, as cantigas que utilizam

essa estrutura e suas características melódicas ( relações entre as notas e o maior salto

intervalar realizado no canto). Após cada esquema uma transcrição de uma cantiga

representativa da categoria apresentada será também acrescentada:

Das tetratônicas

CATEGORIA TIPOS CANTIGAS CARACTERÍSTICAS


1.1. Apresenta arpejos
1.1 Oiá Dê Mampariô confirmando idéia tonal.
(Página 188) Salto maior de 5ªJ
descendente.
1. 2M+2M+3m
1.2. Apresenta arpejos
1. TETRATÔNICA 1.2. Iansã coroou confirmando idéia tonal
(Página 189) Salto maior de 4ªJ
descendente e ascendente.
Apresenta arpejos
2. Fará com fá confirmando idéia tonal.
2. 3M+3m+2M
(Página 190) Salto maior de 4ªJ
descendente e ascendente.

Exemplo 1.1. (faixa 15 do cd em anexo):

188
Exemplo 1.2:

“Oiá Dê Mampariô” (identificada na tabela das tetratônicas pela numeração

1.1.) é uma das cantigas de Balé que é acompanhada pelo toque de Adarrum, integrando o

grupo de cantigas de “transição” de caráter do repertório de Iansã. Caráter de “transição” é

a princípio, caracterizado pelos diferentes andamentos, da toada mais lenta e “pesada” à

nem tão lenta, mas também nem tão rápida, caso específico da cantiga em questão, ao

“clímax” das toadas de andamento rápido. Mesmo que esta integre o repertório de Balé,

também compartilha de características de caráter das cantigas do repertório dos toques

públicos.

“Iansã coroou” (identificada na tabela das tetratônicas pela numeração 1.2.)

possui dois textos e é desmembrada em duas. O primeiro texto “Iansã coroou” é

característico da cerimônia de Louvação à Iansã, cantada no momento em que Mãe Biu,

189
com Iansã se coroava. O segundo é cantado no toque deste orixá, em sua homenagem, mas

não diretamente relacionado à coroação.

Exemplo 2 (faixa 5 do cd em anexo):

190
A cantiga “Fará com fá” (identificada na tabela das tetratônicas pela numeração

2.) está sempre presente no repertório de Iansã, praticamente em todos os toques públicos

e, independente do solista. Certamente representa uma das mais significativas e populares

que compõem a identidade do repertório deste orixá no Xambá.

Das pentatônicas

CATEGORIA TIPOS CANTIGAS CARACTERÍSTICAS

1.1 Oiá Cararô 1.1.Arpejo. Salto maior de


(Página 170) 8ªJ ascendente.

1.2 Oiá Laincê 1.2.Arpejo. Salto maior de


(Página 192) 8ªJ ascendente.
1. 2M+2M+3m+2M
1.3 Ê aguerê 1.3.Arpejo. Salto maior de
(Página 173) 5ªJ ascendente.

1.1. Oiá é do mal 1.4.Arpejo. Salto maior de


(Página 85) 5ªJ descendente.

2. Lauré Guanguá 2.Arpejos. Disposição que


2. 3M+3m+2M+2m (Página 193) poderia ser considerada um
2. ré mixolídio sem II e IV
PENTATÔNICA graus. Salto de 5ªJ
descendente.

3. 3m+2M+2M+2M 3. Sobomi Sobô 3.Arpejos. Salto de 4ªJ


(Página 194) ascendente.

4. 3m+2M+2M+3m 4.Era com fé 4.Arpejos. Salto de 5ªJ


(Página 195) ascendente e descendente.
5. Anda, anda Oiá de 5.Arpejos. Salto de 4ªJ
5. 3m+2M+2M+2m Umbanda (Página 168) ascendente.

6. Emidebô Cilê 6.Arpejos. Solo com salto


6. 3M+2m+2M+2M (Página 160) de 7ªm descendente; Coro
com 4ªJ descendente e
ascendente.
7. 2M+2M+2m+2M 7. Oiá Meguê numa 7.Arpejos. Salto de 3ªm
batalha (Página 63) descendente e ascendente.

191
Exemplo 1.2 (faixa 12 do cd em anexo):

Esta é uma das várias cantigas que citam nomes de diferentes Iansãs, nesta a

homenageada é Oiá Laincê (identificada na tabela das pentatônicas pela numeração 1.2.).

Como a maioria que é acompanhada pelo toque da Despedida, esta é uma cantiga mais

“movida” em que se canta e dança com alegria, mesmo que seja uma alegria particular

dirigida ao universo deste orixá.

192
Exemplo 2 (faixa 7 do cd em anexo):

Esta toada, apesar de integrar o repertório de Balé, acompanhada pelo toque

Adarrum, é um pouco mais rápida. Na realidade são duas cantigas que sempre são cantadas

seguidas: “Lauré Guanguá” (identificada na tabela das pentatônicas pela numeração 2.)

seguida da cantiga “Ô que penajô”, esta última, por ser bastante curta, foi transcrita

juntamente com a primeira.

193
Exemplo 3 (faixa 17 do cd em anexo): Como a maioria das cantigas acompanhadas pelo

toque Jeje, a cantiga a seguir apresenta um andamento rápido e segundo o povo-de-santo

integra um dos “ápices” do repertório de Iansã (identificada na tabela das pentatônicas pela

numeração 3.).

194
Exemplo 4: A cantiga abaixo é um exemplo de toada pentatônica (identificada na tabela

pela numeração 4.) e integra o repertório de Balé. Acompanhado pelo toque da Despedida

é uma cantiga mais rápida e só esteve presente no toque de Iansã. Como várias outras

cantigas, esta mescla palavras em português que expressam uma realidade de fé

nacionalizada “era com fé” associada ao orixá africano. Em relação ao canto, o coro repete

integralmente a última parte cantada pelo solista.

195
Das hexatônicas

CATEGORIA TIPOS CANTIGAS CARACTERÍSTICAS

1.1 Oiá Deô 1.1. Arpejo. Salto de 6ªm


(Página 162) descendente.

1.2 Iansã e baía 1.2. Arpejo. Salto maior de


(Página 197) 6ªM ascendente.

1.3 Oiá Messã 1.3. Arpejo. Salto maior de


1.
(Página 169) 3ªm ascendente e
2M+2M+2m+2M+
descendente.
2M

1.4. Afunelé adê 1.4. Grau conjunto. Salto


(Página 175) maior de 4ªJ
descendente.

1.5 Ô jamitô 1.5.Arpejo. Salto maior de


(Página 179) 5ªJ ascendente.
2.
HEXATÔNICA
2. Disposição podendo ser
configurada como um
2. MODAL sol# dórico sem II grau.
2. Apalajô
3m+2M+2M+2M+2m Salto de 7ªm
(Página 198)
descendente e
ascendente.

3. Intervalos que afirmam


3. 3. Oiá Gambeô idéia tonal. Salto de 5ªJ
2M+2m+2M+2M+2m (Página 174) ascendente.

4. Intervalos que afirmam


4. 4. Mambaloê, idéia tonal. Salto de 4ªJ
2M+3m+2M+2M+ mambaloiá descendente e
2M (Página 171) ascendente.

5. Intervalos que afirmam


5. 5. Oiá Meguê num idéia tonal. Salto de 4ªJ
2M+2M+3m+2M+ agailê descendente e
2M (Página 65) ascendente.

196
Exemplo 1.2 (faixa 18 do cd em anexo): A toada abaixo (identificada na tabela

das hexatônicas pela numeração 1.2.) está sempre presente nos toques públicos, das que

são acompanhadas pelo toque Jeje é uma das mais rápidas configurando “o ápice” do

repertório de Oiá.

Exemplo 2 (faixa 6 do cd em anexo): A cantiga que segue (identificada na tabela das

hexatônicas pela numeração 2.) é cantada após a toada de Balé “Oiá Gambeô”. As duas

possuem caráter distintos. A primeira é marcada por um canto melismático, notas longas,

elementos que caracterizam o “pesar” já mencionado. “Apalajô” é o inverso, com seu

canto silábico em andamento rápido, corresponderia à transição ao clímax que acontece

197
sempre com “Afunelé Adê” (pág. 175), a cantiga entoada em seguida e é ainda mais

rápida. Esse trio caracteriza bem as distintas faces de Oiá.

Esta cantiga apresenta particularidade em relação à sua forma, pois na realidade são duas
partes tão distintas (“Apalajô” e “É um loê”) que a partir da recorrência em outros casos,
indica que são cantigas diferentes, mas que no entanto, são cantadas “emendadas”.

198
Das heptatônicas

CATEGORIA TIPOS CANTIGAS CARACTERÍSTICAS

1.1. Arpejo (destaque


para um arpejo
meio diminuto –
1.1 Mixolídio 1.1 Oiá Denina
dó-mib-solb-sib).
(Página 200)
Salto de 5ªJ
descendente e
ascendente.

1. MODAIS 1.2. Grau


1.2. Frígio 1.2 Oiá de Malê conjunto.Salto
(Página 172) maior de 3ªm
descendente.

1.3. Grau conjunto.


1.3 Oiá Ladê Salto maior de 4ªJ
1.3. Eólio
(Página 201) descendente e
ascendente.

2.1 Oniká – Num


2.1. Arpejos. Salto de 5ªJ
1.3. Si Maior areibô axé
descendente.
(Página 158)

2.2 Ó l’Oiá Bendicá 2.2. Arpejos. Salto de 5ªJ


2.2. Láb Maior
(Página 202) descendente.

2.TONAIS 2.3. Intervalos que


afirmam idéia tonal.
1.4. Dó# Menor 2.3 Oiá Barelô
Salto de 4ªJ
(Página 185)
descendente e
ascendente.

2.4 Oiá Bainha 2.4. Grau conjunto. Salto


2.4 Sol Maior
Balaxó (Página 203) de 4ªJ descendente.

199
Exemplo 1.1 (faixa 9 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das heptatônicas

pela numeração 1.1.) é dedicada à qualidade particular “Denina” de Oiá. É acompanhada

pelo Adarrum e integra um grupo de cantigas da transição ao “clímax”. Apresenta uma

escala modal completa (láb mixolídio). Sua melodia é enriquecida com o colorido do

arpejo meio diminuto da sétima da dominante com a nona maior (dó-mib-solb-sib).

200
Exemplo 1.3 (faixa 8 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das

heptatônicas pela numeração 1.3.) integra o grupo das cantigas para as Iansãs específicas.

Nesta, além de “Oiá Ladê” é mencionada “Oiá Messã”. Acompanhada pelo Adarrum,

geralmente é cantada na seqüência das cantigas para as diferentes Iansãs, está presente no

repertório com certa regularidade.

201
Exemplo 2.2 (faixa 4 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das heptatônicas

pela numeração 2.2.) é uma das primeiras a ser cantada, em todos os toques. Assim como o

grupo das que são acompanhadas pelo Adarrum, se apresenta musicalmente num momento

inicial rumo à transição do momento de “clímax” dedicado à Oiá.

202
Exemplo 2.4 (faixa 14 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das

heptatônicas pela numeração 2.4.) é cantada após “Oiá Barelô”, sendo considerada como o

“auge”, no sentido de que sucede cantigas de andamento mais lento. O coro repete

integralmente a cantiga após o solista e como esta vem “emendada” logo após “Oiá

Barelô”, não há o solo sem acompanhamento instrumental.

Correndo o risco da adoção de um pensamento etnocêntrico, é possível afirmar

que, de uma forma geral, as melodias das toadas tendem a ser tonais, embora seja um

tonalismo não evidenciado em sua estrutura melódica que em geral é, como já foi ilustrado,

tetratônica, pentatônica, hexatônica ou heptatônica.

203
O coro na maioria das cantigas entoa arpejos que afirmam uma idéia tonal.

Vatin (2001, 149) que estudou a música da nação Angola em Salvador e a comparou às

demais nações afro-brasileiras da cidade, aponta para a presença de um “universo tonal do

tipo ocidental, com a presença latente dos modos maior e menor presentes no culto aos

caboclos”. No contexto do Xambá essa consideração faz sentido visto que tais entidades

também estão presentes neste culto. Não se pode esquecer que são as mesmas pessoas que

transitam nos dois universos religiosos – o dos caboclos e o dos orixás. Juntamente com

esse diálogo musical entre os elementos dos dois cultos é importante destacar que ocupam

espaços e tempos diferentes.

A parte vocal sempre é alternada entre o solista e o coro:

1. solista – canta à capela, com ritmo livre, geralmente em andamento

rápido. O papel principal de solista no Xambá, como já mencionado, é exercido por Pai

Ivo, depois por seu irmão Ailton Paraíso ou por Sandro Paraíso. É também comum que um

outro babalorixá presente ao toque num dado momento, possa cantar algumas cantigas,

mas quem inicia e finaliza sempre é o pai-de-santo da casa;

2. coro – responde ao solista, num ritmo mais próximo do andamento da

toada e sempre mais lento que o apresentado pelo solista. Sandro Paraíso comentou que é o

coro que “segura” os tambores para que eles não “corram”;

Grande parte das cantigas apresenta uma forma simples, baseada na repetição

AA, onde o coro reitera a mesma frase melódica entoada pelo solista. O fato parece estar

relacionado a uma certa simplificação das respostas para a promoção imediata de uma

interação entre solista e coro. Em segundo lugar de recorrência está a forma AB, onde a

resposta do coro é diferente da frase melódica apresentada pelo solista. Contudo, as

cantigas apresentam ainda algumas variantes:

204
1. AA - Cantigas em que melodia e texto são os mesmos tanto para o

solista como para o coro. O solista canta a mesma melodia e texto uma vez e estes são

repetidos pelo coro;

2. AB –Cantigas em que melodia e texto apresentados por solista e coro

são contrastantes.

3. Variantes:

3.1 AABB – o solista canta melodia e texto (A) e o coro repete (A). O

solista canta nova melodia e novo texto(B) e o coro repete (B);

3.2 ABCC – o solista canta melodia e texto (A) e o coro apresenta

material contrastante (B). O solista canta nova melodia e melodia e texto (C) que é repetida

pelo coro (C).

3.3 AABC – o solista apresenta melodia e texto (A) e o coro repete (A).

O solista canta nova melodia e texto e o coro responde com texto igual mas melodia

diferente.

3.4 AABCDD’ – o solista canta melodia e texto (A) e o coro repete (A).

O solista canta nova melodia e novo texto (B) e o coro responde diferente (C). O solista

traz nova melodia e novo texto (D) que é repetida pelo coro com pequena variante

melódica (D’);

3.5 ABA’BCC – o solista apresenta uma melodia (A), o coro responde

(B). O solista apresenta pequena variante (A’) e o coro responde (B) esta sessão sendo

repetida. O solista canta nova melodia (C) e o coro repete (C).

3.6 AABCB’C – o solista apresenta uma melodia e texto (A) e o coro

repete integralmente (A). O solista apresenta novo texto e nova melodia (B) e o coro repete

205
mesmo texto com nova melodia (C). O solista apresenta pequena variante melódica sobre o

texto anteriormente exposto (B’), e o coro repete a mesma resposta anterior (C).

Os tipos formais das cantigas dedicadas à Iansã no Xambá estão também

atrelados aos padrões rítmicos executados pelo agogô. Abaixo segue um esquema onde

estão presentes as formas das cantigas, as cantigas correspondentes e os ciclos executados

pelo agogô (quantas vezes ele repete o mesmo padrão numa cantiga), configurando uma

estrutura simétrica. As tabelas estão separadas em grupos de cantigas ou cantigas separadas

que possuem ciclos rítmicos que são expostos segundo uma média do que foi registrado no

decorrer da pesquisa:

Das formas e dos ciclos I28

FORMA CANTIGAS CICLOS


1. Anda, anda Oiá de Umbanda
(pág.168)
2. Iansã e baía (pág. 197)
8
3. Oiá Deô (pág. 162)
(4+4)29
4. Oiá Denina (pág. 200)
5. Oiá Laincê (pág. 192)
6. Oiá é do mal (85)
7. Mambaloê (pág. 171)
AA
8. Oiá Bainha Balaxó (pág.
203) 16
(8+8)
9. Oiá Barelô (pág. 185)

10. Oiá Ladê (pág. 201)

11. Oiá de Malê (pág. 172) 10

12. Oiá Messã (pág. 169) (5+5)

13. Oiá Cararô (pág. 170) 12 (6+6)

28
Mesmo que algumas cantigas apresentem pequenas variações melódicas entre coro e solista, são
consideradas aqui como integrantes do grupo AA, visto que os textos e as melodias são de forma abrangente,
os mesmos.
29
A quantidade maior indica o número total de ciclos realizados (solista+coro). Este número,
contudo é aproximado, pois os ciclos podem ser repetidos quantas vezes o solista repetir o texto.

206
Das formas e dos ciclos Ia

FORMA CANTIGAS CICLOS


4
1. Iansã coroou (pág.189)
(2+2)
8
2. Oniká (pág. 158)
(4+4)
AA
(variantes) 14
3. Ê aguerê (pág. 173)
(7+7)

4. Oiá Gambeô (pág. 174) 28

5 Oiá Meguê num agailê (pág. 65) (14+14)

Das formas e dos ciclos II

FORMA CANTIGAS CICLOS


1. Ó l’Oiá Bendica (pág. 202)
8 (4+4)
4.Ô jamitô (pág. 179)

AB 3. Emidebô Cilê (pág. 160) 6 (3+3)

2. Oiá Meguê numa batalha


14 (7+7)
(pág. 63)

Das formas e dos ciclos III

FORMA CANTIGAS CICLOS


10
1. Lauré Guanguá (pág. 193) (6 (3+3)+
4 (2+2))
AABB
18
2. Afunelé Adê (pág. 175) (12 (6+6)+
6 (3+3))

207
Das formas e dos ciclos IV

FORMA CANTIGAS CICLOS


8
1. AABC 1. Oiá Dê Mampariô (pág. 188)
(4+4)
5
2. Era com fé (pág. 195)
2. ABCC (2,5+2,5)
6
3. Fara com fá (pág. 190)
3. AABCDD’ (3+3)
11
4. Sobomi sobô (pág. 194) (9 (4,5+4,5) +
4. ABA’BCC 4 (2+2))
12
5. Ê apalajô (pág. 198)
5. AABCB’C (6+6)

A partir do esquema apresentado foi possível perceber que o agogô, resumindo

a função rítmica dos tambores, compõe ciclos ou linhas-guias que apresentam uma

estrutura simétrica na qual o canto se baseia. Em relação tanto ao solista quanto ao coro

este ciclos podem variar mas, em sua maioria ocorrem de forma simétrica, mesmo número

de repetições que vão resultar numa estrutura par ou ímpar. É importante destacar que coro

e solista nunca cantam ao mesmo tempo, embora, na maioria dos casos haja um

compartilhamento de um mesmo material musical como já citado anteriormente.

O âmbito da extensão vocal é maior para o solista quando este apresenta

material melódico diferente do que vai ser executado pelo coro, e varia também conforme

quem estiver cantando, sendo permitidas algumas variantes na interpretação. Contudo, o

registro agudo devido à presença de uma maioria feminina é uma característica marcante.

Por esse motivo transcrevi o coro de algumas cantigas uma oitava acima da melodia do

solista.

O movimento melódico das cantigas geralmente ocorre de forma descendente

caracterizando, na maior parte das cantigas um repouso no mesmo som inicial. Das vinte

208
nove cantigas para Oiá, dezessete finalizam dessa forma. Seis cantigas finalizam uma 5ª

justa acima da nota inicial, enquanto que seis outras possuem suas finalizações uma 3ª

maior ou menor e 6ª maior ou menor acima do som inicial.

A seguir seguem as interpretações dos três solistas para uma mesma toada,

apenas para ilustrar as variações das extensões vocais de cada um, mas que ocorrem sobre

um mesmo “esqueleto melódico” e rítmico que a toada apresenta. Por uma questão de

hierarquia religiosa e de experiência musical o solo de Pai Ivo foi colocado em primeiro

lugar. A partir desta disposição é possível perceber pequenas variações que correspondem

muito mais a uma questão estilística e pessoal de cada solista e que a transcrição sempre se

apresenta limitada para sua ilustração. Em geral, Pai Ivo emprega intervalos de maior

extensão nas cantigas, adota um estilo de recitativo. Ailton Paraíso geralmente canta as

toadas que possuem andamentos mais rápidos. Este canta a maioria das toadas utilizando a

mesma emissão vocal com que canta “Oiá Meguê num agailê”, considerada pelo povo-de-

santo como um “samba”, sendo este seu estilo particular. Sandro Paraíso geralmente canta

a maioria das toadas de Iansã de Balé, utilizando uma impostação vocal característica deste

repertório, utilizando melismas num canto geralmente de andamento mais lento. Nos três

casos percebe-se que o coro guarda a última nota executada pelo solista para iniciar sua

melodia e compor sua performance.

209
210
A participação de todos os presentes formando o coro é indispensável. O bom

cantor no caso dos solistas, geralmente é aquele que possui uma maior potência vocal,

domina o repertório e conhece suas funções litúrgicas. Entre os coristas o importante é

conhecer o repertório e compartilhar musicalmente no canto às divindades, através de sua

participação ativa no coro30. A interpretação do coro naturalmente também segue um

padrão estético que, aos ouvidos externos e leigos é difícil de ser percebido. A emissão

vocal é executada num registro sobretudo agudo, lembrando que coro é composto por uma

maioria feminina, construindo uma identidade vocal a partir da atuação musical das

mulheres, referência a ser seguida mesmo que não de forma intencional e declarada. É

comum ouvir muitos filhos-de-santo oscilarem seu canto entre um registro muito mais

agudo que as suas possibilidades vocais permitem e seu próprio registro, naturalmente

mais grave, resultando numa perceptível inibição dos homens em relação ao canto, com

exceção obviamente, dos solistas. Na maioria das vezes, quando perguntei sobre os cantos

para Oiá às filhas e filhos-de-santo, na maioria das vezes estas falavam que não cantavam e

que o mais indicado era procurar quem realmente sabia cantar – os solistas. Algumas

vezes, quando cantavam, o faziam timidamente, as filhas por estarem acostumadas a cantar

em conjunto e dessa forma se sentirem mais à vontade para “soltar” a voz, e os filhos, além

do fator coletivo, pela questão da oscilação vocal apontada anteriormente.

Há uma maneira comum de cantar em que o início e o término do canto de

cada integrante do coro não coincidem. Esta característica pode estar relacionada tanto ao

próprio contexto religioso, onde não há uma preocupação em cantar milimetricamente

junto, mas de louvar os orixás e seguir o “tempo orgânico” de cada pessoa, quanto a

30
Certa vez tive a oportunidade de ir a um toque público com um grupo de filhas e filhos-de-santo
do Xambá, num terreiro de nação Ketu (Nagô) e ouvi diversos comentários destes em relação ao fato de que
nem todos do outro terreiro cantavam as cantigas, alguns aliás, permaneciam calados, o que refletiria,
segundo a visão delas e deles, o desconhecimento em relação ao repertório, algo considerado grave.

211
intencionalidade vocal dentro do que é aparentemente natural e pessoal. Para Sandro

Paraíso a forma de cantar pra Oiá apresenta particularidades relacionadas à temporalidade

e à expressividade, transmitindo alegria ou pesar, que são reconhecidas pelo povo-de-

santo:

Quando canta pra Xangô, aí tem aquela força. Não que Oiá não tenha, ela
tem muita força. Só que você já vê aquela coisa mais pesada, que o
pessoal já canta, justamente por esse costume de Oiá ser dona de egum e
a forma do orixá dançar. Oiá quando dança com aquela calma, se for uma
toada mais agitada, ela dança dentro do ritmo, mas ela não perde aquela
coisa.

Vatin (2001, 144) discute (a partir de outros autores, sobretudo de seu

orientador Simha Arom) dois fenômenos referentes às técnicas polifônicas que são

chamadas de “plurivocais” e que caracterizam sobretudo, a forma de cantar africana, a

“tuilage” e a heterofonia:

1. Na “tuilage” as vozes ficam sobrepostas umas às outras de maneira

ininterrupta, como um “telhado” que é composto por várias “telhas” (em francês “tuiles”);

2. Na heterofonia as diferentes vozes cantam uma mesma melodia

(acrescida de variantes), em momentos diferentes. O oposto da monodia quando que se

canta conjuntamente em uníssono ou num intervalo de oitava e ao mesmo tempo.

Continuando Vatin (2001, 146) também ressalta a presença de uma

“heterofonia involuntária”, visto que o uníssono e o intervalo de oitava não constituem um

“critério pertinente” e a presença de uma “plurivocalidade organizada”, onde se percebe

que há a recorrência de paralelismo vocais em pontos estratégicos do canto. Nesse

contexto, a organização temporal dos cantos é baseada nos padrões ou “ciclos temporais”,

que são executados pelos instrumentos rítmicos, como já mencionado. É importante

destacar que a relevância dos critérios que integram o fazer musical e especificamente

212
vocal corresponde ao conhecimento do texto a ser cantado, do contorno melódico e, por

fim, do fervor com que se canta. Pensando em termos da identidade vocal do coro no

candomblé ou xangô, a atuação vocal feminina seria um elemento delineador,

representando uma constante.

5.3.4 Os ritmos de Oiá

“Igbo biri okuku buri”31


Floresta tenebrosa, escuridão

O conjunto instrumental que acompanha o repertório musical dedicado à Oiá é

composto por um trio de tambores, um agogô e um abe, formação explicada pelo povo-de-

santo pela tradição Xambá, ou seja, sempre foi feito assim. O trio de tambores é formado

pelos chamados “ingomes”, membranofones percutidos diretamente, altos e estreitos, de

corpo em barril e tampo único, tocados com as mãos e que possuem diferentes funções.

Cacciatore (1977, 147) descreve-o como:

Tambor de barril com o couro preso por pregos ou tachas sobre a borda.
Também dito angomba ou engoma. É usado em alguns terreiros com
influência bântu. Do kimbundo – “ngoma’- tambor.

31
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).

213
Trio de ingomes do terreiro de Arthur Rozendo. Fotos de Pierre Verger
(à esquerda foi publicada na Revista O Cruzeiro de 19/11/1949 e, à
direita, do acervo da Fundação Pierre Verger).

Na literatura afro-brasileira os “ingomes” sempre são relacionados à nação

Angola, comprovando mais uma vez, o compartilhamento musical entre as duas nações –

Xambá e Angola. Vatin (2001, 119) destaca que os tambores da nação Angola são

chamados de “ngoma” e desempenham uma polifonia com base no “gã” (agogô).

Em relação aos tambores no contexto da nação Nagô de Recife – PE, Carvalho

e Segato (1992, 54) apresentam conceitos similares aos mencionados pelos ogãs do

Xambá. Os tambores, considerando a hierarquia religiosa e a ordem decrescente de

tamanhos são chamados de:

1. “inhã” - pintado de rosa pois pertence à Iansã. Mede

aproximadamente 1,36 m de largura, 69 cm de altura, tampo medindo

41 cm,

214
2. “melê ancó” – é pintado de vermelho e branco, as cores de Xangô.

Mede aproximadamente 1,20 m de largura, 76 cm de altura e tampo

de 35 cm, menor e portanto mais agudo que o “inhã”.

3. O melê - é pintado de vermelho, pois pertence à Ogum. Mede

aproximadamente 1,13 m de largura, 76 cm de altura e seu tampo de

34 cm.

A hierarquia religiosa presente nas cores e na disposição dos tambores diz

respeito à hierarquia dos orixás do babalorixá ou ialorixá do terreiro. As cores dos

tambores do Xambá são referentes aos orixás de Mãe Biu. Em entrevista realizada em

junho de 2004, o babalorixá Ivo declarou:

A hierarquia dos tambores é a hierarquia do orixá da pessoa da casa. No


nosso caso o pai-de-santo sou eu, mas não mudei essa hierarquia que foi
da minha mãe. Minha mãe era filha de Iansã, Ogum, Xangô, Oxum e
Odé, então é um ilú32 de Iansã, um de Xangô e o de Ogum”33.

Os atuais
tambores no
salão
principal do
terreiro.

32
Outra designação que o povo-de-santo utiliza para os tambores. Embora esta seja a designação
para os tambores do Nagô, que são diferentes.
33
Nesta declaração fica claro que o próprio Pai Ivo reforça o papel de Iansã na Casa Xambá e na
vida de Mãe Biu. Antes ele havia afirmado, assim como todos afirmam, que Mãe Biu era filha de Ogum em
primeiro lugar e Iansã em segundo.

215
Os ingomes com o “ojá”
(vestimenta) da cor de
Iansã. Estes tambores
são os que eram tocados
nos tempos de Mãe Biu.
Hoje ficam no Memorial
dedicado à ialorixá,
junto com seus
pertences, espadas e
demais utensílios do
culto.

Segundo o ogã Sandro Paraíso, “quem toca melê precisa saber tocar, quem toca

melê ancó toca mais que quem toca melê e quem toca o inhã toca mais que todos os outros,

pois é o mais difícil”. É importante ressaltar que as variações rítmicas dos tambores estão

intrinsecamente relacionadas aos executantes e suas experiências. A respeito do candomblé

baiano vários autores afirmam que o rum é o mais importante por determinar as várias

mudanças na coreografia, sendo tocado pelo alabê ou mestre da percussão (Béhague 1984,

Lühning 1990a, Garcia 2001), o mesmo acontece no Recife onde apenas os ogãs mais

experientes tocam o inhã. Considerando apenas as funções dos tambores, a disposição dos

mesmos poderia ser apresentada inversamente à disposição da hierarquia religiosa.

Carvalho e Segato (1992, 54) consideram a disposição dos tambores no xangô

pernambucano de forma adequada também à realidade do Xambá:

216
1. melê – o menor e mais agudo. Geralmente quem “puxa” os padrões

rítmicos básicos, podendo acrescentar “viradas”. Sua função é a de “manter o ritmo” e por

esse motivo é tocado ininterruptamente. Por ser o mais agudo, serve de guia para os

demais, pois sempre é possível ouvi-lo;

2. melê-ancó – é o responsável pelas variações, realizando uma maior

movimentação rítmica em relação ao melê. Por ser o tambor do meio, exerce função

intermediária em relação aos outros dois tambores: varia mais que o melê e também

apresenta simplificações das “viradas” executadas pelo “inhã” auxiliando na manutenção

do andamento;

3. inhã – chamado de “marcação” é considerado a “estrela” dos

tambores, pois exerce também o papel de solista. Embora seja considerado como

“marcação”, na maioria das vezes acrescenta variações e improvisações. Apresenta mais

variantes ou “viradas” que os demais, de extrema complexidade e virtuosismo. Sandro

afirma que quem deve tocar primeiro é o melê, mas, caso esteja neste um ogã de menor

experiência para “puxar” os toques, quem estiver no inhã “puxa” e em seguida retoma sua

função de solista.

Os tambores exercem a importante função ritual de chamar os orixás para

então, promover o estado de transe. Para desempenhar tão importante papel os tambores

são submetidos a todo um processo ritual, onde são “alimentados”, ou seja, comem e

recebem banho de sangue de animais sacrificados para que tenham o poder. Segundo

Béhague (1984, 231), este ritual carregado de simbologia onde o sangue representa a vida é

equivalente à feitura ritual de um iniciado. Os ogãs, consequentemente, possuem lugar de

destaque na hierarquia social do terreiro, onde há a concepção comum de que seus

tambores possuem voz irresistível aos orixás e, em decorrência disso, seu axé ou força

217
espiritual precisa ser reforçado anualmente através da “alimentação”, em uma cerimônia

chamada “dar de comer aos tambores”. No Xambá os tambores são indispensáveis e

possuem um papel de destaque maior em relação aos demais instrumentos percussivos. São

os responsáveis de “puxar” a orquestra. Certa vez Maria do Carmo Oliveira (Cacau), braço

direito do babalorixá, declarou que era comum Mãe Biu falar que para começar um toque

bastava estar junto aos seus ogãs. O Xambá é conhecido por sua pontualidade.

O agogô ou gonguê é um idiofone percutido, de campânula metálica única sem

badalo, com cabo também de metal tocado com uma vareta de madeira. Produz som mais

grave que o agogô convencional de campânula dupla, normalmente utilizado nos toques de

candomblé. O termo “agogô” vem do iorubá e significa tempo (Lühning 1990a, 37).

Exerce importante papel, servindo de base para o conjunto dos tambores, para o canto e

para a dança dos orixás. No Xambá este instrumento é pintado de rosa pois é dedicado à

Iansã e fica guardado no peji, no assentamento da santa. Diferente das demais nações, no

Xambá sempre vem em quarto lugar, após a entrada do solista, coro e dos tambores. Não

menos importante, executa padrões que estão relacionados tanto aos tambores quanto ao

canto executado pelo coro. O agogô atua também na manutenção do andamento,

reforçando as sílabas tônicas das palavras cantadas que, por sua vez estão também

relacionadas aos padrões executados pelos tambores, sobretudo o melê, que pode ser

concebido como a “base”.

218
Acima está a foto do agogô no
peji, lugar onde é guardado, no
assentamento de Iansã.
Acima à direita, sendo tocado
pelo ogã e à esquerda, outra
técnica de tocar agogô.

219
O abê ou xequerê é idiofone feito de uma cabaça grande envolvida por contas

presas em cordões, chamadas de “ave-maria”, que são friccionadas para a produção do

som. É considerado um incremento sonoro à “orquestra sagrada”, no entanto sempre está

presente, até mais que o próprio agogô que executa os padrões básicos. Sua atuação pode

ser entendida como uma simplificação dos padrões executados pelo agogô, mas reforçando

o papel deste em suas funções, sendo portanto de extrema importância. Na maioria das

cantigas dedicadas à Oiá há a ocorrência de dois padrões executados pelo abê e

relacionados aos andamentos das cantigas, rápidas ou lentas. Geralmente é o primeiro

instrumento a se ter contato no processo de aprendizagem musical, sendo o preferido das

crianças.

Neta e Henrique tocam o abe. Ela já considerada percussionista, neta de seu Maurício, ogã
de larga experiência e padrinho do terreiro. Ele, descobrindo o universo dos tambores.

220
Iassanã, de 9 anos, tocando o abê. Estes representam exemplos de abertura na
aprendizagem musical. Henrique por ser criança e elas por serem do sexo feminino, além
de muito jovens também. Os três têm contato com os instrumentos sagrados.

De acordo com Lühning (2001,125), a relação entre os toques e a personalidade

dos orixás é marcada por adequações, onde expressões ou determinadas finalidades são

explicitadas através do conteúdo musical e na sua execução: ritmos rápidos são

correspondentes a orixás mais jovens, enquanto para os mais velhos o ritmo é executado

mais lentamente. As bases rítmicas (as de 8, 12 e 16 pulsos também presentes no Xambá)

permitem a intensificação de expressão e velocidade, juntamente com frases melódicas

curtas e coreografias próprias, formando um processo de adaptação musical às finalidades

extra-musicais inseridas no contexto do qual a música faz parte e que terá seu ápice com a

presença do orixá.

221
Para Carvalho e Segato (1992, 38):

As características musicais contrastantes dos repertórios destes santos


reproduzem as relações tanto de oposição, como de singularidade, com
respeito a suas personalidades e seus papéis familiares no panteão34.

Essa diferenciação pode ser percebida entre as duas categorias de Iansã – de

Balé e as demais que compõem o grupo das diferentes “qualidades” de Oiá. Ao mesmo

tempo em que Iansã é rápida como os ventos e violenta como as tempestades, ela também

é muito respeitosa, séria e temida, por ser a rainha dos eguns. Assim como esses dois

repertórios diferem, os toques que acompanham essas diferentes cantigas são também

diferentes. Os toques que acompanham as cantigas de Balé são considerados mais

“pesados”, mais lentos. Um dos mais marcantes é o “toque da despedida”, que como o

nome indica, está relacionado à morte. Segundo Sandro Paraíso35 quando eles são tocados

significa que “ou alguém morreu ou está tocando pra Iansã de Balé”. Contudo, este toque

num andamento mais rápido acompanha a cantiga de invocação das Iansãs.

De acordo com Béhague (1984, 250), no candomblé, o mesmo se aplicando ao

Xambá, a dicotomia entre músico e audiência é rompida, dando lugar ao músico-

participante, assim, a interação entre esses papéis representa a tônica do processo e, por sua

vez, a interação entre eles e os orixás. Nesse contexto “a performance musical é o pré-

requisito absoluto para a existência e procedimento da religião”, não correspondendo a um

fato musical isolado em si, mas enriquecido por uma constelação de elementos presentes

no contexto religioso, seja no âmbito ritual, seja no âmbito social. Esse músico participante

engloba todas as pessoas que cantam, maioria feminina, pois o conceito de músico não é

34
“Las características musicales contrastantes de los repertórios de estos santos reproducen las
relaciones tanto de oposición, como de singularidade, com respecto a sus personalidades y sus roles
familiares em el pantéon”.
35
Entrevistado em junho de 2004.

222
atribuído pelo povo-de-santo nem mesmo para os ogãs, a não ser que este seja

percussionista fora do âmbito religioso, que é a maioria dos casos dos mais jovens. Tanto

os instrumentistas quanto o coro compõem o alicerce musical do toque público e também

das “obrigações”.

O repertório musical de Oiá é acompanhado por seis toques: Ecó Despedida,

Adarrum, Jeje, Sete por um e Umbanda. É importante ressaltar que a classificação dos

toques corresponde mais a uma postura ética36 que à realidade musical deste terreiro. Na

maioria das vezes, os ogãs referem-se aos toques como “o toque daquela toada para aquele

orixá...”. Esses toques são acompanhados por quatro padrões rítmicos diferentes

executados pelo agogô que estão transcritos juntamente com as palmas executadas pelo

coro para explicitar a relação estabelecida entre ambos, são eles: de 16 pulsos, de 8 pulsos,

e dois outros de 12. O executante, dependendo da sua experiência, pode acrescentar

“quebradas” ou variações a esse padrões ou, simplificar os que julgar mais difíceis:

Agogô 1. (16 pulsos)

36
Leia necessidade acadêmica.

223
Agogô 2 (de 8 pulsos)

Agogô 3 (de 12 pulsos)

Agogô 4 (de 12 pulsos)

Abaixo seguem transcrições do abê onde são destacados através das duas

linhas onde as figuras rítmicas se situam, os movimentos realizados pelo (a) executante. A

linha de baixo indica o movimento para baixo que um (a) destro (a) realizaria para a

esquerda juntamente com o padrão do agogô, as palmas do coro e o grave do tambor. A

linha de cima indica o movimento do abê para cima, que embora não seja executado

224
apenas à direita, é realizado junto com o movimento dos braços para cima. O abê como

uma simplificação do agogô, mas também musicalmente relevante, apresenta basicamente

dois padrões, que também podem sofrer variações:

1. Para cantigas lentas acompanhadas pelo toque Sete por Um. O padrão

do abê claramente dialoga com o padrão executado pelos tambores (a transcrição do melê

está nas págs. 226-28), apresentando semelhanças:

2. O segundo padrão acompanha todas as demais cantigas, tanto os

padrões de 16, quanto os padrões de 12 e de 8 pulsos. A transcrição de um dos padrões

rítmicos do agogô ilustra a relação entre os dois instrumentos:

225
3. As cantigas de andamento mais rápido podem ser acompanhadas

pela variação do padrão anterior, imprimindo um caráter mais rápido:

A seguir apresento a transcrição dos padrões executados pelo Melê, juntamente

com os respectivos padrões executados pelo agogô e pelas palmas executadas pelo coro,

que configuram um “beat”, ou seja, uma pulsação constante. Como já destaquei na

transcrição do toque Ecó, que acompanha o Oniká (pág. 158), as hastes para baixo e para

cima indicam as mãos direita e esquerda, respectivamente. O melê executa o padrão básico

que irá ser enriquecido pelas variações do melê ancó e do inhã e junto com o agogô e as

palmas compõe o alicerce rítmico para o coro, por essa razão resolvi tomá-lo como

referência para a transcrição dos toques de tambor:

Toque Ecó (12 pulsos = 70 a 80)

226
Toque Despedida37 (16 pulsos = 90 a 125)

Toque Adarrum (8 pulsos = 50 a 95)

Toque Jeje38 (16 pulsos = 110 a 130)

37
Geralmente neste toque o mele executa uma “chamada”, transcrita acima, mas em todo o resto da
cantiga repete o padrão rítmico que está entre os ritornelos.
38
Neste toque o melê executa o padrão rítmico de 12 pulsações, enquanto o agogô, as palmas e o
canto apresentam um padrão de 16 pulsos. Garcia (2001, 101) apresenta uma situação similar no Candomblé
de caboclo (Salvador, BA): o toque Barravento cujo padrão rítmico é de 12 pulsos acompanha cantigas de 16
pulsos. O toque Jeje é também citado por Braga (1998, 122) no Batuque (Porto Alegre, RS), embora as
características apontadas pelo autor sejam semelhantes em termos de caráter “pancada de andamento vivo e
muito apreciada pelo seu caráter”, não apresenta similitudes musicais.

227
Toque Sete por um (12 pulsos = 36 a 46)

Toque Umbanda (8 pulsos = 95 a 120)

Relacionando os toques com os padrões rítmicos do agogô às cantigas de Oiá é

possível obter um valioso panorama do repertório musical dedicado à Iansã. Para isso, é

válido expor aqui as estruturas melódicas das cantigas, associadas às recorrências dos

padrões e toques, que compõem um todo atrelado à identidade musical de Oiá na nação

Xambá:

228
Panorama I
PADRÃO CANTIGAS TOQUES
1.1. Emidebô Cilê (pág. 160)
1.2. Era com fé (pág. 195)
1.3. Fara com fá (pág. 190)
AGOGÔ 1: 16 pulsos 1.4. Iansã coroou (pág. 197) 1
1.5. Oiá Bainha Balaxó Despedida
(pág. 203)
1.6. Oiá Barelô (pág. 185)

1.7. Oiá Laincê (pág. 192)

2.1. Afunelé adê (pág. 175)


2.2. Anda, anda Oiá de
Umbanda (pág. 168)
2.3. Apalajô (pág. 198) 2. Jeje
2.4. Iansã e baía (pág. 197)
2.5. Oiá Gambeô (pág. 174)
2.6. Oiá Messã (pág. 169)
2.7. Sobomi sobô (pág. 194)

Panorama II
PADRÃO CANTIGAS TOQUES
1.1. Lauré Guanguá (pág.
193)

1.2. Oiá Cararô (pág. 170)


AGOGÔ 2: 8 pulsos 1.3. Oiá Dê Mapariô (pág.
188)
1.4. Oiá Deô (pág. 162)
1.
1.5. Oiá é do mal (pág. 85)
Adarrum
1.6. Oiá Meguê numa batalha
(pág. 63)
1.7. Ô jamitô (pág. 179)
1.8. Oiá Denina (pág. 200)
1.9. Oiá Ladê (pág. 201)
1.10. Ó l’Oiá Bendicá (pág.
202)
2.1. Oiá Meguê num agailê
(pág. 65)
2. Umbanda

229
Panorama III

PADRÃO CANTIGAS TOQUES

AGOGÔ 3: 12 pulsos 1.1.Mambaloê, mambaloiá 1. Sete por um


(pág. 171)

1.2. Oiá de Malê (pág. 172)

Panorama IV

PADRÕES CANTIGAS TOQUES

1. Ê aguerê (pág. 173)


AGOGÔ 4: 12 pulsos 1.
Ecó

1. 2. Oniká (pág. 158)

A partir dos panoramas apresentados anteriormente é possível resumir, de forma

quantitativa, as relações entre o número total de cantigas para Iansã, os toques que as

acompanham e, os padrões do agogô que são utilizados, ressaltando o fato que um mesmo

padrão do agogô pode acompanhar diferentes toques (caso dos agogôs 1 e 2). Dessa forma,

pode-se alcançar a representatividade que cada toque possui no repertório relacionando-o às

características do orixá e ao contexto religioso e musical como um todo. É importante

destacar que a quantidade não pressupõe necessariamente uma representatividade em

termos absolutos, pois toques como Ecó, Sete por um e Umbanda não estão presentes tanto

quanto a Despedida e o Adarrum, mas por fazerem parte do repertório, possuem suas

relevâncias particulares.

230
Panorama Geral

N.º TOTAL DE TOQUES N.º DE CANTIGAS


CANTIGAS
1. Ecó 2
2. Despedida 11
29 CANTIGAS 3. Adarrum 10
4. Jeje 3
5. Sete por um 2
6. Umbanda 1

As melodias das cantigas fornecem um caráter específico, mas este certamente,

é reforçado pelo toque do tambor e vice-versa. Se o toque é considerado “pesado”, a

mesma concepção é atribuída à melodia, por outro lado, se for concebido como “pra

frente”, assim também será seu canto, pois os ogãs também se influenciam pela forma

como o coro canta.

Para compreender os diferentes toques presentes no repertório de Iansã é de

extrema relevância destacar aqui algumas características apontadas pelos ogãs em relação

às questões musicais e religiosas. Nesta parte o que ganha destaque é a questão conceitual

do fazer musical dos tambores e do canto com suas possíveis relações, ou seja, os

elementos que os caracterizam, na visão de quem o realiza:

1. Ecó ou Egó ( = 70 a 80) Toque particular de Oiá. Não está

presente nos demais repertórios embora seja muito importante para entender Oiá, pois é

relativamente lento, marcante e “pesado”, concepção recorrente sobre a “santa”.

Acompanha também o “oniká” de Iansã. Sandro Paraíso declara:

O Ecó é o símbolo musical de Iansã. Onde você escuta o Ecó,


independente da nação, quando você escutar o Ecó, você vai saber que está
tocando pra Iansã.

231
Das vinte e nove cantigas coletadas apenas duas são acompanhadas por

este toque: o oniká, e a toada de Balé “Ê aguerê”. Sandro Paraíso declarou também a

possibilidade deste toque ser substituído pelo toque da “Despedida” na execução do

“oniká”.

2. Despedida ( =90 a 125) Possui quase a mesma importância em

relação ao “Ecó”. É o toque mais utilizado no acompanhamento das toadas de Iansã (11

cantigas), sendo exclusivo desse repertório. Segundo Sandro Paraíso o toque da

“Despedida” carrega uma conotação de tristeza, pois como o nome indica, está relacionado

à questão funeral:

O toque de Oiá, o ritmo de Oiá é toque da Despedida, que é um toque


mais lento, mais compassado. E é um toque meio triste, apesar de Iansã
ser bastante rápida. Lembra a questão do funeral, da morte. É aquele
toque mais lento. O ilú, principalmente o de marcação, quando ele dá
viradas, você sente que é uma virada pesada. Isso dá a identificação do
toque pra Oiá. Quando você chegar no toque, você logo vai dizer: esse
toque é pra Iansã.

Normalmente é mais rápido que o “Ecó”, embora o caráter funeral seja

sua ‘marca registrada’. Executado em andamento mais lento na maioria das cantigas.

3. Jeje ( = 95 a 120) É o terceiro de recorrência no repertório de

Oiá. É rápido e também está presente no repertório de Ogum (acompanha 3 cantigas). A

partir do compartilhamento musical entre ambos podemos estabelecer também relações

entre a mitologia e a música, pois Ogum foi o primeiro marido de Iansã. Este toque pode

simbolizar o outro lado de Iansã – o de agilidade, convicção, guerreira – a rainha dos

ventos e das tempestades.

4. Adarrum ( =50 a 95) É o toque mais executado depois do

“Despedida” (acompanha 10 cantigas). O termo “Adarrum” é muito utilizado para designar

232
a salva dos tambores, ou seja, o “aplauso dos ogãs” em que estes percutem os tambores

para saudar o orixá, ou alguma figura ilustre e para terminar o toque, momento em que

todos os presentes aplaudem. Também pode ser pensado como um compartilhamento geral

entre Iansã e os demais orixás, pois este toque está presente em quase todos os outros

repertórios. Tais relações reforçam a concepção de que a música não está isolada do

universo religioso e que há uma unidade imersa na diversidade do panteão e de seus

diferentes repertórios.

5. Sete por um ( = 36 a 46) Também chamado de “Sete pancadas”,

está presente na nação Nagô como característico do repertório de Iemanjá (Carvalho e

Segato 1992 e Segato, 1995). Este toque executado no Nagô não corresponde ao de mesmo

nome na nação Xambá, mas ambos carregam de certa forma, um pouco das características

apontadas pelos autores. No caso de Iemanjá o “Sete pancadas” seria um reflexo da

semelhança deste orixá com o mar, sua imprevisibilidade e seu ‘pesar’ de mãe apontados

pelo povo-de-santo. No caso de Iansã, o toque pra ela também possui seu ‘pesar’ de rainha

dos eguns, divindade respeitada e temida (acompanha 2 cantigas).

6. Umbanda ( = 95 a 120) Acompanha somente a toada “Oiá

Meguê num agailê” para a Iansã de Mãe Biu e por isso é muito especial para o povo-de-

santo do Xambá. Este toque possui um caráter totalmente diferente do usual para Iansã

pois é considerado “um samba executado em andamento rápido”. O momento de cantar e

tocar a referida toada torna-se uma festa em que Iansã e Mãe Biu são homenageadas com

muita alegria. Este toque reflete também a inserção do repertório de caboclos no repertório

dos orixás, visto que está presente nos dois cultos, assim como no repertório dos “Bêji”.

Mãe Biu cultuava os caboclos, assim como no presente ainda se cultua essas entidades que

também estão presentes no Toque dos “Bêji”. No Xambá há a tradição deixada por Mãe

233
Biu do “coco”, realizado no dia de São Pedro (29/06) e também dia do aniversário da

ialorixá, representando um momento litúrgico em que os caboclos são homenageados

(Costa 2004a). Em relação ao universo musical é possível encontrar “empréstimos” que

não são entendidos como elementos que descaracterizem a nação, nem sua tradição

musical.

Através dessas caracterizações é possível perceber como a personalidade do

santo e sua história no terreiro, relacionada à figura de sua mais importante ialorixá, Mãe

Biu, é importante para a descrição musical e vice-versa. A relação com a falecida ialorixá é

uma constante para a compreensão do orixá no Xambá, pois é também através do

repertório musical que vêm à memória pessoas que já faleceram. A música além de

fortalecer a identidade pessoal e a auto-estima das filhas e filhos-de-santo constitui um

veículo de rememoração de terceiros atuando na construção de uma “perspectiva histórica

do culto”, isto é, a noção de continuidade através do ciclo das relações que estão e

estiveram presentes no culto (Segato 1995 e 1999).

234
5.4. Oiá - seus gestos

“Igan obirin ti nko (i) dà”39


Mulher corajosa que carrega uma espada.

A dança configura a materialização da experiência religiosa e musical na

medida em que consiste na representação física das características de Iansã, de sua atuação

como divindade, estando também intimamente atrelada ao transe ou “incorporação”:

Diz-se que cada deus “se manifesta” por meio da possessão –


normalmente durante a interpretação de seu repertório musical específico
– de uma maneira que é possível reconhecer, pois sua dança segue um
padrão idiossincrático de movimentos. Por conseguinte, o comportamento
durante a possessão é modelado conforme a representação tradicional da
personalidade do orixá que “desce”. (Segato 1999, 237)

As funções rituais e musicais da percussão estão intimamente ligadas aos

cantos que, por sua vez, relacionam-se com os orixás e são externados através da dança e

do transe. Lühning (2001, 115) abordando a relação entre o transe e a dança afirma que o

primeiro é o:

Estado de consciência alterada, que expressa uma atenção especial dada à


corporalidade: a expressão do religioso pelo corpo e pela dança ritual. A
dança acontece em conjunto com a música, criando contextos complexos
de elementos interligados, os quais dificultam e até impossibilitam uma
separação da música desse contexto complexo do qual ela faz parte.

Neste universo a dança e o gestual do orixá configuram a

concretização/representação física da experiência musical. A divindade é marcada por

traços singulares de personalidade e também de características físicas. Tais

particularidades, de uma forma geral, são representadas na dança e na música, ou seja, há

39
Oriki de Oya: em Baningbe, África (Verger 1999, 405).

235
uma identidade gestual e musical que é reconhecida pela filha e filho-de-santo compondo

um senso comum do que representa o orixá, embora cada indivíduo construa também sua

própria referência. Assim como a música, a dança reflete também as distintas

personalidades dos orixás:

Atualizam as noções, representam sinteticamente suas singularidades e


suas inter-relações estruturais. Assim, permitem a gente perceber essas
idéias de uma maneira direta imediata, como se fossem “reveladas”
através das formas simbólicas da música e da dança40. (Carvalho e Segato
1992, 52)

Oiá, para dançar, porta sua espada de guerreira. Quando sem espada, o gesto

das mãos compõe uma coreografia que nos remete à essa imagem e ao poder e à violência

de suas tempestades. Normalmente as filhas da nação Xambá que estão de cabelos presos,

quando “incorporadas” com sua “santa” soltam os seus cabelos - misto de sensualidade e

liberdade. Pai Ivo destaca o perfil de guerreira que Oiá expressa em sua dança, afirmando

que esta divindade “dança lutando”. Há nesse perfil impetuoso de Iansã, uma mencionada

e polêmica relação com o “outro lado”, a Umbanda, pois esta também está presente neste

culto. Vale relembrar o fato de que “Umbanda” é um dos seus toques de tambor, também

presente na Jurema, como já mencionado. Segundo Sandro Paraíso:

Orixá é orixá, Umbanda é Umbanda. Aí o povo tem essa história. Até no


jeito de dançar você vê. Uma Iansã quando pára de dançar ela lembra
bem uma pomba-gira. Aí o povo tem mania de dizer que Iansã é
macumbeira.

Mesmo “lembrando uma pomba-gira”, Oiá, por outro lado, também dança

expressando sua austeridade. Sandro Paraíso descreve sua interpretação sobre essa forma

de Iansã dançar:

40
“Actualizan las nociones, representan sinteticamente sus singularidades y sus interlaciones
estruturales. Así, permiten a la gente perceber esas ideas de una manera directa inmediata, como se fueran
“reveladas” através de las formas simbólicas de música y baile” .

236
Oiá dança fazendo sinal de proteção. Ela dança como se estivesse
protegendo os filhos dos eguns. Como se estivesse empurrando, dizendo:
“olha, mais pra trás, aqui não”. Levando os males. Aí ela dança como se
estivesse afastando esses eguns, como se estivesse protegendo a casa.
Que é o gesto de como se estivesse protegendo o local.

Sobre a coreografia de Iansã, Verger (1999, 33) narra:

Yansan ou Oya, mulher de Sango, divindade do vento e das tempestades.


Dança com os braços estendidos como se desencadeasse os elementos e
dominasse as almas dos mortos (egun) que somente ela, entre os Orisa,
pode enfrentar.

Em relação à coreografia específica da “Iansã de Balé”, categoria musicalmente

e gestualmente distinta da mencionada na duas citações anteriores, o autor (1999, 170)

acrescenta:

Certas Iansãs, chamadas Yànsán de Igbalè, ligadas ao culto dos mortos,


os Egúngun, quando dançam parecem expulsar as almas errantes com
seus braços largamente abertos e estendidos para a sua frente.

Na nação Xambá, embora cada pessoa acrescente interpretações pessoais, as

diferentes Iansãs dançam de forma que nos remete à imagem narrada por Verger.

237
Iansã dança erguendo as
mãos para os céus,
simbolizando a
tempestade, e os raios.
Este orixá é também
guerreiro e dança como
se carregasse sua espada
para se defender e
defender seus filhos.
Esta filha-de-santo é
Adriana Paraíso, neta de
Mãe Biu e também filha de
Iansã.

Sobre os aspectos presentes nas coreografias Segato (1995, 166) observa que

constituem modos discursivos singulares de orixá para orixá e diferem do âmbito verbal de

concepção acerca dos mesmos e de suas mitologias, sonhos e relatos biográficos. Sobre a

relação entre discurso musical e corporal, a autora acrescenta:

A prática do culto mostra que linguagens musicais e coreográficas são tão


essenciais quanto a expressão verbal para a modelagem e a transmissão
da idéia multifacetada de cada divindade. (Segato 1995, 166)

A música e o gestual do orixá compõem um discurso marcado por sua

complexidade. Este discurso não se relaciona apenas com a composição da idéia que se

238
constrói da divindade e da narrativa de sua história, mas com a possibilidade de sua

realização, baseada em aspectos de certo modo técnicos exigidos do coro, dos ogãs e

também da divindade. Para dançar na nação Xambá, o orixá precisa ter “pé de dança”, ou

seja, ser um bom dançarino, capaz de acompanhar os tambores e as cantigas. Sandro

Paraíso afirma que são os tambores que guiam a dança:

O orixá dança pelo toque, até por que nem todo orixá tem pé de dança. Pé
de dança é aquele orixá que dança bem. Aí se a gente for se guiar pelo
orixá, vai que ele não tenha pé de dança, aí o toque vai embaralhar todo.
E, mesmo assim, o ilu é que tráz o santo e as toadas. As toadas e os ilus
são que trazem o santo à terra. Então, ele vai dançar de acordo com o que
estiver cantando e tocando. A não ser que ele peça pra cantar e tocar a
toada dele.

O coro exerce também um importante papel para a realização da dança e do

toque formando uma tríade canto-dança-toque que deve se apresentar totalmente

equilibrada. Seu Maurício alerta que muitas vezes a pessoa ou orixá pára de dançar para

poder ouvir a toada: “se não responde certo, não se dança certo. Não se pode separar”.

A partir destes depoimentos é possível perceber que embora o orixá precise

acompanhar os tambores esta relação pode também ser invertida, conforme o desejo do

santo de ouvir sua toada. Por outro lado, o coro deve cumprir seu indispensável papel de

realizar as respostas no momento certo. Todas essas questões refletem o dinamismo

presente nesse universo onde todos os seus elementos se apresentam associados e ricos de

simbolismo e reciprocidade.

239
5.5. Iansã, as mulheres e a música – gênero na Etnomusicologia

“Oya pere bi eni tana” 41


Oya é como alguém que acende o fogo.

A partir da reflexão de Seeger (1977, 39) sobre a Etnomusicologia é possível

perceber como emergem no seio dessa área dois focos de interesses e rumos que são

complementares e também opostos: 1. vertente musicológica – estudo da música em si; 2.

vertente antropológica – estudo das relações entre a música e a sociedade que a produz.

Continuando, o autor lança quatro perguntas básicas à (s) formação (ões) etnomusicológica

(s): 1. da orientação antropológica: O que eles estão fazendo? E por que o fazem dessa

maneira?; 2. da orientação musicológica – Quais os sistemas sonoros? E Quais as

estruturas desses sistemas sonoros? A partir dessas questões o autor ressalta as lacunas que

se fazem presentes em ambas as abordagens. Na orientação antropológica muitas vezes a

falta de “acuidade musical” e, na musicológica a negligência em relação à sociedade que

produz a música estudada, à própria produção musical e à performance musical.

Quando falamos sobre música é importante atentar para o fato de que ela não

corresponde a um elemento ‘solto no ar’ com fim em si mesmo. A música é concebida e

realizada por pessoas que carregam uma história, cultura, sexo, idade, cor e inserção social

específicos que juntos irão delinear uma série de questões nesse seu fazer musical. Nesse

sentido Seeger (1977, 40) acrescenta:

A música está de algum modo relacionada com a sociedade que a produz. É necessário,
no entanto, ir além dessas generalizações otimistas e investigar a natureza da
vinculação postulada através de estudos que analisem tanto as estruturas sonoras
produzidas quanto a sua relação com os seres humanos que a produzem.

41
Oriki de Oya: em Baningbe, África (Verger 1999, 405).

240
Como ponto de partida para a discussão o autor analisa uma akia - gênero musical

indígena, dos Suya do Brasil Central. Relaciona esse gênero musical à organização

cosmológica e social dos Suya e, também à análise do que chama de “contexto total”

refletindo de que maneira o contexto exerce poder nos sons e vice-versa: “Se o contexto

influi sobre os sons, é também bastante provável que estes, por sua vez, contribuam para

criar, ou até mesmo alterar, o contexto em que serão produzidos”. Acrescentando, define

“contexto” como algo que se descobre após levantar as seguintes questões: “quem”, “o

que”, “onde”, “quando”, “como”, “para quem” e “por quê?”.

Embora o som possa ser captado através de qualquer gravador, a música num

sentido amplo vai além de suas estruturas sonoras. Esse ‘ir além’ contempla diversos

elementos ‘extramusicais’, onde as relações de gênero configuram as relações sociais,

musicais e religiosas. O fato de ser mulher na sociedade atrelado à questão racial,

geracional e de classe, implica inúmeras questões resultantes do fazer musical que irão

influenciar a música.

Respondendo à pergunta que dá nome ao artigo: “Por que os Suya cantam para

suas irmãs”, Seeger (1977, 56) afirma que o fato dos homens cantarem as akias para estas

diz respeito à referência hierarquicamente contrastante com parentes que não sejam

consangüíneos. Concebidas como ‘juízes’ da performance musical dos homens, as irmãs

são consideradas ‘nós’(kwoiyi), diferentemente das esposas, por exemplo, que são

consideradas, assim como os demais parentes não-consangüíneos, os ‘outros’(kukidi). Por

fim, Seeger (idem, 57) reforça que “um homem canta para a sua irmã porque o som é

capaz de estabelecer uma ponte através da distância espacial que separa o homem adulto de

seu grupo de residência natal” e tanto a fala como o canto é concebido como sinônimo da

masculinidade adulta (idem, 58). Em seu artigo Seeger privilegia o universo masculino

Suya embora ressalte o importante papel musical de ‘juízes’ que as irmãs cumprem.

241
Contudo, o autor reforça e demonstra todo o tempo como música não se restringe a

estruturas sonoras, como cada momento está relacionado aos valores presentes na

sociedade.

Seeger (1977, 59) atenta ainda para o fato de que não se pode analisar música

restringindo-a ao som, mas ampliando-a para o contexto, que é composto por pessoas que

carregam diferentes experiências e diferentes poderes na sociedade conforme uma série de

questões onde sexo, raça e classe compõem uma tríade fundamental. A música como

produto cultural deve ser pensada amplamente, retomando a questão do contexto apontado

pelo autor de “quem”, “o que”, “onde”, “quando”, “como”, “para quem” e “por quê?”, que

pensados a partir desta tríade nos fornece relevantes questões para pensar música e

sociedade.

Sarkissian (1992, 337) afirma ainda que o estudo de gênero muitas vezes é

concebido numa perspectiva biológica, mas que na realidade, combina questões que

permeiam construções culturais. Estas ‘questões’ são passíveis de transformações

desprovidas de determinismos biológicos e que carregam consigo uma conotação política,

quando se constata as hierarquizações que são naturalizadas e estão inerentes a essas

diferenças que se refletem na música, na performance musical e nas pesquisas que são

realizadas. Nicholson (2000, 9) considera gênero uma construção cultural e social e

“pensado como uma referência à personalidade e comportamento, não ao corpo; ‘gênero’ e

‘sexo’ são compreendidos portanto como distintos”. Este conceito fomenta a percepção de

que tanto gênero como música representam construções culturais, embora muitas vezes

sejam naturalizados e simplificados, separados da realidade social, dos poderes e dos não-

poderes. A naturalização de gênero corresponde à essencialização do que representa ser

homem e mulher no mundo, onde papéis estão, nesta concepção, preestabelecidos,

242
hierarquizados e onde o ‘não-poder’ feminino é proporcional ao poder masculino, ambos

concebidos como ‘naturais’.

Conway, Bourque e Scott (1996, 32) ressaltam que ao estudar os sistemas de

gênero emerge a consciência de que este não representa os papéis sociais biologicamente

prescritos, mas um meio de conceitualização cultural e de organização social. A partir

desse argumento, é destacada a necessidade de revisar e ampliar os conceitos sobre

natureza e a própria condição humana. Sob esta ótica, aprender sobre mulheres pressupõem

aprender sobre homens, pois gênero representa uma categoria analítica relacional: “O

estudo de gênero é uma forma de compreender as mulheres não como um aspecto isolado

da sociedade, mas como parte integral dela”42 (Conway, Bourque e Scott, 1996, 33). A

naturalização da música, por conseguinte, corresponderia à errônea concepção de que é

realizada à parte da sociedade, como mero ‘entretenimento’, quando na realidade

representa um poderoso veículo cultural que reforça valores, seja em seu próprio

‘conteúdo’ musical, seja em relação ao contexto, quem toca, quem ‘pode’ tocar, as

hierarquizações dos papéis musicais como um todo, mesmo que este contexto seja

religioso.

Fundado por uma filha de Iansã, o terreiro Xambá é marcado por uma maioria

de mulheres atuantes nos processos musicais, no que se refere ao repertório vocal, na

manutenção da tradição religiosa e na própria administração do terreiro. Essa atuação

feminina, ainda que de certo limitada por seu ‘não poder’ na participação de diversos

momentos no culto e também em relação aos tambores sagrados, que lhes são acessíveis

apenas nas obrigações, mesmo assim, é, sem dúvida, um diferencial nesta casa. O fato do

babalorixá Ivo possuir orixá feminino – Oxum, já mencionado, também sempre é reforçado

42
“El studio del género es una forma de comprender a las mujeres no como un aspecto aislado de la
sociedade sino como una parte integral de ella”.

243
pelos filhos-de-santo como uma justificativa ou reforço ao fato desta nação ser

caracterizada pela presença feminina, assim como o terreiro ser regido por Oiá Meguê -

orixá da então falecida Mãe Biu. Dentro do contexto afro-pernambucano, Mãe Biu, mulher

negra e pobre alcançou lugar de destaque como ialorixá da nação Xambá. Ainda que

obedecendo às regras e à tradição muitas vezes marcada por um ‘não poder’ feminino, a

ialorixá participava de cerimônias como a de Iansã de Balé, em que apenas os homens

participam. Musicalmente também se destacou por tocar nos tambores sagrados cujo

acesso é exclusivo ao universo masculino, assim como algumas de suas irmãs e como

ocorre atualmente, ainda que numa pequena proporção de meninas e mulheres em relação

aos meninos e homens que tocam.

Em relação à Iansã, percebe-se na sua música seu caráter de guerreira e suas

diversas faces. Partindo do princípio de que não existe música pura e de que os

significados musicais são atribuídos pelas pessoas inseridas num determinado contexto, a

relação entre a ialorixá, suas cantigas e a sua representatividade dentro do repertório é

notória, assim como a relação das cantigas com os tambores e os entrelaçamentos com o

universo da Jurema, através do toque de Umbanda, por exemplo. Em relação à atuação

feminina, não especificamente no repertório de Iansã, mas no universo musical desta casa

como um todo, o coro desempenha papel fundamental para a performance musical.

Constituído por maioria de mulheres delineia uma forma de emissão vocal de registro

agudo que muitas vezes é repetido pelos homens que cantam em falsete, confirmando a

idéia de que a performance musical influencia o estilo, que este está atrelado a relações de

gênero e que, este complexo de relações constroem a tradição religiosa.

A Etnomusicologia representa a área de estudo da música como elemento

construído a partir do contexto no qual está inserido e como via de acesso à compreensão

do grupo cultural ou religioso na qual é produzida e vice-versa. O estudo da música

244
considerando o gênero como ponto de partida visa enfocar o universo feminino e suas

diferentes atuações musicais e a tradição do grupo musical em questão. Blacking (1974)

considera a música como produto do comportamento de grupos humanos que pode

acontecer tanto de maneira formal quanto informal. Sob tal perspectiva, a música

corresponderia a som humanamente organizado. Contudo, a música deve ser abordada

conforme a concepção de quem a faz, ou seja, não existe um conceito universal do fazer

musical. Neste sentido, embora a relação entre tambores e canto seja verbalmente

hierarquizada quando o povo-de-santo afirma que “o coro não canta, apenas responde”,

enquanto que os tambores tocam e os solistas “puxam”, há de ser reforçada a importância

desse coro de maioria feminina, praticamente indispensável a todos os momentos do culto.

Em determinados momentos não se toca, mas na maioria dos casos se canta, e este sempre

exige resposta. Em relação ao repertório de Iansã a questão da rememoração representa

uma das tônicas, principalmente nas cantigas que mencionam Oiá Meguê, onde mesmo que

o sentido literal dos textos das cantigas não seja de conhecimento do povo-de-santo diante

de toda sua história, esse significado é construído em torno da figura de Mãe Biu quando

se busca traduzir as cantigas como um pedido de ajuda e de força de que nos falou seu

Maurício ou que Oiá Meguê está no “Aga Ilê”, como a rainha que é, comandando o céu.

Há a constatação de que qualquer que seja o conceito musical, este é

culturalmente construído e, nessa construção, as relações de gênero são determinantes para

um conjunto de poderes e de ‘não poderes’. Blacking (1974) propõe também uma análise

musical relacionada aos aspectos extramusicais onde há interação entre o comportamento

musical e as questões que vão do biológico – percepção aural, ou seja, a apreensão dos

elementos musicais e culturais do indivíduo num sentido amplo43 -, ao cultural,

43
Nettl (1983, 189) considera aural a percepção global do indivíduo em relação aos elementos que
são transmitidos na cultura, seja no âmbito musical ou não.

245
reconhecendo que a música e a comunicação musical dependem do diálogo entre esses

diversos fatores para acontecer.

Para entender a constelação de elementos que envolvem a música é importante

relacioná-los à cultura e às concepções culturais que atuam delimitando e reforçando

condutas através de seus processos de transmissão que compõem o percurso da construção

de uma tradição44. Cultura aqui deve ser pensada como um conjunto de características

próprias de um determinado grupo de indivíduos que são carregadas de simbolismos e

significados. Geertz (1989) defende um conceito de cultura “essencialmente semiótico” ou

“ciência interpretativa, à procura do significado,” onde os diversos significados fossem

interpretados e que as interpretações seriam particulares a cada contexto.

O conceito de uma cultura repleta de redes de significações, interpretadas e

analisadas por um olhar guiado por concepções nativas, nos conduz à relevância de um

olhar que se lança sobre todas as relações possíveis que giram em torno da música, do

fazer musical, em suas diversas esferas e são delineadas pelas singularidades e

diversidades culturais. A tradição, por sua vez, representa o alicerce fundamental da

cultura, podendo ser concebida como todo o conjunto de elementos que são transmitidos de

geração a geração. Estes elementos são julgados pelas pessoas que constroem sua cultura,

seus valores como significativos tanto para a manutenção quanto para a transformação dos

mesmos. Leia-se tradição como o marco, o ponto de partida de uma travessia ou das várias

travessias humanas (culturais), mas que é, sobretudo dinâmico. Nesta rede que entrelaça

cultura e tradição emerge o gênero que corresponderia à “forma culturalmente elaborada

que a diferença sexual toma em cada sociedade e que se manifesta nos papéis e status

44
O termo tradição no singular não deve ser tomado como modelo único e estático abrangendo toda
a capacidade de transformação e dinâmica que a constrói.

246
atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade sexual dos indivíduos” (Ferreira 1999,

980) e que também constrói a tradição e a cultura como um todo.

Ao utilizar a célebre frase “Vive la Differénce”, Nettl (1983, 333) ressalta e

critica uma visão que foi recorrente durante longo período da história da Etnomusicologia

e que ainda se faz presente em diversas áreas – a concepção de homogeneidade cultural e

de gênero. O autor ressalta que a maioria das pesquisas etnomusicológicas ainda concebe

uma escala de valoração idêntica às diferentes atuações femininas e masculinas. Partiu das

pesquisadoras a iniciativa de visibilizar a mulher, levantando problemáticas relacionadas à

ela e seu lugar na sociedade, grupo cultural ou religioso. Na Etnomusicologia as

pesquisadoras vão visibilizar as atuações femininas até então invisíveis para o olhar dos

pesquisadores homens, considerando sua relação com a música e os processos de

transmissão musical. Continuando, o autor (1983, 334) afirma que na maioria das culturas,

existe uma grande diferença entre as vidas da mulher e do homem e que existe, portanto,

uma divisão das responsabilidades sociais e de trabalho, atuações distintas que resultam em

repertórios musicais distintos. Nettl (1983, 339) destaca também que as relações entre as

diferentes atuações podem determinar o estilo musical de uma sociedade e que em várias

sociedades o papel da transmissão musical é legado às mulheres por essas estarem em

contato mais constante com as crianças. Merriam (1964, 247), por sua vez, reforça o fato

de que as distinções que se dão no âmbito musical, conforme o sexo ocorre em todas as

sociedades:

Música reflete as distinções sexuais feitas em todas as sociedades,


algumas canções são reservadas para homens e algumas para mulheres
(. . .). Esta distinção baseada no sexo é refletida também através da
música onde os grupos sexuais são a base de certos aspectos do ritual

247
religioso. (. . .) Então música reflete, e nesse sentido simboliza papéis
masculinos e femininos45.

Sobre a importância do deslocamento da esfera biológica à subjetividade nos

estudos de gênero, Dias (2003, 22) ressalta que o gênero se encontra imerso no âmbito do

simbólico, ou seja, às questões do feminino relacionadas à raça, classe, etnia, religião,

entre outras e atuam na configuração das relações humanas, sociais e culturais em diversos

níveis:

O sexo biológico que marca todos os humanos indistintamente


instala o dado primeiro da identidade humana e se constitui em
atributo inseparável da história de cada um. Tornar-se homem ou
mulher, entretanto, é uma aprendizagem realizada na rede social
através dos significados simbólicos que produzem as
subjetividades (Dias 2003, 28).

Assim como Dias, Kimberlin (1991, 14) afirma que o gênero interage com

identificadores relacionados com questões de raça, etnicidade, classe, status econômico,

idade e outras variedades culturais. Partindo de tal pressuposto, é importante reforçar as

relações ressaltadas com o universo da Nação Xambá. Sua história marcada pela presença

das filhas de Iansã, e da atuação feminina ser representativa na atualidade, sendo Iansã e

Mãe Biu as duas grandes referências que atuam na construção da identidade atual deste

terreiro afro-brasileiro.

A relevância de uma abordagem etnomusicológica de gênero se dá a partir do

pressuposto de que existem determinados elementos que delineiam a trajetória de uma

cultura, de uma religião, que são imprescindíveis à sua construção em diversos níveis. Seja

no que se refere a questões musicais, seja no que se refere às questões extramusicais, é de

45
“ Music reflects the Sex distinctions made in all societies; some songs are reserved for men and
some for women.(...) This distinstion on the basis of Sex is also reflected through music where the Sex
groups themselves are at the basis of certain aspects of religius ritual.(...) Thus music reflects, and in a sense
symbolizes male-female-roles”.

248
extrema importância considerar os diversos aspectos presentes em seu complexo universo.

Dentro do universo musical da nação Xambá, a atuação das mulheres o repertório vocal

torna-se o ponto de partida para o fomento de uma compreensão abrangente de tais

elementos onde questões de identidade, tradição e gênero encontram-se entrelaçadas. A

partir da música podemos alcançar um olhar que se pretende holístico acerca de questões

culturalmente estabelecidas, pensando em sua relação com a cultura e, por fim, com a

religião. A música dentro de tal contexto compõe elo entre os diversos fatores presentes no

contexto desta nação.

Há sem dúvida, no Xambá, uma tradição voltada para a figura de Iansã e de

suas filhas. A história deste terreiro, como já foi demonstrado, é marcada por uma atuação

de filhas de Iansã. Atualmente, embora o babalorixá seja do sexo masculino, seu ori

pertence a Oxum. A filha de Pai Ivo, Adriana Paraíso é também, assim como era sua avó,

filha de Iansã e sua filha, Cíntia Paraíso, herdou da bisavó o orixá Ogum. Estas relações

familiares e religiosas denotam a questão geracional como um fator presente neste terreiro

onde as relações consangüíneas são muito valorizadas e caracterizam sua tradição. Em

meio a tal universo, é importante ressaltar mais uma vez o fato de que existe uma maioria

numérica de filhas de Iansã.

No universo das religiões afro-brasileiras, personalidades de filha-de-santo e de

orixá se confundem. Para a filha (o) o orixá representa um outro que ao mesmo tempo

representa um delineador de sua própria identidade não só religiosa como individual que

vai ser representado musicalmente através de seu repertório. Por conseguinte, a história da

nação Xambá é marcada por uma história de filhas-de-santo de Iansã que em meio a

perseguições policiais, à própria condição de mulheres sozinhas, negras e pobres, deixaram

uma referência de coragem e independência feminina. Cardoso (2001, 60) destaca que o

“conjunto cultural” que compõe a tradição oral está sobretudo centrado nas lembranças de

249
seus indivíduos, construindo uma memória tanto individual como comunitária, certamente

pode ser feito o transporte desta afirmação para o contexto do que representa as filhas de

Iansã no Xambá. Estas são atuantes e concebidas como a própria divindade – todas

guerreiras, como narra o filho-de-santo Cleyton José da Silva (Guitinho):

250
6. Conclusão - A casa Xambá é a casa de Oiá1

“Oiá Deô, boim, boim uló”2

A partir das várias incursões realizadas neste trabalho foi possível perceber que

contemplar o universo musical de Iansã, no Xambá, pressupõe considerar a tríade

inicialmente apresentada, Xambá - Iansã - Música, sendo esta a mola propulsora para a

realização desta pesquisa. É a partir desta tríade que todos os elementos se mesclam

compondo complexo único e apresentando novos desdobramentos a serem revelados.

Neste contexto, a questão do gênero salta aos olhos quando se lança um olhar sobre a

história deste terreiro: uma história protagonizada por mulheres.

As diferentes atuações religiosas e musicais exercidas por homens e mulheres

foram discutidas considerando a perspectiva de gênero, atrelada a questões de raça e de

1
Declaração de Sandro Paraíso em entrevista realizada em junho de 2004.
2
Cantiga de despedida das Iansãs. A última cantiga a ser entoada no repertório musical dedicado a
este orixá.
classe, visto que Mãe Biu além de ser mulher, era negra e pobre. A relevante participação

do coro formado por uma maioria feminina, é indispensável em qualquer cerimônia

dedicada aos orixás. Elementos como o registro agudo e a emissão vocal do coro delineiam

uma forma de cantar essencialmente feminina e, por ser marcante, é também reproduzida

pelos homens. Mesmo nas obrigações de Balé, onde a participação feminina é vetada, o

coro está presente – as mulheres ficam à porta do Quarto de Balé para responder aos cantos

puxados pelo babalorixá para Iansã de Balé, a rainha dos eguns.

A música, com funções e usos variados, expressa os diversos aspectos do ritual

religioso e propicia também a participação feminina em relação ao universo rítmico, a

priori, exclusivo dos homens. Às mulheres não é vetado o acesso aos tambores,

considerados sagrados, e ao abê, sendo este último o primeiro instrumento que as crianças

e jovens têm contato no processo de aprendizagem musical que ocorre, sobretudo, nas

obrigações. A abertura certamente é decorrente de uma tradição de conquistas de espaços

legada por Mãe Biu que, inovando, tocava os tambores sagrados. Esta ialorixá, tendo

vivido toda uma história de resistência religiosa no contexto das perseguições aos cultos

afro-brasileiros em Pernambuco, manteve uma postura de resistência feminina

conseguindo ocupar lugar de destaque no contexto do xangô pernambucano, universo cuja

predominância e prestígio era de maioria de babalorixás. Mãe Biu, no entanto, não esteve

sozinha nesta jornada de construção de uma tradição de liderança feminina. Várias outras

mulheres a ajudaram e conjuntamente deixaram uma referência de força, coragem e

independência. O próprio Pai Ivo3, filho dessa tradição de atuação feminina, declara:

Minha mãe foi inovadora nesse sentido. Minha mãe tocava ilú. Dona
Laura tocava ilú. Fátima, minha prima, tocava ilú. Adriana já tentou tocar
ilú alguma vez, Luana também, Neta também. É uma questão de
formação de hábito. Eu lembro há uns vinte, trinta anos atrás, a primeira
mulher dirigindo um ônibus, passou até na televisão. A primeira mulher

3
Entrevista realizada em junho de 2004.

252
comandando a polícia. São esses tapetes vermelhos que colocam em
torno da mulher que tiram elas da posição. Se mostrasse como uma coisa
simples, uma coisa qualquer. . . Isso, em vez de ilustrar, dar um maior
destaque, pelo contrário, mostra a queda de braço e causa, por outro lado,
a chamada ciumeira de tirar. Então, aqui na nossa casa nunca foi proibido
para uma mulher tocar ilú. A qualquer momento que chegar uma mulher
que tenha uma boa condição de tocar, não é proibido. Agora, a questão do
costume é que tira.

Embora a fala de Pai Ivo explicita que não houve a abertura, mas a conquista de um espaço

feminino, a questão a meu ver não deve ser resumida ao ‘costume’ apenas, mas de que

forma este é construído. É preciso ter consciência dos diferentes processos de

aprendizagem e incentivo, entrelaçados ao fato de se nascer do sexo masculino ou

feminino na sociedade e, de que no contexto religioso essas diferenças naturalmente

também delineiam suas relações, embora haja a presença dos orixás.

No Xambá as figuras de Iansã e Mãe Biu se misturam e se complementam,

tornando-se praticamente uma mesma referência de conduta pessoal e religiosa. As filhas

de Iansã são tomadas como guerreiras, independentes, corajosas, arredias assim como a

divindade. O depoimento de Pai Ivo reflete claramente essa concepção:

Eu tenho todo respeito por Iansã, por que foi quem me criou. Minha mãe
separou-se do meu pai desde quando eu nasci. Se eu não consegui chegar
a muita coisa, mas o que eu consegui ser até agora, que graças a Deus
tenho que agradecer aos orixás que, para mim, está de bom tamanho,
devo à Iansã e à minha mãe.

O olhar, a concepção de mulher guerreira e independente que se tem sobre Oiá e Mãe Biu é

também estendida para as demais filhas-de-santo deste terreiro. O próprio Pai Ivo

acrescenta que “Oiá é muito feminina no Xambá, pois existem poucos filhos de Iansã.

‘Feito’ apenas um.” Suas cantigas, danças e obrigações, representam um papel importante

na vida social e religiosa da comunidade.

As melodias, os toques, os textos das cantigas e o gestual de Iansã compõem

uma “radiografia contextual” que abarca os âmbitos musicais e extramusicais. Oiá

253
guerreira, ágil, poderosa e intempestiva é louvada no toque público com um repertório

musical constituído de 29 toadas4 intimamente atreladas ao contexto. As cantigas são

marcadas por um canto silábico, com diversas palavras “traduzidas” para o contexto

brasileiro, num misto de iorubá e português. Refletem também os processos de adaptação e

re-significação a partir da presença de elementos tonais como arpejos, imersos em

estruturas tetratônicas, pentatônicas, hexatônicas, assim como melodias tonais e modais.

O grupo instrumental formado por um trio de ingomes – melê, melê ancó e

inhã -, um agogô e um abê, executam os seis toques – Ecó, Despedida, Jeje, Adarrum, Sete

por Um e Umbanda – que acompanham todas as toadas. Os ingomes e o agogô podem

acrescentar viradas, variações e até mesmo simplificar os padrões rítmicos básicos de 8, 12

e 16 pulsos dos toques, conforme o ogã que estiver tocando e dentro de parâmetros

musicais e religiosos permitidos. Os diversos elementos musicais constitutivos da música

dedicada a Iansã, no Xambá, apresentam semelhanças tanto com o universo musical Nagô

quanto com o Angola, podendo se estender até o Jeje através da nomenclatura homônima

do toque de tambor e da presença do vodun Jeje Afrequête, que é considerado orixá no

Xambá.

A Oiá intempestiva pode inesperadamente assumir o comando de sua

cerimônia e “puxar” novos cantos que são aprendidos pelas filhas (os)-de-santo e

incorporados ao seu repertório musical5. Iansã ou Oiá representa uma categoria que

engloba diversas Iansãs ou Oiás que são particulares. Duas filhas-de-santo não possuem a

mesma Oiá, o que torna o universo religioso individualizado, ao mesmo tempo

compartilhado em relação à categoria desse orixá. Embora existam cantigas que possam

4
Estou considerando aqui as cantigas registradas, transcritas e analisadas durante o tempo desta
pesquisa.
5
Sandro Paraíso comentou que certa vez uma filha de Iansã de nação Nagô estava ‘incorporada’ e
‘puxou’ uma cantiga desconhecida para os ogãs. Neste caso tocaram o Toque da Despedida para
acompanhar, pois é o de maior representatividade em seu repertório, a segunda opção seria o Ecó,
considerado o símbolo musical de Oiá.

254
ser entoadas para todas as Iansãs, há outras, individuais, que narram as qualidades

específicas de cada uma das suas faces. A manifestação das divindades nos filhos e filhas-

de-santo através dos rituais, propicia a relação entre o mundo real e o mundo divino.

A questão geracional representa um elemento marcante na identidade atual do

Xambá que difere dos demais terreiros afro-brasileiros. Para os xambanianos, herdeiros

diretos de uma atuação de filhas de Iansã, a família em termos consangüíneos é muito

valorizada, mesmo que recebam com alegria novos adeptos. As relações de parentesco são

importantes e devem ser consideradas para a manutenção da tradição e da sua identidade.

Embora não seja regra, é importante considerar que as relações com as divindades também

acontecem de forma geracional. Pai Ivo, filho consangüíneo de Mãe Biu, herdou dela o

orixá Xangô e a direção do Ilê Axé Oyá Meguê. Adriana Paraíso, filha de Pai Ivo e neta de

Mãe Biu é também filha de Iansã. Cíntia Paraíso, filha de Adriana e neta de Pai Ivo herdou

o Ogum de sua bisavó. Como reforçou Costa (2004a) O terreiro Xambá ou “xangô de Mãe

Biu” como é conhecido em Recife, é uma referência na divulgação da herança afro-

brasileira, sendo os filhos e filhas consangüíneos os principais herdeiros do axé.

A história do Xambá sempre foi marcada pela repressão policial e, por

conseguinte, pela adoção de diversos mecanismos de resistência através da manutenção da

tradição religiosa e musical. A situação ainda se agravava, em relação às demais nações

afro-brasileiras, por representar uma nação diferente, sem o “status” das concebidas como

tradicionais. Com o passar do tempo, a diferença tornou-se um fator identitário, reforçado

com orgulho por seus adeptos que têm Iansã e Mãe Biu como suas referências de mãe e de

liderança. As duas são invocadas nos momentos difíceis e igualmente são homenageadas

através das cantigas para Iansã em geral e para a Iansã específica da ialorixá, Oiá Meguê.

Aqui, o divino e o humano se confundem e se complementam permitindo uma relação

contínua entre o passado, o presente e o futuro que só podem ser entendidas através da

255
participação nos toques e nas obrigações, estes inseparáveis do canto e da dança. Sandro

Paraíso sintetiza a importância de Iansã, através da atuação de Mãe Biu, para a nação

Xambá da seguinte forma:

Mãe Biu foi filha-de-santo de Maria Oiá, a precursora do terreiro. Tudo


que ela fazia representava o desejo do orixá expressado através do jogo,
assim como Mãe Biu foi regida por Iansã. Era ela quem dava as diretrizes
da casa, quem dizia o que devia ser feito e como devia ser feito, chegando
a ter ocasiões em que a pessoa de Mãe Biu não podia fazer e Oiá descer
pra fazer. Por isso se resume a tudo a importância de Oiá, por que ela
nunca desamparou a casa Xambá. A casa Xambá é a casa de Oiá.

256
ANEXOS
1. GLOSSÁRIO 1

Abê – ver xequerê.

Adarrum – toque de tambor de 8 pulsos do repertório de Iansã. Presente também nos

repertórios de outros orixás, configurando um compartilhamento musical entre Iansã e os

demais do panteão. Termo também utilizado para designar a salva dos tambores ou as

“palmas dos ogãs” em algum momento solene como o término do Toque público, ou para

saudar alguma pessoa ilustre que esteja presente no Toque. Cacciatore (1977) define como

“Toque dos atabaques e agogô, em ritmo acelerado e contínuo, visando aniquilar a

resistência do orixá à incorporação e apressar assim, na inicianda, a “queda no santo”. Do

iorubá “a” – prefixo; “dá” – bater; “run” – aniquilar, destruir.

Agogô – idiofone percutido, de campânula metálica única sem badalo, com cabo também

de metal tocado no Xambá com uma vareta de madeira. Segundo Cacciatore (1977) vem do

iorubá e significa ‘sino’. Também chamado gã em outros terreiros (termo de origem ewe).

Difundido em toda extensão da África Negra. Nas línguas de origem banto é chamado

“ngonge”. No português ‘gonguê’.

Ajuntó – termo utilizado para designar o segundo orixá ‘dono da cabeça’ da filha ou filho-

de-santo. Normalmente uma pessoa possui um orixá principal que governa sua vida e em

1
A proposta desse glossário é de reforçar de forma reduzida os significados dos termos presentes no
decorrer da dissertação por serem utilizados no Xambá. Não houve aqui uma pesquisa aprofundada na
etimologia das palavras, a não ser quando encontradas (apenas algumas) em alguns dicionários de expressões
afro-brasileiras.

258
segundo lugar o ‘ajuntó’ que significa adjunto. No Xambá existem pessoas que possuem até

cinco orixás.

Alá – “grande pano branco debaixo do qual são conduzidos certos orixás, ou realizadas

certas cerimônias nos terreiros. Do iorubá “àlà” – roupa branca (Cacciatote, 1977). No

Xambá Nanã não sai embaixo de Alá no momento da Saída de Iaô.

Alvorada - cerimônia dedicada à Iansã, onde são cantadas apenas as toadas deste orixá.

Nesta pode haver a presença de Iansã “em terra” através de suas filhas e filho, sendo

também homenageada por outros orixás que fazem a ela suas reverências. Acontece pela

manhã no dia da Louvação à Iansã, 13 de dezembro.

Angola – “região do sudoeste da África, na costa do Atlântico, habitada por povos do

grupo lingüístico bantu, até há pouco domínio português. (Cacciatore, 1977).

Assentamento – morada do orixá. “Coisa, pedra, árvore, símbolo metálico etc. que

representa o orixá” (Cacciatore, 1977). Também corresponde ao lugar reservado para

guardar os objetos sagrados e as pedras que representam o orixá. No Xambá os

assentamentos de todos os orixás ficam no Peji, embora cada um possua sua parte

separadamente.

Axé - significa o fundamento da religião afro-brasileira. Também designa as partes do

animal sacrificado para o orixá, conforme o princípio do candomblé que o sangue

representa a vida. “Força dinâmica das divindades, poder de realização, vitalidade que se

individualiza em determinados objetos, como plantas, símbolos metálicos, pedras e outros

que constituem segredo e são enterrados sob o poste central do terreiro, tornando-se a

segurança espiritual do mesmo, pois representam todos os orixás. Do iorubá “àse” – ordem,

comando, poder” (Cacciatore, 1977).

259
Axé de fala – corresponde ao poder que o orixá adquire de se comunicar verbalmente com

demais filhos e filhas-de-santo.

Axexê - “cerimônia ritual fúnebre dos candomblés, quando morre uma pessoa importante

da comunidade religiosa: chefe, filho-de-santo ou ogã. É de origem iorubá e tem a

finalidade de libertar da matéria a alma do morto e enviá-la à existência genérica de origem,

no mundo espiritual (...) Não há possessão, apenas Iansã – que domina os eguns – poderá

descer. Do iorubá “àjèjé” – 7º dia. (Cacciatore, 1977)

Babalorixá – designação para pai-de-santo. Segundo Verger (1992, 96) significa “pai-em-

santidade” ou “a primeira pessoa na coisa sagrada”.

Balé – nome específico da Iansã que governa os eguns. Segundo Cacciatore (1977) o termo

vem do iorubá “Igbalé – significa quarto secreto”.

Banto – segundo Vivaldo Costa Lima (1976, 21) corresponde a grupo lingüístico mais ao

sul da África (distinto do jeje e nagô, respectivamente, do Daomé e Nigéria). Cacciatore

(1977) acrescenta que esse grupo compreende milhões de africanos e quase 300 dialetos

presente em quase dois terços da África Negra, do Camerum (atual Camarões) até o sul.

Inclui também Angola e Congo, países de onde veio a maioria dos africanos escravizados

para o Brasil, cujas línguas são principalmente o kibundo e kikongo, dentre outras.

Caboclo (a) – entidade de origem indígena cultuada na Jurema. Considerado o ancestral

brasileiro. “Mestiço de índio com branco” Do tupi “caá” – mato, folha (Cacciatore, 1977).

Despacho – segundo Cacciatore (1977) significa “oferenda feita a Exu. Com a finalidade

de enviá-lo, como mensageiro, aos orixás e de conseguir sua boa vontade para que a

cerimônia a ser feita não seja perturbada. Da mesma forma que “despachar” é o mesmo que

“enviar, mandar embora para o ar livre. Colocar arriar, em lugar determinado pelos orixás

260
ou entidades-guias, os restos das oferendas”. Este está presente tanto no candomblé quanto

na Jurema.

Despedida – toque de tambor de 16 pulsos do repertório de Iansã. Como o nome indica,

está relacionado ao universo fúnebre que este orixá governa.

Ebó - a comida que foi preparada para os orixás ou as sobras das obrigações. Estas não

devem ir pra o lixo, mas para a natureza a depender do orixá se for de rio, do mato ou do

mar. Do iorubá “ebo” – sacrifício ou oferenda a um orixá (Cacciatore, 1977).

Ecó –toque de tambor de 12 pulsos específico de Iansã. Só está presente em seu repertório.

Considerado o ‘símbolo musical’ deste orixá.

Eguns – os ancestrais, os mortos. Os eguns são cultuados no universo fúnebre do Balé do

qual Iansã é a rainha. Do iorubá “Éégun” ou “E’gun” – contração de “Egúngún” – espírito

reencarnado de um ancestral (Cacciatore, 1977).

Ekede – cargo religioso exercido por filhas-de-santo que não ‘incorporam’. Estas cuidam

dos filhos e filhas-de-santo em geral durante o toque público, para que não se machuquem

quando ‘incorporam’ os orixás. Normalmente no Xambá não se utiliza o termo, salvo raras

exceções. Cacciatore (1977) apresenta também “ekédi” do iorubá “eké” – esteio, suporte;

“di” – tornar-se. Menciona que nos xangôs do nordeste é chamada iabá ou ilaís.

Epahei! – saudação que se faz à Iansã ou Oiá. Cada orixá possui a sua saudação específica

que é proferida no momento que se inicia seu repertório ou quando este ‘incorpora’ algum

(a) filho (a)-de-santo.

Ewe – língua da África Ocidental, falada em parte da região da antiga Costa do ouro (atual

Gana), Rio Volta, Togo e Daomé (atual República do Benin). Compreende vários grupos

dialetais, dentre eles o próprio ewe e o fon (jeje) (Cacciatore, 1977).

261
Filha (o)- de-santo – Como é chamada (o) a pessoa que faz parte do culto e cultua seu

orixá, o dono de seu ‘ori’. Verger (1992, 96) afirma que significa “pessoa de menor grau na

coisa sagrada”, em relação ao babalorixá ou ialorixá.

Iabá - pessoa responsável pela organização do terreiro. Geralmente filha-de-santo com

muito tempo de ‘feitura’. No Xambá esse termo não é utilizado em geral, embora haja o

cargo que é exercido pela prima do Pai-de-santo. Sinônimo de ekede. Do iorubá “iyáàgba”

(mãe adulta) – matrona, senhora, avó, mulher velha (Cacciatore, 1977).

Ialorixá – designação para mãe-de-santo. Segundo Verger (1992, 96) significa “mãe-em-

santidade” ou “a primeira pessoa na coisa sagrada”.

Iaô – pessoa que é iniciada na religião através de diversas cerimônias, principalmente o

“obori” e um período de reclusão no terreiro, dentre outras coisas. É um momento de morte

e renascimento. No Xambá a pessoa é iaô por sete anos após sua iniciação.

Incorporação - um dos termos utilizados pelo povo-de-santo para designar o estado de

transe, ou seja, o momento em que a pessoa deixa de ser ela mesma para ser o orixá.

Ingome – membranofone percutido diretamente, de corpo em barril e tampo único, tocado

com as mãos. Também chamado de Ilú O Xambá utiliza nas cerimônias o trio: inhã, mele-

ancó e melê (do grave ao mais agudo) que possuem diferentes funções. Cacciatore (1977)

afirma que o termo é de origem banto “ngoma”, significa tambor. A cada ano é feita

cerimônia fechada de renovação dos tambores, é a chamada obrigação.

Inquices – divindades dos candomblés angola-congo, de origem banto (Cacciatore, 1977).

Ilê – significa casa em iorubá. Ilê Axé Oiá Meguê corresponde à Casa do axé de Oiá

Meguê, a Iansã específica de Mãe Biu, ialorixá por mais de quarenta anos do Xambá.

262
Ilú – denominação para os tambores cilíndricos utilizados no candomblé, além dos

conhecidos atabaques do candomblé Ketu (que possuem formato diferente – cônico).

Utilizado também na Jurema. Do iorubá “ìlú” – qualquer tambor (Cacciatore, 1977).

Jeje- toque de tambor de 12 pulsos, acompanhado por agogô e palmas em 16 pulsos.

Presente no repertório de Iansã é um dos mais rápidos. Também está presente no repertório

de Ogum que na mitologia é o primeiro marido de Iansã. O termo designa “dialeto do grupo

dialetal fon da língua ewe falado por escravos do Daomei (atual República do Benin). Do

iorubá – “àjeji” – estrangeiro, estranho, nome que os iorubá, no Daomei, davam aos povos

vizinhos (daomeanos) (Cacciatore, 1977).

Jurema – Também chamada de ‘catimbó’. Motta (1997, 11) define a Jurema como culto

aos caboclos, mestres e espíritos curadores de origem luso-brasileira e indígena acrescido

posteriormente de entidades africanas, cujo ritual ocorre em torno da bebida de mesmo

nome. No Xambá é realizado em espaço físico distinto do que se realiza para os orixás,

separando ambos os universos de orixás e entidades da Jurema.

Keto – “Também dito Ketu. Antigo reino da África Ocidental, cortado em dois pela atual

fronteira Nigéria-Benin”. Do iorubá – “kétu” (Cacciatore, 1977). Carneiro (1951) define

como “subdivisão dos nagôs de muita importância na Bahia”.

Louvação à Oiá - cerimônia que consistia até o falecimento de Mãe Biu (1993) na

coroação da ialorixá, ‘incorporada’ com Iansã utilizando sua espada, coroa e trono.

Acontece anualmente, no dia 13 de Dezembro, data da primeira coroação realizada por Pai

Rozendo, em 1927, como ritual conclusivo da iniciação religiosa da primeira ialorixá da

nação Xambá – Maria Oiá. Atualmente esta cerimônia representa uma homenagem à Iansã

e à Mãe Biu através dos cânticos para este orixá, mas ninguém senta no trono. O termo

263
“louvação” também é utilizado no sentido geral para os demais orixás, o momento em que

são louvados, mas só à Iansã é dedicado um dia de “Louvação”.

Madrinha – na hierarquia do terreiro está abaixo do babalorixá e da ialorixá. Madrinha e

padrinho trabalham juntamente com os primeiros na manutenção da casa e do culto. É uma

denominação presente na Jurema. Carneiro (1951) define como a “mãe-de-santo do

candomblé-de-caboclo” (culto baiano similar à Jurema).

Nação – grupo étnico ou religioso. Termo que deve ser concebido em sentido amplo,

teológico. As nações afro-brasileiras são similares, contudo, diferem conforme sua origem

africana e seu grupo lingüístico. São elas: a nagô-ketu (tronco iorubá), Angola (tronco

banto), Jeje (Ewe-jeje).

Nagô – “nome dado no Brasil, ao grupo de escravos sudaneses procedente do país iorubá.

Também designa a língua iorubá. Do ewe – “anago” – nome dado pelos daomeanos aos

povos que falavam iorubá, tanto na Nigéria como no Daomé, Togo e arredores e que os

franceses chamavam apenas nagô (Cacciatore, 1977).

Obori – o mesmo que “dar de comer à cabeça” ou “fazer o santo". Importante cerimônia do

período iniciático que é concluído com a “Saída de Iaô”. Também chamado “Bori” – do

iorubá “bó” – alimentar; “ori” – cabeça” (Cacciatore, 1977).

Obrigação – ritos sacrificiais realizados pelo povo-de-santo aos orixás em agradecimento e

respeito. O ciclo de obrigações sempre culmina no toque público.

Ogã – os que tocam os ingomes ou ilús. É um importante cargo religioso de domínio

masculino. Contudo, nas obrigações fechadas ao público externo as mulheres, se quiserem

podem tocar também. A própria Mãe Biu tocava, mas as mulheres, mesmo que toquem não

são consideradas ogãs. No Xambá o ogã não tem que ser iniciado na religião, mas

264
certamente faz parte da família-de-santo desde que nasceu. Embora não seja freqüente, o

ogã pode receber o orixá enquanto toca, neste caso é substituído.

Oniká – a toada que caracteriza o orixá, seu ‘hino’. Cada divindade possui o seu. O oniká

de Iansã é acompanhado pelo toque Ecó. É executado apenas no dia específico do toque

dedicado ao orixá, momento em que todos se ajoelham em sinal de respeito. O momento do

oniká representa o momento da Louvação, em que o santo é especialmente reverenciado É

executado sempre no término do toque público, após a ‘volta dos tambores’, para

homenageá-los. Contudo, esse momento é apenas instrumental, não se canta.

Ori –o guardião da “cabeça”, mas também é concebido como a própria cabeça, a “força

vital”, ou seja, simboliza um indicador do estado geral de vitalidade ou vulnerabilidade da

pessoa e, “fortalecer o ori” é o mesmo que fortalecer a vitalidade de uma pessoa (Carvalho

e Segato 1992, 21).

Orikis - forma de saudação, louvação aos Orixás, segundo Verger (1999, 405) corresponde

à exaltação do poder, fatos, proezas do ancestral divinizado. No Xambá esses orikis não

estão presentes. Contudo, optei citar os de Iansã que narram sua atuação e personalidade.

Orixás – divindades de origem iorubá que se relacionam com as forças da natureza. Iansã,

por exemplo, é a rainha dos ventos e das tempestades. O panteão do Xambá é composto por

14 orixás que são cultuados e possuem filhas (os)-de-santo (ver tabela da pág. 123, no

capítulo 4).

Otá – pedra onde é fixada através de uma cerimônia ritual a morada do orixá, ou seja, seu

axé constituindo o seu assentamento. Cada orixá possui o seu que vai depender de seu

elemento específico da natureza, se é do mar, do rio, do mato, etc. Do iorubá “ota” – bala

(antigamente eram de pedra) Ou contração de “òkúta” – pedra (Cacciatore, 1977).

265
Otobalé – saudação realizada pela (o) filha(o)-de-santo quando ‘incorporada’ com seu

orixá para demais orixás e pessoas importantes da Casa. Os orixás masculinos deitam-se de

bruços no chão aos pés daquela (e) reverenciada (o). Os orixás femininos deitam-se

primeiro de um lado, depois de outro aos pés daquela (e) reverenciada (o) em sinal de

respeito. Cacciatore (1977) apresenta um verbete correspondente “adobalé” – que significa

“o mesmo que adubalé e dobalé. Do iorubá: “a” – prefixo; “dòbálè”- ato de se estender no

solo”.

Padrinho – ao lado da madrinha trabalha juntamente com o babalorixá e ialorixá na

manutenção da Casa e do culto Xambá. Designação presente também na Jurema. Segundo

Carneiro (1951) seria o “pai-de-santo do candomblé-de-caboclo”.

Peji – quarto sagrado onde ficam as moradas dos orixás, seus objetos sagrados e onde são

realizados os sacrifícios em sua homenagem.

Povo-de-santo – todo o conjunto constituído por filhas e filhos-de-santo do terreiro abaixo

da hierarquia. Todos se consideram uma família, sendo o babalorixá e ialorixá pai e mãe,

padrinho e madrinha e filhos e filhas se chamam de irmãs e irmãos-de-santo.

Quarto de Balé – espécie de ‘peji’ dos eguns. É o quarto sagrado, situado fora do terreiro,

onde são cultuados os eguns e ‘despachados’ os objetos sagrados das filhas (os)-de-santo

que faleceram. Do iorubá “ìgbàlè” – quarto secreto (Cacciatore, 1977).

Saída de Iaô – momento em que a (o) Iaô literalmente sai do peji para ser recebido pelo

povo-de-santo, após a primeira semana de reclusão no terreiro para sua iniciação, já tendo

feito o obori.

Sete por Um – toque de tambor de 12 pulsos do repertório de Iansã. Acompanha

principalmente as cantigas de Balé.

266
Sineta de Orixalá – pequeno sino que pertence ao pai dos orixás. Utilizado para induzir o

transe, ou “chamar o orixá à terra”. Acompanha as cantigas deste orixá. Cacciatore (1977)

define como “adjá”, do iorubá “ààja” – tipo de chocalho usado em cerimônias rituais (de

“já”- bater).

Toque –além de designar o ritmo executado pelo grupo rítmico (tambores, abê e agogô),

designa também a comemoração do final do ciclo de oferendas (as obrigações), além da

expectativa da presença do orixá. Esse momento é de total comunhão onde a comunidade

de indivíduos estabelece contato com a comunidade de divindades. Também chamado de

‘festa’.

Toque de Balé – toque para Iansã de Balé, a rainha dos eguns. Representa uma cerimônia

fúnebre, na qual a obrigação que a antecede só os homens participam. As mulheres ficam à

porta do Quarto de Balé, ‘respondendo’ aos cantos ‘puxados’ pelo babalorixá. No Xambá

acontece no dia 27 de janeiro, dia em que Mãe Biu morreu.

Umbanda – toque de tambor de 8 pulsos do repertório de Iansã. Acompanha apenas a

toada da Iansã de Mãe Biu. Representa um compartilhamento musical com o universo da

Jurema, pois é característico deste repertório. Possui andamento rápido e é considerado um

‘samba’ (o padrão de 8 pulsos pode ser pensado como binário também, característico desse

gênero musical). O termo designa também a religião formada no Brasil que cultua alguns

dos orixás do candomblé e segue também a doutrina espírita de Alan Kardec (Cacciatore,

1977).

Volta dos tambores - após cantar para Iemanjá e Orixalá (os últimos do panteão), o trio de

ingomes é carregado pelos filhos-de-santo enquanto os ogãs continuam tocando-os a fim de

dar, literalmente, três voltas no salão. Após as três voltas retornam aos seus lugares de

origem. Há uma cantiga específica para esse momento onde todos os orixás são citados.

267
Vodun- Também chamado “vodu”. Divindade Jeje correspondente ao orixá do Nagô do

ewe – “vodu” (Cacciatore, 1977).

Xambá – nação afro-brasileira que foi levada à Pernambuco por Athur Rozendo Pereira, de

Alagoas na década de 20, no contexto das perseguições policiais aos cultos afro-brasileiros.

Possui relações com a nação Nagô, dentre diversos elementos, através de seu panteão de

orixás e de suas cantigas em iorubá; à nação Angola, através de seu toque de tambor

Umbanda, pertencente ao culto da jurema e o nome de seus tambores, ingomes; por fim,

aparentemente à nação jeje, com a presença do vodun Afrequête (ver pág. 132, cap. 5).

Xangô - Motta (1997, 16) define xangô como culto aos orixás que correspondem a

divindades iorubás e que no Brasil são sincretizadas com santos católicos. O Xambá

pertence ao universo do xangô pernambucano.

Xequerê – também chamado de abê. Idiofone feito de uma cabaça grande envolvida por

contas presas em cordões, chamadas de “ave-maria”, que são friccionadas para a produção

do som. Do iorubá “sekèrè”, significa cabaça (Cacciatore, 1977).

Xere – idiofone de metal com sementes em seu interior. Pertence ao orixá Xangô. Utilizado

para induzir o transe, ou “chamar o orixá à terra”. Do iorubá “sérée Songo” – cabaça

chocalho, de pescoço longo que anuncia Xangô (Cacciatore, 1977).

Xuxu - cumprimento aos tambores, e à hierarquia do terreiro composta pelo ao pai e mãe-

de-santo, padrinho e madrinha. O xuxu é realizado também entre as pessoas que possuem o

mesmo tempo de feitura. Sinal de respeito, tanto em relação aos tambores que “trazem os

orixás à terra”, à hierarquia do terreiro e ao próximo, aqueles que compartilham mesmo

tempo na religião.

268
2. TEXTOS DAS CANTIGAS

2.1. Afunelé adê2 175

Afunelé adê, afunelé


Afunelé adê, afunelé

Ó l’Oiá Minibu
Onikó sejó
Afunelé adê

(1ª vez solista, 2ª coro)

Oiá Egunitô (ou Ogunitô)


Oiá Egunitô Oiá

(solista)

Oiá Egunitô (ou Ogunitô)


Oiá Egunitô Oiá

(coro)

2.2. Anda, anda Oiá de Umbanda 168

Anda, anda
Oiá de Umbanda Onipoquê
Anda, anda
Oiá de Umbanda Onipoquê, Oiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2
Todas as cantigas foram transcritas sob a supervisão de Sandro Paraíso. Não existe uma única
forma de cantá-las. É comum que o povo-de-santo acrescente variantes ou mude alguma pronúncia.

269
2.3. Ê aguere ilê ô 173

Ê aguerê ilê ô
Guerê iê, guerê iê
Oromi xequé

Ê aguerê ilê ô
Gará, gará

Ômenin Doum
Guerê ilê ô

Guerêguê axé bareló

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.4. Ê apalajô 198

Ê apalajô agô inhã,


Agô inhã, inhã

Apalajô agô inhã,


Agô inhã, inhã

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

Ê um loê,

(solo)

Ê um loêia

(coro)

Ê um loê,

(solo)

Ê um loêia

(coro)

270
2.5. Êmidebô Cilê 160

Êmidebô cilê
Êmidebô cilê

(solista)

É a l’Oiá
É a l’Oiá ê

(coro)

2.6. Era com fé 195

Era com fé

(solista)

É l’Oiá

(coro)

Alabá, alabá bapiré

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.7. Fara com fá 190

Fara com fá
Ilú dulá
Que pero l’Oiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

É maré com fá

(solista)

A l’Oiá

(coro)

Ô Gigandê, ô Gigã

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

271
2.8. Iansã coroou 189

Texto 1:

Er’um l’Oiá ará unfá


Iansã coroou

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

Texto 2:

Er’um l’Oiá axé nifim


Iansã é um l’Oiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.9. Iansã e baía 197

Iansã, Iansã e baía


Ó l’Oiá Iansã e baiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.10. Lauré Guanguá 193

Laurá Guanguá,
Laurá Guanguá
Iansã de Balé é Guanguá,
Lauré é Guanguá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

Ô que penajô

(solista)

Ô que penajô, Oiá

(coro)

272
2.11. Mambaloê, mambaloiá 171

Mambaloê, mambaloiá
Mambaloê, mambaloiá

Bairá com dedé é maroiá,


Maroiábá

Oiá Messã bamiô


Olê dinã
Ô birissã baô

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.12. Ô jamitô 179

Ô jamitô ita l’Oiá,


Ô jamitô e l’Oiá ô

(solista)

Egunitá ela é
Ô jamitô ita l’Oiá

(coro)

2.13. Ó l’Oiá Bendicá num Agadê 202

Ó l’Oiá Bendicá num Agadê


Ó l’Oiá Bendicá num Agadê

(solista)

Num areissô,
Ó l’Oiá Bendicá num Agadê

(coro)

273
2.14. Oiá Bainha Balaxó 203

Oiá Bainha Balaxó


Muricã, muricã ê

Oiá Bainha Balaxó


Muricã, muricã ê

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.15. Oiá Barelô 185

Oiá Barelô
Oiá Barelô

Oiá Barelô
Oiá Meguê Barelô

Eu juro pelo pé,


Eu juro pelo xé
Oiá Barelô,
Oiá Jauna Barelô

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.16. Oiá Cararô 170

Oiá Cararô Diodá


Oiá Cararô Diodá

Oiá Oiá Messã baô

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.17. Oiá de Malê 172

Oiá de Malê a teim


Ô güê nã, güê nã

Iê, iê ta numa bê lairá


Tá numa bê, tá numa bê lairá
Ô güê nã, güê na

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

274
2.18. Oiá Dê Mampariô 188

Oiá Dê Mampariô
Oiá Messã oro é de jangoló

Oiá Dá guiri Pampã,


Oiá Dá guiri Pampã
Oiá Dê, orixá de Pampã

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.19. Oiá Denina 200

Oiá Denina,
Denina Dinefó

Oiá Denina Dinefó


Iansã é Dinefó, Oiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.20. Oiá Deô boim uló 162

Oiá Deô boim, boim, boim uló

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.21. Oiá é do mal 85

Oiá, Oiá é do mal atá


Oiá, Oiá é do mal aê

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.22. Oiá Gambeô 174

Oiá, Oiá Gambeô


Oiá, Oiá Gambeô
Oiá Messã, Iansã Gigã
Oiá é um Gambeô

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

275
2.23. Oiá Ladê 201

Oiá Ladê indenideuá


Oiá Ladê indenideuá

Oiá, Oiá Messã


Oiá Ladê indenideuá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.24. Oiá Laincê 192

Oiá, Oiá Laincê,


Laincê paraná

Oiá, Oiá Laincê,


Laincê paraná

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.25. Oiá Meguê num Agailê 65

Oiá, Oiá aê
Oiá Meguê num Agailê

Oiá, Oiá aê
Oiá Meguê num Agailê Oiá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.26. Oiá Meguê numa batalha 63

Ê Oiá Meguê numa batalha

(solista)

Laê, laê, laê, laê

(2ª vez coro)

276
2.27. Oiá Messã Pampa 169

Oiá Messã Pampa


Oiá gambelê merancô

Aiô, aiô acajá dundum


Magambelê merancô falajá

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.28. Oniká 158

Num areibô axé,


Numa reibô axé

Oiá, Oiá Meguê


Num areibô axé

(1ª vez solista, 2ª vez coro)

2.29. Sobomi sobô 194

Sobomi sobô

(solista)

Oiá Caraô

(coro)

Sobomi sobomi

(solista)

Oiá Caraô

(coro)

277
3. CD
Gravação em mini-disc realizada no Toque de Iansã da nação Xambá em 19 de dezembro

de 2004:

Ogãs que se revezaram nos tambores, agogô e abê: Sandro Paraíso, Washington Luis

Souza, “Memé” (Moiséis Francisco da Silva), “Guitinho” (Cleyton José da Silva) e

“Mamão”(Edilson Luis Lourenço da Silva).

Solistas: Pai Ivo, Sandro Paraíso e Ailton Paraíso.

Faixa/ Pág.3 Cantiga Solista

01. (pág. 156) Louvação - Ecó Instrumental


02. (pág. 158) Louvação – Num areibô axé
03. (pág. 160) Emidebô Cilê
04. (pág. 202) Ó l’Oiá Bendicá
05. (pág.190) Fará com fá
06. Oiá Gambeô
(pág. 174, 198 e Apalajô Pai Ivo
175) Afunelé adê
07 (pág. 193). Lauré Guanguá
08. (pág.201) Oiá Ladê
09. (pág. 200) Oiá Denina
10. (pág.171) Mambaloê, mambaloiá
11. (pág.63) Oiá Meguê numa batalha
12. (pág.192) Oiá Laincê Ailton Paraíso
13. (pág. 65) Oiá Meguê num Agailê
14. Oiá Barelô
(pág. 185 e 203) Oiá Bainha Balaxó
15. (pág.188) Oiá Dê Mapariô
Sandro Paraíso
16. (pág.172) Oiá de Malê
17. (pág.194) Sobomi sobô
18. (pág.197) Iansã e baía
19. (pág.173) Ê aguerê
20. (pág. 189) Era um l’Oiá
21. (pág.168) Anda, anda Oiá de Umbanda
Pai Ivo
22. (pág.169) Oiá Messã Pampã
23. (pág.170) Oiá Cararô4
24. (pág.162) Oiá Deô boim uló

3
Página do corpo do texto onde se encontra a transcrição da cantiga.
4
Importante observar que o babalorixá é interrompido por uma filha-de-santo incorporada com Iansã
que pede sua cantiga.

278
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