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SALVADOR - BAHIA
FEVEREIRO/2005
Resumo
O terreiro Ilê Axé Oyá Meguê ou Seita Africana Santa Bárbara, regido pelo
orixá Iansã, carrega mais de sete décadas de história no percurso de sua construção
religiosa, musical e identitária. Este terreiro possuiu como protagonistas desta construção
duas filhas de Iansã – Maria das Dores da Silva, conhecida como Maria Oiá e Severina
Paraíso da Silva - Mãe Biu. A presença de Iansã nesta casa de nação Xambá, localizada em
concebida como um significante veículo não apenas em direção ao divino, mas também em
direção ao humano.
iii
Abstract
The terreiro Ilê Axé Oyá Meguê or Seita Africana Santa Bárbara, lead in the
name of orixá Iansã which has more than seven decades of history in the construction of its
music, religion and identity. This terreiro has as major protagonists of this construction
two “Iansã’s daughters”, Maria das Dores da Silva, known as Maria Oiá and Severina
Paraíso da Silva – Mãe Biu. The presence of Iansã in this house of the Xambá “nation”,
from Olinda, Pernambuco, leads this study to the understanding of the story of its
and leading to a unique complex that embraces stories, constructions, gender and
resistance. This music related to different aspects of Iansã is seen here as a significant
vehicle that is not only directed to the divine, but also to the human being.
iv
Agradecimentos
À Iansã, Pai Ivo e sua esposa Rosinha e a todas (os) da nação Xambá pelo
Às filhas e filho de Iansã, Maria Oiá e Mãe Biu (in memorian), Dona Zeza,
Cacau, Cristina, Zeca, Adriana, Lourdinha, à pequena e musical Iassanã, Luana, Dona
Zeza (esposa de Seu Maurício) e todas as demais que fazem parte deste terreiro.
pequena Cíntia, Ailton e Carmelita, Ziza, Dona Lourdes, Dona Nair, Gogó, Leila, Dona
Monteiro e Valéria Costa, todos pesquisadores (as) e xambanianos (as) que me ajudaram
muito contribuíram para a realização dessa pesquisa e para meu amadurecimento como
pessoa.
v
À Angela Lühning, pessoa que enxerga o mundo com beleza e generosidade,
além da academia.
bolsa de estudos por dois anos, o que possibilitou a realização desta pesquisa.
queridos.
cujo apoio sempre pude contar. A Pedro Moraes e Maísa Santos pela força e paciência.
Etnomusicologia.
Dierson Torres, Fernando Rangel, Ricardo Brafman, Paulo Lima e José Amaro.
Aos meus amigos e amigas de Recife que sempre deram grande incentivo, em
A Juliano, Ana Holanda (in memorian), Júlio, Jorge e família pelo apoio e
carinho.
vi
À minha mãe Sandra, pelo amor, pelo incentivo. Aos meus avós Elza e Pedro
minhas também irmãs (de coração e de vida) Mary, Liu e Lela e seus rebentos.
Aos meus amigos e amigas Flávia, Cidinha, Flávio, Mateus, Lucas e Gabriela,
Aaron, Talita, Lana, Pedro e Cláudia pelo apoio e pelas farras. A Ático Razera, Pedro
Kröger e todas (os) as (os) outras (os) que além de terem apoiado de alguma maneira
estiveram abertas (os) para o diálogo: Mãe Cici, Xavier, Negrizu, Alex, Dione, Eliane,
Luiza, Dona Margarida, Noélia, Jorge e recentemente minha amiga Iraildes Andrade com
vii
Sumário
Resumo iv
Abstract v
Agradecimentos vi
Capítulos
transformações 6
viii
2.2.2.Caminhos e percalços das “descobertas” mútuas – do humano ao
musical 27
urbano 101
ix
5.2.3. Toque de Balé 165
6. Conclusão 251
Anexos 257
1. Glossário 258
Bibliografia 279
x
Para Rafael
xi
“É tão pouco cinco sentidos.
Pois que sejam lépidos, Luís Maurício,
que sejam novos e comovidos.”
xii
1. “Emidebô Cilê”1 - Introdução
Epahei Iansã!2
conhecer, trocar, dialogar com outras pessoas. No meu caso que não sou do candomblé, do
se transformou para mim numa verdadeira escola. Decidi escrever na primeira pessoa pois
apesar de respeitar a questão do estilo de quem não a adota, acredito na diferença entre se
1
Esta é uma cantiga para Iansã. A primeira, que possui a importante função de “chamar as Iansãs”, é
uma cantiga de invocação.
2
Esta é a saudação que se faz para Iansã. Cada orixá possui a sua particular. A saudação está
totalmente relacionada à música e aos diferentes repertórios das divindades. Sempre é proferida no momento
de começar a cantar para o orixá, que é o momento de sua invocação. Também é muito utilizada quando o
orixá está presente, ou, como diz o povo-de-santo, “em terra”.
3
No decorrer do texto o termo xangô como designativo para religião, será escrito em minúsculo,
assim como candomblé ou catolicismo. Quando referente ao orixá de mesmo nome – Xangô -, será escrito em
maiúsculo - por este corresponder a um nome próprio. Xambá será escrito em maiúsculo por se referir a uma
nação afro-brasileira, assim como nação Nagô, Jeje ou Angola. Mesmo quando corresponde ao local de culto,
que é apenas um terreiro, a escrita em maiúsculo será mantida. O termo Xambá virá em minúsculo apenas
quando referente à etnia africana “xambá”, “tchambá” ou “chamba”.
dinamizar a leitura e a escrita do presente trabalho, questão subjetiva com a qual me
identifico.
Esta pesquisa foi realizada a partir da tríade nação Xambá – Iansã - música.
Esses três elementos formam uma parte do que representa esta nação afro-brasileira e não
Procurar entender esta nação, sua história e sua música, me levou diretamente à busca de
me levou também à percepção de que a história deste terreiro é uma história de mulheres,
de repressão e intolerância religiosa; as filhas deste orixá que protagonizaram sua história
representa esta divindade. Mas a música não cumpre apenas o papel de um poderoso
veículo humano em direção ao divino, ela constrói também, aqui “em terra”, uma
perspectiva histórica através de suas cantigas e de seus toques, que também estão
relacionadas às pessoas que são, e que foram importantes para sua dinâmica.
incursões, aos vários universos que julguei relevantes para compreensão da tríade Xambá –
trabalho de campo foram colocadas. Neste capítulo, abordo o contato que tive com este
2
como “êmica e ética”4, ou, mais poeticamente dita por Oliveira (2000): “polifônica”. Antes
da exposição desses ricos diálogos que tive o prestígio de participar, julguei importante
científicas. Para refletir sobre estes olhares foi importante dialogar também com seus
das ferramentas mais utilizadas na Etnomusicologia. Realizar este “passeio” foi importante
para pensar sobres as atuações e olhares que foram múltiplos e, hoje muitas vezes são
para as pesquisas científicas da atualidade. A partir desse debruçar sobre outras abordagens,
penso também na construção de minha própria postura como pesquisadora, nesse papel e
responsabilidade de falar sobre o “outro” e sua música, mas, sobretudo, a partir daí, pensar
Xambá, nação muitas vezes desconhecida no contexto das demais nações afro-brasileiras, e
sua re-significação teológica. Tentar reconstruir um pouco dos tristes equívocos históricos
representou também um passo importante para pensar em religião, cultura e música afro-
4
Geertz (1997, 87) aborda os termos êmico e ético como resultantes da distinção lingüística entre as
classificações fonéticas e fonêmicas dos sons: as primeiras corresponderiam às estruturas internas da
linguagem, enquanto que as segundas corresponderiam às estruturas relacionadas ao som propriamente dito,
uma classificação sob uma perspectiva externa. Em Etnomusicologia pode-se aplicar tais termos como
designativos para o que diz respeito ao que é interno da cultura, a visão “de dentro”, de quem a integra, como
uma visão êmica e “de fora” como uma visão ética.
3
“compartilhamentos” religiosos e musicais. O chamado “sincretismo” esteve e está presente
no culto e na música da nação Xambá, assim como das diversas nações afro-brasileiras, em
cultura, das pessoas, das próprias divindades, e como todo dinamismo, gera dentro de si
música afro-brasileira, nos conflitos de percepções, foi a premissa básica para construir a
terceira incursão deste trabalho. Esta fala sobre resistência, termo que mesmo recorrente,
não deveria ser banalizado, quando pensado em sua real dimensão de se manter íntegro nas
discriminada e perseguida, mesmo após o fim de sua condição de ser humano escravizado.
Dentro deste contexto, emergem várias questões históricas, que estão atreladas à
própria história do terreiro pesquisado. Dentre estas questões, surgem iniciativas positivas
estudos sobre religiões afro-brasileiras, pois, lançaram um primeiro olhar sobre as mesmas.
Embora estes olhares tenham sido, naturalmente, condicionados por seu contexto histórico
realizou vários registros do xangô pernambucano que são de extremo valor histórico para
historicamente, estes olhares fomentam tamanha clareza sobre as concepções que se tinha
4
Retomando, ainda nesta incursão sobre resistência, a história do terreiro
representa o ponto central. A localização deste, que deve também ser considerada um fato
relação à inclusão do iniciando ao universo desta nação, e o público que freqüenta as festas
público e a música dedicada para os orixás, onde homens e mulheres atuam de maneiras
pesquisa – Iansã. Pensar neste orixá pressupõe pensar em todo o percurso histórico desta
nação, sua identidade religiosa e musical. Para entender um pouco sobre o “complexo-
Iansã” no Xambá, foi preciso considerar vários aspectos referentes à ela, suas diversas faces
que estão presentes em suas três cerimônias, faces estas que refletem em suas músicas, seus
cantos e seus toques e, por fim, são materializadas através de sua dança. Para finalizar esta
parte, a discussão sobre música e gênero é retomada, a partir de uma nova tríade que é
medida em que emergem das discussões. Exceto os textos das cantigas que, além de
estarem presentes nas próprias transcrições, estão também em anexo de forma que
complementem as cantigas. As conclusões até aqui obtidas partem da premissa de que uma
através desse diálogo, na esperança de que este formato construa uma reflexão sobre o rico
universo em questão que não só merece, como fornece vários outros complexos que
5
2. O trabalho de campo - olhares e vozes em diálogo. . .
transformações.
É bem sabido por quem pesquisa que embora a dita objetividade acadêmica
seja um ideal longínquo representa, porém, a meta a ser alcançada acima de tudo. A idéia
gabinete - aquele que não ia a campo ver ou ouvir por si mesmo o que estava disposto a
origem sem que isso prejudicasse ou limitasse sua abordagem científica. Essa concepção é
herdada das ciências naturais e sua utilização de métodos que trabalhavam os elementos
oral proveniente das culturas ditas “exóticas”, ou seja, fora do âmbito urbano europeu
numa atuação marcada pelo pensamento oriundo das ciências exatas (Krader 1980, 275).
humana (no Século XVIII) o homem passa a representar o objeto de estudo a partir de uma
gradativamente extinta para dar lugar à pesquisa de campo realizada pelos próprios
elemento inerente à pesquisa (Laplantine 2000, 75). Tal reconhecimento, a princípio não
carrega certo caráter de “extração cultural” ou coleta de dados, a partir do contato com
informantes. Durante muito tempo o pesquisador concebe a pessoa com quem vai se
relacionar no campo e pesquisar sua cultura e música como mero informante, mantendo
dela certa “distância” etnográfica – para adotar uma postura “neutra”-, não se preocupando
com sua postura em relação à ela e a um possível retorno da pesquisa. Por fim, situações
diversas e adversas que envolvem questões como ética, por exemplo, emergem nesse
1
Graças à Antropologia e à idéia de um estudo devidamente contextualizado que emerge em fins
do século XIX e início do século XX com Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942).
7
sim como hóspedes que o recebem e mestres que os ensinam (Laplantine
2000, 78).
produto não apenas de relatos de campo e posterior análise, mas, sobretudo, de concepções
estilística permanece presente no que tange à questão da escrita acadêmica – aquela que
científico da negação do eu – a pessoa que realiza a pesquisa, seu olhar, sua subjetividade,
que independente dos preceitos acadêmicos, carrega consigo sua formação, sua construção
de representar um mero informante para representar realmente outra pessoa, aquela que
porta uma história, sua própria construção individual e cultural de conceber o mundo à sua
volta e sua própria música. Em meio a esse confronto de valores, formações, histórias e
músicas é de extrema relevância que se busque travar um diálogo que fomente a verdadeira
interação onde não serão apenas coletados dados acerca de quaisquer aspectos relacionados
à música pesquisada, mas uma interação de vivências. Sob tal perspectiva, o campo, a
8
acadêmico, quase sempre é caracterizado por uma escrita inacessível às pessoas que não
fazem parte desse universo de pesquisa de uma elite pensadora. Calcada no rigor científico
que por vezes é tomado como fim em si próprio, não apenas como produção de
conhecimento, mas como o produto final de uma pesquisa que infelizmente, na maioria das
pesquisador, ou seja, uma escrita que não anule sua subjetividade, mas busque uma
refutada. Sobre pesquisa participante, Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira (1990, 24)
lançam a pergunta: “de onde vêm nossas próprias idéias?”, o que nos faz pensar que um
9
processo de pesquisa corresponde à relação protagonizada por atores que desempenham
ouvir e escrever. O processo de pesquisa seria composto pelo diálogo entre essas
faculdades onde, ainda que interagindo com todo um arcabouço teórico prévio, tais
do Século XVI, o autor ressalta a visão distorcida sobre os fatos e o que era realmente
observado. Não haveria como considerar de absoluta fidedignidade os tais relatos por
Entretanto, por isso mesmo possuem extremo valor, pois correspondem justamente a
irão fornecer uma idéia de como se pensava naquela época e os propósitos em voga, desde
que sob olhar crítico. Sobre os relatos de viajantes Lévi-Strauss (1996, 36) acrescenta:
2
Idéia de trabalho de campo, postura ética e científica que pode ser ampliada para pesquisadores
de outras áreas, como a Etnomusicologia, por exemplo.
10
O narrador, por mais honesto que seja, já não pode entregá-los em sua
forma autêntica. Para aceitarmos recebê-los, precisamos, por uma
manipulação que entre os mais sinceros é apenas inconsciente, selecionar
e joeirar as lembranças e substituir o estereótipo pela vivência.
prévia e pela formação do pesquisador que precisa ser ampliada com uma fundamentação
teórica, ou seja, aquilo que já foi produzido sobre a temática que se está pesquisando. A
orientação teórica apontada anteriormente por Oliveira (2000, 12) representa o alicerce
fundamental, um guia para a observação e análise do pesquisador sobre seu foco de estudo
(2000, 19) a realidade observada pelo olhar etnográfico sofreria uma refração dentro de um
prisma orientado pelos paradigmas da área na qual se está atuando. Dentro desta
outsiders afetam o campo e a sua presença, naturalmente pode integrar o âmago de sua
própria pesquisa. Diante desta constatação percebe-se que não é possível estabelecer um
limite tão claro entre os dois universos, não há como separar esses dois personagens da
propósitos que a abordagem a ser adotada vai emergir. Sob tal perspectiva, os atores
sociais devem ser concebidos como sujeitos do conhecimento imersos na dialética entre a
de reconhecer o dinamismo presente em tais relações e não encará-las sob uma perspectiva
3
O termo insider pode ser lido como referente à pessoa que faz parte da cultura ou grupo
pesquisado, aquela que é “de dentro”, que a integra, enquanto outsider corresponderia àquele que é “de fora”,
ou seja, o pesquisador.
11
estática, devo também reconhecer a questão dos papéis em voga no âmbito das
relação entre abordagem científica - onde podemos ler escrita, forma de expor e analisar os
sobre a pesquisa surge a grande questão: “por que se faz pesquisa?”, o que não deixa
lançada por Paulo Freire que aquele comumente “pesquisado” - muitas vezes dissecado
produção do conhecimento, o co-investigador que não está alheio ao que é produzido a seu
respeito. Sobre as relações, presentes no âmbito da pesquisa, DaMatta (1978, 24) aponta
três planos distintos onde os papéis êmico e ético são de igual relevância e estão
divorciados:
12
1. Teórico-intelectual - corresponde ao que o autor chama de excesso
fatos;
e o aprendizado que o pesquisador deve adotar e extrair a partir de sua experiência. Esse
terceiro plano é o que mais interessa à presente discussão por representar aquela
ambigüidade muitas vezes temida pelos pesquisadores. DaMatta (1978, 25) ressalta que o
plano existencial e a etnologia devem ser, sobretudo, integradores: “ela (a etnologia) deve
decorrer de uma pesquisa e isso inclui totalmente a(s) escrita(s). Todos os elementos estão
Pensar na voz ativa do outro não parte apenas de uma iniciativa proveniente
dos mais sensíveis, mas representa uma resposta a uma situação que passa a exigir tal
postura. O dito “informante” passa a repensar a situação de pesquisa e exigir o que concebe
um desejo de estar devidamente a par do que se diz sobre ele como indivíduo/ator social e
sua cultura (Nettl 1983, 265). O desejo de tomar aspectos de sua cultura a partir de seu
13
“informantes” passam a exigir que sua música seja respeitada e a ser tratado como um ser
humano não reduzido ao papel de “informante-robô” (Nettl 1983, 265). Outro ponto de
atores sociais a respeito do que é produzido sobre sua música, o desejo de que o material
coletado seja utilizado de acordo com suas idéias ou, no mínimo, com a sua aprovação.
pesquisador busque perceber a existência dos diferentes critérios adotados pelo insider, no
que se refere a sua música, que devem ser considerados e certamente irão interferir no seu
próprio olhar, bem como, no seu trabalho final. O outsider pode não só aprender com o
insider, mas também contribuir para a compreensão dele em relação a seu próprio
diálogo entre as partes num processo onde a visão êmica seja considerada e o informante
intitulado “Lição da escrita” onde discorre sobre a história da escrita e sua permanente
14
associação a culturas “civilizadas” em contraposição às “primitivas” e relacionadas ao
vivenciou experiências com os Nambiquara que reforça a idéia de poder da escrita - esses
índios não conheciam a escrita nem o desenho, contudo, ao observar o fato do pesquisador
tomar notas constantemente, o chefe logo passa a imitá-lo na intenção de adquirir maior
Ora, mal ele reunira todo o seu pessoal, tirou de um cesto um papel
coberto de linhas tortuosas que fingiu ler e nas quais procurava, com uma
indecisão afetada, a lista de objetos que eu devia dar em troca dos
presentes oferecidos (. . .) Essa encenação prolongou-se por duas horas.
Que esperava ele? Enganar a si mesmo, talvez; Mais, porém, surpreender
seus companheiros, convencê-los de que tinha participado na escolha das
mercadorias, que obtivera a aliança com o branco e que partilhava de seus
segredos (1996, 280).
A escrita é abordada por Lévi-Strauss (1996, 282) como uma memória artificial
que por muito tempo serviu para distinguir a civilização da barbárie. Aponta para as fases
em que a humanidade não conhecia a escrita, como as fases mais criativas e relaciona-a a
dinâmicos. A conotação política da escrita mais uma vez é ressaltada pelo autor (1996,
283) numa abordagem histórica onde sempre esteve entrelaçada à formação de cidades e
impérios e ao poder:
O processo que promove uma maior interação entre os envolvidos não deixa de
estar relacionado com a escrita, afinal esta representa o produto final de todo um conjunto
15
“Pesquisa é coisa de intelectual, de universitário, que não tem nada que ver com a vida
real” (Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira 1990, 17). Não obstante, mesmo que a escrita de
postura da neutralidade acadêmica refletida no produto final, a escrita. Paulo Freire (1990,
37) discute sobre a busca dos cientistas sociais - e isso também se aplica aos
etnomusicólogos que trabalharam durante longo período enfocando a “música per si”4 sem
seja, a idéia de que o diálogo entre as concepções êmicas e éticas prejudica a própria
sua própria subjetividade: “Em última análise, sua subjetividade interfere na “forma pura”
pura” de pesquisa Rubem Alves (2002, 11) nota a dificuldade de se alcançar uma
4
Merriam (1969, 216-21) utiliza esta designação para a abordagem que visa estudar a música
como objeto de estudo isolado. A concepção de estudo da “música per si” teria em contraposição o estudo da
“música em um contexto amplo.”
5
O autor aborda especificamente a questão da experiência religiosa em contraposição ao universo
científico, no entanto, tal discurso torna-se relevante e aplicável à discussão presente por ser comum perceber
uma conotação quase que religiosa e dogmática nas posturas acadêmicas.
16
Nesta abordagem que aos olhos acadêmicos nada teria de científico devido a
sua conotação humorística - apesar de crítica -, podemos refletir sobre os resquícios que as
do ideal científico das ciências exatas onde, a princípio, se teria um controle sobre o que se
Rosiska Darcy de Oliveira (1990, 22) observam a perspectiva positivista ainda tão
final, a escrita -, onde se “disseca” os fatos sociais com um olhar laboratorial de distância e
frieza: “O pesquisador isola seu objeto de estudo e se isola a fim de examiná-lo sem risco
de contaminação”. Por trás desse ideal positivista podemos refletir sobre a diferença
27).
Falar sobre transcrição musical engloba uma série de questões que vão desde
define transcrição musical como a escrita dos sons musicais que, guiada por um ideal de
objetividade presente nas ciências exatas, traria para a área da Etnomusicologia uma
17
papel nas aquisições coloniais, visto que representou ferramenta principal da
europeu de origem:
concebe como uma maneira especial de registro musical. Na realidade, há uma necessidade
ocidental na qual está inserido -, ao registro visual da música que irá possibilitar a análise
posterior do fenômeno musical pesquisado. Diante deste dilema, fica claro que a
amplamente discutido.
abrangente passou-se a utilizar outros sistemas de notação, gráficos, etc. (Ellingson 1992,
18
Seeger 1992 e 1991, Nettl 1983). A maior dificuldade em relação à transcrição consiste
transcrição vem mudando gradativamente. Por volta de 1950 era vista como a
cultura em questão;
para a análise musical. Em 1970 foi utilizada com o propósito de resolver problemas
noção mais realista tanto de estilo quanto do texto musical ou então que era sinônimo da
evidência de sua existência (Nettl 1983, 70), visão oriunda das ciências exatas – concepção
de música “medível e captável por um espírito analítico” (Lühning 1991, 110). A grande
maioria da notação ocidental presente nas pesquisas sobre música até a atualidade é
essencialmente descritiva, pois é realizada com intuito de análise. Diante dos problemas e
6
The discoverers and conquistadors of Europe carried back onto only gold and jewels, but also
musical instruments, notations, music theory writings and sometimes even musicians (. . .) Transcription thus
began as a medium for capturing and preserving exotic sensory experiences.
19
campos êmico e ético, passou-se a reconhecer a transcrição como meio subjetivo/pessoal e
não mais como forma absoluta de registro musical, pois “a mesma música não será
transcrita igualmente por pessoas diferentes, o que denota o fato de que representa uma
universo musical pesquisado, busquei dialogar com o que aprendi convivendo com o
sem esse diálogo é pobre, pois carrega somente o olhar do pesquisador. Ao contrário,
ouvindo das pessoas o que pensam sobre sua música, o que ela significa, como é executada
e por quê, pude alcançar uma clareza muito maior e extremamente enriquecedora. Como o
aprendizagem, resultando numa “notação aural”, ou seja, aquela que se baseia no conjunto
das percepções e vivências musicais que são transmitidas não só oralmente, mas através da
pesquisador.
sociais e culturais não podendo ser enfocada de maneira isolada do contexto ao qual está
inserida. Parto de uma aproximação descritiva proposta por Seeger (1992, 89) como
escrever como os sons são concebidos e como estes influenciam as pessoas e os processos
20
musicais. Nesta perspectiva, a transcrição será contemplada como um dos meios analíticos
pesquisador (Merriam 1964, 60), acredito que não deixa de representar importante
universos distintos – êmico e ético, pensar sobre pessoas, olhares que são recíprocos apesar
de por longo período e mesmo no presente ainda serem míopes em relação a essa questão.
percepção sobre o outro e o outro em si. Tentar perceber o outro em diálogo com a
21
percepção desse outro sobre si e sobre mim como pesquisadora não significa buscar
transpor as diferenças culturais e tornar-me insider, mas ter na interação um ideal a ser
o eu e o mundo:
compreender melhor. Oliveira (2000, 30) propõe uma “antropologia polifônica”, ou seja,
aquela que “oferece espaço para as vozes de todos os atores do cenário etnográfico”. Para
também a escrita como a configuração final dos momentos do olhar e ouvir que se dá fora
do campo, mas que deve levar em consideração todas as questões inerentes a ela.
um tom intimista, mas de forma que não se oculte o papel do pesquisador. Sob essa
perspectiva é natural alcançar uma compreensão desse movimento entre o que percebo,
dialogando com a minha formação, meu olhar, minha visão de mundo - eu em relação ao
outro, externo a esse meu universo. Não obstante, essa percepção não representa via de
22
2.2. Nós II – realização do diálogo
A escolha da nação Xambá como objeto de estudo partiu do contato que tive
com esta religião, em 1999, quando fui bolsista de iniciação científica sob a orientação do
Prof. Dr. Carlos Sandroni7. Até então nunca havia ido a um terreiro de xangô. Por conta
desta pesquisa passei a ler sobre o assunto e a assistir alguns toques públicos da Casa
Xambá durante esse ano. Estudar uma nação que integra o universo do xangô
pernambucano pressupõe certa familiarização e, ainda que o terreiro seja localizado numa
região próxima a onde nasci e cresci, até então nunca tenha tido um contato direto com
essa religião. Oliveira (2000, 39) classifica esse processo de pesquisar manifestações
com um “olhar” (Oliveira 2000, 19) lançado sobre a sociedade da qual, a princípio, ele faz
esse universo, não entrando no mérito de que o primeiro “olhar” seria melhor ou pior, mas
que se não atento para os diálogos inerentes a tal processo, se reduziria a um “colonialismo
interno” (2000, 41). Mesmo tendo um olhar para “o meu outro interno” – o Xambá, tenho
pode e deve ser revertido para eles a partir desta pesquisa, que espero contribua para sua
história.
7
Rosa (2000).
23
Após ter realizado uma outra pesquisa com Sandroni, com nova temática, nos
dois anos seguintes (2000-2001), não voltei mais ao Xambá, embora nunca o tenha
terreiro. Meu ex-orientador também foi muito importante nessa decisão. Levei meu
desta nação, Hildo Leal e João Monteiro. Foram inúmeras as conversas com Hildo, em que
ele me ajudou a compreender essa nação afro-brasileira, assim como tantas outras pessoas
que surgirão no decorrer deste trabalho. Com um sinal positivo da parte do Xambá,
ingressei no curso e passei a ler tudo que encontrava a respeito das religiões afro-
entanto, no ano de 2003 não houve toque público. Nesse ano, aconteceram apenas, o Toque
de Balé, dedicado a Iansã de Balé (dos eguns, mortos), no dia 27 de janeiro8 e a Louvação
Tila faleceu no mês de março, no mesmo mês em que me mudei para Salvador para iniciar
os meus estudos.
Embora esse não tenha sido o primeiro contato, na realidade estava há três anos
sem freqüentar o terreiro, tudo era ainda muito novo e resolvi primeiro me familiarizar um
pouco mais com o universo do Xambá. Tive muitas conversas informais também com
Maria do Carmo de Oliveira (Cacau), filha de Iansã e figura ímpar que teve muita
8
Realizada no mesmo dia do aniversário da morte da segunda ialorixá da Casa, que esteve à frente
da mesma por mais de quatro décadas – Mãe Biu.
24
paciência com as minhas dúvidas e falta de saber9, com José Cleyton da Silva (Guitinho)
filho de Ogum e ogã do terreiro que também muito me ajudou através de diversas
conversas e “consultas telefônicas”, assim como com sua mãe, filha de Iemanjá, Glória
Maria Oliveira da Silva (Gogó) e com Leila Luiza Oliveira da Silva, sua irmã e filha de
Orixalá. Não posso deixar de mencionar as conversas e elucidações que tive com seu
Juvenal José Ramos, filho de Xangô e com Raulino Sales, filho de Iemanjá, que
babalorixá, ainda hoje me fornece informações preciosas sobre a história do terreiro, sobre
Obrigação que antecede o toque. Esta cerimônia não é pública, acontece após o ritual de
posterior. Nessas cerimônias comecei a gravar os toques num pequeno gravador portátil e
visto que a Obrigação ocorre durante um Sábado inteiro. O próximo toque, dedicado à
Iemanjá e em seguida a Ogum, aconteceu no mês de maio, pois em abril, mês que
9
Cacau, como prefere ser chamada é uma das responsáveis pela administração do terreiro visto
que o babalorixá trabalha fora e não dispõe de muito tempo para assumir essa função.
10
Colar de contas transparentes que simbolizam o orixá. Cada filho-de-santo possui a sua “volta”
de acordo com os elementos e cores que caracterizam o seu orixá.
11
Através do jogo de búzios feito por Pai Ivo, sou filha deste orixá feminino – rainha do mar, mãe
de quase todos os orixás.
12
Começa por volta das 07:00 horas da manhã e acaba por volta das 07:00 horas da noite, após a
saída do “ebó”, o despacho no rio Beberibe, do que restou das obrigações e dos pratos dedicados aos orixás.
A “Obrigação” faz jus ao termo utilizado, pois representa um dia inteiro de trabalho árduo dedicado aos
orixás. É o momento também de maior contato entre filhos e filhas-de-santo me proporcionando também
maior contato com todos.
25
No mês de junho desse ano realizei diversas entrevistas com Maria José Batista
de Araújo (D. Zeza) - “Oiá da casa”, Maria do Carmo de Oliveira (Cacau), Teresa Cristina
Batista (Cristina), José Walter Paraíso (Zeca), Adriana Paraíso, Maria José de Menezes
(Zeza, que é do Nagô, mas freqüenta também o Xambá e é esposa do padrinho e ogã da
casa, Seu Maurício César da Silva), além do babalorixá Ivo, pessoa extremamente ocupada
e conversas informais com Seu Marcos da Silva, filho de Obaluaiê e irmão de Seu
Maurício.
forma que fui percebendo a recíproca dessa familiarização, um momento muito importante
para mim como pesquisadora e como pessoa. Apesar de ter consciência de não fazer parte
deste universo religioso, por mais que haja a familiaridade, esta naturalmente difere dos
que realmente integram o Xambá, não ser vista apenas como pesquisadora foi um estágio
importante para trabalhar com elas e com eles, da mesma forma que estas (es) passaram a
não achar tão estranha a minha presença. Assisti a todos os demais toques de orixás do
julho para Orixalá, com “saída de iaô” de Orixalá e Nanã, da única filha de Nanã da Casa;
Iansã, o orixá que, inspirada pelos depoimentos que ouvi, pela história deste terreiro de
Iansã, resolvi centrar como foco de estudo buscando compreender a sua importância, a de
Xambá.
26
2.2.2. Caminhos e percalços das “descobertas mútuas” – do humano ao musical
A princípio, como pessoa que não integrava este universo, a sensação de ser
extremamente receptivas e isso se reflete na abertura que deram e dão para pesquisas sobre
o terreiro, assim como para fotografias ou filmagens dos toques públicos. Os próprios
filhos e filhas registram momentos do contexto religioso. É comum que filmem seu “obori”
e sua “saída de iaô”13. O próprio terreiro tem planos de registrar todos os toques do
calendário religioso, o que naturalmente é uma coisa recente. Todos os filhos e filhas falam
que nos “tempos de Mãe Biu e Mãe Tila” determinados registros não eram permitidos.
Contudo, mesmo com esta abertura é natural que haja restrições no cotidiano religioso para
com estranhos. No início, com meus poucos conhecimentos sobre esta nação, foi difícil
entender uma série de questões e sentir abertura para perguntar ou pedir para participar,
fotografar e gravar. Momentos delicados de uma pesquisa de campo que não estão
novo idioma. Para essa aprendizagem tive “entrevistas-aulas” com o ogã Sandro Paraíso14
que apesar de muito jovem (cerca de vinte anos) é uma referência musical para o terreiro,
13
Cerimônias de iniciação que abordarei no capítulo 4.
14
Filho de Oxum.
27
pois cresceu nesse universo, toca os três tambores, conhece profundamente o repertório
musical, além de ser um dos cantores solistas nos toques para orixás15. Sandro foi
realizadas com este filho do Xambá foram gravadas, transcritas, e depois ele, com toda
contexto religioso uma preocupação acústica ou qualquer coisa do tipo. Todos cantam e
nem sempre é possível ouvir claramente o solista. Para quem não conhece, só depois de
que eu começava a compreender momentos particulares, como quando um orixá “em terra”
puxa a sua própria toada e as funções das cantigas, que apesar de não possuírem uma
tradução literal dos textos, são profundamente conhecidas pelo povo-de-santo e estão
outros que não caberiam aqui, compuseram o percurso desta pesquisa. Várias
15
Normalmente Pai Ivo inicia o toque, depois passa para Sandro Paraíso e Ailton Paraíso, que se
revezam e, posteriormente Pai Ivo retoma e finaliza o toque.
16
Vatin (2001, 14) afirma que “as cantigas representam o último refúgio da identidade cultural,
mesmo quando suas letras não são entendidas por aqueles que as cantam.” O autor também reforça o fato de
que a música se situa “no coração de um sistema que coloca em ação as representações simbólicas, espirituais
e religiosas de toda a comunidade” (2001, 10). Música, religião e cultura compõem um estreito elo, não
sendo possível compreender um elemento isoladamente. Dentro da música existem os diferentes papéis das
entidades que se apresentam através dela. Como resposta ao fato musical está o humano, o público, a
receptividade e distinção que as pessoas fazem sobre as divindades, bem como os papéis delas próprias no
culto.
28
trabalho e para a compreensão da nação Xambá como um todo. Logicamente essa
diversos fatores e caminhos. Estes só foram possíveis a partir dos diversos momentos,
mãe dos xambanianos e é concebida como uma divindade que se mescla com outra
ancestral quase que divinizada, a falecida ialorixá Mãe Biu. Tanto o repertório musical de
Iansã quanto o da Oiá17 específica de Mãe Biu, são de extrema representatividade para
figuras femininas para a partir daí realmente ouvir a música de Oiá, que se apresentou tão
rica e complexa.
17
Iansã e Oiá são o mesmo orixá.
29
3. Uma história de construções e re-significações. . .
“É preciso criar de novo, Luis Maurício.
Reinventar nagôs e latinos, e as mais
severas inscrições, e quantos ensinamentos
e os modelos mais finos, de tal maneira a
vida nos excede e temos de enfrentá-la com
poderosos recursos.”
Da poesia “A Luís Maurício, infante”
Carlos Drummond de Andrade
(1993, 64-69)
especificamente dos negros que foram trazidos e escravizados pelos portugueses. Nesta
infeliz realidade e de forma muito ampla, esses africanos contribuíram para a formação da
africana em solo brasileiro foi submetida a diversas tentativas do governo português e dos
legado ímpar e não pode ser desconsiderado ao se falar em uma nação afro-brasileira.
culturais não deve ser tomado de maneira unilateral. Abordar tal universo pressupõe
processo complexo e polêmico nas diversas discussões acerca desta realidade histórica que
das religiões afro-brasileiras, para uma melhor compreensão do universo ao qual a nação
René Ribeiro (1970, 11) afirma que grande parte dos historiadores considera
que até o governo de Tomé de Souza (1549) o papel do negro escravizado se restringia ao
aconteceu, sobretudo, a partir da proibição da escravidão indígena pelo Papa Urbano VIII
no ano de 1639. Contudo, mesmo sendo recorrente na literatura sobre os estudos afro-
brasileiros a lacuna histórica que se tem a respeito de dados precisos acerca da introdução
31
recorrente nessa literatura o fato de que os índios não eram considerados “apropriados”
esse hiato da nossa história, diz respeito ao episódio da destruição dos arquivos referentes à
escravidão dos negros no Brasil pelo então Ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em 1891
(Ribeiro 1970, 11; Valente 1977, 31, Verger, 1987). Especificamente sobre a dificuldade
31) afirma ter ocorrido sob a justificativa de “evitar que a mancha da escravidão deixasse
vestígio.” Numa abordagem mais crítica desta atitude, Verger (1987, 16) afirma serem
outras as “razões reais deste ‘auto de fé’ abolicionista”, ou seja, na realidade o maior temor
africana era prática comum na Europa antes do descobrimento do Brasil pelos portugueses
brasileira esteve por todo esse período, imersa numa certa familiaridade com a
discriminação deste povo que foi retirado de sua terra natal para servir a propósitos
comerciais da maneira mais indigna que um ser humano pode ser submetido – a
32
Portugal, entretanto, se ressentia da falta de mão-de-obra, mesmo para a
sua agricultura local; grande parte desse país embora pequeno,
continuava no século XVI carente de homens, quase sem cultura, pois as
guerras de conquista, as pestes, as epidemias, fizeram grandes claros na
população. É por isso que a colonização americana vai tomar uma forma
especial, vai se fazer sob o signo da escravidão. Aliás, Portugal a isto já
estava habituado, pois que fizera trabalhar em seus campos os
descendentes de árabes conquistados e depois os prisioneiros de guerra
feitos na África do Norte. Tinha mesmo adotado, em seguida à sua
exploração das costas africanas, a escravidão dos negros; sabe-se que,
em 1550, perto de 10% da população de Lisboa era composta de
escravos negros. Bastava, pois, transportar este costume da metrópole ao
Brasil e fazer trabalhar nas plantações que aí se iam instalar a massa de
indígenas escravizados sob o controle e em benefício de uma minoria
branca.
importante citar o fato de que o tráfico acima da linha do Equador foi considerado pirataria
pelos ingleses a partir de 1815 e em todo Atlântico em 1830. Ribeiro (1970, 22) e Verger
(1987, 9) dividem o tráfico de escravos em quatro ciclos distintos que nos remete à
diversidade das procedências africanas que foram trazidas ao Brasil nos diversos períodos:
1815;
33
uma região de grande extensão abrangendo diversos portos utilizados durante o tráfico, que
não mais corresponde à região de mesmo nome, sem dados precisos sobre o que se
referido contexto. Era comum haver determinadas preferências por africanos de nações
específicas e como resposta a essa preferência os senhores afirmavam que estes eram de
escravos na região por conta da guerra, seja desta forma, proporcionando a expansão dos
cultos afro-brasileiros são notórias, e isto se deve não só ao contexto local, mas também às
origens dos africanos que levavam sua cultura, religião e música. Tanto Ribeiro (1970)
34
quanto Rodrigues (1988) afirmam a significativa presença de uma cultura angolana e
congolesa em Pernambuco. Ribeiro (1970, 17) adverte sobre a presença da cultura banta
coroação dos reis de Congo que datam já do século XVIII e que hoje são relembradas no
maracatu. Esta manifestação popular afro-brasileira não só carrega uma identidade musical
própria e notadamente de influência africana, como também uma ligação religiosa com o
A citação acima não deve ser considerada em termos absolutos, visto que Nina
nações na Bahia. Todavia, não deixa de ser uma abordagem válida sobre o contexto
1 Debret, Voyage pittoresque et historique ao Brésil ou séjour d’un artiste française ao Brésil
depuis 1816 jusqu’en 1834 inclusivement, Paris, 1835, vol. 30, pág. 75.
35
predominaram em todo país, seria concluir-se do que aqui deixamos
apurado, que só na Bahia tivessem tido ingresso os negros sudaneses.
Um documento do século XVII é bem positivo sobre a existência, em
Pernambuco, de negros desta procedência2.
Pernambuco, a partir de extensa pesquisa histórica, Ribeiro (1970, 23) ressalta, por outro
Ribeiro (1970, 23) cita também um importante registro realizado por Aires da
Mata Machado Filho (1945). O referido documento consiste numa lista correspondente aos
assentos de batismo dos membros das Irmandades do Rosário e das Mercês de Diamantina
2 O autor cita carta escrita por Henrique Dias em 1648 onde menciona a predominância banto
naquele Estado e as características particulares de diversas nações. Essa carta foi transcrita por Pereira da
Costa, no artigo “A idéia abolicionista em Pernambuco” escrito para a Revista do Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano, 1891, p. 247.
36
A referência deste autor é de grande relevância para a nação Xambá, pois
representa o primeiro registro histórico que se tem notícia sobre africanos desta origem no
Brasil. Vale a pena mencionar que pouco se sabe sobre as origens desta nação e o próprio
povo-de-santo, consciente deste fato, realizou extensa pesquisa que resultou numa cartilha
(Leal 2000, 10). Nesta o povo xambá ou tchambá foi encontrado como habitante da região
ao norte dos Ashanti (Costa do Ouro) e também nos limites da Nigéria com Camarões, nos
Ocidental Sub-Saariana.
Desta pesquisa resultou um outro importante registro sobre este povo: uma carta da
Embaixada dos Camarões em resposta a Hildo Leal (um dos filhos-de-santo que trabalhou
diversas famílias atualmente com o nome Xambá, acrescentando que esse povo lutou
africana não sejam a tônica dessa pesquisa, pois assim como as demais nações afro-
brasileiras, a questão étnica por diversas ocorrências históricas não pode mais ser
perante as demais nações e sociedade em geral que muitas vezes desconhece a existência
A relação entre o povo xambá e o Vale do Benué também foi apontada por
Meek (1931, 3) em sua obra sobre o povo Jukun da Nigéria. O autor cita não uma nação
Xambá numa perspectiva religiosa de culto aos orixás, mas o povo “chamba” que habitava
37
a região do vale do Benué, Nigéria por volta do século XIX e ressalta os aspectos
antigo, sendo resultado do contato com outros povos, inclusive os “chamba”. Meek
assinala o povo “chamba”, bem como os “fulani”, como responsáveis pelo dilaceramento
inserido (década de 30), onde ainda predominava uma concepção descritiva e nem sempre
registro, visto que, como já afirmamos, são raras as referências a este povo.
considera duas principais nações em Recife: a Nagô e a Xambá, embora muitas das
pessoas iniciadas por Arthur Rozendo, principal babalorixá do Xambá, tenham adotado o
culto Nagô. Sobre os diversos termos presentes nos cultos afro-brasileiros, Verger (1992a,
96) realiza uma distinção a partir da utilização de termos locais. De acordo com ele:
3 “The final disruption of the Jukun Kingdom of Kororofa was brought about by groups of
Chamba who, as the precursors of the Fulani, ravaged the whole of the Benue basin”.
38
São Luís e batuque em Porto Alegre. Todos estes termos, com exceção
de xangô são nomes de instrumentos de música, de origem banto, das
regiões da África ao Sul do Equador. Atualmente o termo “candomblé”
tomou maior extensão, representando o culto dos deuses africanos em
todo o Brasil.
Motta (1997, 16) define xangô como culto aos orixás que correspondem a
divindades iorubás e que no Brasil são sincretizadas com santos católicos. O autor utiliza o
termo “sacrificial” para classificar esta religião que tem por base a crença na reciprocidade
entre povo-de-santo e orixás – os primeiros dão oferendas aos últimos que atendem aos
seus pedidos. Acrescenta ainda que parece ser particular do xangô pernambucano a
apresenta uma síntese bem geral sobre o xangô. Destaco aqui o que se refere às crenças e
aos ritos:
características que são compartilhadas por todas. Seguindo, o autor alerta sobre sua
abordagem generalizante que, todavia, soma na medida em que fornece uma abrangência
de maneira sintetizada.
39
Segato (1995, 18) refere-se ao xangô como variante local da religião afro-
“candomblé”, termo que é mais remetido a uma tradição baiana. E, acrescenta que os
terreiros ou “casas de santo” onde tais religiões são praticadas também são chamadas de
“xangôs”.
ainda representa o termo mais adotado. Ribeiro (1970, 40) atribuiu a denominação xangô
nome. Tanto esta concepção como a popularidade do termo foi reforçada pelos filhos e
identificados pelo seu orixá, que, em grande maioria, corresponderia ao orixá Xangô. As
(os) adeptas (os) do Xambá6 usam as duas designações: “ir ao Xambá” (como designativo
para terreiro, local do culto) ou “ir ao xangô” (como designativo do culto em si). É comum
também, entre o povo-de-santo do Xambá a utilização dos termos xangô e xangozeira (o)
5 “Possession cult formed with cultural elements brought to Brazil by slaves and which were
mingled with Catholic beliefs. It was probably consolidated with a form similar to that of today in the years
following the abolition of slavery, which was proclaimed in Brazil as late as 1888.”
6 O termo Xambá é empregado por seus filhos e filhas para designar a nação como um todo,
referente às origens africanas, mas, também é utilizada para se referir aos preceitos religiosos em geral, o
culto em si, sua característica particular e, por fim, o próprio terreiro, o local onde as cerimônias são
realizadas.
40
para designar o culto afro-brasileiro e os seus adeptos e adeptas, respectivamente. Existem
diferenças são reforçadas pelo povo-de-santo que a considera uma nação à parte das
afro-brasileiras e desta forma obter um panorama geral de olhares diversos em relação aos
enciclopédias brasileiras onde foi possível constatar que infelizmente não se tem uma
de Olga Cacciatore (1977, 263), único a apresentar um verbete dedicado ao Xambá, define-
o como:
descrito de maneira breve ou, para designar, também de forma abreviada, a casa de culto
nacional, xangô ainda é concebido por diversos autores como um termo característico para
designar o culto afro-brasileiro no Recife, como já foi exposto, pelo próprio povo-de-santo.
Sob esta perspectiva, a ocorrência do verbete como religião e não como o orixá,
pouco aprofundada.
Mauro Vilar (1982, 896-897) define xangô como culto presente em todo o
Brasil que “por vezes se realiza em padrões extremamente iguais da ortodoxia africana”
41
guardando muitas semelhanças com as práticas tradicionais trazidas pelos africanos
escravizados da Àfrica ao Brasil. Defende também a idéia já destacada por Ribeiro (1970,
40) de que o fato da popularidade do orixá deu nome à religião no Recife. Olga Cacciatore
(1977, 250) aborda o xangô recifense como o padrão para os cultos jêje-nagô das demais
por volta de 1880 teria sido fundado o primeiro terreiro de xangô no Recife, chamado de
“Pátio do Terço”, no bairro de São José, onde atualmente não existem terreiros de xangô
ser considerado de maior abrangência e prestígio, teve maior aprofundamento por parte dos
autores. Mauro Vilar (1982, 856-859), por exemplo, inclui em seu verbete sobre o
candomblé, concepções de vários autores, entre eles Pierre Verger. Explica que o termo a
princípio esteve restrito à Bahia e, posteriormente, tornou-se nacional. De acordo com ele,
foi empregado pela primeira vez no ano de 1828 para designar a revolta de negros no
passagem onde os mortos seriam encaminhados para uma morada mística ou cosmo
Vilar afirma que, na África, os negros tinham nos orixás e voduns seus patriarcas, suas
maiores referências culturais e espirituais. Os orixás nada mais eram que antepassados
42
mitificados cuja memória se perpetuava, sendo proporcionada a convivência com eles nas
festas religiosas. No Brasil essa característica foi alterada e as relações não se repetem
momento histórico, onde ainda era defendida uma visão de menor relevância à religião
afro-brasileira, sendo então considerada apenas como uma manifestação folclórica. Outro
dado relevante neste verbete é a presença da música como fator intimamente relacionado
ao seu contexto.
“fetiche” e “folclore”, como pode ser constatado na última citação. Mesmo ciente de que
estas concepções estavam imersas num contexto de algumas décadas atrás é importante
reconhecer que são também válidas para a obtenção de um olhar histórico e reflexivo. As
que não cessa. Relacionar não só as abordagens descritivas e limitadas, mas também as
pensamento, englobando maior respeito para com essas religiões. A pesquisa nesse tipo de
7 Embora não tenham sido transcritas todas as abordagens no texto, por serem repetidas, quinze
títulos foram pesquisados.
43
literatura foi importante também por que são essas referências que alcançam grande parte
da população e a familiariza com a concepção preconceituosa que durante tanto tempo foi
recorrente. Sabe-se que o acesso à educação no Brasil, num sentido amplo de geração de
conhecimento, é restrito a uma minoria e que o acesso a esse tipo de literatura e abordagem
pode ser pensado muito mais numa perspectiva de restrição a outras fontes de informação
de maior amplitude que de forma opcional. Chauí (1996, 172) levanta essa importante
questão:
enciclopédias, uma vez ali situadas, tendem a se eternizar. Obras de referência nacional e
regionais, uma vez que não se cogita reduzir o Brasil às dimensões que uma concentração
Rita Segato (1995, 15) já havia delineado um olhar crítico sobre a conotação
elite sobre os cultos afro-brasileiros e, neste caso, podemos ampliar para a elite brasileira
enciclopédias. A longa miopia dessa elite diante dos mesmos que, segundo Segato (1995,
histórico rapidamente constatado numa pesquisa como a realizada. O próprio René Ribeiro
“esplendor” dos candomblés baianos, pelo caráter ritual mais fechado diante de todas as
represálias policiais que sofreu. Segato (1995, 18) reforça a afirmação do autor mais de
44
quarenta anos depois e ressalta que em Recife esses cultos não tiveram de longe o prestígio
baiano em razão do interesse dos intelectuais pelo candomblé daquele Estado. A autora
toca também numa questão de maior amplitude – o racismo à brasileira -, que não pode ser
pensado fora da academia e da produção científica e literária em geral e tem por base gerar
reconheça que os africanos nunca abandonaram sua cultura e suas crenças desde que
45
chegaram ao Brasil. Prandi (1996, 66) toca na questão dessa organização tardia das
religiões negras como estritamente relacionada à fixação dos africanos nas cidades, no
período final da escravidão, o que possibilitou uma maior interação entre os negros de
nações. O autor realiza importante classificação para os estudos das religiões afro-
na Bahia, nagô ou eba em Pernambuco, oió-ijexá ou batuque no Rio Grande do Sul, mina-
autor ressalta que o candomblé queto exerceu grande influência sobre as demais nações,
2. Tronco banto: nação angola, que adotou o panteão dos orixás iorubás
(embora chame pelos nomes de seus esquecidos inquices, divindades bantos), também
fundamental importância o culto aos caboclos, que são espíritos de índios, considerados
pelos antigos africanos como sendo os verdadeiros ancestrais brasileiros, portanto os que
são dignos de culto no novo território em que foram confinados pela escravidão. Foi
menores de origem banto como a congo e a cambinda, hoje quase inteiramente absorvidas
tradições rituais jejes foram muito importantes na formação dos candomblés com
Maranhão.
46
Ainda que ciente do fato de que a linguagem ritual dos cultos presente nas
cantigas não seja mais traduzível, visto terem se transformado com o tempo e muito ter se
importante esquema para a compreensão das distinções entre as diversas nações afro-
brasileiras que por mais que tenham se transformado em território brasileiro, possuem
propõe uma divisão em quatro tipos principais, dos quais, o Xambá se encontra imerso em
acrescentado entidades africanas, e dos caboclos, também curadores, mas como o nome
ciganos, apesar de não ser sempre fácil diferenciá-los dos caboclos e dos mestres. O
onde por mais tempo se conservou a identidade e memória indígena. (...) Aos mestres,
8 Importante frisar que esta não corresponde a uma classificação êmica em sua totalidade.
9 O Xambá corresponde a uma nação afro-brasileira de culto aos orixás, contudo, à parte deste
culto também faz obrigações rituais para as entidades da Jurema num espaço distinto do qual se cultua os
orixás. É importante destacar que não é todos o povo-de-santo que participa deste culto que acontece à parte
do calendário religioso da casa.
47
2. Xangô - representa muito aproximadamente o equivalente do
Candomblé da Bahia. Isto é, trata-se do culto dos orixás que, como se sabe, são
(1997, 21);
sobre a palavra, etc.), conserva os toques, as danças, a hierarquia (ou pelo menos a
fato de que Cacciatore (1977, 263) e Prandi (1996, 66) atribuem origens quase opostas à
nação Xambá, mas que diante de seu contexto de sincretismo, anteriormente exposto,
procedem. Lühning (1990a, 5) sugere que o conceito de “nação” deve ser abordado como
designativo para grupos étnicos num sentido amplo. Ressalta as diferentes concepções
pelas quais o conceito passou durante todo o seu percurso histórico desde os tempos da
Termo que foi utilizado para designar os escravos oriundos das diferentes
regiões da África, a fim de inseri-los, de certa forma, num determinado
grupo étnico. Era freqüente, porém, que uma nação não correspondesse
inteiramente ao grupo que designava. (1990a, 233).
48
Ao buscar um conceito amplo de nação devemos considerar seus diversos
escravos para diferenciá-los na hora da venda. É sabido que muitas vezes, as distinções de
africanos trazidos para o Brasil. Por outro lado, deve-se avaliar as transformações e re-
Atualmente:
Vivaldo Costa Lima (1984, 20) reforça que o conceito de nação foi
conceito teológico. Em outro artigo o mesmo autor (1976, 70) relaciona as nações
africanas que foram trazidas ao Brasil com o tráfico negreiro e que hoje compõem grande
1. Jeje - segundo Lima (1976, 72) o termo jeje está relacionado a grupos
étnicos do Baixo Daomé (fon e gã) e tem origem na língua iorubá “ájèji” que quer dizer
diferentes nações. Por outro lado, Verger (1999, 23) afirma que o termo “djèjè”
simples presente no contexto ritual africano que até hoje está presente no candomblé;
Lima (1976, 74) assegura que esta nação teria origem de um antigo apelido pejorativo que
49
os iorubás do Daomé receberam dos fons (ou jejes): “anago”, “nago” ou “anagu”. Os
termos utilizados significavam “sujos”, “piolhentos”, pois segundo o autor “os nagôs, isto
Lima (1976, 21) os terreiros de Congo e Angola foram trazidos para o Brasil antes dos
nagôs e jejes.
brasileiras de que essas nações eram oriundas de regiões diferentes da África e com
resistência cultural e religiosa negra que está presente até hoje nos cultos afro-brasileiros:
chamadas “nações compostas”, ou seja, nações que por uma questão de interação entre si,
num mesmo culto. A Nação jêje-ijexá é um exemplo dessa mescla que reúne elementos
presentes tanto na Nação Jeje quanto na Ijexá. Essa nação se faz presente em Porto Alegre
– RS sob a denominação de Batuque jêje-ijexá (Braga 1998, 41), onde o Jeje (Benin)
encontra-se associado aos rituais das casas Ijexá (Iorubá) através da inclusão de algumas
50
cantigas rituais e da presença de alguns orixás, dentre outros elementos. O processo se
tornou também comum e atuante como resposta à situação dos africanos escravizados que
Como citado anteriormente, Prandi (1996, 66) aponta a nação Xambá como
uma das nações em extinção do tronco iorubá que atua nos estados de Alagoas e
Pernambuco. Olga Cacciatore (1977, 263) por outro lado, também aponta esta nação como
iorubá, como o fez Prandi, afirma ser um culto mesclado de elementos bantos e indígenas.
subdivididos em diversos grupos como Oyo, Ketu, Ijesha, Egbá, entre outros. (Lühning
1990a, 6). Os bantos corresponderiam às nações cambinda, congo, angola, benguela, entre
outros, da África Central. Segundo Pierson (1971, 120) os iorubás foram mais utilizados
51
nas cidades como escravos domésticos. Os bantos, por sua vez, foram mais utilizados nas
plantações, no interior do Brasil, tiveram contato com a cultura indígena e hoje são
relacionados com os cultos que mesclam estes elementos como o candomblé de Caboclo
(Garcia 2001). A divisão dos africanos que foram trazidos ao Brasil em sudaneses e bantos
se deve, sobretudo, a aspectos lingüísticos. Outra diferença entre os dois grupos, conforme
bantos, por sua vez, assimilaram alguns elementos da cultura brasileira a seu corpo de
mesmo terreiro são cultuados vários orixás cujo panteão pode variar de uma casa para
outra a depender de sua tradição. É notório nesta nação o fato dela cultuar os orixás em sua
tradição iorubá, mas também à parte, os caboclos e os mestres que representam figuras que
compõem o quadro mítico da tradição banto, que está presente em outro tipo de culto
uma mesma casa em Salvador, Garcia (2001, 187) ressalta que o fato de haver o culto aos
caboclos dentro do âmbito de uma casa tradicional de candomblé não deve ser concebido
como elemento que a descaracterize, pois ambos os cultos ocorrem em espaços sagrados
pela junção de tradições oriundas da África que chegaram ao Brasil pelo contexto
52
escravocrata e que aqui desenvolveram um novo formato. Estas adaptações ocorreram com
contato com outra cultura já estabelecida localmente, como é o caso da mescla da cultura
angolana com a indígena -, seja a nível nacional, no que era concebido como tal
assimilação por grande parte das religiões afro-brasileiras em relação à religião católica.
contexto.
mesmo tempo em que são baseadas na tradição de antepassados africanos. Essa pluralidade
(Chauí 1996) e permeado por um caráter muitas vezes concebido como pejorativo – o de
53
rituais versus a inovação/adaptação/sincretismo. Chauí (1996, 121) refuta a idéia de
A clareza e distinção das idéias e das coisas exigem que sejam ou isto ou
aquilo. Jamais isto e aquilo ao mesmo tempo e na mesma relação (...)
ambigüidade não é falha, defeito, carência de um sentido que seria
rigoroso se fosse unívoco.
O xangô pernambucano, do qual o Xambá faz parte, pode ser pensado nessa
sincretismo religioso10. Ainda que fruto de imposições é também o resultado de uma longa
africanos que eram considerados um povo sem “alma” e sem cultura. Nas mãos dos
mesmo tempo relacionada com o seu passado, a sua história, a sua herança, a sua
10 É preciso ressaltar que essa ambigüidade não é exclusividade dessa religião, a premissa básica é
que pureza absoluta é um ideal que não corresponde à realidade, visto que no decorrer da história os povos
travaram contato, se transformaram. Esse é o processo vivo e não cristalizado da cultura onde a religião
compõe um alicerce fundamental, mas não isolado e inatingível de vivenciar transformações.
54
contexto, não sendo exposto aqui de maneira generalizante. De certo, em solo brasileiro e
essas religiões foram inúmeras vezes alvos de perseguições. Hoje a discussão sobre
extrema legitimidade, mas penso também no sincretismo como reflexo de postura marcada
mais radicais aos processos de reafricanização pelos quais os terreiros das religiões afro-
sincretismo que foi marcado pelo diálogo entre as duas posturas, diferenças e anseios
gerados por elas: complementaridade. Como Chauí (1996) já havia destacado é difícil
reconhecer isto e aquilo ao mesmo tempo, mas acredito ser esse o rico processo de
religiosa são diversos. Na Nação Xambá talvez o mais marcante seja que esta representa
uma nação à parte das demais, ou seja, ela não é apenas um terreiro, é uma nação com
55
Crucifixo e figa, símbolos do catolicismo popular que
ficam expostos na entrada do terreiro.
caracteriza parte de sua história, embora gradativamente os mais jovens tenham expressado
escravizados e reprimidos por seus donos. Sob tal perspectiva, seria uma:
(1989, 55) nos alerta sobre a importância de fazer a distinção entre a herança portuguesa e
a africana:
56
pode trazer consigo, nos costados dos navios negreiros, mais que seus
valores culturais.
Pensar na falta de opção e na dor vivida pelo negro fatalmente nos remete a
uma negação da cultura portuguesa, aqui também transformada e influenciada pela cultura
negra. Contudo, é preciso buscar uma maior amplitude para reconhecer as transformações
como fatos históricos que também se modificaram. O sincretismo vem primeiro como uma
adoção forjada da cultura dominante pelos negros, mas a continuidade dessa postura só foi
contexto escravocrata. Prandi (1996, 67) ressalta também o fato do culto católico aos
santos, numa dimensão popular politeísta, ter se ajustado ao culto dos panteões africanos
orixás, os católicos das camadas sociais mais baixas louvavam os seus diversos santos.
adotar em sua concepção religiosa alguns elementos não mais da cultura dominante, mas
do que aqui se transformou num caldeirão cultural em busca de sua identidade. Prandi
57
Desde sua formação em solo brasileiro, as religiões de origem negra têm
sido tributárias do catolicismo. Embora o negro, escravo ou liberto, tenha
sido capaz de manter no Brasil nos séculos XVIII e XIX, e até hoje,
muito de suas tradições religiosas, é fato que sua religião enfrentou-se
desde logo com uma séria contradição: a própria estrutura social e
familiar às quais a religião dava sentido aqui nunca se reproduziu. As
religiões dos bantos, iorubás e fons são religiões de culto aos ancestrais,
que se fundam nas famílias e suas linhagens. O tecido social do negro
escravo nada tinha a ver com família, grupos e estratos sociais dos
africanos nas suas origens. Assim, a religião negra só parcialmente pôde
se reproduzir aqui. A parte da religião original mais importante para a
vida cotidiana, constituída no culto aos antepassados familiares e da
aldeia, pouco se refez, pois a família se perdeu, a tribo se perdeu.
construção de uma identidade cultural, onde ser brasileiro representava ser católico:
58
O ideal de pureza foi uma constante na história das religiões afro-brasileiras.
Esse ideal foi fundamentado pelo discurso dos intelectuais e pesquisadores que a partir de
Nina Rodrigues passam a construir uma idéia de supremacia cultural sudanesa. Gonçalves
Fernandes (1941, 39), fruto dessa geração, afirma que “o que não se pode negar é que o
negro sudanês tinha um aparelhamento cultural superior aos bantos”. Essa foi a postura
adotada pela sociedade em geral e inclusive pelo próprio povo-de-santo que atribui até hoje
multiculturalidade:
musicais, Kubik (1997, 385) ressalta que resultaram na construção de uma linguagem
desse ideal de pureza cultural e religioso, é ilusório. Este foi alimentado pelas pesquisas
“princípio gerador”. Os autores acrescentam que essa almejada estrutura nuclear definiria,
segundo os preceitos dessas pesquisas, “um estado puro e reconhecível de todo estilo” que
59
seria “essencialmente platônico – por que recusa as anomalias próprias da empíria”. Nesta
perspectiva:
estruturas marginais, ou seja, os processos “trans” das margens, nos deparamos com o que
a princípio não seria concebido como “coerente”, pois como já alertou Chauí (1996), seria
estranhamente “ambíguo”:
intimamente envolvida com questões em torno da busca de uma identidade, a partir das tão
perseguidas e reforçadas origens. Essa busca pode ser explicada como uma resposta ao
histórico de perseguições e preconceitos sofrido. Pensar nas origens pressupõe pensar nos
Não cabe aqui um discurso de “tradicional” relacionado a uma certa “pureza”, mas um
Tais questões tornam-se uma das tônicas da Etnomusicologia que tenta, através
de uma aproximação holística já discutida pela Antropologia, adotar também uma postura
60
de pesquisa abrangente que considere essas questões. Nettl (1983, 182) defende uma
uma mudança estilística e associa essa concepção à antropológica de que a música muda
algumas posturas sob a perspectiva de perceber a música e, portanto, sua mudança atrelada
Nós sabemos que são componentes que mudam, que existem razões para
mudar, direções típicas, fatores internos e externos. Isto pareceria que
uma possibilidade é ver o processo de mudança como dependendo de um
equilíbrio entre vários fatores (Nettl 1984, 186)11.
onde a dinâmica cultural deve ser enfatizada em lugar da abordagem meramente descritiva,
muitas vezes presente nas pesquisas científicas. Seguindo, acrescenta que a importância da
11 “We know there are components which change, that there are reasons for change, typical
directions, internal e external factors. It would seem that one possibility is to view the process of change as
depending on equilibrium among various factors.”
61
promoção de uma compreensão, não restrita apenas à constatação da mudança ou
continuidade em si, mas, sobretudo, para seus processos e razões (Merriam 1964, 318). A
constatação engloba processos que devem ser tomados a partir de si próprios e não em
comparação aos demais. O mesmo deve ser tomado em relação às religiões afro-brasileiras
torno dos orixás que são considerados como correspondentes aos santos católicos, não
características dos mesmos, que muitas vezes se assemelham são enfatizadas nos cânticos,
composto de cerca de vinte e nove cantigas, cantadas, a priori, em língua iorubá com
diversas modificações que compõem esse processo de tradução cultural vivenciada pelas
religiões afro-brasileiras. O texto das cantigas é cantado num iorubá que se transformou a
filhas (os) e suas diferentes Iansãs está imersa no texto, pois é principalmente a partir do
texto que as pessoas identificam a toada específica de seu orixá. Essas toadas são cantadas
em sua maioria de forma silábica refletindo o caráter atribuído à Iansã, de força, ímpeto,
“Oiá Meguê numa batalha” é uma cantiga desta nação, representativa dos
vários processos apontados, como a tradução cultural, fruto das adaptações lingüísticas e
atuação de Mãe Biu, mulher guerreira, assim como a de Oiá, seu orixá. Através desta
62
cantiga (faixa 11 do cd em anexo) os filhos e filhas-de-santo do Xambá pedem força para
Nação Xambá, bem como nas demais nações afro-brasileiras que buscam suas matrizes
africanas e muitas vezes negam outras influências que não sejam consideradas africanas. A
linguagem nacional deve ser pensada como um todo no processo que contempla a
63
construção de identidade. Tudo se mescla no decorrer de uma história que perpassa a
quem “tomou emprestado” de quem, por isto, utilizo este conceito atrelado a uma idéia de
repertório musical é a utilização, pelo Xambá, dos toques Eco e Sete por Um, padrões
rítmicos de 12 pulsos que acompanham uma parte das cantigas desta nação. Contudo há
também um toque chamado Jeje, também de 12 pulsos mas que é acompanhado por
padrões de 16 pulsos e que a princípio indica também um compartilhamento com esta outra
nação afro-brasileira, mesmo que esse apenas consista no nome do toque. Há também o
característico da tradição banto, portanto, da nação Angola (Vatin 2001, Garcia 2001 e
do samba). Este toque acompanha uma toada dedicada à Oiá de Mãe Biu (faixa 13 do cd
em anexo):
64
Tanto as cantigas quanto os toques podem estar também presentes em outros
terreiros, contudo, a identidade desta casa, é ressaltada, entre outros aspectos, através da
performance musical que atua como elemento diferenciador. A forma de cantar, tocar e os
andamentos das cantigas caracterizam o universo musical desta nação na ótica de quem a
integra.
65
Abordar a música no candomblé ou xangô pressupõe, sobretudo, considerar
aspectos diversos inerentes ao seu amplo contexto, seja quanto à esfera social, seja quanto
à social. Para entender esse universo religioso é imprescindível contextualizar seu espaço
brasileira e suas origens africanas. A música representa também um importante fator para a
mesmo, mas representa o elemento que perpassa diversos níveis de relações sociais,
míticas, musicais, culturais, entre outros, que interagem compondo um complexo cosmo de
percepções e olhares muitas vezes incompreendidos por uma análise externa. A respeito
66
4. Uma história de resistência. . .
termo relegere – aqueles que cumpriam cuidadosamente todos os atos do culto divino,
enquanto Santo Agostinho consideraria o termo religare – re-ligar o homem com o divino,
o que, a priori, havia se perdido. Para Nicola Abbagnano (1998, 846-52), religião é a
“crença na garantia sobrenatural de salvação” e, para possibilitar tal garantia, o fiel deveria
religiosa estaria situada no campo do sobrenatural, ou seja, além dos limites dos poderes
ocidental de religião, permeada pela culpa cristã e necessidade de salvação espiritual que
não se faz presente nos cultos afro-brasileiros. Como já afirmou Eliade (1989, 9), o termo
necessário fazer uma concessão à utilização do termo “primitivo” pelo autor, enfoque
recorrente em sua época, torna-se necessário traçar um paralelo entre duas concepções
68
1. As religiões ocidentais cristãs – doutrinárias, marcadas pela
racionalização da fé;
Vários são os pontos de distinção entre as duas concepções, entre eles podemos
citar a “incorporação” da (o) filha (o)-de-santo pelo orixá ou, como é recorrente na
literatura, o transe, presente nas religiões afro-brasileiras e definido por Lühning (2001,
115) como sinônimo da “expressão do religioso pelo corpo e pela dança ritual”.
“quando a divindade, ou o espírito, ou o orixá toma o corpo de uma pessoa”. Ressalta ainda
que popularmente se pode falar “receber o santo, ou o orixá ou, ainda o “santo chegar”. No
Xambá o termo “irradiação” é também utilizado para designar o momento em que o orixá
“está chegando” ou, no caso das pessoas que não “incorporam”, mas sentem a presença do
orixá, para indicar o que ele chama de “manifestação superficial do orixá, sem a
incorporação total”.
escrita, ou seja, dos considerados livros sagrados, pelas religiões ocidentais cristãs,
1 Quero deixar claro que o fato de não considerar outras categorias religiosas não pressupõe sua
exclusão absoluta, mas que no presente contexto é esse o conflito em questão. O primeiro conflito
naturalmente se deu com a cultura indígena desde os tempos do Brasil-colônia até hoje, visto que continuam a
existir as diversas “missões” religiosas em áreas indígenas.
69
Um momento de
aprendizagem
no Toque de
Obaluaiê
(janeiro de
2004).
priori, a cultura dos escravos e, posteriormente, dos negros de baixa renda. Evidenciam um
conflito de noções não só do campo religioso em termos de crença, mas também do campo
2 Não posso deixar de mencionar o conflito declarado pelas Igrejas Pentecostais às religiões afro-
brasileiras, consideras pelas primeiras como “religiões do demônio”.
70
estético. As inter-relações entre seus elementos acontecem de maneira singular e distinta
das religiões afro-brasileiras pode ser explicada a partir de uma intolerância da cultura
outro é diferente, surge não só a incompreensão do ‘por que’ dessa diferença, mas ainda a
ou puramente ‘sensual’:
corporal numa experiência religiosa pode parecer uma heresia, enquanto para as outras
culturas não ocidentais o porquê da exclusão da experiência corporal do divino pode ser
incompreensível”.
71
A sociedade ocidental “esqueceu” que foi através da experiência com o sagrado
que houve a construção das diferenças conceituais e perceptivas entre o real e o concreto de
um lado, e o “caótico e perigoso fluxo das coisas”, de outro (Eliade 1989, 9). O sagrado
sistemático sobre um mundo com sentido diante de sua complexa organização (Eliade
1969, 10). É a partir dos símbolos religiosos que se forma uma congruência entre estilos de
vida que vão do particular ao metafísico – do humano ao Cosmos e essa congruência pode
ser tomada grosso modo, como a religião em si que Geertz (1989, 104) define como um
Cosmos” trouxe muitas interpretações, por vezes limitadas. Em contrapartida a esta postura
é importante rever conceitos e lançar novos olhares sobre a religião. Eliade (1989, 34)
sabiamente afirma: “Com efeito, um facto religioso ‘puro’ é coisa que não existe. Um facto
Como referências clássicas aos estudos das religiões Weber (2002, 23-7) e
72
como um elemento “desnecessário” ao capitalismo, que sempre esteve calcado no
pensamento racionalista - no lugar de Deus – a razão (2002, 60). Como resposta a essa
capitalista) a “idéia inexata” sobre a religião como uma realidade ou “sistema de fatos e
dados” que buscam organizar o cotidiano do homem, nascendo a própria ciência desta
realidade.
Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião eram
raros. Tão raros que eles mesmos se espantavam com a sua descrença e
escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato era. Tanto
assim que não foram poucos os que acabaram queimados na fogueira,
para que sua desgraça não contaminasse os inocentes. (. . .) Mas alguma
coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O céu, morada de Deus e seus
santos, ficou de repente vazio. Virgens não mais apareceram em grutas.
Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre
em lugares distantes com pessoas desconhecidas. A ciência e a tecnologia
avançaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus não era
necessário como hipótese de trabalho.
73
O autor ressalta dois pontos essenciais sobre o pensamento religioso e,
natureza, sendo este justamente um dos pontos de conflito com as religiões afro-brasileiras.
mal, pecado e divina providência por conceitos de eficácia que englobam a “luta pela
74
As religiões ou as diversas experiências religiosas, distintas e muitas vezes
ocidental, especificamente da católica - religião “oficial” do Brasil por muito tempo, que
louvava a Deus através do canto gregoriano no máximo acompanhado por um órgão, ou das
religiões protestantes e seus inúmeros corais para louvar a Deus, as religiões afro-
brasileiras louvam os orixás com tambores que são considerados sagrados – uma heresia
para os ocidentais. Os cânticos são acompanhados por tambores que exercem uma função
racionalista e científico que acreditava e ainda acredita que dessa forma o domine e o
entenda, surge a oposição básica entre religião e magia (Dantas 1988, 179). A considerada
música em iorubá ou misto de iorubá e português. Cantados fora do âmbito da tão venerada
75
Gonçalves Fernandes (1937, 15), por sua vez, descrevendo o universo musical
negros escravizados tinham para realizar os seus “batuques”. Apesar da incompreensão dos
diferenças étnicas numa política de “dividir pra reinar”. Sobre a música e a dança, numa
perspectiva inerente ao pensamento do início do século XX, Nina Rodrigues (1988, 156)
afirma:
Assim, nos negros, que são amantíssimos da dança. Ao som dos ruidosos
tambores e das melopéias africanas, tão monótonas, passam, eles noites
inteiras e às vezes, a fio em trejeitos e esgares coreográficos, em dança e
saltos indescritíveis.
música “oficial” versus “religiosidade, feitiçaria, seitas” e seus “batuques”. Assim sendo,
abstração, desta vez musical, de nossa concepção tonal de música, afinação, entre outras,
para aprendermos a ouvi-la e a entender o seu significado sagrado para o universo afro-
76
Inerente ao discurso da intolerância ou da redução das religiões afro-brasileiras
e suas músicas está a imposição da “fronteira invisível” apontada por Carvalho e Segato
(1994, 4):
e musicais, as “outras”, como algo que não seja similar ao “oficial”, ou seja, a cultura
humano a cultura ocidental se encontrasse num plano “elevado”, pois muitas vezes, além da
que muitas vezes não se relacionam, não integram o universo pesquisado. Essa falta de
acesso não configura mais uma característica de país “exótico” e distante. Muitas vezes
esses “outros” religiosos e musicais estão na cidade, no seio de um contexto urbano, mas
encontram isolados de forma similar aos “lugares míticos e musicais distantes, nunca antes
desbravados”.
XX, justamente o período mais árduo de perseguições vivenciado pelas religiões afro-
77
esses “outros universos” e a utilizar os elementos presentes na cultura afro-brasileira e na
musicais, como já foi visto, sendo até mesmo desconsiderados como religião. Nas décadas
de 1920 e 1930, esse quadro sofreu, por outro lado, significativas reformulações, dando
lugar a um gradativo interesse pela música exótica de origem africana e pelas religiões afro-
brasileiras em geral.
em 19343. Como reflexo da preocupação emergente de não apenas valorizar, mas também
e suas relações com as pessoas que realizam essas “outras músicas” e, por conseguinte, a
transcrição musical.
esta se encontrava inserida. Um primeiro momento seria marcado pela construção de uma
elementos presentes no que seria a verdadeira “alma brasileira” ou, segundo Burke (1999,
78
17), a “descoberta” da cultura popular de tradição oral. A cultura, sob esse ponto de vista,
simbólicas. A cultura popular, por sua vez, seria sinônimo de uma cultura não oficial
cenário, um marco para os estudos sobre música e cultura de tradição oral e para a
“Missão” é importante por ter incluído em sua constelação musical de tradição oral, os
décadas atrás.
Reily (1994, 90) afirma que embora os métodos de pesquisa utilizados sejam hoje
4 A Missão era constituída por um grupo de quatro pessoas, escolhidas por Mário de Andrade: Luis
Saia, como técnico geral, Martin Braunwieser, músico, Benedicto Pacheco, técnico de gravação e Antonio
Ladeira como auxiliar.
79
34)5. Contudo, o perfil do pesquisador naquele momento estava voltado ao âmbito de uma
dados que englobava a transição do considerado patrimônio imaterial (tradição oral) para
(1983, 249) afirma que este representa processos de aprendizagens e interpretações que
devem ser vividas e, portanto, dificilmente podem ser ensinadas, pois estão baseados nas
outro. Sob tal perspectiva, o informante (insider) representa não mais uma “fonte de
fundamentais, ponderando que a pesquisa não representa mera coleta de dados e, o respeito
para com o “outro” seja de extrema relevância para a fomentação de uma interação social
5 Argumento utilizado pela Missão com o então interventor de Recife, Agamenon Magalhães, para
registrar os xangôs, proibidos de funcionar pela polícia.
6 Béhague (1999), apesar de afirmar que a história das pesquisas etnomusicológicas no Brasil foi
“pouco coerente até o ano de 1980”, destaca diversas abordagens de extrema relevância para os estudos sobre
a música na América-Latina e no Brasil, especificamente. O autor (1999, 42) aponta para o período entre os
anos de 1920 e 1930 como marcados, sobretudo pela produção literária das primeiras histórias musicais dos
países latino-americanos, abordando também a música de tradição oral e declara, no entanto, que essas
produções eram marcadas por uma metodologia limitada e descritiva e dispensava pouca atenção ao trabalho
de campo e à perspectiva êmica.
80
A discussão é importante para a compreensão de abordagens realizadas tanto no
contexto brasileiro, para a compreensão daquele “meu outro interno” (Oliveira 2000, 19)
históricas e sua devolução aos seus respectivos descendentes. Esses enfoques somam-se de
importantes registros que, talvez para a época, serviram de denúncia da realidade sofrida
81
Foto dos tambores
apreendidos pela
polícia em Recife.
Tirada pela
Missão em
fevereiro de 1938
(Toni, 37).
concepção vigente do período em que foi realizada e, enfim, ao produto final dessa
demais fatores presentes no universo musical. A fonte escrita fornece dados valiosos que
devem ser recondicionados ao seu tempo para então representar elemento somatório ao
discurso musical.
melódicos, nos cantos dos orixás, mas em seu diálogo com os aspectos rítmicos que, por
sua vez, dialogam com os aspectos corporais e religiosos: “a dança não existe sem a
música, que inclui canto e ritmo, e, tampouco, sem a manifestação do orixá mediante estado
de transe” (Lühning 2001, 121). Dessa forma, embora os registros da Missão representem
82
marcos na história dos estudos sobre música, por outro lado representam também uma
lacuna para o estudo etnomusicológico. A música era abordada de forma isolada, ou como
diria Merriam (1969, 216) “a música per se”, limitada ao âmbito dos elementos
esses procedimentos o referido autor (1969, 226) propõe a busca de uma compreensão não
apenas do som musical com um objetivo em si próprio, mas nas relações com o por que do
Nessa fase, era comum o registro apenas dos textos, ou no máximo, das
melodias das diversas músicas de tradição oral, religiosas ou não. A questão rítmica era
ignorada pelos estudiosos quase por completo, abordagem adotada inclusive por Martin
1946). Braunwieser transcreveu “de ouvido” as melodias cantadas por alguns informantes
do xangô, não se preocupando com a transcrição dos tambores. Isso talvez possa ter
preceitos ocidentais, apresentando limitações por não buscar uma representação desta
escrita mais próxima da outra realidade musical. Para ilustrar melhor essa discussão,
apresento uma toada de Iansã transcrita por Braunwieser onde há nitidamente a tentativa de
83
enquadrá-la numa perspectiva musical ocidental, com a utilização de barras de compasso,
síncopas e armadura:
não se enquadra na estrutura rítmica da música afro-brasileira, mesmo assim está presente
utilizado como uma resolução musical importante nesse contexto, pois se baseia na
acentuação assimétrica de uma pulsação geralmente tocada pelo agogô, servindo de base
para o ritmo do grupo instrumental e da dança (Garcia 2001 e Lühning 2001), também foi
também representam uma constante nas discussões acerca dessas transcrições. No caso da
84
toada de Iansã, transcrita por Braunwieser, é utilizada a armadura de clave, procedimento
não recomendado atualmente, por restringir a perspectiva melódica mais uma vez a uma
concepção ocidentalizada.
registro para discutir e reformular não apenas a concepção de notação musical, que
naturalmente deve ser pensada dentro do contexto da época, mas também a questão da
manutenção da tradição, visto que a mesma cantiga, dentre algumas outras, está presente no
85
A transcrição desta cantiga de Iansã presente no Xambá apresenta critérios
um distanciamento da notação ocidental que não dá conta de uma estrutura musical afro-
brasileira. Naturalmente que este ‘distanciamento’ também carrega suas limitações, como a
questão do timbre dos tambores e das alturas melódicas que não são evidenciadas. Buscar
uma outra forma de transcrever esse tipo de música representa uma iniciativa que julgo
legítima para repensar a notação ocidental, os valores que carrega e a transcrição musical
em si. Dentre os critérios para a transcrição musical que foram adotados está a ausência de
compasso, barras de compasso e armadura de clave. O canto em geral no total das cantigas
do mal” é realizada num padrão de 8 pulsos, pensando na linha-guia realizada pelo agogô e
também nas palmas executadas pelo coro. Os acidentes quando presentes, são repetidos
apenas quando começa cada novo ciclo realizado pelo agogô. As alturas das melodias
muitas vezes são colocadas de forma aproximada, assim como o próprio ritmo. O canto do
solista geralmente apresenta nuances rítmicas particulares aos estilos dos diferentes solistas
contexto como fora de contexto, portanto não correspondem à gravação anexada a este
trabalho. A gravação serviu como suporte para analisar o conjunto instrumental juntamente
86
sobretudo, sua concepção. No caso do Xambá seria atrelar a transcrição não apenas aos
seus aspectos musicais, mas a sua concepção e execução e relaciona-los à figura de Iansã,
considerando tanto a mitologia quanto à história desse terreiro. Com isso, surgem novas
diversos olhares presentes no decorrer de uma história musical brasileira. O “olhar e ouvir”
da Missão contemplou não apenas a música popular de tradição oral, mas também a música
dos cultos afro-brasileiros. E nosso olhar sobre o “olhar” realizado pela Missão deve
considerar não somente suas lacunas, mas o valor que tais iniciativas representaram no
87
Braga (1995, 21) referindo-se à perseguição aos cultos afro-brasileiros ressalta
de pai Rozendo:
Prandi (1991, 250), por sua vez, reforça a posição da nação Xambá diante das
perseguição policial sofrida pela mesma. O autor afirma que o Xambá corresponde à:
88
vinte. Algumas casas migraram para Recife, aonde vieram a se refundir
com nações locais, formando a nação atualmente denominada nagô
pernambucana.
de reforçar o fato de que já são quatro gerações que fazem parte desta nação e que a mesma
afro-brasileiro, percebemos como mencionado anteriormente, que não existem outras casas
Xambá e no entanto, nem por esse motivo podemos condená-la a uma classificação de
“praticamente extinta”. Embora esta nação não tenha uma projeção nacional como algumas
outras, continua a manter sua tradição e a se popularizar. Por outro lado, as considerações
de Prandi são importantes também para entender as diversas adaptações que o contexto de
Xambá, por várias vezes os ouvi mencionar referências negativas por parte de pessoas de
outras nações, que afirmam ser o Xambá uma “invenção” dos “xambanianos”. O próprio
Prandi (1991, 222) relata entrevista com um filho-de-santo em São Paulo que fala sobre o
Xambá de forma pejorativa. Segundo esse depoimento, esta nação “pegou prestígio, mas
não “fazia” (iniciava) ninguém”. Essa visão reflete os conflitos internos do âmbito afro-
Seguindo, o autor ressalta também que a iniciação religiosa, por exemplo, onde
89
Não se raspava em Pernambuco nem em Sergipe até vinte ou trinta anos
atrás, mesmo nos grupos de origem iorubana, e até hoje não se raspa em
algumas casas de origem muito antiga” (. . .) “raspar a cabeça e abrir curas
era exatamente o mesmo que entregar-se à polícia, o poderoso inimigo
dessa religião.
pela figura ilustre do médico psiquiatra Ulysses Pernambucano de Melo (1892-1943), que
atuava nos terreiros, exercendo um certo controle prévio à atuação policial. Dantas (1988,
175) afirma que uma das preocupações de Ulysses Pernambucano era continuar a
abordagem de Nina Rodrigues lançada na Bahia por Artur Ramos, seu discípulo. A autora
(1988, 177) sugere que em Pernambuco parece ter havido maior intensificação dos estudos
mesmo que não tenha partido de lá tal abordagem. Segundo Valente (1982, 24):
nas cerimônias religiosas dos terreiros é um dos ângulos de interesse para o Serviço de
90
diversos de modificação da personalidade” (1937, 112)9. Sobre a atuação do SHM o autor
Gonçalves Fernandes (1937,13) que como tantos outros, era médico psiquiatra
religiões afro-brasileiras em geral, não se pode deixar de pensar nas contribuições que
protestos dos babalorixás (Gonçalves Fernandes 1937, 30) Ulysses Pernambucano foi o
organizador do evento que reuniu diversos estudiosos, assim como a participação, ainda
9 Esta relação entre abordagens psiquiátricas e transe ainda não está totalmente abolida. Em agosto
de 2003 (de 27 a 31) tive a oportunidade de participar do Encontro Alaiandê Xirê, no terreiro Ilê Axé Opô
Afonjá. Na mesa redonda sobre “êxtase e transe como veículos do sagrado” dentre os palestrantes havia a
presença de médicos psiquiatras. Lins (1992) observou festas públicas do Xambá para a elaboração de sua
dissertação em Antropologia pela UFPE sobre transe, orientada pelo médico e antropólogo René Ribeiro.
Essa pesquisa enfocou o transe como fenômeno psiquiátrico.
10 É possível encontrar na literatura registros pioneiros realizados por médicos psiquiatras sobre
candomblé e transe, sendo Nina Rodrigues (1862-1906) a grande referência para as gerações seguintes.
91
que restrita, de pais-de-santo. O próprio babalorixá Artur Rozendo teve o seu terreiro
Por outro lado, é também a partir do contato entre médicos e cultos afro-
brasileiros, que se obtém uma visão um pouco menos preconceituosa em relação aos
mesmos. Por mais esdrúxulo que pareça, o reconhecimento restrito dessas religiões por
parte da sociedade gera uma “regulamentação” dos cultos, ao invés da total proibição.
Segundo Gonçalves Fernandes (1937, 30) essa “regulamentação”, (de 21 de julho de 1935)
públicos, bem como de terreiros propriamente ditos, pois existia uma distinção entre os
religião e magia era concebida como bem e mal, respectivamente. A autora ressalta que
essa distinção partia dos próprios pesquisadores que buscavam a “pureza” africana
traduzida como religião, enquanto que os demais cultos situavam-se à margem e eram ainda
mais perseguidos:
23) acrescenta:
92
Como formalidade, a polícia exige para os centros espíritas e seitas
africanas a apresentação dos seus regulamentos, documento essencial para
a concessão da licença de livre funcionamento.
O próprio Xambá expõe até hoje, na parede do terreiro, uma licença para seu
funcionamento até a data de 31/12/1975, cerca de quatro décadas após o livro de Gonçalves
Fernandes ser publicado (1937) e três décadas após o fim do Estado Novo (1937-1945),
Licença de
funcionamento do
Terreiro do
Xambá em nome
de Severina
Paraíso (Mãe Biu)
de 1975
Gonçalves Fernandes (1937, 13) nos presenteou também com uma pesquisa
11 Lühning (1996, 195-220) realizou extensa pesquisa em jornais baianos sobre a perseguição
policial no contexto afro-baiano relativo ao período entre 1920 a 1940.
93
Sob a orientação do prof. Dr. Carlos Sandroni, da UFPE, realizei pesquisa
policial aos cultos nesse período12. A partir desta pesquisa foi possível constatar que com o
surgimento do Estado Novo varguista (em fins de 1937), a ocorrência dos fechamentos de
terreiros era praticamente diária nas seções policiais dos jornais. Constatamos também que
Água Fria, Recife, foi fechado em 1938 pela polícia, tendo seus objetos de culto
apreendidos e sendo preso o babalorixá. A prisão de Rozendo foi anunciada numa nota
policial (Jornal Diário da Manhã, 13/02/1938) cuja manchete refletia bem o julgamento da
Por conta da atuação do SHM era comum que seus membros recebessem
policial, procuravam manter uma relação cordial com os mesmos. Gonçalves Fernandes
(1937, 21) transcreve duas cartas redigidas por Pai Rozendo, importantes documentos para
a história do Xambá:
Carta 1:
94
Carta 2:
tradição da Nação Xambá que, como tantas outras nações afro-brasileiras, sofreu os
percalços de um caminho difícil desde suas origens de cisma africano até a coerência da
manutenção de uma identidade diferenciada. Neste contexto, Pai Rozendo representa uma
figura de grande importância para a história desta nação por ter iniciado, em 1927, Maria
das Dores da Silva (Maria Oiá). Esta ialorixá, posteriormente, fundou sua própria casa de
culto aos orixás, Seita Africana Santa Bárbara, em 1930 que ficava localizada na Rua da
Maria Oiá foi obrigada pela polícia a fechar seu terreiro em 1938 e, segundo as
falecimento de Maria Oiá, em 1939, Severina Paraíso (Mãe Biu) deu prosseguimento à
tradição do culto aos orixás conforme os preceitos da nação Xambá que foram transmitidos
por Rozendo para Maria Oiá e, para ela, Mãe Biu. Maria Oiá e Mãe Biu, duas filhas de
Iansã, apresentavam também relação de parentesco antes mesmo da religiosa, pois o pai de
Mãe Biu quando viúvo de sua mãe – falecida quando Mãe Biu era ainda muito jovem -,
casou-se com a irmã de Maria Oiá. Com o falecimento de Maria Oiá, seus filhos e filhas-
de-santo passaram a procurar Mãe Biu e sua irmã consangüínea, Mãe Tila, ambas iniciadas
95
por Maria Oiá, que quando tiveram condições reabriram o terreiro, doze anos após seu
Mãe Biu foi uma referência religiosa e familiar fundamental para esta nação.
Congregou em torno de si e da religião sua numerosa família e várias (os) adeptas (os). Foi
a fundadora, em 1950, do terreiro que deu continuidade ao que havia sido forçosamente
fechado pela polícia no contexto da repressão aos cultos afro-brasileiros. Este terreiro
acrescentou a designação em iorubá: Ilê Axé Oyá Meguê, que significa “Casa do Axé de
guardam sobre sua memória uma referência fundamental que alimenta profundamente o
passou a ser dirigido por um babalorixá – Adeildo Paraíso ou Pai Ivo que além de filho-de-
santo é também filho consangüíneo de Mãe Biu. Pai Ivo é considerado o primeiro homem a
dirigir o terreiro das filhas de Iansã – Maria Oiá e Mãe Biu. Segundo Hildo Leal14, Pai
Rozendo apesar de ter iniciado Maria Oiá no contexto da repressão não exerceu por muito
tempo o papel de seu babalorixá. Quando na reabertura do terreiro por Mãe Biu, em 1950,
13 É importante ressaltar que Santa Bárbara, no sincretismo religioso com o catolicismo representa
o orixá que rege o terreiro - Iansã.
14 Historiador e filho-de-santo do Xambá em entrevista realizada em 23/07/04.
96
Pai Ivo juntamente com Mãe Tila, falecida em março de 2003, deram
prosseguimento aos preceitos desta nação. Atualmente o babalorixá divide com outra tia
materna e mãe-de-santo da casa, Dona Lourdes, Seu Maurício e Dona Nair – padrinho e
Xambá e a busca que os seus filhos e filhas realizam para se legitimarem perante o contexto
consciência e se ressente com o fato do Xambá ser considerado por alguns autores como
quase extinto e afirma que cresce gradativamente o número de filhos e filhas-de-santo que
são iniciados neste terreiro. Em Olinda por exemplo, pode-se dizer que foi aberta uma nova
casa de uma filha-de-santo feita no terreiro Xambá no ano de 2000 - Dona Marinalva de
Oxum, tendo total respeito e incentivo dos demais filhos-de-santo do terreiro. Segundo
Hildo Leal15:
Pode-se considerar uma Casa Xambá, mas ainda não obedecendo todos os
preceitos. Por que Dona Marinalva já tinha uma casa de Jurema. Ela teve
que adaptar a casa dela pra receber o orixá. Mas ainda é uma exigência do
orixá dela que ela tenha um salão separado para o orixá. No mesmo salão
que toca para orixá, não se toca pra Jurema. E nesse momento ela ainda
tem as duas coisas no mesmo lugar, embora em pejis separados, mas ela
ainda não centrou nessa exigência que se faz lá em casa. Mas todo culto lá
é feito exatamente como se faz lá em casa.
Diante das circunstâncias, Dona Marinalva ainda não possui filhos e filhas-de-
santo no culto aos orixás, mas apenas no culto da Jurema. Embora cultue Oxum, seu orixá
principal e os demais orixás que possui, está sempre presente nos toques do Xambá, assim
97
como, tanto quando realiza o toque pra Oxum em sua casa, no mês de fevereiro, quanto as
obrigações aos seus outros orixás, todas(os) as(os) adeptas(os) do Xambá prestigiam a sua
após o falecimento de Mãe Biu, mesmo tendo levado os pertences de seu orixá para sua
própria casa, freqüenta os toques e as demais cerimônias deste terreiro. Hildo Leal
acrescenta que:
A mãe dele já tinha sido feita no Nagô. Mesmo que tenha sido feita no
Nagô, o orixá aceitou receber obrigação no Xambá. Depois do
falecimento de Mãe Biu resolveram (ela e os filhos) sair do Xambá e
levaram seus assentamentos pra casa. Ele cultua como Xambá. Ele
pessoalmente pode ser considerado como uma continuação Xambá, pois
declarou que sempre realizou obrigações como Xambá, e Ivo é seu pai-de-
santo. No ano passado ele deu uma obrigação grande e Ivo e todo pessoal
do Xambá foi lá. Tudo foi feito como costumes e rituais do Xambá. Mas a
casa não é dele, é da mãe dele.
Vale ressaltar que embora esta nação possua apenas um terreiro, visto que os
casos de Dona Marinalva e Messias ainda não configuram novos terreiros em termos
absolutos, não significa que esteja em extinção. Sua dinâmica reside no fato de que ela é
composta por filhas e filhos-de-santo que em sua maioria possuem laços consanguíneos e
não sentem necessidade de abrir seus próprios terreiros, preferindo manter a característica
vínculo constante com o terreiro do Portão do Gelo. Mesmo que passem a realizar seus
próprios toques e iniciar novos filhos e filhas-de-santo, o que ainda não é o caso, o vínculo
será mantido, pois a hierarquia é mantida: Dona Marinalva pode ser mãe-de-santo, mas seu
pai-de-santo continuará sendo Ivo, sua mãe-de-santo Dona Lourdes, seu padrinho o Seu
98
Maurício, sua madrinha a Dona Nair e os rituais são realizados seguindo a orientação dessa
hierarquia.
Durante mais de quarenta anos Mãe Biu esteve à frente do terreiro e tornou-se
soteropolitano que teve em sua tradição grandes nomes de ialorixás, o pernambucano foi
Valéria Costa (2003)16 ressalta em seu artigo dois pontos importantes para a
postura de resistência cultural e religiosa adotada pela ialorixá diante dos demais terreiros
de xangô, mas sobretudo a tradição que esta filha de Iansã deixou para as gerações futuras.
Mãe Biu legou a seus descendentes uma afirmação de singularidade a ser seguida, uma
concepção de “tradição Xambá” única que não foi “traçada”, ou seja, que não se mesclou,
com as demais nações afro-brasileiras. Essa concepção tão complexa de “tradição pura
musicais, por exemplo, em seu culto. Mesmo que existam e que tais compartilhamentos
99
delineadoras na construção da identidade cultural, religiosa e musical desta nação afro-
brasileira.
Diário de Pernambuco (Cidade Alerta, sábado, 18 de outubro de 1956) que considera Mãe
Biu como uma das poucas que conseguiu manter a postura considerada tradicional na
manutenção do culto Xambá. É com orgulho que filhos e filhas-de-santo tomam esta
Afora terreiros famosos dos tempos passados que ainda hoje existem
como os de Manuel Mariano, em Beberibe, da Nação Nagô; de Severina,
em Beberibe, da Nação Xambá; de Mãe Lídia, em Regeneração, da
Nação Nagô; José Romão, na Estrada Velha da Nação Gegê-nagô; Pai
Apolinário em Casa Amarela da Nação Congo; Vicente Tavares na Linha
do Tiro da Nação Gegê-nagô e o terreiro de Das Dores na Linha do Tiro
da Nação Nagô. São os que ainda permanecem na antiga linha,
cultuando as mais puras tradições do culto negro. Os demais vêm
fazendo concessões, degenerando, descaracterizando-se e alguns já
passam do misticismo negro às mistificações mais tortas, constituindo-se
verdadeiros casos de polícia” (Grifo meu).
100
4.2.1. A localização atual do terreiro – construção cultural do espaço urbano
situado na localidade de Portão do Gelo, no bairro popular de São Benedito (Olinda –PE).
Desde sua fundação, o terreiro possuiu diversas sedes que sofreram repressão policial e
101
naqueles ocupados pela nossa população de nível econômico e social mais baixo”. A
enfatizada (Ribeiro 1970, 38): “Razões econômicas e o propósito de não atrair a atenção,
localização dos terreiros a conotação social, visto que a grande maioria serve como moradia
De um modo geral a mor parte dessas casas de culto são edifícios não
somente adaptados às exigências do culto afro-brasileiro, mas que ainda
servem de residência aos sacerdotes e suas famílias de recolhimento para
os fiéis submetidos aos rituais de iniciação, ou ocasionalmente de abrigo
aos membros do culto em dificuldades econômicas ou de outra ordem.
(Ribeiro 1970, 38).
fatores históricos e, portanto, não casuais. A maioria dos terreiros afro-brasileiros encontra-
se em regiões suburbanas não apenas por estas corresponderem a bairros populares onde os
negros residiam e ainda residem, mas devido à rigorosa repressão policial e do afastamento
dos subúrbios em relação ao centro. Continuando (1997, 45), assegura que os cultos afro-
brasileiros no Recife muitas vezes tinham como sede agremiações carnavalescas das quais
os fiéis eram integrantes, sendo esta, também uma das formas de manter o anonimato do
Gonçalves Fernandes (1937, 10) destacou que a pressão da polícia aos cultos
afro-brasileiros foi tão grande que os terreiros adotaram a estratégica “camuflagem” através
denunciada pelo autor foi o mecanismo mais eficaz encontrado como saída para a
102
Da pressão da polícia resultou camouflarem de sociedade carnavalesca e
centro espírita os terreiros afro-pernambucanos. Maracatú e Centro
Espírita aparecem de tal maneira que fez desconfiar.
Gonçalves Fernandes (1937, 18) também apresenta uma lista com a localização
de diversos terreiros do Recife. Dentre eles existem dois registros importantes para o
Xambá: os terreiros de Artur Rozendo, Seita Africana São João, localizado na Rua da
Regeneração 1045, Água Fria ver p.24 e o de Maria das Dores, Maria Oiá, na Rua da
Mangueira 137, Campo Grande, Recife. Sobre a questão da localização, o autor acrescenta
a seguinte observação:
Para Brandão (1997, 45) o “grande celeiro de concentração desses cultos ficava
concentração negra. Essa região parece ser a mais antiga que possui xangôs no Recife e
representa importante referência para a presente pesquisa pela grande proximidade que tem
com o lugar onde funciona atualmente o terreiro da nação Xambá, pois o bairro de São
103
Benedito – Olinda, PE é apenas separado do bairro de Beberibe pelo rio de mesmo nome e
sua história e as pessoas que a construíram com inúmeros obstáculos a superar. As questões
desde 1950, mas também da conotação social de seu funcionamento e de sua estrutura
interna e econômica. Mãe Biu foi uma figura de representatividade ímpar tendo sido até
104
líder da associação de moradores e organizadora do carnaval do bairro, extremamente
Mãe Biu além da atuação como Ialorixá, atuou também como uma
articuladora sócio-cultural, contribuindo para o desenvolvimento urbano
dos bairros populares, através do assentamento e construção da sede
própria de seu terreiro, em 1952 no Portão de Gelo – Beberibe. Desta
forma, após o assentamento da nova sede da Casa de Culto Xambá, a
Ialorixá passou a organizar a ocupação do espaço geográfico aos
arrebaldes de seu “xangô”, auxiliando seus filhos e filhas de santo na
construção de suas habitações. Tal atitude deu início ao processo de
urbanização do bairro, antes apenas um local baldio. (Costa 2003, 2).
Costa (2003, 1) destaca o fato de que diversos autores apontam para a relação
escolas de samba, no Rio de Janeiro, bem como, dos afoxés e blocos afros, na Bahia. Assim
perseguição policial e também se utilizou de uma manifestação musical profana para louvar
suas entidades e naturalmente ter uma forma de entretenimento com música e dança. No
Xambá, a mesma autora ressalta que esta relação era com o coco de roda, o “brinquedo”
escolhido por Mãe Biu para louvar os caboclos e demais entidades presentes no culto da
Jurema, tradição mantida pelos filhos e filhas-de-santo mesmo após seu falecimento, no dia
O terreiro xambá com Mãe Biu buscará como brinquedo uma outra
manifestação profana, o coco de roda. Segundo ela, era festa para
caboclos, estava ligada ao santo, não deixando passar um festejo junino
sem homenagear os “caboclos” e entidades da Jurema, sem reunir a
comunidade em volta dos tocadores de coco, estes iniciados no culto
xambá, para festejar São Pedro.
105
4.2.2. O terreiro Xambá – uma história de mulheres
contendo: um salão principal que comporta cerca de duzentas pessoas, um peji com as
moradas ou assentamentos dos orixás, um cômodo para jogo de búzios, um quarto para as
mulheres e outro para os homens que ali descansam ou trocam de roupa em dia de
Balé, onde são feitas as obrigações para Iansã de Balé. O acesso a este quarto é vetado às
inauguração do terreiro aberto por esta ialorixá (07/06/1930) e aos cinqüenta anos da
reabertura do terreiro por Mãe Biu (16/06/1950)19, representando iniciativa ímpar para a
106
ingomes utilizados nesta casa20, além de uma pequena mas promissora biblioteca que
possui títulos, em sua maioria, sobre a história das religiões afro-brasileiras para utilização
do povo-de-santo.
velhos e pretas-velhas, ciganos e ciganos, exus e pomba-giras. Esse culto ocorre à parte do
calendário religioso voltado aos orixás e em espaço físico distinto. Ao redor do terreiro se
de Mãe Biu e uma pequena horta onde são cultivadas as plantas sagradas. Do lado direito
do terreiro, ao lado do salão, está situada a casa onde residia Mãe Biu e hoje residem seus
dois filhos - no primeiro andar fica a casa do babalorixá Ivo e no térreo, a casa de seu irmão
Ailton Paraíso.
107
Planta do terreiro21
O terreiro Xambá carrega consigo uma história de mulheres, que veio desde a
sua abertura sempre com filhas de Iansã à frente – primeiro Maria Oiá, depois Mãe Biu e
suas irmãs, todas integrando a tradição deixada por Maria Oiá. Os próprios filhos e filhas-
de-santo afirmam que essas mulheres representaram o esteio de suas famílias. Por conta
dessa atuação feminina ocorreu uma maior abertura em relação à música. As mulheres
podem tocar nos tambores sagrados durante as obrigações, a própria Mãe Biu tocava. Essa
homens, visto que a participação feminina dentro do universo masculino é restrita. Não há o
incentivo para as meninas tocarem nos tambores como há para os meninos, logo, é uma
108
minoria de meninas que toca, número de certo modo irrelevante diante dos meninos que
tocam. Contudo, mesmo essa pequena representatividade deve ser destacada se comparada
ao universo da maioria dos demais terreiros de candomblé em que o acesso aos tambores é
valorizada e já compõe quatro gerações. Valéria Costa (2003, 3) sintetiza o terreiro Xambá
da seguinte forma:
Assim, o terreiro Santa Bárbara – Ilê Axé Oya Meguê, assentado por Mãe
Biu, ficou conhecido como a única casa, que possivelmente, preservou o
cultuar orixás dentro da tradição xambá. Tendo herdado de Maria Oyá tal
tradição, passou para seus familiares, de forma que ficou o “xangô do
xambá” referencial, em Recife, de divulgação da herança afro-brasileira,
que tem por base a oralidade e a propagação entre os familiares, sendo os
filhos/as sanguíneos os principais herdeiros do axé.
Mãe Lourdes é irmã de Mãe Biu, o padrinho da casa seu Maurício é filho de Mãe Lourdes e
a madrinha Dona Nair, cunhada de Mãe Biu. O cargo que na nação Ketu corresponderia a
iabá, ou seja, a pessoa responsável pela organização do terreiro, é exercido por Maria do
Carmo de Oliveira (Cacau), prima de Pai Ivo. Não há nesta nação o cargo de ekede. Na
realidade, todo filho ou filha do terreiro que não está “incorporado” cuida das entidades e
109
dos filhos e filhas-de-santo quando incorporados para que não se machuquem, tira as
“voltas”, ou seja, os colares com as cores dos orixás, os brincos e os sapatos dos filhos que
Neste caso, são substituídos por outros que não estiverem com o orixá. Nunca vi acontecer,
não é algo que ocorra com freqüência, mas durante a pesquisa várias pessoas mencionaram
a possibilidade.
orixá que rege o terreiro, é quem determina através dos búzios o que deve ou não ser feito.
Abaixo de Oiá fica o babalorixá. É ele quem joga os búzios e estabelece a comunicação
dirige as obrigações assim como os toques, “puxa” os cantos, “abre” e “fecha” os toques e
também conduz a cerimônia de iniciação religiosa. Para que a atuação do babalorixá seja
que integram o povo-de-santo desta nação. Ao lado do babalorixá está a ialorixá, Maria de
Lourdes da Silva, que participa de todas as cerimônias, exceto do Balé. É ela quem substitui
significado dos termos que, segundo Verger (1992, 96) vêm do iorubá e correspondem a
igual modo, filho ou filha-de-santo significa “pessoa de menor grau na coisa sagrada”
110
sacrifícios. Sendo também o ogã mais experiente pode substituir Pai Ivo, sobretudo em
situações em que Mãe Lourdes como mulher não o pode fazer. A madrinha, Dona Nair
Paraíso, é a responsável pela organização das obrigações e dos toques, pelo preparo dos
pratos sagrados, pela orientação aos mais jovens e pelos diversos serviços que por ventura
Segato (1992, 11) apontam uma mobilidade que em parte não se aplica ao Xambá: as regras
de descendência familiar não existem como elementos absolutos, assim como casamento,
divisões e papéis conforme o gênero. Certamente que “em termos absolutos” é perigoso
afirmar que não haja uma postura de vetar a quem possua parentesco consangüíneo, mas a
hierarquicamente.
dos casamentos formalizados pela igreja católica e civil. As crianças que ainda não tenham
sido batizadas na igreja católica não podem ser levadas ao salão principal do terreiro. Por
outro lado, há a aceitação também de outras formas de relacionamentos, pois não existe, a
discriminação com homossexuais do sexo masculino, por exemplo. Como Segato (1995,
certa “invisibilidade”. De qualquer forma, esses elementos são “invisíveis” para o olhar
que o xangô representa uma religião totalmente inclusivista (Carvalho 1992, 189).
111
4.2.4. Homens e mulheres - diferentes atuações
seja difícil generalizar essas hierarquizações numa realidade religiosa afro-brasileira que
engloba diversas outras questões como a própria hierarquia dentro da religião, é possível
terreiro na execução de diversas tarefas – desde limpar o chão a lavar os pratos ou cozinhar,
as tarefas domésticas realmente são exercidas pelas mulheres enquanto os homens realizam
o trabalho considerado mais pesado como carregar panelas enormes ou despachar o ebó, o
que sobrou das obrigações - comida sagrada, no rio Beberibe em dia de Obrigação. Ambas
as atividades são concebidas como importantes, embora realizar atividades domésticas não
de Mãe Biu, que também acompanhava esse momento. Contudo, na concepção do povo-de-
santo, essas diferenças são naturalizadas e não são questionadas, pois sempre foram feitas
deste modo.
matança, mais uma vez não há uma reciprocidade entre ambas as tarefas, na primeira, todos
podem executar, já na segunda, apenas os homens. As mulheres ensinam aos mais jovens,
geralmente também do sexo feminino, como os pratos das obrigações devem ser preparados
112
e como devem ser costuradas as roupas tradicionais do Xambá: os típicos casaquinhos
vai desde os preparativos das cerimônias até o preparo das comidas rituais. Cabe a elas o
cuidado em observar e vetar atitudes que vão de encontro com os preceitos da nação,
caracterizada pela rigidez de certas normas morais, desde a proibição da entrada no terreiro
regras das vestimentas22. Sardenberg (1994, 320) propõe a construção de uma “sócio-
menstruação e construção social do ser mulher” (idem, p. 321).é possível constatar que este
não consiste num fenômeno estritamente biológico, mas cultural, visto que implica às
mulheres menstruadas diversos poderes ou não poderes, conforme o contexto. São diversas
Estas concepções refletem a estrutura social e familiar de uma sociedade ou grupo cultural,
22 Além de não poderem entrar no salão menstruadas, as mulheres só podem transitar pelo mesmo
vestidas de saia e blusa, certamente que num ambiente religioso não deva ser permitido qualquer tipo de
roupa ou comportamento, assim se estende para os homens também, contudo, é importante analisar esse não
poder feminino a partir da menstruação não apenas no Xambá, como no contexto afro-brasileiro em geral, que
é constituído em sua maioria por mulheres, mas estas só podem exercer determinadas atividades quando
“tornam-se homens”, ou seja, não menstruam mais, entram na menopausa.
113
bem como refletem também as distintas atuações de homens e mulheres. A menstruação
“puxados” pelo solista, geralmente o babalorixá, ou seu irmão Ailton Paraíso ou ainda o
ogã e também parente Sandro Paraíso. É importante ressaltar que não existe um repertório
específico para homens e mulheres, a diferença consistiria nos momentos em que o mesmo
nítida, diante do fato de que o coro não considera que canta, mas que apenas ‘responde’,
reduzindo de certo modo, sua importância musical, visto que não há canto que seja
‘puxado’ que não exija uma ‘resposta’, e para dá-la é necessário conhecer o extenso
referente ao aprendizado dos toques, pois os tambores são considerados sagrados e restritos
aprendizagem. Nettl (1983, 189) afirma que a tradição oral atua restringindo, limitando,
dirigindo o que é criado até mais que a própria escrita. Envolve as limitações da memória,
114
que consiste em peças aceitas e aprendidas por membros da comunidade, contrastando com
a tradição escrita em que o músico compõe e pode executar sua música apenas uma vez.
Sobre transmissão, Nettl lança o conceito de “aural” ou seja, percepção global do indivíduo
segundo o autor, representa ponte entre processos do fazer musical dinâmico e mudanças e
repertório musical - no que se refere aos cantos dos orixás, assim como suas danças e
demais códigos e comportamentos da religião visto que sempre carregam seus filhos no
colo e geralmente estão junto dos mais novos. Quando pensamos no processo de
intimamente relacionados. De certo modo estes processos estão a cargo das mulheres, seja
por uma questão de tradição familiar – sempre ter havido mulheres na família que
participavam ativamente da religião, seja a partir da própria história, a casa adotou a divisão
seus próprios ideais e valores. Na Nação Xambá, de forma sistemática (período iniciático)
conhecimentos são transmitidos pelas mulheres no culto aos orixás e, pode-se dizer que,
Valores sobre esses papéis são construídos e reforçados. Considerar a música neste
115
nos cantos, as mulheres atuam não apenas no contexto da transmissão musical como
também para o processo da performance em si, no qual sua resposta é imprescindível. Silva
masculino dos ogãs nas obrigações fechadas ao público. Esta abertura também pode ser
(1964, 145), o som musical mantém-se através dos conceitos sobre música que alteram ou
Xambá, a prática musical representa uma tônica, partindo da formação vocal dada pelas
abandonado o valor cultural e religioso. Seguindo (1983, 47), afirma que a performance
musical atua como um fator central que justifica a continuidade da existência do grupo
social, dessa forma, se a música não estiver presente, muitos rituais são afetados ou mesmo
116
extintos. A respeito do comportamento social do músico na sociedade, Merriam (1964,
123) pondera que ele possui papel e status específicos dentro da sociedade ou grupo social
apontado pelo autor de extrema relevância à nossa discussão é que também existem
Quem o músico é, como ele pensa, o que a sociedade pensa dele, e por
que tais padrões emergem são questões de importância vital para o
entendimento da música como comportamento humano23.
relação aos demais, para as mulheres que normalmente, como já mencionamos, são
não poder) do universo masculino e feminino, respectivamente. Atualmente pai Ivo afirma
que o fato de não ser tão comum mulheres tocando representa mais uma tradição adotada
do que uma restrição de gênero, o que na realidade, não deve ser pensado de forma tão
23 “Who the musician is, how he behaves, what society thinks of him, and why these patterns
emerge are questions of vital importance to a through understanding of music as human behavior.”
117
O universo musical das mulheres é sem dúvida o vocal, acontecendo também
uma inibição dos homens em relação ao canto. Tais posturas não representam regras,
existindo tanto homens que cantam quanto as mulheres que tocam (embora seja uma
diferentes papéis são executados no terreiro conforme o sexo, tanto musicalmente quanto
associa a processos rituais cercados de códigos que representam toda uma gama de riqueza
cultural, religiosa e musical que é transmitida pelas (os) mais experientes e apreendida aos
transmissão e aprendizagem ocorrem durante toda a vida religiosa da (o) filha (o)-de-santo
mais experientes – iniciadas (os) há mais tempo na religião -, às (os) aspirantes à feitura de
santo e, segundo Béhague (1984, 227) é, sob ponto de vista religioso e musical, de grande
questão, em grande parte por mulheres, por outro lado, não corresponde à via de mão única,
118
representando uma interação de valorização recíproca entre mestre e aprendiz, que pode ser
exercida por ambos os sexos. Estudar o processo de transmissão não se limita aquele que
ocorre no período iniciático, pois no caso do terreiro Xambá, nunca aconteceu de se iniciar
alguém que já não freqüente a casa por muito tempo e, decorrente desse fato, já conhece
iniciático é de suma relevância para se compreender o contexto da Nação Xambá, pois nele
estão contidas não apenas as questões da tradição religiosa – na construção do servir aos
orixás-, mas também a questão da identidade, representada por um ritual fechado sendo o
que acontece em longo prazo. Todas (os) que “fazem iaô”, nesta nação, ou seja, que são
teoricamente iniciadas (os), na realidade não é ali que se “iniciam” na religião. As (os) iaôs
são em sua maioria, pessoas que já fazem parte do terreiro há anos, conhecem o repertório
musical, dão “obrigações” para seu orixá e inclusive já o “incorporavam” enfim, na prática
momento os laços com o orixá, o dono de seu “ori” - de sua cabeça, que é considerada o
templo sagrado que recebe o orixá -, são estreitados. Muitas vezes a pessoa passa por
momentos de dificuldade, doença, e através dos búzios o orixá revela a necessidade de sua
“feitura”. A iniciação ocorre no período de um mês, ficando a (o) “iaô” recolhida (o) no
119
específicos, dormindo no chão. Durante esta semana a (o) iaô só se comunica, o
dia é realizado o “obori” - ritual de feitura da cabeça, ou seja, ritual em que o “ori” da (o)
“iaô” é “batizada (o)” com o sangue de animais sacrificados24. Esta cerimônia simboliza o
(o) inicianda (o) após esse período de reclusão. É um momento inesquecível para esta (e)
que usa roupas especialmente confeccionadas para esse dia, com todos os adereços
correspondentes ao seu orixá e escuta a sua cantiga de “saída de iaô” que em nenhum outro
24 “Ori” é o guardião da “cabeça”, mas também é concebido como a própria cabeça, a “força
vital”, ou seja, simboliza um indicador do estado geral de vitalidade ou vulnerabilidade da pessoa e,
“fortalecer o ori” é o mesmo que fortalecer a vitalidade de uma pessoa (Carvalho e Segato 1992, 21).
120
Alá de iaô de Orixalá (Leila).
Quando o babalorixá canta o repertório do orixá dessa (e) “iaô” que está sendo
iniciada (o), esta (e) é retirada (o) do peji sob o “alá” – manto sagrado -, por um orixá
respectivas roupas de “iaô”. Esse momento simboliza uma relação de respeito que o filho
ou filha que está sendo feita (o) deve ter com quem já é feito, assim como com o orixá
daquela pessoa. Após circular pelo salão e dançar (“incorporada (o)” ou não), a (o) “iaô”
no terreiro até a quarta-feira seguinte. Mesmo após sua saída do terreiro o iaô deverá
manter uma postura de reclusão por um mês. Não poderá ingerir bebidas alcóolicas, fumar
ou ter relações sexuais, nem se alimentar ou beber água que não sejam devidamente
preparados no terreiro. Ao término desse período de trinta dias, o “iaô” deverá assistir a
121
Gerlane e Leila, iaôs de Nanã e Orixalá respectivamente (de Nanã à esquerda de pé,
com roupa lilás e de Orixalá à direita de pé com roupa branca e a bengala, símbolo
deste orixá). Estas estão acompanhadas pelas filhas de Xangô (com capa vermelha e
coroa) e Iansã (capa rosa e coroa) que as tiraram do peji e também de pessoas
queridas Lola, Hildo e Gogó (da esquerda pra direita), esta última a mãe de Leila.
assume um compromisso religioso que afetará toda a sua vida são diversas:
No Xambá várias dessas restrições são particulares à sua tradição e não são
permanece como iaô por sete anos, depois se torna um filho ou filha-de-santo como os
demais de seu mesmo tempo de feitura. Não há um termo que designe essa etapa, assim
122
4.2.6. Os freqüentadores do Xambá – o olhar externo do fascínio
número de mais de trezentas pessoas num dia de toque, o que é muito para o seu espaço
Xambá abre suas portas ao público externo e com orgulho permite que as festas públicas
situado no bairro de Água Fria, muitos filhos e filhas-de-santo deste terreiro passaram a
freqüentar os toques públicos do Xambá, assim como também pessoas oriundas de outros
recebam pessoas de outros terreiros, assim como as (os) próprias (os) xambanianas (os)
assistem a toques em outros terreiros. Cresce também o número de pessoas que não são do
fascínio por esse universo religioso e por esta nação que se declara a única do Brasil.
123
4.2.7. Batuque e louvação26 – o encontro com os orixás
No Xambá são cultuados catorze orixás ao todo. Estes orixás são “assentados”
no peji, ou seja, são estabelecidas as suas moradas, em diversas pedras chamadas otás
assentamento estão os adereços de cada orixá e uma quartinha, abastecida com água, que
será ingerida após a “incorporação” do filho ou filha-de-santo pelo orixá. Embora dividam
um mesmo espaço físico, os assentamentos são separados entre si. Abaixo segue a ordem
dos assentamentos, acrescida dos nomes dos respectivos santos católicos correspondentes
124
O toque sempre acontece aos domingos e tem a duração de cerca de quatro
horas. Começa impreterivelmente às 16:00 h e termina por volta das 20:00h. A estrutura do
toque acontece conforme a hierarquia dos orixás e dos momentos que caracterizam a
tradição do Xambá: 1. canta-se para Exu; 2. canta-se para os demais orixás; 3. é realizada a
“volta dos tambores”; 4. Os tambores tocam os onikás dos principais orixás que possuem
filhos (as) no terreiro. Ao terminar de cantar pra Exu, canta-se para Ogum, momento em
que o“ xuxu”, cumprimento aos tambores e aos filhos com o mesmo tempo de iniciação é
realizado. Abaixo segue resumidamente a estrutura ritual, dividida nos quatro momentos
distintos já mencionados acima, do toque público dedicado aos orixás na nação Xambá:
1. O canto para Exu - nesse momento não se dança, apenas se louva Exu
para que como mensageiro, “abra os caminhos” e faça com que tudo corra bem no toque.
125
3. O canto para todos os orixás – Começa com Ogum, e é neste momento que todos os
santo, padrinho e madrinha. O xuxu é realizado também entre as pessoas que possuem o
mesmo tempo de feitura e pode ser concebido como um sinal de respeito, tanto em
relação aos tambores que “trazem os orixás à terra”, quanto à hierarquia do terreiro e ao
Acima Dona
Lourdes, mãe-de-
santo, ao lado Dona
Nair, a madrinha do
terreiro, fazendo o
xuxu.
126
Dona Nair e Pai Ivo fazem o xuxu. Todos os filhos e filhas se cumprimentam no início
do toque, é um momento de comunhão e respeito não só aos orixás, mas também entre o
povo-de-santo.
número específico de cantigas entoadas para cada orixá, pode variar entre três a dez
cantigas, a depender das divindades que estejam “em terra”. O maior tempo é dedicado ao
orixá do dia, mas isso não impede que os demais, no momento em que é entoado o seu
3. A ‘volta dos tambores’ – após se cantar para Iemanjá e Orixalá (os últimos
tocando-os a fim de dar, literalmente, três voltas no salão. Após as três voltas retornam aos
seus lugares de origem. Há uma cantiga específica para esse momento onde todos os orixás
são citados. Segundo Sandro Paraíso esta volta é realizada com o objetivo de pedir a benção
127
para os tambores e para os ogãs: “é como se fosse uma limpeza, pois todo mundo chega e
abraça o orixá, nem todo orixá abraça os ogãs, pois são os tambores que trazem o orixá a
texto e toque, mas nesse momento só o toque é executado, o oniká na íntegra é executado
27 Sobre o fato de serem dadas três voltas, o filho-de-santo Raulino Sales declarou que “tudo para
orixá é ímpar, geralmente três ou sete.”
128
A volta dos tambores. Na página anterior Seu Maurício tocando
o inhã e acima Sandro toca o mele ancó.
4. Os onikás - após retornarem aos seus lugares os ogãs tocam os onikás dos
principais orixás, ou seja, aquele toque que o caracteriza. Nesse momento não se canta
apenas a salva do orixá homenageado com a sua saudação específica. São salvos todos os
orixás, começando por Ogum e terminando com Orixalá. No momento em que se entoa o
oniká do orixá homenageado, toca-se mais tempo para ele, as (os) filhas (os)-de-santo
incorporados com esse orixá podem retornar “à terra” para se despedirem. Ao final todos
A ordem em que se canta para os orixás é a seguinte: Exu, Ogum, Ode, Nanã,
Bêji, Obaluaiê, Euá, Obá, Xangô, Oiá, Afrequête, Oxum, Iemanjá e Orixalá. Há uma
pequena mudança entre a ordem dos assentamentos dos orixás no peji e a seqüência das
toadas que são cantadas: nos assentamentos os Bêji vêm antes de Nanã e Obá vem depois
129
de Xangô e Iansã, conseqüentemente, na ordem em que são cantadas as toadas, Nanã é
saudada antes dos Bêji e Obá antes de Xangô e Iansã. Não obtive a resposta do por quê
dessa ocorrência, muitas vezes as filhas (os) alegaram que a geração anterior (de Mãe Biu)
era “muito fechada para explicar o por quê” das condutas e procedimentos religiosos e foi
talvez o principal seja a hierarquia. Deve-se começar por Exu, por ser ele quem “abre os
caminhos” e terminar com Orixalá, pai dos orixás, que fecha a casa. Carvalho e Segato
(1992, 13) destacam que a relação de parentesco entre os orixás representa elemento de
grande relevância para compreender a ordem com que se canta os diferentes repertórios
musicais. De um lado estaria o status do orixá e sua idade cronológica: a avó Nanã, a mais
velha, Obaluaiê, das doenças, já um senhor, Iemanjá, a mãe e a rainha ou mesmo Orixalá, o
exercer influência sobre os demais se é rei como Xangô, um guerreiro como Ogum, uma
rainha dos eguns como Iansã, ou a deusa da beleza e da riqueza como Oxum.
Há uma relação mítica entre os orixás onde Ogum e Odé são divindades
ambos solitários. Nanã e Obaluaiê são os mais velhos, a primeira é a deusa do barro, da
respeitados. A presença de Nanã, no entanto, é também apontada por Ferreti (1996, 120) na
Casa das Minas do Maranhão como vodun da linha28 Davice29 que auxilia a linha
28 Cada vodun pertence a uma linha que está relacionada a forças da natureza.
29 Família real, constituída de voduns que são nobres, reis ou príncipes. A Casa das Minas tem o
nome jeje de Querebentã. Segundo Dona Deni, Querebentã é o nome do palácio do povo de Davice (idem,
100).
130
Quevioçô, a mesma linha de Averequete. O autor (idem) afirma ainda que Nanã é de
Obá é uma das esposas de Xangô, vem logo antes dele. Xangô, rei dos orixás, é
relacionado à justiça e ao trovão, é também marido de Iansã, logo são reverenciados juntos
(em seqüência). Iansã, por sua vez, é a rainha dos ventos e das tempestades, orixá guerreiro
que acompanhou Xangô, seu marido, à guerra, portanto é cultuada ao seu lado. Oxum é a
deusa da beleza, da riqueza, das águas doces, também esposa de Xangô e ao mesmo tempo
Iemanjá e Orixalá são os pais de quase todos os orixás. Ela é a rainha do mar, a
dona do “ori” de todos os filhos e filhas-de-santo, a mãe legítima. Ele é o velho, o orixá da
que, no Xambá alguns apontam como vodun outros simplesmente afirmam que é um orixá
desconhecido, ficam mais ou menos entre os demais. Os Bêji, Obá, Euá e Afrequête não
por que são crianças e os demais por que nunca aconteceu, mas não deixam de ser
30 No Xambá este orixá tem a particularidade de ser saudado como orixá feminino. O “otobalé”,
cumprimento que se faz aos orixás, é diferenciado por sexo, se o orixá foi masculino, a pessoa deve deitar de
bruços no chão aos seus pés, se for feminino, deve deitar primeiro de um lado, depois de outro. O otobalé para
Orixalá é feito como se ele fosse um orixá feminino. Há quem afirme entre o povo-de-santo que, no Xambá,
Orixalá é mulher, mas Pai Ivo afirma que não, Orixalá é mesmo o pai dos orixás, do sexo masculino, e que
seu otobalé faz parte da tradição Xambá.
131
reverenciados e possuem repertório reduzido comparado aos demais. Segundo Hildo Leal
depoimento deste babalorixá ele diz que “Anifraquete” não possui toque especial. E mesmo
possuindo uma única toada era obrigatório cantar para ela. Embora Alvarenga não tenha
também revelou que este orixá “não descia”, ou seja, não possuía filhos e, portanto, não
havia a “incorporação”, concebida como sua presença na terra. A autora cita ainda a
“terreiro da Guida” - Idida Ferreira Mulatinho. O nome Afrequête é apontado por Verger
(1999, 426) como possível corruptela de “Avlekete” - vodun feminino do trovão (entidade
da nação Jeje) ou “Avrèkété” - vodun feminino da água. Num artigo sobre Pai Rozendo,
Ribeiro e Verger (1949, 28) chamam a atenção para a “criatividade” deste babalorixá e
31 Até 2000 estes orixás femininos não possuíam assentamento no peji nem recebiam obrigações.
Neste ano o Xambá ofereceu uma grande obrigação no terreiro, o boi para o Xangô mais antigo cultuado no
terreiro, Aguângua Baraim. O assentamento de Euá fica junto com o de Nanã e Obaluaiê enquanto o de Obá
fica num canto, junto ao assentamento de Xangô (entrevista realizada em 23/07/04).
132
Pereira (1979, 34) cita a presença do vodun masculino Avérêquête na
tradicional Casa das Minas, de origem jeje, no Maranhão. Segundo o autor, este vodun, da
linha Quéviôçô, seria um dos poucos que quando ‘baixam’ nas vodunsi ou filhas-de-santo,
fuma e fala. É chamado também de Toi Avérêquête, ou seja, o pai, o “dono do céu” (idem,
32). Ferreti (1996, 120) afirma que: “Na Casa das Minas a família de Quevioçô é nagô e é
constituída pelos voduns dos astros, do céu e das águas, que controlam as chuvas, os raios,
Averequete, juntamente com Abe (vodun feminino) são os mais novos que representam os
mais velhos, sendo também os únicos que falam, pois os demais se comunicam através de
sinais, quando ‘incorporam’ os corpos de suas filhas32. Ferreti (1996, 125) destaca que
Averequete possui o nome privado de Adunoble e é considerado “uma estrela caída nas
Afrequête no Xambá, percebe-se a semelhança com Iansã, que também é rainha dos ventos
e das tempestades. Na casa Xambá ambos os orixás são femininos e vestem a mesma cor:
O Xambá só realiza toque para os orixás que possuem filhas (os) feitas (os) na
casa, ou seja, para aqueles que “descem”33. O calendário religioso é distribuído da seguinte
forma:
32 Na Casa das Minas só as mulheres recebem os voduns, os homens tocam os tambores, podendo
ser substituídos por mulheres que tocam. Segundo o autor este representa um “grupo de culto
eminentemente feminino” (Ferreti, 1996, 84).
33 Na tabela que segue está o calendário religioso, onde se constata que não se toca para Ode
(possui apenas um filho iniciado), não se toca para Exu (embora o mês de agosto seja dedicado a ele, mas
em cerimônias fechadas), Nanã (só possui uma filha ‘feita’), Eua, Obá e Afrequete (que não possuem filhas
(os).
133
CALENDÁRIO RELIGIOSO
Toque de Obaluaiê
Janeiro
27/01 - Toque de Balé (não é público)
Fevereiro Toque de Oxum
34 Nesse mês não se toca para nenhum orixá específico, o Toque do Inhame é dedicado a todos os
orixás. Leal (2000, 37) destaca que “No mês de outubro não há sacrifícios de animais. Todos os orixás
recebem obrigações secas com inhame. É considerada a quaresma dos orixás. A grande Obrigação do Inhame
ocorre em uma quinta-feira e no sábado seguinte todos os orixás recebem obrigação de arroz com camarão,
além da garapa com inhame, oferecida a Orixalá, finalizando com o toque do inhame no domingo.” Sobre o
Toque do Inhame, ver Bastide (1945) e Silva (1989).
134
De acordo com Prandi (2001, 20) para os iorubás tradicionais e para os
seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare
O culto aos Orisa dirige-se, portanto, a dois elos que se juntam – parte
fixada da força da natureza e ancestral divinizado – e que servem de
intermediário entre o homem e o incognoscível.
Fonseca Júnior (1999, 65), por sua vez, aponta o xangô do Recife como uma
à sociedade:
135
obrigações), além da expectativa da presença do orixá. Esse momento é de total comunhão
exige uma cerimônia que o anteceda chamada “Obrigação”, que sempre acontece no sábado
Estas cerimônias são similares aos toques públicos, onde se toca e canta para os
“matança” dos animais. Contudo, na Obrigação não são todos que vão ser homenageados,
agogô, simbolizando a prioridade que se confere aos tambores nesta nação. São eles que
“puxam” os toques, diferentemente do candomblé Ketu, onde é o agogô que fornece a linha
guia para os atabaques. Para Sandro Paraíso “é o canto do coro que exerce a função
reguladora do andamento”.
35 Como os Bêji não possuem filhas e filhos, também não recebem sacrifícios. Contudo, no toque
dedicado para esses orixás, as filhas e filhos os ‘incorporam’,voltando a ser crianças mas só nesse dia.
Embora sejam semelhantes aos caboclos recebidos na Jurema, guardam uma diferenciação ressaltada pelo
povo-de-santo que configura justamente a diferenciação do universo de orixás e caboclos. O Toque do
Inhame, como já exposto, representa a “quaresma dos orixás” em que todos recebem “obrigações secas”, ou
seja, não há a matança. (Leal 2000, 37).
136
O trio de “ingomes” nessas cerimônias é acompanhado pelo abê ou xequerê e
exerce um papel importante: enriquece o timbre da orquestra rítmica e está sempre presente
pena” em todas as pessoas presentes para mandar embora todas as possíveis energias
hierarquia religiosa é absolutamente respeitada: primeiro “são limpas (os)” as (os) que têm
mais tempo de iniciação, depois os mais jovens e por último as crianças e quem não é
36 No candomblé de Salvador sua presença não é regra, a esse respeito Lühning (1990a, 37)
considera a possibilidade de ter tido maior freqüência no passado: “em Recife é utilizado no xangô sendo
chamado de agbé (em iorubá significa cabaça), o chefe do grupo de tocadores de agbé chama-se alagbé
(literalmente tocadores de cabaça). Isto significa que a denominação dada ao chefe dos percussionistas no
candomblé – alabê – derivou, provavelmente, daquela atribuída ao chefe dos tocadores de cabaça, sendo
transferida para o chefe dos tocadores de atabaques”.
37 Exceto Exu para o qual obrigatoriamente se canta, independente do orixá homenageado.
38 As filhas e filhos que não participam dessa cerimônia permanecem no salão, ajoelhados em sinal
de respeito.
137
Os processos de transmissão e tradição presentes tanto nos momentos privados
quanto nos públicos são considerados como performances distintas. A privada corresponde
às obrigações realizadas pelas (os) filhas (os)-de-santo para os orixás que são cultuados em
138
5. Epahei Iansã! – a deusa dos ventos e das tempestades. . .
simbolizada pelo conjunto das diversas atitudes e relações míticas presentes neste orixá,
marcadas pela coragem, independência, agilidade e sensualidade, que são tanto narradas
pelas filhas e filhos-de-santo do Xambá, quanto relatadas nas obras dos pesquisadores das
religiões afro-brasileiras. Segundo Prandi (2001, 26) os valores e ritos das religiões afro-
brasileiras se baseiam num conhecimento mítico que na ausência dos dados históricos,
passou a desempenhar esse papel preenchendo as lacunas históricas em solo brasileiro, não
Para Jung (1977, 93): “o papel dos símbolos religiosos é dar significação à vida
brasileira é possível encontrar várias narrativas mitológicas relacionadas a este orixá, que
explicam a sua relação com os diversos elementos presentes nesta religião e em suas
das expectativas e atribuições à ele conferidos considero algumas narrativas coletadas por
Verger (1999) e recentemente por Prandi (2001, 294-311). Sobre Oiá Prandi revela:
nem sempre podem ser explicadas através da mitologia e sim da tradição na sua totalidade.
O povo-de-santo, algumas vezes, afirma seguir a tradição embora não consiga explicar a
outras vezes, certas informações são restritas às pessoas do terreiro. Abaixo enumero
140
trechos das narrativas sobre Iansã presentes no Xambá e que contribuem para a construção
de sua identidade:
utilizar a espada que ganhou de Ogum, pai de seus nove filhos, para se defender e defender
apontada como uma ferramenta que “corta o mal”. Sobre a relação entre Oiá, Ogum e
Xangô, Verger (1999, 388) relata que: “Oya era mulher de Sango (. . .) foi casada antes
com Ogum, mas este era tão malvado que ela fugiu pra junto de Sango, desposou-o e ficou
com ele”.
141
2. A partir do momento que Oiá soprou o fogo da forja de Ogum para
ajudá-lo, pois este precisava fabricar mais armas para a guerra em que Oxaguiã lutava, Oiá
142
3. Oiá foi dividida em nove partes (“Iyámesan” - a mãe transformou-se
em nove) pela varinha mágica de Ogum e este, que antes havia compartilhado os segredos
4. Oiá, deusa dos raios e dos ventos, utilizou seus poderes para libertar
Rainha Oiá Igbalé, a condutora dos espíritos. No Xambá como nos xangôs em geral Oiá
Igbalé é chamada de Iansã de Balé. A palavra “Balé” viria do iorubá “Igbalé – quarto
cada família, o ancestral que fundou cada cidade”. Egungum só se curva diante de Oiá, em
sinal de respeito.
homenagem ao seu pai adotivo que havia falecido e “Olorum, que tudo via, emocionou-se
com o gesto de Oiá e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orun”1.
búfalo. Nos depoimentos das filhas e filho de Oiá do Xambá esta narrativa é destacada
1
O “axexê” consiste num ritual funerário que também está presente no Xambá.
143
9. Oiá não “come” carne de carneiro por ter sacrificado este animal
para conseguir ter filhos. Por ter gerado nove filhos passou a ser chamada de Iansã, a mãe
de nove filhos2.
ótica de quem não as concebe como mitologia, mas como parte de sua história. Pai Ivo3
refuta a idéia de que os orixás sejam mitos e afirma que este tipo de tratamento só se deu
das mesmas:
Eu não digo nem mitologia, por que mitologia é mito. Digo que é
história, que pode ser uma história real. Quando se conta que Noé pegou
todos os animais e botou dentro de uma barca, não dizem que é mitologia
da religião, dizem que é a história (. . .) A civilização européia foi mais
moderna, então eles começaram a registrar mais a história do que a nossa,
então a nossa história eu conto como história.
Iansã ou Oiá é uma divindade especial para a nação Xambá. Orixá da falecida
Mãe Biu e guardião do terreiro, todas as decisões são tomadas a partir de sua consulta
2
Iansã no Xambá “come” cabra vermelha, galinha vermelha, perua, acarajé, inhame e bagre, no mês
de outubro (Leal 2000, 26).
3
Entrevista realizada em 16/06/2004.
144
através do jogo de búzios. Mãe Biu tinha, na realidade, Ogum Cecê, deus do ferro e da
guerra como orixá “de cabeça” sendo iniciada como filha deste orixá e, Oiá Meguê como
“ajuntó”. Oiá Meguê seu segundo orixá ou “ajuntó” tomou o lugar de Ogum na fundação e
identificadas pelo nome particular de cada orixá dentro de sua própria categoria. Iansã ou
Oiá, por exemplo, representa uma categoria que engloba diversas Iansãs ou Oiás que são
particulares. Duas pessoas não possuem a mesma Oiá o que torna o universo religioso
aspecto importante em relação aos nomes, que configura também a identidade particular de
cada filha ou filho, é que este não representa um fato público, pelo contrário, as filhas e
filhos-de-santo não revelam a qualidade do seu orixá. Os nomes são conhecidos apenas
pelas pessoas do terreiro ou por pessoas mais íntimas. É algo que absolutamente não se
deve perguntar pois é muito particular. No Xambá o “orixá em terra” não revela seu nome
o terreiro sendo regida por seu orixá “ajuntó”- Oiá Meguê, são questões complexas. A
partir deste contexto pode-se afirmar que apesar dela não ter Iansã como “orixá de cabeça”,
esta exercia um papel muito forte na vida da ialorixá e nas questões do terreiro, sendo, por
isso, considerada como filha de Iansã. Sobre as negociações religiosas deste âmbito
presentes no xangô do Recife, Segato (1995, 233) afirma que os diferentes traços da
4
Uma mesma pessoa pode ser filha de um ou mais orixás, até mesmo três ou quatro. O comum é
que um filho-de-santo tenha dois: o “orixá de cabeça” - aquele que rege a vida da pessoa com maior ênfase -,
e o “ajuntó”- adjunto ao principal.
5
Outra designação para os orixás utilizada pelo povo-de-santo do Xambá.
145
personalidade do indivíduo são equilibrados entre seu orixá “de cabeça” e o “ajuntó” tendo
às vezes até a atuação de um terceiro ou quarto orixá que complementa a atuação dos dois
primeiros. Nesta perspectiva, o ori ou a cabeça representa um templo sagrado que a autora
(1995) define como a arena onde são reproduzidos os confrontos e alianças entre as
cada pessoa. A assimilação da personalidade do orixá pelo indivíduo pode ser concebida
relação às suas filhas como mulheres de personalidade forte que marcam a história do
terreiro, a começar pelas falecidas ialorixás Maria Oiá e Mãe Biu. Pensar neste orixá
como nas significações musicais, visto que o filho se identifica com o repertório de seu
orixá:
146
A construção da personalidade da filha ou filho, bem como a elevação de sua
guerreira, corajosa, sensual e bonita, traços que também são atribuídos às suas filhas e
filhos. Este orixá carrega consigo um forte senso de justiça além de uma relação com a
morte (o universo dos eguns). Na ótica de seus filhos e filhas é muito respeitada por
são ressaltadas, seus “defeitos” também são reconhecidos como particulares, como o de ser
intempestiva. Como conseqüência, suas filhas (os) também possuem esta característica.
Todavia, toda concepção generalizante é limitada e isso também dever ser destacado, logo,
ninguém é igual, assim como também não existe uma Iansã igual.
Esta divindade, por reger o terreiro, atua também como mãe e protetora. Seu
Maurício César da Silva (padrinho e ogã do Xambá)6 expõe uma concepção muito presente
6
Entrevista realizada em 15/06/2004.
147
Em relação às crianças, esta nação possui a particularidade da predominância
feminina de filhas de Iansã. Até ser realizado o jogo de búzios para saber qual o orixá da
criança, independente do sexo, é comum vesti-las de cor de rosa, a cor de Oiá. Todas essas
questões são importantes para reforçar a importância desta divindade para o Xambá e
conseqüentemente de Mãe Biu que, como líder religiosa, construiu uma imagem de
tradição e gênero presentes nesta casa são guiadas por uma linhagem de guerreiras: Iansã,
Maria Oiá e Mãe Biu, sendo a última a maior referência. Para o ogã Cleyton José da Silva
(Guitinho), o sonho de toda menina do Xambá é ser filha de Iansã. A citação ilustra bem o
significado do orixá e de sua filha mais representativa para a dinâmica do terreiro e sua
identidade.
uma bela narrativa sobre as outras lideranças femininas que trabalharam arduamente ao
Tia Tila, dedicou toda sua vida aos orixás e sucedeu a sua irmã Mãe Biu como ialorixá;
Maria Luíza de Oliveira, Tia Luíza, liderança política do bairro, manteve em sua própria
casa a sede da Associação dos moradores e, junto com sua irmã, Mãe Biu, organizou o
carnaval do bairro e outras festividades e, Laura Eunice Batista, Tia Laura, filha-de-santo
que morava no terreiro e era responsável pelas questões internas, da decoração ao preparo
das comidas sagradas. Continuando, Costa (2004b, 1) sintetiza a importância das famílias
da atuação destas:
148
políticas e culturais na localidade. Através de uma fundação de
associação de moradores, organização das folias de momo, captação de
recursos e/ou incentivando seja através de uma palavra de orientação ou
fazendo valer sua força espiritual, pedindo aos orixás proteção e ajuda
para seus/as filhos/as-de-santo, parentes e amigos/as para obterem casa
própria, levando a alegria ao promoverem festas do dia das crianças, das
mães, de carnaval, bingos, além das animações com os preparativos em
dias de toques nas festas dos orixás.
atuação da líder religiosa Mãe Biu, que confundida com seu orixá Iansã era considerada
pessoa de iniciativa e coragem, além de ser leal às filhas e filhos que a tinham como
referência para todas as questões da vida, do religioso ao cotidiano. Hoje, pensar em Oiá
Meguê significa pensar em Mãe Biu. As duas figuras se confundem representando uma
mesma referência. Ao se cantar as toadas deste orixá é o mesmo que homenagear a falecida
ialorixá, e, a cada ano são confeccionadas camisas com sua foto e frases de homenagem e
saudade. Muito embora Pai Ivo seja respeitado como babalorixá, a referência religiosa e
representatividade mesmo após sua morte, o que é facilmente compreensível, visto que
149
5.2. Oiá – suas cerimônias
Cada orixá possui um repertório musical específico. Assim como a música das
demais divindades, a executada para Oiá é singular e reconhecida pelas (os) filhas (os)-de-
santo por diversos elementos como o texto, a melodia, o ritmo, além de características
7
Verger (1999, 405) – “orikis de Oyá – forma de saudação – louvação aos Orisa – exaltação do
poder, fatos, proezas do ancestral divinizado”.
8
Entrevista realizada em 16/06/2004.
150
5.2.1 Louvação à Oiá
coroação realizada por Pai Rozendo, em 1927, como ritual conclusivo da iniciação
9
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
151
religiosa da primeira ialorixá da nação Xambá – Maria Oiá. Consistia na coroação da
10
Este é um dos termos utilizados pelos filhos-de-santo para designar o estado de transe, assim
como “rodar com o santo”.
152
Mãe Biu incorporada com Iansã, carregando sua espada.
Foto do acervo do Xambá
Com a espada Iansã, na dança, realiza gestos com as mãos que indicam “cortar
o mal”. A coroa e o trono simbolizam a consolidação deste orixá feminino como rainha dos
orixás prestavam à Mãe Biu, “com Iansã”, em seu trono de rainha. Esta cerimônia tem a
duração de apenas uma hora, no entanto, é representativa pois, não se realiza nenhuma
outra cerimônia similar para nenhum outro orixá. Só Iansã recebe essa homenagem no
tradição, na mesma data, até o seu falecimento. Todas as indumentárias deste orixá só
153
foram utilizadas por mulheres – Maria Oiá e Mãe Biu, fato destacado pelo povo-de-santo
que afirma que só uma filha de Iansã poderá sentar novamente no trono. É importante
ressaltar que foi Maria Oiá quem iniciou, em 1932, Mãe Biu e que a decisão da última em
continuar a louvação se deu a partir do jogo de búzios onde Iansã expressou tal desejo.
154
A cerimônia que acontece por volta do meio-dia caracteriza a tradição da nação
cantos e toques para Iansã. O repertório musical é praticamente o mesmo cantado nas
prosseguimento à tradição do terreiro retomada por Mãe Biu. Contudo, devido ao fato do
atual dirigente, Pai Ivo, ser do sexo masculino não há a coroação, mas isso não impede que
esta se transforme num momento solene em que todos querem prestar homenagem à Iansã,
155
Durante o tempo em que realizei essa pesquisa assisti a duas cerimônias de Louvação à
Oiá. A primeira em 2003, única cerimônia realizada nesse ano, devido o falecimento de
Mãe Tila, consistiu na entoação dos cantos e toques para Iansã, após a execução de seu
Paraíso este toque representa o “símbolo musical” de Iansã pois acompanha o oniká deste
orixá. É realizado sobre um padrão de 12 pulsos que está transcrito juntamente com o
A transcrição do Melê, último do trio dos tambores (do grave ao agudo), é reduzida
apenas à execução das mãos direita (haste para cima) e esquerda (haste para baixo),
diferenciadas apenas pelos acentos que são empregados. A escolha para a
transcrição é tomada como uma simplificação dos padrões executados pelos outros
dois tambores. É importante observar a relação que o Melê mantém com o agogô e
com as palmas executadas pelo coro e vice-versa, assim como também se observa
em relação ao canto e aos padrões realizados por estes.
não usaram suas roupas de “iaô” como se usava nos tempos de Mãe Biu e sim a roupa do
11
Após a morte de Mãe Biu o trono deixou de permanecer no salão, por ninguém mais poder sentar-
se nele. Com a construção do Memorial Severina Paraíso em 2000, o trono passou a ficar em exposição,
sendo esse o seu lugar atual.
156
A segunda Louvação, ocorrida em 13 de dezembro de 2004 apresentou três
utilizado por Mãe Biu e a utilização das roupas de “iaô” pelas filhas e filhos-de-santo da
povo-de-santo. Acontece por volta das cinco horas da manhã e possui a duração de uma
hora. Nesta cerimônia são cantadas apenas as toadas de Oiá, estando esta presente “em
terra” através de suas filhas e filho, sendo também homenageada por outros orixás que
fazem à ela suas reverências. Ao término da cerimônia há uma salva de fogos para
homenageá-la13.
acompanhando o “oniká” de Iansã, num andamento bastante lento. Neste momento todos
ficam ajoelhados em sinal de respeito. O oniká é executado apenas uma vez por ano, no dia
12
Pai Ivo consultou Oiá através dos búzios e esta lhes deu a devida autorização.
13
Desde que Mãe Biu faleceu não se fazia a “Alvorada”.
157
Segundo Pai Ivo, esta cantiga no Nagô é cantada como uma toada normal do repertório de
Iansã, enquanto que no Xambá representa sua louvação. É fácil compreender o ‘por que’
158
O momento do oniká representa o momento da Louvação, em que o santo é
(25/07/2004). Pai Ivo está com o “xere” de Xangô em mãos, posteriormente usa a “sineta”
Após cantar o “oniká” o babalorixá “puxa” a toada para “chamar as Iansãs à terra”. Esta
159
Ao mesmo tempo em que cantava, Pai Ivo passava a mão nas cabeças dos
filhos e filhas que estavam “irradiados”, ou seja, o estágio intermediário do transe, para
que estes recebessem o orixá. Após todos os orixás terem “descido” são levados ao peji, o
160
quarto dos santos, para vestirem suas roupas de “iaô”. Devidamente vestidos todos saíam
suas filhas e filhos. Na época de Mãe Biu, Iansã através dela, transmitia recados para as
pessoas, do seu trono de rainha e estes eram atentamente ouvidos. Nas Louvações de hoje,
os orixás dão seus recados e são homenageados através de suas cantigas. Conforme a
tradição dos Toques em geral, para finalizar o momento dedicado à Iansã é puxada a toada
161
Como já mencionado anteriormente cada ciclo do agogô está separado pela pequena
vírgula, neste caso, o padrão é de 8 pulsos. Assim como nas demais cantigas é
possível perceber a relação deste juntamente com as palmas e com o canto, bem
como, com o toque de tambor Adarrum, cuja transcrição será apresentada mais
adiante.
162
5.2.2. Toque de Iansã
orixás, começando por Exu e terminando com Orixalá. Em seguida é realizada a “volta dos
caso do Toque de Iansã, no momento que se cantar para ela um número maior de cantigas16
é “puxado”.
seguido por seu “oniká” e em seguida, puxa-se a toada para “chamar as Iansãs”17.
cantigas, o babalorixá canta a cantiga “Oiá Deô boim uló” para “despachá-las”, terminando
assim a parte dedicada à Iansã. Após o “despacho” das Iansãs canta-se para Afrequête,
14
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
15
Neste ano de 2004 aconteceu no dia 19.
16
Neste ano o trono de Oiá, que foi retirado do Memorial Severina Paraíso para o salão principal do
terreiro por causa da Louvação do dia 13 de dezembro, permaneceu no salão para o Toque de Iansã e
continuou a ser constantemente reverenciado pelos orixás “em terra” através do “otobalé”.
17
Cantou-se muito pra Iansã, inclusive várias toadas que são características do Toque de Balé e que
normalmente não estariam presentes em toques públicos, mesmo quando fosse cantar pra este orixá. Neste
dia houve também a “saída de Iaô” de um filho de Oxum que foi retirado do peji pelo Xangô de Giselda
Paraíso da Silva (Ziza), ou seja, esta “incorporada” e com suas roupas de “iaô” é a primeira a dançar quando
tira o “iaô” do quarto para dançar e ser cumprimentado pelos demais. No momento de Iansã, o “iaô” já estava
recolhido no peji, sendo um momento dedicado apenas à “santa”. Durante sua especial parte dentro do
Toque, várias Iansãs estavam “em terra” e “puxaram” suas próprias toadas, aquela específica da identidade
de sua qualidade de Oiá, que já foi discutida anteriormente. E aconteceu de Pai Ivo começar a cantar a toada
para “mandá-las de volta” e uma Iansã começar a cantar a sua toada, sendo esta respeitada e todos passarem a
cantar com ela e o babalorixá então volta a assumir seu posto de solista.
163
Oxum, Iemanjá e Orixalá. Há ainda a tradicional volta dos tambores e quando os ogãs
retornam para tocar os “onikás”, detendo-se mais no de Iansã, algumas Oiás retornam aos
exigências das “Iansãs” que podem puxar a sua própria toada19, contudo, a seqüência das
toadas deve ser respeitada pelo fato de cada cantiga possuir significado e função específica.
vários “bichos de pena”, além de “obrigações” das filhas e filhos para seus orixás. A
“obrigação” representa um longo dia de trabalho e dedicação aos orixás onde canta-se,
toca-se e é feita a “limpeza” em filhas e filhos e em todos que derem “obrigações”. Nesta
cerimônia o sangue do animal sacrificado é utilizado para reforçar o “ori” da pessoa. Após
levados ao peji. Depois de ofertadas, são distribuídas entre os filhos e filhas comem as
18
A estrutura ritual do toque pra Iansã é a mesma do demais toques públicos. Ver capítulo 4.
19
No Xambá aquele orixá que tiver o “axé de fala” pode se comunicar verbalmente com as pessoas,
inclusive puxar sua própria cantiga. Este é um estágio avançado, possível apenas para os orixás que
incorporam nos filhos e filhas já feitas.
164
obrigações e, em comunhão, compartilham entre si suas diferentes ofertas. Por volta das
18:00 horas canta-se para a saída do “ebó”, ou seja, o que sobrou das obrigações que não
deve ir pra o lixo, mas para a natureza, para as divindades configurando uma relação de
troca, de reciprocidade.
orixás, como já destacou Costa (2004b, 8), “em agradecimento à vida”. Consistem também
divino.
“Afefe iku”20
Vento da morte
de janeiro, data do falecimento de Mãe Biu. Apresenta dois momentos distintos que são
quarto de mesmo nome onde só os homens participam e o Toque de Balé - ocorre no salão
assim como os que são dedicados aos demais orixás, porém não é aberto ao público
20
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
165
externo. Glória Maria Oliveira da Silva (Gogó)21 menciona que a restrição às mulheres na
Obrigação de Balé pode ser explicada através da mitologia de Iansã que “ao descobrir os
segredos do culto aos eguns, também restrito ao universo masculino, foi castigada por ter
entrado no Quarto do Balé e, apesar dela passar a ser a rainha dos eguns, tal castigo se
estendeu às demais mulheres”. Mãe Biu foi a única mulher a participar das obrigações
realizadas por seu pai-de-santo, Manoel Mariano, em seu terreiro Nagô, embora todos
ressaltem que, como a tradição exige, Mãe Biu não tocava nos objetos sagrados. Sua
ser dirigidos por Pai Ivo no terreiro Xambá. Mesmo no momento de restrição de gênero da
respondendo aos cantos puxados pelo babalorixá. É comum ouvir das filhas-de-santo:
“mulher não participa da Obrigação de Balé, a gente só faz cantar”, no entanto esse “só
cantar” certamente reforça a importância de seu papel musical para esta nação e seu
por homens.
para Iansã Balé é entoado quase que exclusivamente nos dois momentos anteriormente
citados (Obrigação e Toque). Quando esse repertório é entoado nos toques públicos ocorre
em número muito reduzido. Por conta dessas restrições este repertório só é mencionado
neste trabalho quando presente nos toques públicos. No Toque de Iansã realizado em 2004,
21
Entrevista realizada em fevereiro de 2005. “Gogó” é filha-de-santo do Xambá, filha de Iemanjá e
também filha de Luiza Oliveira da Silva. Dona Luiza foi uma das mulheres que marcou a história do terreiro
Xambá ao lado de sua irmã Mãe Biu. “Gogó” como é carinhosamente chamada, é também mãe de Cleyton
José da Silva (Guitinho, filho de Ogum) e Leila Luíza Oliveira da Silva (filha de Orixalá que foi iniciada no
ano passado, em 2004).
166
algumas cantigas de Balé foram cantadas para homenagear este orixá. De forma geral
pode-se afirmar que estas cantigas não apresentam um caráter diferente das demais
cantigas, embora sejam executadas em andamento mais lento. São entoadas pelo povo-de-
entrou no Quarto de Balé, mas que este representa a morada dos eguns. Quando uma filha
seus objetos “assentados” no peji como quartinhas, guias e adereços do seu orixá são
pessoas falecidas. Estas cantigas geralmente continuam presentes nos toques públicos
sendo esse um momento de rememoração dos que já foram e tendo a música como veículo
principal.
“incorporação”. As filhas de Iansã de Balé possuem suas cantigas particulares, mas não
recebem o orixá, pois seria o mesmo de receber o “vento da morte” narrado no “oriki”
exposto anteriormente (Verger 1999, 405). As cantigas de Iansã de Balé carregam este
perfil embora nem sempre sejam lentas e com canto melismático. É o caso das três cantigas
que seguem, executadas apenas no toque de Iansã. A primeira toada com andamento rápido
é acompanhada pelo toque Jeje, cujo padrão é do agogô é de 16 pulsos, embora o melê
execute padrão de 12. Normalmente este toque acompanha cantigas cujo caráter não é
22
Entrevista realizada em Fevereiro de 2005.
167
“Iansã de Umbanda” que todos afirmam ser dona de um caráter arredio e, ao mesmo tempo
temeroso:
168
Assim como a cantiga anterior, a cantiga abaixo (faixa 22 do cd em anexo)
apresenta um caráter mais ativo ou menos “pesado” do Balé. Esta é acompanhada pelo
toque da Despedida que acompanha tanto as cantigas mais lentas quanto as mais rápidas:
169
Acompanhada pelo toque Adarrum de 8 pulsos, a próxima cantiga (faixa 23 do
cd em anexo) é um pouco mais lenta que as duas anteriores. Esta ilustra o fato de que
170
O próximo grupo de cantigas dedicadas à Iansã de Balé já carrega, segundo a
“flutuar” sobre as notas e o tempo, mostram figuras mais longas em relação à agilidade do
canto silábico presente na maioria das cantigas de Iansã, inclusive nas cantigas anteriores e
do cd em anexo), são acompanhadas pelo toque Sete por Um, padrão de 12 pulsações:
171
Mais lento que os demais toques do repertório de Oiá, o toque Sete por Um é
acompanhado por um agogô e palmas que executam apenas a marcação do tempo. Por
“passeia” por cada nota e cada transição melódica. Na toada Oiá de Malê há também a
172
A próxima cantiga que segue (faixa 19 do cd em anexo) é a única de Balé
presente nos toques públicos, que é acompanhada pelo toque Ecó, num andamento muito
173
A cantiga abaixo também integra o repertório de Balé. Cantada nos toques
públicos apresenta características “pesadas” do canto do Balé. Esta sempre é seguida por
duas toadas que possuem caráter distintos: Apalajô (pág. 198) e Afunelé adê que está em
movimento crescente de andamento e caráter que vai desde o mais lento, do Balé (Oiá
toques públicos de andamento mais rápido (Afunelé adê). “Oiá Gambeô” (faixa 6 do cd em
anexo) apresenta várias notas longas e melismas onde as notas não são diretamente
174
Pelo fato da cantiga a seguir (faixa 6 do cd em anexo) vir sempre “emendada”
com “Oiá Gambeô” e “Apalajô”, o solista canta junto com tambores e agogô. Não há o
solo absoluto como normalmente acontece. O mesmo se aplica às toadas “Apalajô” (pág.
198) e também “Oiá Bainha Balaxó” (pág. 203), sendo esta última cantada sempre após
175
5.3. Oiá – suas músicas
decorrer de uma festa pública podem ser ouvidas cantigas pouco conhecidas, fato que está
presentes às cerimônias. Uma determinada Iansã pode puxar sua própria cantiga, podendo
esta ser ou não, relacionada ao âmbito do Balé, ou mesmo o solista pode se lembrar de uma
cantiga pra Oiá não tão conhecida e cantada. Durante o período dessa pesquisa foram
coletadas vinte e nove toadas dedicadas à Oiá. Essas cantigas são acompanhadas por seis
compõe são interligados: cada cantiga é acompanhada por um toque específico de tambor,
seguidos por padrões também específicos do agogô e do abê, e esta associação é imediata,
23
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
24
Apesar de não me propor estudar as toadas específicas “de Balé” por fazerem parte de uma
cerimônia que não é pública – o Toque de Balé e, portanto não permitida também para divulgação e estudo,
estas surgiram em alguns toques públicos como também as registrei, acrescento-as aqui. Nestes toques
cantou-se mais para Iansã de Balé, na Louvação e no Toque de Iansã, momentos especialmente dedicados à
ela, onde se canta um número bem maior de cantigas em relação aos demais orixás. Apesar de se cantar
menos para Oiá nos toques para outros orixás, algumas cantigas de Balé também foram cantadas no decorrer
do ano, inclusive toadas que nunca havia ouvido antes e que, por serem de Balé, Sandro Paraíso não as
cantou para mim fora do contexto das cerimônias.
176
2. As que são dedicadas à Iansã de Balé e que normalmente não são
De uma forma geral, essas cantigas são narrativas das mitologias de Iansã,
havendo uma correspondência direta entre a música e a sua personalidade. São cantadas
num misto de iorubá e português e suas melodias e toques são caracterizados por
Carvalho (1993, 129-33) auxiliado por colegas africanos, a partir das gravações
português, alguns dos textos das toadas registradas25. A maioria das cantigas já havia se
música ritual” , fato comprovado pelas gravações que realizou juntamente com sua esposa
algumas de suas traduções foi possível encontrar similitudes com cantigas para Oiá
presentes na nação Xambá de Portão do Gelo. Nas tabelas que seguem são reproduzidas
trechos de alguns dos textos das cantigas do Xambá, onde foi possível encontrar
semelhanças fonéticas e, ao lado, trechos dos textos em iorubá e suas traduções para o
25
Terreiro de Pai Adão (Nagô), em Água Fria.
177
“Oiá Dê Mampariô” (cantiga transcrita na pág. 188)
26
O colaborador do autor comenta que esta toada: “exibe o caráter aterrador, desavergonhado e
despreocupado de Oya, que não tem escrúpulos em fugir com o marido da sua própria filha. Ela faz o que
mais lhe apraz. Oya se desvia como quer dos padrões estabelecidos de conduta.”
178
Segundo Sandro Paraíso o trecho “egunitá ela é” desta toada sempre foi cantado
desta forma, pois se referiria aos eguns. Após a morte de Mãe Biu, passaram a cantar
“ogunitá ela é”, mencionando o orixá Ogum da ialorixá. Contudo, Carvalho traduz
“Ogunitá” como um outro nome de Oiá. Essas questões são importantes para ilustrar que
em iorubá que menciona um dos nomes de Oiá como a re-significação de uma possível
mudança percebida pelo ogã, que reflete sobre esta mudança conforme a história do
179
“Afunelé adê” (cantiga transcrita na pág. 175)
180
Outro ponto importante a ser ressaltado é baseado na identidade pessoal e
religiosa através dos nomes ou “qualidades” (Segato 1995, 86) das diferentes Iansãs que
estão presentes e servem também como meio de distinção tanto pessoal - cada Iansã possui
suas próprias cantigas-, quanto religiosa - para diferenciá-las dentro da categoria maior
Iansã. A maioria das “qualidades do orixá” funciona apenas como nomes, sendo de certa
forma desprovida de conteúdo literal, embora esse seja certamente construído pela filha ou
filho-de-santo (Segato 1995, 86). No repertório musical do Xambá é possível notar menção
Iansã de Balé; Iansã Gigã; Oiá Barelô; Oiá Bendicá; Oiá Cararô; Oiá Denina;
Oiá Dupé; Oiá Egunitô; Oiá Ladê; Oiá Laincê; Oiá de Malê; Oiá Meguê; Oiá
Messã; Oiá Minibu.
Em seu livro Santos e Daimones, Segato (1995, 87) cita algumas “qualidades
de Iansãs” presentes no Nagô, também presentes nas cantigas do Xambá como “Oiá Ladê”
as duas nações, que também compartilham alguns orixás da categoria principal (os nomes
genéricos do orixá).
“santas” particulares das pessoas do Xambá. Como as cantigas são quase que pessoais há
também a possibilidade, ainda que rara, do próprio orixá “trazer” a sua própria toada, ou
seja, ao invés dele “descer” e puxar uma toada que já integra o repertório de Iansã, o filho
ou filha-de-santo “incorporada” apresenta uma cantiga inédita que vai ser ouvida e
aprendida pelo povo-de-santo. Normalmente quando isso acontece, essas cantigas são
acompanhadas pelo toque Ecó ou pelo toque Despedida específicos deste orixá, para
acompanhar a toada.
181
A ordem em que são cantadas as toadas é relacionada à importância da função
que desempenham no culto. Embora essa seqüência possa sofrer variações sutis a depender
do solista, a ordem das cantigas para Oiá é praticamente a mesma em todos os toques:
sempre começa e termina com as toadas que possuem as funções opostas de “chamar as
a tradição da ordem estabelecida das cantigas de Iansã na nação Xambá, esta seqüência
“desçam” através dos corpos de suas filhas e filhos para serem homenageadas;
foram, através das cantigas de suas Iansãs, quanto das que estão presentes e “recebem”
Iansã, baseadas na escolha do três solistas da nação Xambá, Pai Ivo, Sandro e Ailton
Paraíso. Estas diferentes ordens foram estabelecidas a partir de uma média geral dos
182
Ordem das toadas de Iansã
contexto, que mesmo seguindo a tradição de uma ordem preestabelecida, pode modificá-la
conforme sua preferência depois da interferência das Iansãs. Mesmo em uma tradição
quase secular, pois todos afirmam que a ordem das toadas de Oiá que Pai Ivo obedece é a
mesma seguida por Mãe Biu, há a dinâmica através da presença de pequenas variantes que
são permitidas e que, no entanto não descaracterizam a tradição musical dessa nação afro-
brasileira, além é claro, da vontade das Iansãs homenageadas, não sendo este último, um
para Oiá e seus respectivos toques de tambor que apresentam certas similaridades com os
183
executados no Xambá. A tabela a seguir apresenta os nomes das cantigas e dos toques para
Oiá presentes no Xambá e nomes das cantigas e toques similares citados pela autora. A
ordem disposta na tabela é a mesma utilizada por Segato não correspondendo à ordem das
cantigas no Xambá:
Segundo as transcrições de Rita Segato, as seis cantigas são acompanhadas pelo mesmo
padrão rítmico – Batá. Na nação Xambá cinco dessas cantigas são acompanhadas pelo
toque da Despedida, e uma pelo Jeje. Abaixo seguem as duas transcrições da cantiga “Oiá
184
“Oiá Barelô” – Xambá (faixa 14 do cd em anexo):
185
“Oiá Bareló” - Nagô (Segato 1984, 540):
186
Em relação à seqüência das cantigas, no Xambá a toada “Emidebô Cilê” é a
primeira a ser executada. “Afunelé Adê” é cantada após “Oiá Gambeô”, consideradas
praticamente como uma única cantiga, “Oiá Oiá é do Mal Atá” não é uma toada cuja
presença seja tão significativa quando comparada às demais e a toada “Apalajô Agô Inhã”
sempre é cantada depois de “Oiá Barelô”, consideradas uma única cantiga e geralmente é
uma das primeiras a serem cantadas, uma pequena semelhança com o Nagô segundo
uma mesma nação ainda que cada terreiro possui sua própria história. As duas nações
Neste universo escalas e modos não são parte explícita da teoria musical
próprios conceitos do pesquisador sobre a música do “outro”. Não foi possível construir
comunidade. Dessa forma, as decisões analíticas aqui tomadas podem ser contestadas, mas
visualização dessas disposições será melhor apresentada nos quatro esquemas seguintes
27
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
187
onde são consideradas as categorias e seus diferentes subtipos, as cantigas que utilizam
essa estrutura e suas características melódicas ( relações entre as notas e o maior salto
intervalar realizado no canto). Após cada esquema uma transcrição de uma cantiga
Das tetratônicas
188
Exemplo 1.2:
1.1.) é uma das cantigas de Balé que é acompanhada pelo toque de Adarrum, integrando o
nem tão lenta, mas também nem tão rápida, caso específico da cantiga em questão, ao
“clímax” das toadas de andamento rápido. Mesmo que esta integre o repertório de Balé,
públicos.
189
com Iansã se coroava. O segundo é cantado no toque deste orixá, em sua homenagem, mas
190
A cantiga “Fará com fá” (identificada na tabela das tetratônicas pela numeração
2.) está sempre presente no repertório de Iansã, praticamente em todos os toques públicos
Das pentatônicas
191
Exemplo 1.2 (faixa 12 do cd em anexo):
Esta é uma das várias cantigas que citam nomes de diferentes Iansãs, nesta a
homenageada é Oiá Laincê (identificada na tabela das pentatônicas pela numeração 1.2.).
Como a maioria que é acompanhada pelo toque da Despedida, esta é uma cantiga mais
“movida” em que se canta e dança com alegria, mesmo que seja uma alegria particular
192
Exemplo 2 (faixa 7 do cd em anexo):
Adarrum, é um pouco mais rápida. Na realidade são duas cantigas que sempre são cantadas
seguidas: “Lauré Guanguá” (identificada na tabela das pentatônicas pela numeração 2.)
seguida da cantiga “Ô que penajô”, esta última, por ser bastante curta, foi transcrita
193
Exemplo 3 (faixa 17 do cd em anexo): Como a maioria das cantigas acompanhadas pelo
integra um dos “ápices” do repertório de Iansã (identificada na tabela das pentatônicas pela
numeração 3.).
194
Exemplo 4: A cantiga abaixo é um exemplo de toada pentatônica (identificada na tabela
pela numeração 4.) e integra o repertório de Balé. Acompanhado pelo toque da Despedida
é uma cantiga mais rápida e só esteve presente no toque de Iansã. Como várias outras
nacionalizada “era com fé” associada ao orixá africano. Em relação ao canto, o coro repete
195
Das hexatônicas
196
Exemplo 1.2 (faixa 18 do cd em anexo): A toada abaixo (identificada na tabela
das hexatônicas pela numeração 1.2.) está sempre presente nos toques públicos, das que
são acompanhadas pelo toque Jeje é uma das mais rápidas configurando “o ápice” do
repertório de Oiá.
hexatônicas pela numeração 2.) é cantada após a toada de Balé “Oiá Gambeô”. As duas
possuem caráter distintos. A primeira é marcada por um canto melismático, notas longas,
197
sempre com “Afunelé Adê” (pág. 175), a cantiga entoada em seguida e é ainda mais
Esta cantiga apresenta particularidade em relação à sua forma, pois na realidade são duas
partes tão distintas (“Apalajô” e “É um loê”) que a partir da recorrência em outros casos,
indica que são cantigas diferentes, mas que no entanto, são cantadas “emendadas”.
198
Das heptatônicas
199
Exemplo 1.1 (faixa 9 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das heptatônicas
escala modal completa (láb mixolídio). Sua melodia é enriquecida com o colorido do
200
Exemplo 1.3 (faixa 8 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das
heptatônicas pela numeração 1.3.) integra o grupo das cantigas para as Iansãs específicas.
Nesta, além de “Oiá Ladê” é mencionada “Oiá Messã”. Acompanhada pelo Adarrum,
geralmente é cantada na seqüência das cantigas para as diferentes Iansãs, está presente no
201
Exemplo 2.2 (faixa 4 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das heptatônicas
pela numeração 2.2.) é uma das primeiras a ser cantada, em todos os toques. Assim como o
grupo das que são acompanhadas pelo Adarrum, se apresenta musicalmente num momento
202
Exemplo 2.4 (faixa 14 do cd em anexo): Esta toada (identificada na tabela das
heptatônicas pela numeração 2.4.) é cantada após “Oiá Barelô”, sendo considerada como o
“auge”, no sentido de que sucede cantigas de andamento mais lento. O coro repete
integralmente a cantiga após o solista e como esta vem “emendada” logo após “Oiá
que, de uma forma geral, as melodias das toadas tendem a ser tonais, embora seja um
tonalismo não evidenciado em sua estrutura melódica que em geral é, como já foi ilustrado,
203
O coro na maioria das cantigas entoa arpejos que afirmam uma idéia tonal.
Vatin (2001, 149) que estudou a música da nação Angola em Salvador e a comparou às
tipo ocidental, com a presença latente dos modos maior e menor presentes no culto aos
caboclos”. No contexto do Xambá essa consideração faz sentido visto que tais entidades
também estão presentes neste culto. Não se pode esquecer que são as mesmas pessoas que
transitam nos dois universos religiosos – o dos caboclos e o dos orixás. Juntamente com
esse diálogo musical entre os elementos dos dois cultos é importante destacar que ocupam
rápido. O papel principal de solista no Xambá, como já mencionado, é exercido por Pai
Ivo, depois por seu irmão Ailton Paraíso ou por Sandro Paraíso. É também comum que um
outro babalorixá presente ao toque num dado momento, possa cantar algumas cantigas,
toada e sempre mais lento que o apresentado pelo solista. Sandro Paraíso comentou que é o
Grande parte das cantigas apresenta uma forma simples, baseada na repetição
AA, onde o coro reitera a mesma frase melódica entoada pelo solista. O fato parece estar
relacionado a uma certa simplificação das respostas para a promoção imediata de uma
interação entre solista e coro. Em segundo lugar de recorrência está a forma AB, onde a
204
1. AA - Cantigas em que melodia e texto são os mesmos tanto para o
solista como para o coro. O solista canta a mesma melodia e texto uma vez e estes são
são contrastantes.
3. Variantes:
3.1 AABB – o solista canta melodia e texto (A) e o coro repete (A). O
material contrastante (B). O solista canta nova melodia e melodia e texto (C) que é repetida
3.3 AABC – o solista apresenta melodia e texto (A) e o coro repete (A).
O solista canta nova melodia e texto e o coro responde com texto igual mas melodia
diferente.
3.4 AABCDD’ – o solista canta melodia e texto (A) e o coro repete (A).
O solista canta nova melodia e novo texto (B) e o coro responde diferente (C). O solista
traz nova melodia e novo texto (D) que é repetida pelo coro com pequena variante
melódica (D’);
(B). O solista apresenta pequena variante (A’) e o coro responde (B) esta sessão sendo
repete integralmente (A). O solista apresenta novo texto e nova melodia (B) e o coro repete
205
mesmo texto com nova melodia (C). O solista apresenta pequena variante melódica sobre o
texto anteriormente exposto (B’), e o coro repete a mesma resposta anterior (C).
atrelados aos padrões rítmicos executados pelo agogô. Abaixo segue um esquema onde
pelo agogô (quantas vezes ele repete o mesmo padrão numa cantiga), configurando uma
que possuem ciclos rítmicos que são expostos segundo uma média do que foi registrado no
decorrer da pesquisa:
28
Mesmo que algumas cantigas apresentem pequenas variações melódicas entre coro e solista, são
consideradas aqui como integrantes do grupo AA, visto que os textos e as melodias são de forma abrangente,
os mesmos.
29
A quantidade maior indica o número total de ciclos realizados (solista+coro). Este número,
contudo é aproximado, pois os ciclos podem ser repetidos quantas vezes o solista repetir o texto.
206
Das formas e dos ciclos Ia
207
Das formas e dos ciclos IV
a função rítmica dos tambores, compõe ciclos ou linhas-guias que apresentam uma
estrutura simétrica na qual o canto se baseia. Em relação tanto ao solista quanto ao coro
este ciclos podem variar mas, em sua maioria ocorrem de forma simétrica, mesmo número
de repetições que vão resultar numa estrutura par ou ímpar. É importante destacar que coro
e solista nunca cantam ao mesmo tempo, embora, na maioria dos casos haja um
material melódico diferente do que vai ser executado pelo coro, e varia também conforme
registro agudo devido à presença de uma maioria feminina é uma característica marcante.
Por esse motivo transcrevi o coro de algumas cantigas uma oitava acima da melodia do
solista.
caracterizando, na maior parte das cantigas um repouso no mesmo som inicial. Das vinte
208
nove cantigas para Oiá, dezessete finalizam dessa forma. Seis cantigas finalizam uma 5ª
justa acima da nota inicial, enquanto que seis outras possuem suas finalizações uma 3ª
A seguir seguem as interpretações dos três solistas para uma mesma toada,
apenas para ilustrar as variações das extensões vocais de cada um, mas que ocorrem sobre
um mesmo “esqueleto melódico” e rítmico que a toada apresenta. Por uma questão de
hierarquia religiosa e de experiência musical o solo de Pai Ivo foi colocado em primeiro
lugar. A partir desta disposição é possível perceber pequenas variações que correspondem
muito mais a uma questão estilística e pessoal de cada solista e que a transcrição sempre se
apresenta limitada para sua ilustração. Em geral, Pai Ivo emprega intervalos de maior
extensão nas cantigas, adota um estilo de recitativo. Ailton Paraíso geralmente canta as
toadas que possuem andamentos mais rápidos. Este canta a maioria das toadas utilizando a
mesma emissão vocal com que canta “Oiá Meguê num agailê”, considerada pelo povo-de-
santo como um “samba”, sendo este seu estilo particular. Sandro Paraíso geralmente canta
a maioria das toadas de Iansã de Balé, utilizando uma impostação vocal característica deste
repertório, utilizando melismas num canto geralmente de andamento mais lento. Nos três
casos percebe-se que o coro guarda a última nota executada pelo solista para iniciar sua
209
210
A participação de todos os presentes formando o coro é indispensável. O bom
cantor no caso dos solistas, geralmente é aquele que possui uma maior potência vocal,
padrão estético que, aos ouvidos externos e leigos é difícil de ser percebido. A emissão
vocal é executada num registro sobretudo agudo, lembrando que coro é composto por uma
maioria feminina, construindo uma identidade vocal a partir da atuação musical das
mulheres, referência a ser seguida mesmo que não de forma intencional e declarada. É
comum ouvir muitos filhos-de-santo oscilarem seu canto entre um registro muito mais
agudo que as suas possibilidades vocais permitem e seu próprio registro, naturalmente
mais grave, resultando numa perceptível inibição dos homens em relação ao canto, com
exceção obviamente, dos solistas. Na maioria das vezes, quando perguntei sobre os cantos
para Oiá às filhas e filhos-de-santo, na maioria das vezes estas falavam que não cantavam e
que o mais indicado era procurar quem realmente sabia cantar – os solistas. Algumas
vezes, quando cantavam, o faziam timidamente, as filhas por estarem acostumadas a cantar
em conjunto e dessa forma se sentirem mais à vontade para “soltar” a voz, e os filhos, além
cada integrante do coro não coincidem. Esta característica pode estar relacionada tanto ao
junto, mas de louvar os orixás e seguir o “tempo orgânico” de cada pessoa, quanto a
30
Certa vez tive a oportunidade de ir a um toque público com um grupo de filhas e filhos-de-santo
do Xambá, num terreiro de nação Ketu (Nagô) e ouvi diversos comentários destes em relação ao fato de que
nem todos do outro terreiro cantavam as cantigas, alguns aliás, permaneciam calados, o que refletiria,
segundo a visão delas e deles, o desconhecimento em relação ao repertório, algo considerado grave.
211
intencionalidade vocal dentro do que é aparentemente natural e pessoal. Para Sandro
santo:
Quando canta pra Xangô, aí tem aquela força. Não que Oiá não tenha, ela
tem muita força. Só que você já vê aquela coisa mais pesada, que o
pessoal já canta, justamente por esse costume de Oiá ser dona de egum e
a forma do orixá dançar. Oiá quando dança com aquela calma, se for uma
toada mais agitada, ela dança dentro do ritmo, mas ela não perde aquela
coisa.
orientador Simha Arom) dois fenômenos referentes às técnicas polifônicas que são
“tuilage” e a heterofonia:
ininterrupta, como um “telhado” que é composto por várias “telhas” (em francês “tuiles”);
contexto, a organização temporal dos cantos é baseada nos padrões ou “ciclos temporais”,
destacar que a relevância dos critérios que integram o fazer musical e especificamente
212
vocal corresponde ao conhecimento do texto a ser cantado, do contorno melódico e, por
fim, do fervor com que se canta. Pensando em termos da identidade vocal do coro no
composto por um trio de tambores, um agogô e um abe, formação explicada pelo povo-de-
santo pela tradição Xambá, ou seja, sempre foi feito assim. O trio de tambores é formado
corpo em barril e tampo único, tocados com as mãos e que possuem diferentes funções.
Tambor de barril com o couro preso por pregos ou tachas sobre a borda.
Também dito angomba ou engoma. É usado em alguns terreiros com
influência bântu. Do kimbundo – “ngoma’- tambor.
31
Oriki de Oya: em Adja Wèrè, África (Verger 1999, 405).
213
Trio de ingomes do terreiro de Arthur Rozendo. Fotos de Pierre Verger
(à esquerda foi publicada na Revista O Cruzeiro de 19/11/1949 e, à
direita, do acervo da Fundação Pierre Verger).
Angola, comprovando mais uma vez, o compartilhamento musical entre as duas nações –
Xambá e Angola. Vatin (2001, 119) destaca que os tambores da nação Angola são
e Segato (1992, 54) apresentam conceitos similares aos mencionados pelos ogãs do
41 cm,
214
2. “melê ancó” – é pintado de vermelho e branco, as cores de Xangô.
34 cm.
tambores do Xambá são referentes aos orixás de Mãe Biu. Em entrevista realizada em
Os atuais
tambores no
salão
principal do
terreiro.
32
Outra designação que o povo-de-santo utiliza para os tambores. Embora esta seja a designação
para os tambores do Nagô, que são diferentes.
33
Nesta declaração fica claro que o próprio Pai Ivo reforça o papel de Iansã na Casa Xambá e na
vida de Mãe Biu. Antes ele havia afirmado, assim como todos afirmam, que Mãe Biu era filha de Ogum em
primeiro lugar e Iansã em segundo.
215
Os ingomes com o “ojá”
(vestimenta) da cor de
Iansã. Estes tambores
são os que eram tocados
nos tempos de Mãe Biu.
Hoje ficam no Memorial
dedicado à ialorixá,
junto com seus
pertences, espadas e
demais utensílios do
culto.
Segundo o ogã Sandro Paraíso, “quem toca melê precisa saber tocar, quem toca
melê ancó toca mais que quem toca melê e quem toca o inhã toca mais que todos os outros,
pois é o mais difícil”. É importante ressaltar que as variações rítmicas dos tambores estão
baiano vários autores afirmam que o rum é o mais importante por determinar as várias
mudanças na coreografia, sendo tocado pelo alabê ou mestre da percussão (Béhague 1984,
Lühning 1990a, Garcia 2001), o mesmo acontece no Recife onde apenas os ogãs mais
experientes tocam o inhã. Considerando apenas as funções dos tambores, a disposição dos
216
1. melê – o menor e mais agudo. Geralmente quem “puxa” os padrões
rítmicos básicos, podendo acrescentar “viradas”. Sua função é a de “manter o ritmo” e por
esse motivo é tocado ininterruptamente. Por ser o mais agudo, serve de guia para os
movimentação rítmica em relação ao melê. Por ser o tambor do meio, exerce função
intermediária em relação aos outros dois tambores: varia mais que o melê e também
do andamento;
tambores, pois exerce também o papel de solista. Embora seja considerado como
afirma que quem deve tocar primeiro é o melê, mas, caso esteja neste um ogã de menor
experiência para “puxar” os toques, quem estiver no inhã “puxa” e em seguida retoma sua
função de solista.
então, promover o estado de transe. Para desempenhar tão importante papel os tambores
são submetidos a todo um processo ritual, onde são “alimentados”, ou seja, comem e
recebem banho de sangue de animais sacrificados para que tenham o poder. Segundo
Béhague (1984, 231), este ritual carregado de simbologia onde o sangue representa a vida é
tambores possuem voz irresistível aos orixás e, em decorrência disso, seu axé ou força
217
espiritual precisa ser reforçado anualmente através da “alimentação”, em uma cerimônia
possuem um papel de destaque maior em relação aos demais instrumentos percussivos. São
os responsáveis de “puxar” a orquestra. Certa vez Maria do Carmo Oliveira (Cacau), braço
direito do babalorixá, declarou que era comum Mãe Biu falar que para começar um toque
bastava estar junto aos seus ogãs. O Xambá é conhecido por sua pontualidade.
badalo, com cabo também de metal tocado com uma vareta de madeira. Produz som mais
grave que o agogô convencional de campânula dupla, normalmente utilizado nos toques de
candomblé. O termo “agogô” vem do iorubá e significa tempo (Lühning 1990a, 37).
Exerce importante papel, servindo de base para o conjunto dos tambores, para o canto e
para a dança dos orixás. No Xambá este instrumento é pintado de rosa pois é dedicado à
Iansã e fica guardado no peji, no assentamento da santa. Diferente das demais nações, no
Xambá sempre vem em quarto lugar, após a entrada do solista, coro e dos tambores. Não
menos importante, executa padrões que estão relacionados tanto aos tambores quanto ao
reforçando as sílabas tônicas das palavras cantadas que, por sua vez estão também
relacionadas aos padrões executados pelos tambores, sobretudo o melê, que pode ser
218
Acima está a foto do agogô no
peji, lugar onde é guardado, no
assentamento de Iansã.
Acima à direita, sendo tocado
pelo ogã e à esquerda, outra
técnica de tocar agogô.
219
O abê ou xequerê é idiofone feito de uma cabaça grande envolvida por contas
presente, até mais que o próprio agogô que executa os padrões básicos. Sua atuação pode
ser entendida como uma simplificação dos padrões executados pelo agogô, mas reforçando
o papel deste em suas funções, sendo portanto de extrema importância. Na maioria das
crianças.
Neta e Henrique tocam o abe. Ela já considerada percussionista, neta de seu Maurício, ogã
de larga experiência e padrinho do terreiro. Ele, descobrindo o universo dos tambores.
220
Iassanã, de 9 anos, tocando o abê. Estes representam exemplos de abertura na
aprendizagem musical. Henrique por ser criança e elas por serem do sexo feminino, além
de muito jovens também. Os três têm contato com os instrumentos sagrados.
dos orixás é marcada por adequações, onde expressões ou determinadas finalidades são
correspondentes a orixás mais jovens, enquanto para os mais velhos o ritmo é executado
extra-musicais inseridas no contexto do qual a música faz parte e que terá seu ápice com a
presença do orixá.
221
Para Carvalho e Segato (1992, 38):
Balé e as demais que compõem o grupo das diferentes “qualidades” de Oiá. Ao mesmo
tempo em que Iansã é rápida como os ventos e violenta como as tempestades, ela também
é muito respeitosa, séria e temida, por ser a rainha dos eguns. Assim como esses dois
repertórios diferem, os toques que acompanham essas diferentes cantigas são também
“pesados”, mais lentos. Um dos mais marcantes é o “toque da despedida”, que como o
nome indica, está relacionado à morte. Segundo Sandro Paraíso35 quando eles são tocados
significa que “ou alguém morreu ou está tocando pra Iansã de Balé”. Contudo, este toque
participante, assim, a interação entre esses papéis representa a tônica do processo e, por sua
vez, a interação entre eles e os orixás. Nesse contexto “a performance musical é o pré-
fato musical isolado em si, mas enriquecido por uma constelação de elementos presentes
no contexto religioso, seja no âmbito ritual, seja no âmbito social. Esse músico participante
engloba todas as pessoas que cantam, maioria feminina, pois o conceito de músico não é
34
“Las características musicales contrastantes de los repertórios de estos santos reproducen las
relaciones tanto de oposición, como de singularidade, com respecto a sus personalidades y sus roles
familiares em el pantéon”.
35
Entrevistado em junho de 2004.
222
atribuído pelo povo-de-santo nem mesmo para os ogãs, a não ser que este seja
percussionista fora do âmbito religioso, que é a maioria dos casos dos mais jovens. Tanto
das “obrigações”.
Adarrum, Jeje, Sete por um e Umbanda. É importante ressaltar que a classificação dos
toques corresponde mais a uma postura ética36 que à realidade musical deste terreiro. Na
maioria das vezes, os ogãs referem-se aos toques como “o toque daquela toada para aquele
orixá...”. Esses toques são acompanhados por quatro padrões rítmicos diferentes
executados pelo agogô que estão transcritos juntamente com as palmas executadas pelo
coro para explicitar a relação estabelecida entre ambos, são eles: de 16 pulsos, de 8 pulsos,
“quebradas” ou variações a esse padrões ou, simplificar os que julgar mais difíceis:
36
Leia necessidade acadêmica.
223
Agogô 2 (de 8 pulsos)
Abaixo seguem transcrições do abê onde são destacados através das duas
linhas onde as figuras rítmicas se situam, os movimentos realizados pelo (a) executante. A
linha de baixo indica o movimento para baixo que um (a) destro (a) realizaria para a
linha de cima indica o movimento do abê para cima, que embora não seja executado
224
apenas à direita, é realizado junto com o movimento dos braços para cima. O abê como
1. Para cantigas lentas acompanhadas pelo toque Sete por Um. O padrão
do abê claramente dialoga com o padrão executado pelos tambores (a transcrição do melê
225
3. As cantigas de andamento mais rápido podem ser acompanhadas
com os respectivos padrões executados pelo agogô e pelas palmas executadas pelo coro,
transcrição do toque Ecó, que acompanha o Oniká (pág. 158), as hastes para baixo e para
cima indicam as mãos direita e esquerda, respectivamente. O melê executa o padrão básico
que irá ser enriquecido pelas variações do melê ancó e do inhã e junto com o agogô e as
palmas compõe o alicerce rítmico para o coro, por essa razão resolvi tomá-lo como
226
Toque Despedida37 (16 pulsos = 90 a 125)
37
Geralmente neste toque o mele executa uma “chamada”, transcrita acima, mas em todo o resto da
cantiga repete o padrão rítmico que está entre os ritornelos.
38
Neste toque o melê executa o padrão rítmico de 12 pulsações, enquanto o agogô, as palmas e o
canto apresentam um padrão de 16 pulsos. Garcia (2001, 101) apresenta uma situação similar no Candomblé
de caboclo (Salvador, BA): o toque Barravento cujo padrão rítmico é de 12 pulsos acompanha cantigas de 16
pulsos. O toque Jeje é também citado por Braga (1998, 122) no Batuque (Porto Alegre, RS), embora as
características apontadas pelo autor sejam semelhantes em termos de caráter “pancada de andamento vivo e
muito apreciada pelo seu caráter”, não apresenta similitudes musicais.
227
Toque Sete por um (12 pulsos = 36 a 46)
possível obter um valioso panorama do repertório musical dedicado à Iansã. Para isso, é
válido expor aqui as estruturas melódicas das cantigas, associadas às recorrências dos
padrões e toques, que compõem um todo atrelado à identidade musical de Oiá na nação
Xambá:
228
Panorama I
PADRÃO CANTIGAS TOQUES
1.1. Emidebô Cilê (pág. 160)
1.2. Era com fé (pág. 195)
1.3. Fara com fá (pág. 190)
AGOGÔ 1: 16 pulsos 1.4. Iansã coroou (pág. 197) 1
1.5. Oiá Bainha Balaxó Despedida
(pág. 203)
1.6. Oiá Barelô (pág. 185)
Panorama II
PADRÃO CANTIGAS TOQUES
1.1. Lauré Guanguá (pág.
193)
229
Panorama III
Panorama IV
quantitativa, as relações entre o número total de cantigas para Iansã, os toques que as
acompanham e, os padrões do agogô que são utilizados, ressaltando o fato que um mesmo
padrão do agogô pode acompanhar diferentes toques (caso dos agogôs 1 e 2). Dessa forma,
termos absolutos, pois toques como Ecó, Sete por um e Umbanda não estão presentes tanto
quanto a Despedida e o Adarrum, mas por fazerem parte do repertório, possuem suas
relevâncias particulares.
230
Panorama Geral
mesma concepção é atribuída à melodia, por outro lado, se for concebido como “pra
frente”, assim também será seu canto, pois os ogãs também se influenciam pela forma
extrema relevância destacar aqui algumas características apontadas pelos ogãs em relação
às questões musicais e religiosas. Nesta parte o que ganha destaque é a questão conceitual
do fazer musical dos tambores e do canto com suas possíveis relações, ou seja, os
presente nos demais repertórios embora seja muito importante para entender Oiá, pois é
231
Das vinte e nove cantigas coletadas apenas duas são acompanhadas por
este toque: o oniká, e a toada de Balé “Ê aguerê”. Sandro Paraíso declarou também a
“oniká”.
relação ao “Ecó”. É o toque mais utilizado no acompanhamento das toadas de Iansã (11
“Despedida” carrega uma conotação de tristeza, pois como o nome indica, está relacionado
à questão funeral:
sua ‘marca registrada’. Executado em andamento mais lento na maioria das cantigas.
entre a mitologia e a música, pois Ogum foi o primeiro marido de Iansã. Este toque pode
232
a salva dos tambores, ou seja, o “aplauso dos ogãs” em que estes percutem os tambores
para saudar o orixá, ou alguma figura ilustre e para terminar o toque, momento em que
todos os presentes aplaudem. Também pode ser pensado como um compartilhamento geral
entre Iansã e os demais orixás, pois este toque está presente em quase todos os outros
repertórios. Tais relações reforçam a concepção de que a música não está isolada do
diferentes repertórios.
Segato 1992 e Segato, 1995). Este toque executado no Nagô não corresponde ao de mesmo
nome na nação Xambá, mas ambos carregam de certa forma, um pouco das características
semelhança deste orixá com o mar, sua imprevisibilidade e seu ‘pesar’ de mãe apontados
pelo povo-de-santo. No caso de Iansã, o toque pra ela também possui seu ‘pesar’ de rainha
Meguê num agailê” para a Iansã de Mãe Biu e por isso é muito especial para o povo-de-
santo do Xambá. Este toque possui um caráter totalmente diferente do usual para Iansã
tocar a referida toada torna-se uma festa em que Iansã e Mãe Biu são homenageadas com
muita alegria. Este toque reflete também a inserção do repertório de caboclos no repertório
dos orixás, visto que está presente nos dois cultos, assim como no repertório dos “Bêji”.
Mãe Biu cultuava os caboclos, assim como no presente ainda se cultua essas entidades que
também estão presentes no Toque dos “Bêji”. No Xambá há a tradição deixada por Mãe
233
Biu do “coco”, realizado no dia de São Pedro (29/06) e também dia do aniversário da
não são entendidos como elementos que descaracterizem a nação, nem sua tradição
musical.
santo e sua história no terreiro, relacionada à figura de sua mais importante ialorixá, Mãe
Biu, é importante para a descrição musical e vice-versa. A relação com a falecida ialorixá é
repertório musical que vêm à memória pessoas que já faleceram. A música além de
do culto”, isto é, a noção de continuidade através do ciclo das relações que estão e
234
5.4. Oiá - seus gestos
medida em que consiste na representação física das características de Iansã, de sua atuação
cantos que, por sua vez, relacionam-se com os orixás e são externados através da dança e
do transe. Lühning (2001, 115) abordando a relação entre o transe e a dança afirma que o
primeiro é o:
39
Oriki de Oya: em Baningbe, África (Verger 1999, 405).
235
uma identidade gestual e musical que é reconhecida pela filha e filho-de-santo compondo
um senso comum do que representa o orixá, embora cada indivíduo construa também sua
Oiá, para dançar, porta sua espada de guerreira. Quando sem espada, o gesto
das mãos compõe uma coreografia que nos remete à essa imagem e ao poder e à violência
de suas tempestades. Normalmente as filhas da nação Xambá que estão de cabelos presos,
quando “incorporadas” com sua “santa” soltam os seus cabelos - misto de sensualidade e
liberdade. Pai Ivo destaca o perfil de guerreira que Oiá expressa em sua dança, afirmando
que esta divindade “dança lutando”. Há nesse perfil impetuoso de Iansã, uma mencionada
e polêmica relação com o “outro lado”, a Umbanda, pois esta também está presente neste
culto. Vale relembrar o fato de que “Umbanda” é um dos seus toques de tambor, também
Mesmo “lembrando uma pomba-gira”, Oiá, por outro lado, também dança
expressando sua austeridade. Sandro Paraíso descreve sua interpretação sobre essa forma
de Iansã dançar:
40
“Actualizan las nociones, representan sinteticamente sus singularidades y sus interlaciones
estruturales. Así, permiten a la gente perceber esas ideas de una manera directa inmediata, como se fueran
“reveladas” através de las formas simbólicas de música y baile” .
236
Oiá dança fazendo sinal de proteção. Ela dança como se estivesse
protegendo os filhos dos eguns. Como se estivesse empurrando, dizendo:
“olha, mais pra trás, aqui não”. Levando os males. Aí ela dança como se
estivesse afastando esses eguns, como se estivesse protegendo a casa.
Que é o gesto de como se estivesse protegendo o local.
acrescenta:
diferentes Iansãs dançam de forma que nos remete à imagem narrada por Verger.
237
Iansã dança erguendo as
mãos para os céus,
simbolizando a
tempestade, e os raios.
Este orixá é também
guerreiro e dança como
se carregasse sua espada
para se defender e
defender seus filhos.
Esta filha-de-santo é
Adriana Paraíso, neta de
Mãe Biu e também filha de
Iansã.
Sobre os aspectos presentes nas coreografias Segato (1995, 166) observa que
constituem modos discursivos singulares de orixá para orixá e diferem do âmbito verbal de
concepção acerca dos mesmos e de suas mitologias, sonhos e relatos biográficos. Sobre a
complexidade. Este discurso não se relaciona apenas com a composição da idéia que se
238
constrói da divindade e da narrativa de sua história, mas com a possibilidade de sua
realização, baseada em aspectos de certo modo técnicos exigidos do coro, dos ogãs e
também da divindade. Para dançar na nação Xambá, o orixá precisa ter “pé de dança”, ou
O orixá dança pelo toque, até por que nem todo orixá tem pé de dança. Pé
de dança é aquele orixá que dança bem. Aí se a gente for se guiar pelo
orixá, vai que ele não tenha pé de dança, aí o toque vai embaralhar todo.
E, mesmo assim, o ilu é que tráz o santo e as toadas. As toadas e os ilus
são que trazem o santo à terra. Então, ele vai dançar de acordo com o que
estiver cantando e tocando. A não ser que ele peça pra cantar e tocar a
toada dele.
equilibrada. Seu Maurício alerta que muitas vezes a pessoa ou orixá pára de dançar para
poder ouvir a toada: “se não responde certo, não se dança certo. Não se pode separar”.
acompanhar os tambores esta relação pode também ser invertida, conforme o desejo do
santo de ouvir sua toada. Por outro lado, o coro deve cumprir seu indispensável papel de
presente nesse universo onde todos os seus elementos se apresentam associados e ricos de
simbolismo e reciprocidade.
239
5.5. Iansã, as mulheres e a música – gênero na Etnomusicologia
perceber como emergem no seio dessa área dois focos de interesses e rumos que são
vertente antropológica – estudo das relações entre a música e a sociedade que a produz.
Continuando, o autor lança quatro perguntas básicas à (s) formação (ões) etnomusicológica
(s): 1. da orientação antropológica: O que eles estão fazendo? E por que o fazem dessa
estruturas desses sistemas sonoros? A partir dessas questões o autor ressalta as lacunas que
Quando falamos sobre música é importante atentar para o fato de que ela não
realizada por pessoas que carregam uma história, cultura, sexo, idade, cor e inserção social
específicos que juntos irão delinear uma série de questões nesse seu fazer musical. Nesse
A música está de algum modo relacionada com a sociedade que a produz. É necessário,
no entanto, ir além dessas generalizações otimistas e investigar a natureza da
vinculação postulada através de estudos que analisem tanto as estruturas sonoras
produzidas quanto a sua relação com os seres humanos que a produzem.
41
Oriki de Oya: em Baningbe, África (Verger 1999, 405).
240
Como ponto de partida para a discussão o autor analisa uma akia - gênero musical
indígena, dos Suya do Brasil Central. Relaciona esse gênero musical à organização
cosmológica e social dos Suya e, também à análise do que chama de “contexto total”
refletindo de que maneira o contexto exerce poder nos sons e vice-versa: “Se o contexto
influi sobre os sons, é também bastante provável que estes, por sua vez, contribuam para
criar, ou até mesmo alterar, o contexto em que serão produzidos”. Acrescentando, define
“contexto” como algo que se descobre após levantar as seguintes questões: “quem”, “o
Embora o som possa ser captado através de qualquer gravador, a música num
sentido amplo vai além de suas estruturas sonoras. Esse ‘ir além’ contempla diversos
geracional e de classe, implica inúmeras questões resultantes do fazer musical que irão
influenciar a música.
Respondendo à pergunta que dá nome ao artigo: “Por que os Suya cantam para
suas irmãs”, Seeger (1977, 56) afirma que o fato dos homens cantarem as akias para estas
diz respeito à referência hierarquicamente contrastante com parentes que não sejam
são consideradas ‘nós’(kwoiyi), diferentemente das esposas, por exemplo, que são
fim, Seeger (idem, 57) reforça que “um homem canta para a sua irmã porque o som é
capaz de estabelecer uma ponte através da distância espacial que separa o homem adulto de
seu grupo de residência natal” e tanto a fala como o canto é concebido como sinônimo da
masculinidade adulta (idem, 58). Em seu artigo Seeger privilegia o universo masculino
Suya embora ressalte o importante papel musical de ‘juízes’ que as irmãs cumprem.
241
Contudo, o autor reforça e demonstra todo o tempo como música não se restringe a
estruturas sonoras, como cada momento está relacionado aos valores presentes na
sociedade.
Seeger (1977, 59) atenta ainda para o fato de que não se pode analisar música
restringindo-a ao som, mas ampliando-a para o contexto, que é composto por pessoas que
questões onde sexo, raça e classe compõem uma tríade fundamental. A música como
produto cultural deve ser pensada amplamente, retomando a questão do contexto apontado
pelo autor de “quem”, “o que”, “onde”, “quando”, “como”, “para quem” e “por quê?”, que
pensados a partir desta tríade nos fornece relevantes questões para pensar música e
sociedade.
Sarkissian (1992, 337) afirma ainda que o estudo de gênero muitas vezes é
concebido numa perspectiva biológica, mas que na realidade, combina questões que
diferenças que se refletem na música, na performance musical e nas pesquisas que são
‘sexo’ são compreendidos portanto como distintos”. Este conceito fomenta a percepção de
que tanto gênero como música representam construções culturais, embora muitas vezes
sejam naturalizados e simplificados, separados da realidade social, dos poderes e dos não-
242
hierarquizados e onde o ‘não-poder’ feminino é proporcional ao poder masculino, ambos
gênero emerge a consciência de que este não representa os papéis sociais biologicamente
natureza e a própria condição humana. Sob esta ótica, aprender sobre mulheres pressupõem
aprender sobre homens, pois gênero representa uma categoria analítica relacional: “O
estudo de gênero é uma forma de compreender as mulheres não como um aspecto isolado
da sociedade, mas como parte integral dela”42 (Conway, Bourque e Scott, 1996, 33). A
representa um poderoso veículo cultural que reforça valores, seja em seu próprio
‘conteúdo’ musical, seja em relação ao contexto, quem toca, quem ‘pode’ tocar, as
hierarquizações dos papéis musicais como um todo, mesmo que este contexto seja
religioso.
Fundado por uma filha de Iansã, o terreiro Xambá é marcado por uma maioria
feminina, ainda que de certo limitada por seu ‘não poder’ na participação de diversos
momentos no culto e também em relação aos tambores sagrados, que lhes são acessíveis
apenas nas obrigações, mesmo assim, é, sem dúvida, um diferencial nesta casa. O fato do
babalorixá Ivo possuir orixá feminino – Oxum, já mencionado, também sempre é reforçado
42
“El studio del género es una forma de comprender a las mujeres no como un aspecto aislado de la
sociedade sino como una parte integral de ella”.
243
pelos filhos-de-santo como uma justificativa ou reforço ao fato desta nação ser
caracterizada pela presença feminina, assim como o terreiro ser regido por Oiá Meguê -
orixá da então falecida Mãe Biu. Dentro do contexto afro-pernambucano, Mãe Biu, mulher
negra e pobre alcançou lugar de destaque como ialorixá da nação Xambá. Ainda que
obedecendo às regras e à tradição muitas vezes marcada por um ‘não poder’ feminino, a
participam. Musicalmente também se destacou por tocar nos tambores sagrados cujo
acesso é exclusivo ao universo masculino, assim como algumas de suas irmãs e como
ocorre atualmente, ainda que numa pequena proporção de meninas e mulheres em relação
diversas faces. Partindo do princípio de que não existe música pura e de que os
significados musicais são atribuídos pelas pessoas inseridas num determinado contexto, a
notória, assim como a relação das cantigas com os tambores e os entrelaçamentos com o
feminina, não especificamente no repertório de Iansã, mas no universo musical desta casa
Constituído por maioria de mulheres delineia uma forma de emissão vocal de registro
agudo que muitas vezes é repetido pelos homens que cantam em falsete, confirmando a
idéia de que a performance musical influencia o estilo, que este está atrelado a relações de
construído a partir do contexto no qual está inserido e como via de acesso à compreensão
244
considerando o gênero como ponto de partida visa enfocar o universo feminino e suas
acontecer tanto de maneira formal quanto informal. Sob tal perspectiva, a música
conforme a concepção de quem a faz, ou seja, não existe um conceito universal do fazer
musical. Neste sentido, embora a relação entre tambores e canto seja verbalmente
hierarquizada quando o povo-de-santo afirma que “o coro não canta, apenas responde”,
Em determinados momentos não se toca, mas na maioria dos casos se canta, e este sempre
uma das tônicas, principalmente nas cantigas que mencionam Oiá Meguê, onde mesmo que
o sentido literal dos textos das cantigas não seja de conhecimento do povo-de-santo diante
de toda sua história, esse significado é construído em torno da figura de Mãe Biu quando
se busca traduzir as cantigas como um pedido de ajuda e de força de que nos falou seu
Maurício ou que Oiá Meguê está no “Aga Ilê”, como a rainha que é, comandando o céu.
um conjunto de poderes e de ‘não poderes’. Blacking (1974) propõe também uma análise
musical e as questões que vão do biológico – percepção aural, ou seja, a apreensão dos
43
Nettl (1983, 189) considera aural a percepção global do indivíduo em relação aos elementos que
são transmitidos na cultura, seja no âmbito musical ou não.
245
reconhecendo que a música e a comunicação musical dependem do diálogo entre esses
de uma tradição44. Cultura aqui deve ser pensada como um conjunto de características
analisadas por um olhar guiado por concepções nativas, nos conduz à relevância de um
olhar que se lança sobre todas as relações possíveis que giram em torno da música, do
cultura, podendo ser concebida como todo o conjunto de elementos que são transmitidos de
geração a geração. Estes elementos são julgados pelas pessoas que constroem sua cultura,
seus valores como significativos tanto para a manutenção quanto para a transformação dos
mesmos. Leia-se tradição como o marco, o ponto de partida de uma travessia ou das várias
travessias humanas (culturais), mas que é, sobretudo dinâmico. Nesta rede que entrelaça
que a diferença sexual toma em cada sociedade e que se manifesta nos papéis e status
44
O termo tradição no singular não deve ser tomado como modelo único e estático abrangendo toda
a capacidade de transformação e dinâmica que a constrói.
246
atribuídos a cada sexo e constitutivos da identidade sexual dos indivíduos” (Ferreira 1999,
critica uma visão que foi recorrente durante longo período da história da Etnomusicologia
de gênero. O autor ressalta que a maioria das pesquisas etnomusicológicas ainda concebe
uma escala de valoração idêntica às diferentes atuações femininas e masculinas. Partiu das
pesquisadoras vão visibilizar as atuações femininas até então invisíveis para o olhar dos
transmissão musical. Continuando, o autor (1983, 334) afirma que na maioria das culturas,
existe uma grande diferença entre as vidas da mulher e do homem e que existe, portanto,
uma divisão das responsabilidades sociais e de trabalho, atuações distintas que resultam em
repertórios musicais distintos. Nettl (1983, 339) destaca também que as relações entre as
diferentes atuações podem determinar o estilo musical de uma sociedade e que em várias
contato mais constante com as crianças. Merriam (1964, 247), por sua vez, reforça o fato
de que as distinções que se dão no âmbito musical, conforme o sexo ocorre em todas as
sociedades:
247
religioso. (. . .) Então música reflete, e nesse sentido simboliza papéis
masculinos e femininos45.
estudos de gênero, Dias (2003, 22) ressalta que o gênero se encontra imerso no âmbito do
entre outras e atuam na configuração das relações humanas, sociais e culturais em diversos
níveis:
Assim como Dias, Kimberlin (1991, 14) afirma que o gênero interage com
relações ressaltadas com o universo da Nação Xambá. Sua história marcada pela presença
das filhas de Iansã, e da atuação feminina ser representativa na atualidade, sendo Iansã e
Mãe Biu as duas grandes referências que atuam na construção da identidade atual deste
terreiro afro-brasileiro.
cultura, de uma religião, que são imprescindíveis à sua construção em diversos níveis. Seja
45
“ Music reflects the Sex distinctions made in all societies; some songs are reserved for men and
some for women.(...) This distinstion on the basis of Sex is also reflected through music where the Sex
groups themselves are at the basis of certain aspects of religius ritual.(...) Thus music reflects, and in a sense
symbolizes male-female-roles”.
248
extrema importância considerar os diversos aspectos presentes em seu complexo universo.
Dentro do universo musical da nação Xambá, a atuação das mulheres o repertório vocal
partir da música podemos alcançar um olhar que se pretende holístico acerca de questões
culturalmente estabelecidas, pensando em sua relação com a cultura e, por fim, com a
religião. A música dentro de tal contexto compõe elo entre os diversos fatores presentes no
suas filhas. A história deste terreiro, como já foi demonstrado, é marcada por uma atuação
de filhas de Iansã. Atualmente, embora o babalorixá seja do sexo masculino, seu ori
pertence a Oxum. A filha de Pai Ivo, Adriana Paraíso é também, assim como era sua avó,
filha de Iansã e sua filha, Cíntia Paraíso, herdou da bisavó o orixá Ogum. Estas relações
familiares e religiosas denotam a questão geracional como um fator presente neste terreiro
meio a tal universo, é importante ressaltar mais uma vez o fato de que existe uma maioria
orixá se confundem. Para a filha (o) o orixá representa um outro que ao mesmo tempo
representa um delineador de sua própria identidade não só religiosa como individual que
vai ser representado musicalmente através de seu repertório. Por conseguinte, a história da
nação Xambá é marcada por uma história de filhas-de-santo de Iansã que em meio a
uma referência de coragem e independência feminina. Cardoso (2001, 60) destaca que o
“conjunto cultural” que compõe a tradição oral está sobretudo centrado nas lembranças de
249
seus indivíduos, construindo uma memória tanto individual como comunitária, certamente
pode ser feito o transporte desta afirmação para o contexto do que representa as filhas de
Iansã no Xambá. Estas são atuantes e concebidas como a própria divindade – todas
250
6. Conclusão - A casa Xambá é a casa de Oiá1
A partir das várias incursões realizadas neste trabalho foi possível perceber que
inicialmente apresentada, Xambá - Iansã - Música, sendo esta a mola propulsora para a
realização desta pesquisa. É a partir desta tríade que todos os elementos se mesclam
Neste contexto, a questão do gênero salta aos olhos quando se lança um olhar sobre a
1
Declaração de Sandro Paraíso em entrevista realizada em junho de 2004.
2
Cantiga de despedida das Iansãs. A última cantiga a ser entoada no repertório musical dedicado a
este orixá.
classe, visto que Mãe Biu além de ser mulher, era negra e pobre. A relevante participação
dedicada aos orixás. Elementos como o registro agudo e a emissão vocal do coro delineiam
uma forma de cantar essencialmente feminina e, por ser marcante, é também reproduzida
pelos homens. Mesmo nas obrigações de Balé, onde a participação feminina é vetada, o
coro está presente – as mulheres ficam à porta do Quarto de Balé para responder aos cantos
priori, exclusivo dos homens. Às mulheres não é vetado o acesso aos tambores,
considerados sagrados, e ao abê, sendo este último o primeiro instrumento que as crianças
e jovens têm contato no processo de aprendizagem musical que ocorre, sobretudo, nas
legada por Mãe Biu que, inovando, tocava os tambores sagrados. Esta ialorixá, tendo
vivido toda uma história de resistência religiosa no contexto das perseguições aos cultos
predominância e prestígio era de maioria de babalorixás. Mãe Biu, no entanto, não esteve
sozinha nesta jornada de construção de uma tradição de liderança feminina. Várias outras
independência. O próprio Pai Ivo3, filho dessa tradição de atuação feminina, declara:
Minha mãe foi inovadora nesse sentido. Minha mãe tocava ilú. Dona
Laura tocava ilú. Fátima, minha prima, tocava ilú. Adriana já tentou tocar
ilú alguma vez, Luana também, Neta também. É uma questão de
formação de hábito. Eu lembro há uns vinte, trinta anos atrás, a primeira
mulher dirigindo um ônibus, passou até na televisão. A primeira mulher
3
Entrevista realizada em junho de 2004.
252
comandando a polícia. São esses tapetes vermelhos que colocam em
torno da mulher que tiram elas da posição. Se mostrasse como uma coisa
simples, uma coisa qualquer. . . Isso, em vez de ilustrar, dar um maior
destaque, pelo contrário, mostra a queda de braço e causa, por outro lado,
a chamada ciumeira de tirar. Então, aqui na nossa casa nunca foi proibido
para uma mulher tocar ilú. A qualquer momento que chegar uma mulher
que tenha uma boa condição de tocar, não é proibido. Agora, a questão do
costume é que tira.
Embora a fala de Pai Ivo explicita que não houve a abertura, mas a conquista de um espaço
feminino, a questão a meu ver não deve ser resumida ao ‘costume’ apenas, mas de que
de Iansã são tomadas como guerreiras, independentes, corajosas, arredias assim como a
Eu tenho todo respeito por Iansã, por que foi quem me criou. Minha mãe
separou-se do meu pai desde quando eu nasci. Se eu não consegui chegar
a muita coisa, mas o que eu consegui ser até agora, que graças a Deus
tenho que agradecer aos orixás que, para mim, está de bom tamanho,
devo à Iansã e à minha mãe.
O olhar, a concepção de mulher guerreira e independente que se tem sobre Oiá e Mãe Biu é
também estendida para as demais filhas-de-santo deste terreiro. O próprio Pai Ivo
acrescenta que “Oiá é muito feminina no Xambá, pois existem poucos filhos de Iansã.
‘Feito’ apenas um.” Suas cantigas, danças e obrigações, representam um papel importante
253
guerreira, ágil, poderosa e intempestiva é louvada no toque público com um repertório
marcadas por um canto silábico, com diversas palavras “traduzidas” para o contexto
inhã -, um agogô e um abê, executam os seis toques – Ecó, Despedida, Jeje, Adarrum, Sete
e 16 pulsos dos toques, conforme o ogã que estiver tocando e dentro de parâmetros
dedicada a Iansã, no Xambá, apresentam semelhanças tanto com o universo musical Nagô
quanto com o Angola, podendo se estender até o Jeje através da nomenclatura homônima
Xambá.
cerimônia e “puxar” novos cantos que são aprendidos pelas filhas (os)-de-santo e
incorporados ao seu repertório musical5. Iansã ou Oiá representa uma categoria que
engloba diversas Iansãs ou Oiás que são particulares. Duas filhas-de-santo não possuem a
compartilhado em relação à categoria desse orixá. Embora existam cantigas que possam
4
Estou considerando aqui as cantigas registradas, transcritas e analisadas durante o tempo desta
pesquisa.
5
Sandro Paraíso comentou que certa vez uma filha de Iansã de nação Nagô estava ‘incorporada’ e
‘puxou’ uma cantiga desconhecida para os ogãs. Neste caso tocaram o Toque da Despedida para
acompanhar, pois é o de maior representatividade em seu repertório, a segunda opção seria o Ecó,
considerado o símbolo musical de Oiá.
254
ser entoadas para todas as Iansãs, há outras, individuais, que narram as qualidades
específicas de cada uma das suas faces. A manifestação das divindades nos filhos e filhas-
de-santo através dos rituais, propicia a relação entre o mundo real e o mundo divino.
Xambá que difere dos demais terreiros afro-brasileiros. Para os xambanianos, herdeiros
valorizada, mesmo que recebam com alegria novos adeptos. As relações de parentesco são
Embora não seja regra, é importante considerar que as relações com as divindades também
acontecem de forma geracional. Pai Ivo, filho consangüíneo de Mãe Biu, herdou dela o
orixá Xangô e a direção do Ilê Axé Oyá Meguê. Adriana Paraíso, filha de Pai Ivo e neta de
Mãe Biu é também filha de Iansã. Cíntia Paraíso, filha de Adriana e neta de Pai Ivo herdou
o Ogum de sua bisavó. Como reforçou Costa (2004a) O terreiro Xambá ou “xangô de Mãe
afro-brasileiras, por representar uma nação diferente, sem o “status” das concebidas como
com orgulho por seus adeptos que têm Iansã e Mãe Biu como suas referências de mãe e de
liderança. As duas são invocadas nos momentos difíceis e igualmente são homenageadas
através das cantigas para Iansã em geral e para a Iansã específica da ialorixá, Oiá Meguê.
contínua entre o passado, o presente e o futuro que só podem ser entendidas através da
255
participação nos toques e nas obrigações, estes inseparáveis do canto e da dança. Sandro
Paraíso sintetiza a importância de Iansã, através da atuação de Mãe Biu, para a nação
256
ANEXOS
1. GLOSSÁRIO 1
demais do panteão. Termo também utilizado para designar a salva dos tambores ou as
“palmas dos ogãs” em algum momento solene como o término do Toque público, ou para
saudar alguma pessoa ilustre que esteja presente no Toque. Cacciatore (1977) define como
Agogô – idiofone percutido, de campânula metálica única sem badalo, com cabo também
de metal tocado no Xambá com uma vareta de madeira. Segundo Cacciatore (1977) vem do
iorubá e significa ‘sino’. Também chamado gã em outros terreiros (termo de origem ewe).
Difundido em toda extensão da África Negra. Nas línguas de origem banto é chamado
Ajuntó – termo utilizado para designar o segundo orixá ‘dono da cabeça’ da filha ou filho-
de-santo. Normalmente uma pessoa possui um orixá principal que governa sua vida e em
1
A proposta desse glossário é de reforçar de forma reduzida os significados dos termos presentes no
decorrer da dissertação por serem utilizados no Xambá. Não houve aqui uma pesquisa aprofundada na
etimologia das palavras, a não ser quando encontradas (apenas algumas) em alguns dicionários de expressões
afro-brasileiras.
258
segundo lugar o ‘ajuntó’ que significa adjunto. No Xambá existem pessoas que possuem até
cinco orixás.
Alá – “grande pano branco debaixo do qual são conduzidos certos orixás, ou realizadas
certas cerimônias nos terreiros. Do iorubá “àlà” – roupa branca (Cacciatote, 1977). No
Alvorada - cerimônia dedicada à Iansã, onde são cantadas apenas as toadas deste orixá.
Nesta pode haver a presença de Iansã “em terra” através de suas filhas e filho, sendo
também homenageada por outros orixás que fazem a ela suas reverências. Acontece pela
Assentamento – morada do orixá. “Coisa, pedra, árvore, símbolo metálico etc. que
assentamentos de todos os orixás ficam no Peji, embora cada um possua sua parte
separadamente.
representa a vida. “Força dinâmica das divindades, poder de realização, vitalidade que se
que constituem segredo e são enterrados sob o poste central do terreiro, tornando-se a
segurança espiritual do mesmo, pois representam todos os orixás. Do iorubá “àse” – ordem,
259
Axé de fala – corresponde ao poder que o orixá adquire de se comunicar verbalmente com
Axexê - “cerimônia ritual fúnebre dos candomblés, quando morre uma pessoa importante
no mundo espiritual (...) Não há possessão, apenas Iansã – que domina os eguns – poderá
Babalorixá – designação para pai-de-santo. Segundo Verger (1992, 96) significa “pai-em-
Balé – nome específico da Iansã que governa os eguns. Segundo Cacciatore (1977) o termo
Banto – segundo Vivaldo Costa Lima (1976, 21) corresponde a grupo lingüístico mais ao
(1977) acrescenta que esse grupo compreende milhões de africanos e quase 300 dialetos
presente em quase dois terços da África Negra, do Camerum (atual Camarões) até o sul.
Inclui também Angola e Congo, países de onde veio a maioria dos africanos escravizados
para o Brasil, cujas línguas são principalmente o kibundo e kikongo, dentre outras.
brasileiro. “Mestiço de índio com branco” Do tupi “caá” – mato, folha (Cacciatore, 1977).
Despacho – segundo Cacciatore (1977) significa “oferenda feita a Exu. Com a finalidade
de enviá-lo, como mensageiro, aos orixás e de conseguir sua boa vontade para que a
cerimônia a ser feita não seja perturbada. Da mesma forma que “despachar” é o mesmo que
“enviar, mandar embora para o ar livre. Colocar arriar, em lugar determinado pelos orixás
260
ou entidades-guias, os restos das oferendas”. Este está presente tanto no candomblé quanto
na Jurema.
Ebó - a comida que foi preparada para os orixás ou as sobras das obrigações. Estas não
devem ir pra o lixo, mas para a natureza a depender do orixá se for de rio, do mato ou do
Ecó –toque de tambor de 12 pulsos específico de Iansã. Só está presente em seu repertório.
Ekede – cargo religioso exercido por filhas-de-santo que não ‘incorporam’. Estas cuidam
dos filhos e filhas-de-santo em geral durante o toque público, para que não se machuquem
quando ‘incorporam’ os orixás. Normalmente no Xambá não se utiliza o termo, salvo raras
exceções. Cacciatore (1977) apresenta também “ekédi” do iorubá “eké” – esteio, suporte;
“di” – tornar-se. Menciona que nos xangôs do nordeste é chamada iabá ou ilaís.
Epahei! – saudação que se faz à Iansã ou Oiá. Cada orixá possui a sua saudação específica
que é proferida no momento que se inicia seu repertório ou quando este ‘incorpora’ algum
Ewe – língua da África Ocidental, falada em parte da região da antiga Costa do ouro (atual
Gana), Rio Volta, Togo e Daomé (atual República do Benin). Compreende vários grupos
261
Filha (o)- de-santo – Como é chamada (o) a pessoa que faz parte do culto e cultua seu
orixá, o dono de seu ‘ori’. Verger (1992, 96) afirma que significa “pessoa de menor grau na
muito tempo de ‘feitura’. No Xambá esse termo não é utilizado em geral, embora haja o
cargo que é exercido pela prima do Pai-de-santo. Sinônimo de ekede. Do iorubá “iyáàgba”
Ialorixá – designação para mãe-de-santo. Segundo Verger (1992, 96) significa “mãe-em-
e renascimento. No Xambá a pessoa é iaô por sete anos após sua iniciação.
transe, ou seja, o momento em que a pessoa deixa de ser ela mesma para ser o orixá.
com as mãos. Também chamado de Ilú O Xambá utiliza nas cerimônias o trio: inhã, mele-
ancó e melê (do grave ao mais agudo) que possuem diferentes funções. Cacciatore (1977)
afirma que o termo é de origem banto “ngoma”, significa tambor. A cada ano é feita
Ilê – significa casa em iorubá. Ilê Axé Oiá Meguê corresponde à Casa do axé de Oiá
Meguê, a Iansã específica de Mãe Biu, ialorixá por mais de quarenta anos do Xambá.
262
Ilú – denominação para os tambores cilíndricos utilizados no candomblé, além dos
Presente no repertório de Iansã é um dos mais rápidos. Também está presente no repertório
de Ogum que na mitologia é o primeiro marido de Iansã. O termo designa “dialeto do grupo
dialetal fon da língua ewe falado por escravos do Daomei (atual República do Benin). Do
iorubá – “àjeji” – estrangeiro, estranho, nome que os iorubá, no Daomei, davam aos povos
Jurema – Também chamada de ‘catimbó’. Motta (1997, 11) define a Jurema como culto
nome. No Xambá é realizado em espaço físico distinto do que se realiza para os orixás,
Keto – “Também dito Ketu. Antigo reino da África Ocidental, cortado em dois pela atual
Louvação à Oiá - cerimônia que consistia até o falecimento de Mãe Biu (1993) na
coroação da ialorixá, ‘incorporada’ com Iansã utilizando sua espada, coroa e trono.
Acontece anualmente, no dia 13 de Dezembro, data da primeira coroação realizada por Pai
nação Xambá – Maria Oiá. Atualmente esta cerimônia representa uma homenagem à Iansã
e à Mãe Biu através dos cânticos para este orixá, mas ninguém senta no trono. O termo
263
“louvação” também é utilizado no sentido geral para os demais orixás, o momento em que
Nação – grupo étnico ou religioso. Termo que deve ser concebido em sentido amplo,
teológico. As nações afro-brasileiras são similares, contudo, diferem conforme sua origem
africana e seu grupo lingüístico. São elas: a nagô-ketu (tronco iorubá), Angola (tronco
Nagô – “nome dado no Brasil, ao grupo de escravos sudaneses procedente do país iorubá.
Também designa a língua iorubá. Do ewe – “anago” – nome dado pelos daomeanos aos
povos que falavam iorubá, tanto na Nigéria como no Daomé, Togo e arredores e que os
Obori – o mesmo que “dar de comer à cabeça” ou “fazer o santo". Importante cerimônia do
período iniciático que é concluído com a “Saída de Iaô”. Também chamado “Bori” – do
podem tocar também. A própria Mãe Biu tocava, mas as mulheres, mesmo que toquem não
são consideradas ogãs. No Xambá o ogã não tem que ser iniciado na religião, mas
264
certamente faz parte da família-de-santo desde que nasceu. Embora não seja freqüente, o
Oniká – a toada que caracteriza o orixá, seu ‘hino’. Cada divindade possui o seu. O oniká
de Iansã é acompanhado pelo toque Ecó. É executado apenas no dia específico do toque
executado sempre no término do toque público, após a ‘volta dos tambores’, para
Ori –o guardião da “cabeça”, mas também é concebido como a própria cabeça, a “força
pessoa e, “fortalecer o ori” é o mesmo que fortalecer a vitalidade de uma pessoa (Carvalho
Orikis - forma de saudação, louvação aos Orixás, segundo Verger (1999, 405) corresponde
à exaltação do poder, fatos, proezas do ancestral divinizado. No Xambá esses orikis não
estão presentes. Contudo, optei citar os de Iansã que narram sua atuação e personalidade.
Orixás – divindades de origem iorubá que se relacionam com as forças da natureza. Iansã,
por exemplo, é a rainha dos ventos e das tempestades. O panteão do Xambá é composto por
14 orixás que são cultuados e possuem filhas (os)-de-santo (ver tabela da pág. 123, no
capítulo 4).
Otá – pedra onde é fixada através de uma cerimônia ritual a morada do orixá, ou seja, seu
axé constituindo o seu assentamento. Cada orixá possui o seu que vai depender de seu
elemento específico da natureza, se é do mar, do rio, do mato, etc. Do iorubá “ota” – bala
265
Otobalé – saudação realizada pela (o) filha(o)-de-santo quando ‘incorporada’ com seu
orixá para demais orixás e pessoas importantes da Casa. Os orixás masculinos deitam-se de
bruços no chão aos pés daquela (e) reverenciada (o). Os orixás femininos deitam-se
primeiro de um lado, depois de outro aos pés daquela (e) reverenciada (o) em sinal de
“o mesmo que adubalé e dobalé. Do iorubá: “a” – prefixo; “dòbálè”- ato de se estender no
solo”.
Peji – quarto sagrado onde ficam as moradas dos orixás, seus objetos sagrados e onde são
da hierarquia. Todos se consideram uma família, sendo o babalorixá e ialorixá pai e mãe,
Quarto de Balé – espécie de ‘peji’ dos eguns. É o quarto sagrado, situado fora do terreiro,
onde são cultuados os eguns e ‘despachados’ os objetos sagrados das filhas (os)-de-santo
Saída de Iaô – momento em que a (o) Iaô literalmente sai do peji para ser recebido pelo
povo-de-santo, após a primeira semana de reclusão no terreiro para sua iniciação, já tendo
feito o obori.
266
Sineta de Orixalá – pequeno sino que pertence ao pai dos orixás. Utilizado para induzir o
transe, ou “chamar o orixá à terra”. Acompanha as cantigas deste orixá. Cacciatore (1977)
define como “adjá”, do iorubá “ààja” – tipo de chocalho usado em cerimônias rituais (de
“já”- bater).
Toque –além de designar o ritmo executado pelo grupo rítmico (tambores, abê e agogô),
‘festa’.
Toque de Balé – toque para Iansã de Balé, a rainha dos eguns. Representa uma cerimônia
porta do Quarto de Balé, ‘respondendo’ aos cantos ‘puxados’ pelo babalorixá. No Xambá
‘samba’ (o padrão de 8 pulsos pode ser pensado como binário também, característico desse
gênero musical). O termo designa também a religião formada no Brasil que cultua alguns
dos orixás do candomblé e segue também a doutrina espírita de Alan Kardec (Cacciatore,
1977).
Volta dos tambores - após cantar para Iemanjá e Orixalá (os últimos do panteão), o trio de
dar, literalmente, três voltas no salão. Após as três voltas retornam aos seus lugares de
origem. Há uma cantiga específica para esse momento onde todos os orixás são citados.
267
Vodun- Também chamado “vodu”. Divindade Jeje correspondente ao orixá do Nagô do
Xambá – nação afro-brasileira que foi levada à Pernambuco por Athur Rozendo Pereira, de
Alagoas na década de 20, no contexto das perseguições policiais aos cultos afro-brasileiros.
Possui relações com a nação Nagô, dentre diversos elementos, através de seu panteão de
orixás e de suas cantigas em iorubá; à nação Angola, através de seu toque de tambor
Umbanda, pertencente ao culto da jurema e o nome de seus tambores, ingomes; por fim,
aparentemente à nação jeje, com a presença do vodun Afrequête (ver pág. 132, cap. 5).
Xangô - Motta (1997, 16) define xangô como culto aos orixás que correspondem a
divindades iorubás e que no Brasil são sincretizadas com santos católicos. O Xambá
Xequerê – também chamado de abê. Idiofone feito de uma cabaça grande envolvida por
contas presas em cordões, chamadas de “ave-maria”, que são friccionadas para a produção
Xere – idiofone de metal com sementes em seu interior. Pertence ao orixá Xangô. Utilizado
para induzir o transe, ou “chamar o orixá à terra”. Do iorubá “sérée Songo” – cabaça
Xuxu - cumprimento aos tambores, e à hierarquia do terreiro composta pelo ao pai e mãe-
de-santo, padrinho e madrinha. O xuxu é realizado também entre as pessoas que possuem o
mesmo tempo de feitura. Sinal de respeito, tanto em relação aos tambores que “trazem os
tempo na religião.
268
2. TEXTOS DAS CANTIGAS
Ó l’Oiá Minibu
Onikó sejó
Afunelé adê
(solista)
(coro)
Anda, anda
Oiá de Umbanda Onipoquê
Anda, anda
Oiá de Umbanda Onipoquê, Oiá
2
Todas as cantigas foram transcritas sob a supervisão de Sandro Paraíso. Não existe uma única
forma de cantá-las. É comum que o povo-de-santo acrescente variantes ou mude alguma pronúncia.
269
2.3. Ê aguere ilê ô 173
Ê aguerê ilê ô
Guerê iê, guerê iê
Oromi xequé
Ê aguerê ilê ô
Gará, gará
Ômenin Doum
Guerê ilê ô
Ê um loê,
(solo)
Ê um loêia
(coro)
Ê um loê,
(solo)
Ê um loêia
(coro)
270
2.5. Êmidebô Cilê 160
Êmidebô cilê
Êmidebô cilê
(solista)
É a l’Oiá
É a l’Oiá ê
(coro)
Era com fé
(solista)
É l’Oiá
(coro)
Fara com fá
Ilú dulá
Que pero l’Oiá
É maré com fá
(solista)
A l’Oiá
(coro)
Ô Gigandê, ô Gigã
271
2.8. Iansã coroou 189
Texto 1:
Texto 2:
Laurá Guanguá,
Laurá Guanguá
Iansã de Balé é Guanguá,
Lauré é Guanguá
Ô que penajô
(solista)
(coro)
272
2.11. Mambaloê, mambaloiá 171
Mambaloê, mambaloiá
Mambaloê, mambaloiá
(solista)
Egunitá ela é
Ô jamitô ita l’Oiá
(coro)
(solista)
Num areissô,
Ó l’Oiá Bendicá num Agadê
(coro)
273
2.14. Oiá Bainha Balaxó 203
Oiá Barelô
Oiá Barelô
Oiá Barelô
Oiá Meguê Barelô
274
2.18. Oiá Dê Mampariô 188
Oiá Dê Mampariô
Oiá Messã oro é de jangoló
Oiá Denina,
Denina Dinefó
275
2.23. Oiá Ladê 201
Oiá, Oiá aê
Oiá Meguê num Agailê
Oiá, Oiá aê
Oiá Meguê num Agailê Oiá
(solista)
276
2.27. Oiá Messã Pampa 169
Sobomi sobô
(solista)
Oiá Caraô
(coro)
Sobomi sobomi
(solista)
Oiá Caraô
(coro)
277
3. CD
Gravação em mini-disc realizada no Toque de Iansã da nação Xambá em 19 de dezembro
de 2004:
Ogãs que se revezaram nos tambores, agogô e abê: Sandro Paraíso, Washington Luis
3
Página do corpo do texto onde se encontra a transcrição da cantiga.
4
Importante observar que o babalorixá é interrompido por uma filha-de-santo incorporada com Iansã
que pede sua cantiga.
278
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