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Caso Prático 1 – Resolução

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RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO 1

O tipo objectivo do 144.º


A, sabendo que era seropositivo, sabendo que o vírus é sexualmente transmissível,
que se trata de doença incurável à qual advem necessariamente a morte, teve relações
sexuais com B, sua mulher, sem tomar qualquer tipo de precaução.
A actuação de A criou indevidamente um risco que se concretizou na infecção de
B.
Nos termos do artigo 10.º do CP, A praticou uma acção adequada a ofender o
corpo e a saúde de B.
Era claramente previsível para A, seropositivo, que o facto de ter relações sexuais
com B, sem qualquer protecção, implicasse a sua infecção.
Tal infecção é subsumível ao disposto na alínea c) do 144.º do CP.

O tipo subjectivo do art. 144.º


O artigo 13.º do CP consagra o princípio da excepcionalidade da punição dos
crimes negligentes, postulando que só é punido o facto praticado com dolo ou, nos casos
especialmente previstos na lei, com negligência.
A regra é, pois, a punibilidade do facto doloso, a não ser que a lei especialmente
preveja a punibilidade do facto negligente.
Ora, o artigo 144.º não faz tal ressalva, pelo que estamos perante um tipo
subjectivo doloso.
Dolo significa consciência e vontade de praticar um certo acto ou uma certa
consequência.
Para se dizer que alguém actuou com dolo tem que se aferir se a pessoa tinha
consciência do que estava a fazer, tendo que ter um conhecimento fiel da realidade
objectiva e tendo que actuar intencionalmente.
De certa forma, a vontade pressupõe conhecimento - só se pode matar uma
pessoa, se se souber que aquilo é uma pessoa.
Distinguem-se dentro do dolo dois elementos: o elemento intelectual ou cognitivo
que corresponde ao conhecimento dos elementos objectivos de um tipo de crime e o
elemento volitivo que corresponde ao desejo da prática de um certo facto ou a produção
de um certo resultado.
Para além da ideia de que para haver dolo é preciso um certo conhecimento, uma
certa vontade, existe ainda o problema de saber até que ponto essa vontade se encontra
presente.
Assim é possível distinguir três tipos de dolo, o dolo directo, necessário e
eventual.
No dolo directo, ( art. 14.º, n.º 1) o agente representa uma facto que preenche o
tipo de crime - elmento intelectual - actuando com intenção de o realizar- elemento
volitivo.
No dolo necessário, ( art. 14.º, n.º 2) o agente actua representando um facto que
preenche um tipo de crime como consequência necessária (certa) da sua conduta.
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No dolo eventual, ( art. 14.º, n.º 3) o agente representa como consequência
possível da sua conduta um facto que preenche um tipo de crime, conformando-se com
tal realização.
Dúvidas não há que A tinha conhecimento do risco da sua acção para a saúde de
B. Nos termos da lei, ( art. 10.º) A representou a realização de um facto ( contaminação
de B) como consequência da sua conduta ( relação sexual com ela mantida).
Resta saber se A queria tal resultado, agindo assim com dolo directo; se se movia
no domínio da certeza normativa agindo com dolo necessário ou se não tinha como
objectivo a contaminação de B, nem a viu como consequência necessária da sua conduta,
mas se admitiu que ela acontecesse não deixando, apesar disso, de actuar havendo então
dolo eventual.
Resulta dos elementos de facto de que dispomos que A não queria a contaminação
de B, com quem era casado.
Afastamos imediatamente a realização do tipo subjectivo por dolo directo e
necessário.
Entende-se que o agente que revela absoluta indiferença pela lesão do bem
jurídico, apesar de o representar como possível , sobrepõe de forma clara a satisfação do
seu interesse ao desvalor do ilícito e por isso decide-se pelo sério risco contido na
conduta e, nesta acepção, conforma-se com a realização do tipo objectivo, o que basta
para que o tipo subjectivo deva ser qualificado como doloso.
O essencial é a indiferença do agente perante a realização do tipo, sobrepondo o
seu interesse ao desvalor do tipo, decidindo-se pela acção.
A foi meramente imprevidente, agiu com manifesta falta de cuidado pois, como se
disse, A não queria a contaminação de B.
Ora, em das qualquer modalidades de dolo, não se prescinde do elemento volitivo,
embora haja uma graduação dessa vontade.
Concluimos, pois, que A não realizou o tipo de ilícito do artigo 144,º do CP, por
falta do elemento subjectivo.

Ofensas à integridade física por negligência - art. 148.º

O tipo objectivo do 148.º


A acção de A ( relação sexual mantida com B) provocou em B ofensa grave da sua
saúde ( infecção com o vírus da Sida) que se traduz num doença particularmente dolorosa
e permanente que lhe afecta de maneira grave a capacidade de trabalho, as capacidades
intelectuais e a possibilidade de utilizar o corpo, provocando-lhe mesmo perigo para a
vida.
Ao nível da imputação objectiva, a relação sexual de A é adequada à produção da
infecção atento o disposto no art. 10º nº 1 do C.P..Na verdade, e sob um outro prisma, a
conduta de A traduz-se num aumento do risco concretizado no resultado.
Sendo certo que a acção de A é idónea à produção de tal resultado, A preencheu o
tipo objectivo do artigo 148.ºn.º3.
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O tipo subjectivo do 148.º
O tipo subjectivo do 148.º é negligente, sendo um crime negligente de resultado.
Isto é, preenche o tipo subjectivo do 144.º quem não proceder com o cuidado a
que segundo as circunstâncias a que está obrigado e de que é capaz, representa como
possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actua sem se
conformar com essa realização ou não chega sequer a representar a possibilidade do facto
- art. 15.º, alínea a) e b).
No primeiro caso estaremos perante a negligência consciente e no segundo
perante a negligência inconsciente.
Afastaremos desde já a hipótese de A ter actuado com negligência inconsciente,
uma vez que se refere que A tinha conhecimento que as relações sexuais eram fonte de
transmissão do vírus, não se podendo afirmar que ele não representou a possibilidade de
contaminação, logo que não representou como possível a ofensa à saúde de B.
Como se disse, age com negligência consciente quem, de forma ilícita e
censurável, representa como possível a realização típica, mas actua sem se conformar
com essa realização.
Resulta do enunciado prático que A não queria a ofensa à saúde de sua mulher.
A conduta de A não pode deixar de se considerar negligente, pois uma acção em
que o agente não quer o resultado, nunca representa uma decisão de actuar.
O crime em causa é negligente de resultado, devendo atender-se no plano do
ilícito típico à violação do cuidado objectivo e à previsibilidade objectiva da realização
típica.
Diga-se em último lugar que o que distingue os crimes dolosos dos crimes
negligentes não é o desvalor do resultado, mas o desvalor da acção.

Ilicitude
Tendo A realizado o tipo do artigo 148.º do CP, está indiciada a existência de um
acto ilícito.
O tipo objectivo de ilícito negligente supõe a violação de dever objectivo de
cuidado e a previsibilidade objectiva da realização típica.
No âmbito do ilícito deve averiguar-se se o agente observou o cuidado exigido
objectivamente ( pelas exigências de um homem normal e prudente colocado na posição
do agente).
Impõe-se nesta sede de aferir do dever objectivo de cuidado: ao homem médio
era exigível que usasse preservativo, esta era a norma de cuidado que se lhe impunha. É
comummente aceite que tal não exigiria esforço que qualquer pessoa fosse capaz .
Não parece existir qualquer causa que afaste essa ilicitude.

Culpa
Nos crimes negligentes deverá apurar-se se o agente, de acordo com a sua
capacidade individual, estava em condições de satisfazer as exigências objectivas de
cuidade e de prever o resultado.
Para tal cuidado era o A capaz? Penso que sim. O agente de acordo com as suas
qualidades e capacidade intelectual estava em condições de satisfazer as exigências
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objectivas, uma vez que se diz no texto que A sabia que as relações sexuais eram uma
forma de transmissão da doença que de que sabia ser portador.
O agente representou como possível a realização de um facto que preenche um
tipo de crime, não se abstendo de o realizar, não querendo, no entanto que ele se
concretizasse.
Parece não existir qualquer causa que exclua a culpa de A, que conhece a ilicitude
do seu acto e que é imputável, em razão da idade e como nada se diz em relação ao seu
estado mental, presumimo-lo “normal”. A sua atitude é leviana, demonstrando uma
atitude pessoal no facto cometido denotado de indiferença pelo bem jurídico.

Punibilidade
Não faltam quaisquer condições de punibilidade

Conclusão
Concluimos que A actuou com negligência consciente, pois para além do que se
disse a propósito da violação do dever objectivo de cuidado, da previsibilidade do
resultado e da imputação objectiva do resultado à sua acção, há censurabilidade da acção
objectivamente violadora do dever de cuidado ( vimos que A tinha capacidade de culpa e
que podia prever o resultado).
A realizou o tipo de ilícito do artigo 148.º, n.º3 do CP.

Leiria, 11 de Novembro de 2002

Ludmila Marques

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