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RESUMO
Nesse trabalho, a partir da assunção de que os projetos de letramento podem ressignificar a
prática escolar, principalmente o ensino de Língua Portuguesa na escola, propõe-se a análise
de um projeto didático publicado pela revista Nova Escola, em sua versão online. Pensando
em projetos de letramento a partir da ótica dos Novos Estudos do Letramento, o que se
evidencia na pesquisa é que os materiais divulgados sob o rótulo de projetos e que, muitas
vezes, servem de subsídio para o desenvolvimento de aulas de Língua Portuguesa no país,
ainda estão pautados em visão conteudista, em que os gêneros textuais são trabalhados sob a
ótica formalística e prescritiva do ensino como instrução.
1 INTRODUÇÃO
pretende iniciar uma discussão acerca de um projeto didático 2 publicado na versão online da
revista Nova Escola.
Na etapa teórica, fazemos uma imersão nos significados dos diversos termos que
fazem referência ao letramento enquanto uma prática social 3 e também ressaltamos algumas
concepções acerca do trabalho com projetos de letramento e gêneros textuais, visto que são
concepções que servem como base fundante da análise a ser desenvolvida.
A etapa analítica busca, além de refletir sobre um material divulgado pela revista
Nova Escola como projeto didático, apontar para a relação ainda de embate entre práticas
tradicionais e práticas de mudança 4 no que se refere ao ensino/aprendizagem de língua
materna.
Desse modo, além de percorrer conceitos teóricos pertinentes à práxis do professor
de língua portuguesa, pretendemos não apenas discutir as conceituações de letramento e
projetos de letramento, mas ressaltar a pertinência da análise de materiais divulgados pela
mídia e que muitas vezes são utilizados por docentes sem a devida análise, apenas por serem
modismos no discurso do professor “trabalhar com projetos” e “trabalhar com gêneros
textuais/discursivos” (OLIVEIRA, 2010).
2 OS ESTUDOS DO LETRAMENTO
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Em virtude do pouco espaço para a realização desse artigo, optamos por analisar apenas um projeto. No
entanto, reiteramos que esse estudo seria mais substancial se fosse possível desenvolver mais análises.
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Segundo Kleiman (2007) os eventos de letramento não se diferenciam de outras situações da vida social, uma
vez que envolvem atividades coletivas, com vários participantes com diferentes saberes, os quais mobilizam
esses saberes segundo interesses, intenções, objetivos individuais e metas comuns.
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Seguimos o proposto por Santos (2008) que considera necessário uma nova postura em relação às questões de
linguagem e à educação. Nessa concepção, o ensino da língua materna, diferentemente da gramática normativa,
seria gerador de práticas de leitura, de escrita e de reflexão sobre a língua, como práticas situadas historicamente
e vivenciadas subjetiva e coletivamente.
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3 PROJETOS DE LETRAMENTO
No que tange aos projetos de letramento, Oliveira (2008) expõe que a escola
tradicional, ainda centrada em práticas disciplinares e conteudistas, trabalha com a leitura, a
escrita e a gramática de forma descontextualizada, como se apenas essas práticas dessem
conta dos usos sociais da língua. Pensando nos projetos de letramento, na esfera do ensino-
aprendizagem de língua materna, a autora (2008) caracteriza-os enquanto práticas de
letramento - práticas sociais em que a escrita e a leitura são utilizadas para outra finalidade
além da mera aprendizagem e decodificação dos signos. Aprender a ler e a escrever por meio
de projetos de letramentos seria compreender e aprender aquilo que fosse relevante para o
desenvolvimento e realização de um empreendimento (KLEIMAN, 2000, apud OLIVEIRA,
2008).
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Educação bancária é um termo postulado por Freire (2015) para fazer referência à concepção de educação na
qual o saber é uma doação daqueles que se julgam detentores do conhecimento àqueles que por sua vez julgam
não saber nada. Segundo o filósofo (2015, p.82) “[...] na concepção bancária [...] a educação é o ato de depositar,
de transferir, de transmitir valores e conhecimentos [...]. Nela impõe-se a passividade e anula-se o poder criador
dos educandos, estimulando sua ingenuidade e não criticidade, o que acaba por satisfazer aos interesses dos
grupos opressores”.
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Para Kleiman (2006, apud SANTOS, 2008), à medida que o projeto de letramento
constitui-se como uma prática de letramento, cuja realização envolve o uso da escrita e a
leitura de textos que circulam na sociedade, os projetos devem ser, independentemente do
objetivo ou tema sobre os quais versa o projeto,
analisados e avaliados pelo professor conforme seu potencial para mobilizar
conhecimentos, experiências, capacidades, estratégias, recursos, materiais e
tecnologias de uso da língua de diversas instituições cujas práticas letradas
proporcionem modelos de uso textos aos alunos. (KLEIMAN, 2007, p.16)
Oliveira (2010) ressalta que o discurso do professor brasileiro nunca esteve tão
repleto de modismos teóricos como agora. Na fala do professor, o que se ensina são os
gêneros textuais, que devem ser pautados na concepção de linguagem enquanto prática social
e, além disso, ainda é necessário “alfabetizar letrando”. No entanto, segundo a autora (2010),
esse discurso não é o que tem se efetivado na prática.
Uma das razões para que o professor desenvolva um trabalho intituivo a respeito dos
gêneros textuais, são as diversas concepções teóricas que permeiam esse conceito. Enquanto
alguns estudiosos defendem que o objetivo da escola não seria tomar o gênero textual como
objeto real de ensino, mas como unidade concreta de atividade de linguagem, que pertenceria
necessariamente a um gênero (Bronckart 1999, apud BALTAR, 2006), alguns autores
defendem o ensino explícito dos gêneros, uma vez que eles seriam instrumentos de mudança
social e empoderamento dos sujeitos e outros ainda problematizam o ensino prescritivo e
formalístico dos gêneros. Muitas dessas perspectivas convergem no sentido de entender os
gêneros como objetos dinâmicos, sujeitos a mudanças e até ao desaparecimento.
Segundo Oliveira (2010)
pensar sobre a questão dos gêneros textuais no contexto escolar, requer, antes de
mais nada, compreender o que seja gênero e os fenômenos a que esse construto
estão vinculados, por exemplo, o do letramento entendido como uma prática social
plural e motivada por princípios de natureza ideológica.(OLIVEIRA, 2010, p.339)
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Desse modo, mesmo sabendo que a compreensão acerca dos gêneros textuais mais
deflagrada na escola é a de que eles são unidades textuais descontextualizadas, dadas e
estáticas, com algumas características facilmente identificáveis e prontas para serem
ensinadas, nesse estudo, consideramos os gêneros textuais como elementos estruturadores da
vida social, concepção também defendida por Oliveira (2010).
Além disso, reiteramos a ideia defendida por Baltar (2006) no que tange ao trabalho
com gêneros textuais como objetos de ensino. Segundo o autor (2006),
Instrumentalizar um usuário da língua é ajudá-lo a descobrir os diversos
gêneros textuais que estão em jogo nas relações sociais, para que ele possa,
uma vez conhecendo-os, expressar-se através desses gêneros com conforto,
nas atividades de linguagem que ocorrem nas diversas instituições sociais,
em que pretende desenvolver seus projetos pessoais; ou ainda que ele possa
participar da construção de projetos coletivos de sua sociedade. (BALTAR,
2006, p.176)
Ramos (2009) aponta que a revista Nova Escola, editada por iniciativa da Fundação
Victor Civita, ligada ao Grupo Abril, com tiragem mensal de 801.800 exemplares 6, ocupa o
segundo lugar no ranking das revistas de maior circulação no país, perdendo apenas para a
revista Veja (também do Grupo Abril). Segunda a autora (2009), o periódico é comercializado
em bancas de jornal, disponibilizada por assinaturas anuais e também em sua versão online,
além de ser distribuída gratuitamente em instituições escolares públicas, através de convênio
com o Ministério da Educação, por isso presume-se que a revista possa atingir de 1,5 a 2,0
milhões de leitores.
Ainda, segundo Ramos (2009, p.16), o público alvo da revista Nova Escola é
formado por professores do Ensino Fundamental e Médio de escolas particulares e públicas de
todo país, além de diretores, orientadores educacionais e estudantes de cursos de licenciaturas,
“constituindo-se, portanto, no mais conhecido e circulante periódico dirigido a um segmento
ocupacional específico”.
No que concerne à disciplina de Língua Portuguesa, a versão online da revista
disponibiliza, além de uma série de artigos sobre leitura, escrita e produção textual, projetos e
planos de aula prontos para que o professor utilize em sua prática.
Um desses projetos chamou nossa atenção por fazer referência à leitura e escrita do
gênero textual conto, e por ser destinado ao Ensino Fundamental I. O trabalho foi
desenvolvido por Ione Cardoso, Regina Câmara e Silvia Ferrari, assessoras técnico
educacionais da Secretaria Municipal de São Paulo.
O projeto intitulado Leitura e escrita de contos de aventura objetivava que os alunos
apreciassem a leitura de um clássico da literatura, além de apropriarem-se da linguagem típica
de contos de aventura. Os conteúdos a serem desenvolvidos nas sete etapas do projeto seriam
a leitura e a produção de texto e o produto final seria um livro com versões produzidas pelos
alunos a partir do conto A quarta viagem de Simbad, o marujo.
A primeira etapa do projeto constrói-se por meio da apresentação do livro As mil e
uma noites aos alunos, bem como no convite para que as crianças conheçam o conto
selecionado pelas professoras. Mesmo apresentando a obra, a seleção do conto a ser
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O dado apresentado encontra-se na tese de Ramos (2009), intitulada O ensino de história na revista Nova
Escola (1986-2002): cultura midiática, currículo e ação docente.
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trabalhado não é facultada aos alunos, mas fica restrita à escolha daqueles que elaboraram o
projeto.
Essa atitude vai de encontro ao proposto por Freire (1989). Para o educador (1989), a
atitude de um sujeito curioso e crítico deveria ser estimulada desde a alfabetização, pois
possibilitaria aos alfabetizandos aprofundar seus conhecimentos na pós-alfabetização e
assumir uma posição mais curiosa na vida cotidiana.
Ao limitar e não permitir que o aluno escolha um dos contos da obra para elaborar
sua produção escrita, as autoras reiteram a postura de fechar as aulas de língua portuguesa
sobre um corpus limitado de textos e em compreensões fixas (ABREU, 2010). Ao invés de
estimular o contato com o livro e com os diferentes contos da obra, o projeto insere o livro no
domínio escolar como um lugar de repressão e de controle. Para Abreu (2010), a escola
deveria ser um espaço que possibilitasse a participação no mundo literário, que permitisse aos
alunos expandir o conhecimento de sua cultura, além de desenvolver o interesse pela cultura
alheia.
Na segunda etapa do projeto, o professor deveria organizar sessões de leitura em voz
do conto e pedir que os estudantes levantassem “informações importantes sobre os
personagens, o ambiente, a sequência dos episódios, os aspectos linguísticos (como
marcadores de tempo, tempos verbais e expressões típicas usadas pelas personagens)” para
posteriormente elaborarem “um quadro para ficar afixado na sala para consultas futuras”.
Percebe-se, nessa etapa do projeto, que a leitura ainda é vista como um processo
simplista de decodificação e extração de informações do texto. Os alunos são convidados a
listarem informações sobre os personagens, ambientes e aspectos linguísticos, mas não se
reitera a interação entre texto e leitor.
A partir da análise do processo de leitura no projeto, reiteramos o que diz Rojo
(2009, p.79), que “[...] somente poucas e as mais básicas das capacidades leitoras têm sido
ensinadas, avaliadas e cobradas pela escola. Todas as outras são quase ignoradas”. No projeto
divulgado pela revista, as habilidades de leitura cobradas e avaliadas posteriormente são as
mais fundamentais e mesmo as estratégias de compreensão leitora como a ativação de
conhecimentos prévios dos alunos e a antecipação ou predição do conteúdo e das
propriedades do texto não são capacidades que ganham destaque durante o projeto.
Na contramão do exposto pelo projeto, Freire (1989) aponta o processo de leitura
deveria envolver uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgotaria na decodificação
pura da palavra escrita ou da linguagem escrita. A leitura do mundo nos projetos
desenvolvidos em sala de aula, propõe o educador (1989), deveria preceder a leitura da
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Consideramos que o projeto publicado pela revista, mesmo intitulado como um projeto didático, não se encaixa
no escopo teórico dos projetos de letramento, que se sustentam pela perspectiva do letramento ideológico.
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ideológico, envolve muito mais que a repetição de características de determinado gênero para
a confecção de um livro. Envolve decodificar a dimensão ideológica dos textos para formar
um cidadão capaz de analisar e desafiar as forças que, na materialidade do discurso, podem
ser encontradas.
Percebe-se também o embate entre práticas tradicionais - o ensino prescritivo dos
gêneros, o foco nas habilidades mais básicas de leitura e escrita - e práticas de mudança –
trabalhar sob a luz de projetos de letramento - no que se refere ao ensino/aprendizagem de
língua materna.
O projeto, inserido em uma concepção de letramento autônomo, que privilegia o
repetição de conhecimentos descontextualizados, se utilizado sem modificações, apenas
coaduna com a visão de professor como transmissor de conhecimentos e não como um agente
de letramento, que busca investigar as práticas sociais em que os alunos estão inseridos para
adequar os conteúdos a serem trabalhados em aula, que planeja e realiza, em conjunto com a
comunidade escolar, ações para os alunos compreendam e desenvolvam as habilidades de
leitura e da escrita de maneira criativa, crítica e ativa para transformar a realidade em que
estão inseridos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23. ed. São
Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989. 80p. (Polêmicas do nosso tempo 4).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 59 ed. 2015.
RAMOS, Márcia Elisa Teté. O ensino de história na revista Nova Escola (1986-2002):
cultura midiática, currículo e ação docente. 2009. 272 p. Tese (Doutorado em Educação)
Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Educação. Disponível em <
http://www.ppge.ufpr.br/teses/D09_ramos.pdf> Acesso em 02 nov.2015
ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo, SP: Parábola
Editorial, 2009.
SOARES, Magda. Letramento. Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 3 ed.
2003.
STREET, Brian V. Autonomous and ideological models of literacy: Approaches from New
Literacy Studies. Media Anthropology Network, v. 17, 2006. Disponível em
<http://www.philbu.net/media-anthropology/street_newliteracy.pdf> Acesso em 01 nov. 2015.