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ouco mais de um ano após a Operação Cidade Limpa, que em junho de 2012
desencadeou a repressão contra pixadores em Santa Maria, a nova ação da Polícia
Civil para reprimir a pixação na cidade e na capital do estado foi batizada
de Operação Rabisco. Nas primeiras horas do dia 31 de julho, 30 pessoas – 27 em Santa Maria e
três em Porto Alegre – tiveram suas casas vasculhadas em busca de materiais que,
supostamente, serviriam de evidências do crime de pixar, numa operação que envolveu 90
policiais civis, 28 viaturas e agentes da mídia tradicional, acionada para acompanhar a ação desde
seu início.
Se a primeira operação expressava, já em seu nome, uma noção de higienismo social, segundo a
qual algumas pessoas e suas expressões incômodas deveriam ser expurgadas para “limpar” a
cidade, a nova ação repressiva da Polícia Civil demonstra o desprezo do poder público pela
expressão artística, simbólica e existencial de uma parcela cada vez maior da juventude: reduzir a
pixação (com X, pois se trata de um movimento com nome, valores e princípios) a mero “rabisco”
é desconsiderar a própria possibilidade de tentar compreendê-la.
O ato de pixar é enquadrado como crime ambiental, conforme o artigo 65 da lei 9605/1998, e
como dano ao patrimônio, de acordo com o artigo 163 do Código Penal. Segundo este artigo, o
dano configura-se ao “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”. Nos discursos oficiais e
oficiosos, os termos “pixador” e “vândalo” funcionam como sinônimos, e a pixação não parece ser
mais do que uma categoria do vandalismo.
Já há algum tempo, pixadores e estudiosos do tema vêm demonstrando que a pixação não
inutiliza nem danifica os espaços que ocupa: apesar da transgressão de não esperar – e até evitar
– o consentimento dos proprietários, o pixo, assim como o grafite, apenas aplica tinta às paredes.
A expressão livre espalha-se pela urbe, sem pedir nem perguntar a ninguém, assim como as rotas
urbanas da exclusão não indagam quem quer ter acesso pleno à saúde, ao saneamento básico,
ao transporte público e a espaços de lazer – enfim, a quem cabe o privilégio de ter direito à cidade
em sua plenitude.
Em entrevista à revista o Viés, Djan Ivson, ou Cripta Djan, pixador reconhecido e um dos
defensores do pixo como expressão artística, afirma que a pixação é um corre existencial: “Todo
mundo também quer criar a sua memória e se eternizar na cidade. E é por isso que muitos jovens
vão buscando o pixo como uma forma de afirmação existencial mesmo. De criar uma história
através das paredes da cidade, e também de interagir com a cidade, fazer uso dela”. Desta forma,
a caracterização do pixo como dano ou deterioração não é mais do que um juízo estético: o
pixador, que busca expressar-se e eternizar-se, não quer ver destruído o suporte de sua
expressão.
Um dos pixadores detidos na operação policial posterior à Cidade Limpa, chamada Restauração –
e que, como a maioria dos investigados, prefere não se identificar por receio de represálias –
afirma que no pixo existem alguns critérios observados na escolha dos locais para o ataque. “Na
vila, temos um critério de não pegar casa de gente que seja pobre, desfavorecida. O cara faz
fachada de prédio, lateral de prédio. E o que se busca é o ponto mais alto, o ponto mais visto ou o
lugar de onde nunca vai sair, aquele lugar que tu sabe que vai eternizar ali”.
Os parâmetros observados por pixadores são, muitas vezes, mais criteriosos do que a própria
organização da cidade. Deixar uma marca e expressar-se nela configura um dano porque a
expressão tem como suporte o patrimônio ou a “coisa alheia”; as construções que pipocam de
maneira desordenada, entretanto, não costumam seguir outra lógica além da especulação
imobiliária e a venda de espaços para propaganda. O cinza do concreto sobrepõe-se ao verde
impunemente, mas colori-lo – exceto para quem tem dinheiro para pagar por um outdoor –
configura um crime ambiental.
Criminalização e intimidação
Da residência de pelo menos dois estudantes, conforme relatam, foram levados materiais de
estudo relacionados à arte urbana, inclusive canetas utilizadas para desenho, no caso de um
estudante de Artes Visuais. Em outro caso, adesivos, latas especiais para grafite, com nota fiscal,
utilizadas em projetos culturais da cidade e até uma agenda comercial foram levados como
suposta prova.
Segundo relato de uma das pessoas investigadas na Operação Rabisco, a sala da Delegacia de
Polícia onde são ouvidos os depoimentos dos acusados reúne o curioso inventário de apreensões
realizadas: cadernos, latas e garrafas de tinta, uma porta de roupeiro arrancada com um único
adesivo, uma garrafa plástica contendo verniz, notebooks, pen drives e computadores (recolhidos
em busca de registros das ações locais), todos dispostos em meio a produções artísticas, como
vinis e adesivos, com a estética da arte urbana.
Além disso, DVDs com filmes sobre pixação também foram levados de uma das residências. A
situação assemelha-se com a ocorrida em Porto Alegre, em junho, durante as manifestações pelo
transporte público, quando a sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) foi invadida e policiais
apreenderam, entre outras coisas, sprays e livros de teor anarquista – nas palavras do delegado
responsável pela operação, foi apreendida “vasta literatura a respeito de movimentos anarquistas”.
Cripta Djan, que foi pioneiro na produção de vídeos que retratam a pixação pelo país, a exemplo
dos títulos “100Comédia” e “Escrita Urbana” (que estão entre os apreendidos pela Polícia), afirma
que além do registro histórico das ações de pixadores, a ideia dos vídeos é trazer a pixação ao
debate com a sociedade. “Às vezes uma imagem vale mais do que mil palavras e eu vi muitas
pessoas mudarem de opinião depois de assistir um documentário, um vídeo ou uma ação, que o
cara vê o pixador colocando a vida dele no limite para fazer a intervenção”.
Para Polin Moreira, estudante de Artes Visuais que tem como mote de pesquisa a cultura visual,
parece haver uma tentativa de fazer as pessoas deixarem de apreciar e questionar certas coisas.
“Isso soa meio que como uma censura, parece que eles estão dizendo: vocês estão vendo as
coisas erradas, estão escutando as coisas erradas, estão estudando as coisas erradas, não
estudem isso”. Pela segunda vez, Polin teve apreendidos materiais não relacionados à pixação.
“Da outra vez levaram um monte de desenhos que não tinham a ver com a pixação, canetas e
tinta guache. Tinta guache! Imagina se eles batem numa pré-escola?”.
O professor colaborador do Curso de Direito da UFSM Salo de Carvalho, pesquisador nas áreas
da Criminologia e Direitos Humanos, afirma que, quando há mandado judicial, em tese a busca é
regular. “No entanto, qualquer destruição, dano ou violência configura abuso. A existência de um
mandado de busca e apreensão não justifica que ocorra qualquer tipo de violência contra pessoas
ou bens” (para ler a íntegra da entrevista, clique aqui).
Vandalismo e moralismo
No contexto da nova Operação contra os pixadores, mais uma vez, não faltaram declarações de
figuras públicas defendendo a distinção entre grafite, a “arte”, e pixação, o “vandalismo”. Ao
assumir que apenas parte dos jovens identificados com as culturas urbanas são “marginais” ou
“criminosos”, delegados, policiais e políticos advogam para si o estatuto de especialistas em arte
urbana, a ponto de definir o que é mero vandalismo e o que é a sublime e respeitável arte.
O próprio fato de que pixadores têm sido convidados para participar de bienais de arte no Brasil e
no exterior aponta, na verdade, para o sentido oposto no campo das artes e para a inconsistência
deste tipo de juízo. Na definição de Cripta Djan, “o pixador é o artista que transcendeu as telas” e
que resgata a subversão da arte. E, mesmo no universo acadêmico, esta não é uma discussão
simples. “Quem pode, em termos universais, dizer o que não é arte? Temos que considerar os
diferentes contextos e códigos que convencionam uma prática simbólica ou técnica como arte.
Essa distinção citada serve para criminalizar uma estética de periferia”, afirma Elias Maroso,
artista, designer e mestrando em poéticas visuais (PPGART/UFSM) (clique aqui para ler a
entrevista na íntegra).
Do mesmo modo, a discussão sobre o vandalismo é recorrente, mas dificilmente vai além da
repreensão à aparente irracionalidade e falta de caráter dos chamados vândalos. Nas
manifestações que tomaram o país em junho, por exemplo, as mobilizações que iniciaram
reivindicando a redução – e extinção – da tarifa do transporte público em diversas cidades
acabaram ampliando-se ainda mais depois da brutal repressão policial.
A face mais crua da violência de Estado era evidenciada a cada nova cobertura dos atos e na
profusão de vídeos e fotos que registravam os abusos policiais em muitos locais do país. Ainda
assim, uma dicotomia moral entre manifestantes pacíficos e vândalos, em diversos momentos, se
sobrepôs às próprias reivindicações dos movimentos.
Se em alguns casos ficou evidente que a violência dos batalhões policiais gerava a reação
agressiva de manifestantes, a exemplo da cidade de Fortaleza registrada pelo documentário
independente “Com Vandalismo”, a mesma percepção não parecia transponível à violência
sistêmica que mata todos os dias nas periferias e que, enquanto mantêm algumas pessoas
vivendo à margem de direitos básicos, garante aos bancos do país lucros maiores do que o
Produto Interno Bruto (PIB) de nações inteiras.
Da mesma maneira que o ato ocasional de quebrar vidros de agências bancárias parece ser mais
questionável ou menos racional do que os gigantescos lucros de banqueiros, obtidos à base dos
juros mais altos do mundo em um dos países mais desiguais do mundo, a pixação aparece como
um mal mais abominável do que os problemas e contradições enfrentados no dia-a-dia.
“Se ter a casa pixada fosse seu maior problema, você deveria agradecer. A questão é que não é
esse o problema maior”, afirma o grafiteiro Braziliano. “O patrão que te coloca a fazer hora extra e
desconta teu salário, a dificuldade que é conseguir um lugar, pagar os impostos, pagar a luz,
acessar os serviços básicos, são esses os morcegos que estão te sugando, não o cara que pixa a
tua parede. Então não tente transformar o pixador no maior vilão social existente”.
Apesar da ideia de impunidade contra um crime cuja essência é a livre expressão, o peso da lei é
mais forte e incisivo sobre os pixadores do que sobre setores mais abastados da sociedade. “Tem
muita propriedade em que o dono tá devendo IPTU há anos, não quer nem saber de polícia, mas
se o cara pixa o muro ele [o pixador] vai preso”, aponta Braziliano.
O fato de que a repressão às condutas de baixa lesividade convive com a impunidade dos “delitos
dos poderosos” apenas evidencia, conforme explica o professor Salo de Carvalho, o próprio
funcionamento do sistema punitivo. A realidade é que os jovens investigados por pixação têm
cumprido penas, embora algumas pessoas reclamem da “leveza” das punições.
Por outro lado, manifestações pedindo a responsabilização dos culpados pela tragédia que
assolou a cidade em janeiro sucedem-se; em junho, gravações provocaram indignação e
motivaram a ocupação da Câmara Municipal da cidade, ao indicarem que a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) que deveria investigar as irregularidades da administração
municipal em relação às circunstâncias do incêndio da Kiss havia sido movida por arranjos dos
vereadores da base aliada do Executivo.
“No caso das pixações, por outro lado, o sistema penal é manejado com toda a sua violência”,
prossegue Salo. “Penso que estamos apenas percebendo o cotidiano de seletividade do sistema
penal. O interessante é que neste caso os extremos desnudam como as práticas punitivas
ocorrem em nossa sociedade”.
O contexto em que acontecem as operações policiais coloca em questão a própria finalidade das
ações. “Parece excessiva a movimentação de inúmeros agentes e viaturas, como amplamente
divulgado na última operação, para reprimir este tipo de infração que, por definição legal, é de
menor potencial ofensivo. Mesmo para delitos graves é difícil ver tamanha movimentação de
agentes. Em primeira análise, parece ser possível afirmar uma espécie de uso publicitário das
forças policiais para reprimir as pixações, na linha do que a criminologia denomina como
campanhas de pânico moral”, afirma o professor.
Foto: Felipe Severo
Barreiras de compreensão
Nos dias que se seguiram à tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, um pixador subiu no prédio
incendiado e deixou, em sua fachada, uma mensagem que correu o mundo: “Justiça a todos”. Sua
atitude, de certa forma, antecipou o “Pixo Manifesto Escrito”, movimento surgido em São Paulo
durante as manifestações massivas que ocorreram no país e que se define pela “intenção de unir
os pixadores em levantes políticos de diversas vertentes, defendendo sempre o interesse do
coletivo do povo”. A marca elaborada acompanha, assim, mensagens explicitamente políticas
deixadas em paredes e fachadas do Brasil inteiro e divulgadas via rede social.
Independentemente de seu desempenho nos espaços de educação formal, ele afirma que para
entender a pixação é precisa estudá-la. “Tem gente que acha grafite bonito, mas olha pra pixação
e diz: ‘ah, mas é sujo, é feio, eu não entendo nada’. A questão é que pixação também é tinta na
parede, não deixa de ser uma forma bonita de se ver. Só que se tu não estudar aquilo, tu nunca
vai entender. Tu vai ter que entender que tipo de letra é, o que aquilo significa, o que o pixador
está passando para a sociedade, o que ele quer falar. Se a sociedade não se dedicar em saber,
nunca vai saber e vai ser um diálogo fechado”.
Ele também conta que, quando a polícia vasculhou sua residência, na ocasião em que foi
indiciado e condenado a cumprir as medidas, foi encontrado um resto de cigarro de maconha.
“Tinha que ver a felicidade deles por aquilo. ‘isso aqui é de baseado, de maconha’. Foram falar
para minha mãe: ‘isso é para a senhora ver, o seu filho é um maconheiro e um pixador’.
Quebraram a cara, porque ela sabe. Queriam me colocar contra minha família, mas tenho um
diálogo superaberto e não rolou”.
Muitas das questões que a sociedade hoje discute, como a descriminalização das drogas e o
próprio fenômeno da pixação podem estar mais bem resolvidas na vida de jovens sobre quem
recaem diversos estigmas sociais. Apesar disso, inclusão e normatividade frequentemente
mesclam-se no conceito das penas de “reeducação”: conforme o relato do mesmo jovem, a
medida socioeducativa cumprida por ele e outras dezenas de adolescentes incluía oficinas de
grafite, pouco diálogo sobre suas motivações e, por fim, a pintura de espaços públicos, como
escolas e prédios – não com o grafite exercitado nas oficinas, mas com a monocromia das tintas
opacas que simbolizam o “limpo” da cidade livre de pixação.
Para Braziliano, há uma série de valores éticos e morais que agregam os jovens na pixação: o fato
de que pixadores sobem dezenas de andares para pintar um prédio, mas não invadem os
apartamentos e não roubam nada, embora isso estivesse ao seu alcance, permanece
incompreensível ou mesmo despercebido para a maioria das pessoas.
“Mas a sociedade desconsidera e diz: ‘venha para a minha educação’. O grupo da pixação não
está em busca de dinheiro. Como se explica isso? Se existissem valores mais rasos, seria mais
fácil combater. O grande erro é essa percepção unilateral de educação. Essa educação não é a
nossa educação, e quem tá reclamando disso não é a minoria. Hoje, já é uma maioria”, afirma.
Ao mesmo tempo em que a Operação Rabisco, por seu nome, designa a pixação como algo
desprovido de valor e sentido, reconhece a existência de técnicas utilizadas pelos pixadores, que
estariam começando a verticalizar as intervenções em Santa Maria (ou seja, utilizar prédios mais
altos como suporte e fazer as inscrições em sentido vertical) em função do aprendizado com
pixadores da capital do estado.
O fato de que um dos pixadores investigados em Porto Alegre já caiu da altura de 20 metros ao
pixar um prédio e tem mais de uma dezena de ocorrências registradas não parece suficiente para
evidenciar o fato de que os adeptos têm motivações para o seu “terrorismo poético” – como define
uma pixadora entrevistada no documentário Pixo (2009) – e de que sua prática na cidade não
pode ser relacionada simplesmente com falta de instrução, educação ou respeito.
O primeiro dia de agosto inaugurou oficialmente o “Mês da Cultura” em Santa Maria. Ironicamente,
o mês em que a cultura deve ter espaço de destaque na programação municipal iniciou um dia
depois de uma ação que demonstra a falta de capacidade de diálogo do poder público e traz à
tona o debate sobre a carência de espaços públicos de lazer para a juventude na cidade.
Após a Operação Cidade Limpa, a repressão e a criminalização não parecem ter surtido o efeito
que, aparentemente, era o desejado: ao invés de diminuir, a quantidade e a elaboração das
pixações na cidade só aumentaram. Se a energia transgressiva dos pixadores irá arrefecer ou
ganhar ainda mais fôlego após mais uma dose da mesma fórmula, só o tempo poderá dizer.
Para saber mais sobre a repressão à pixação em Santa Maria, leia a reportagem A pixação e a
ordem das aparências.
Para saber mais sobre a Operação Rabisco, acesse o especial com depoimentos e entrevistas
extras desta reportagem.
Para saber mais sobre a pixação, leia a entrevista com Cripta Djan.
OPERAÇÃO RABISCO: NOVO NOME, A MESMA REPRESSÃO, pelo viés de Tiago Miotto
tiagomiotto@revistaovies.com