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O Campesinato Brasileiro:
uma história de resistência
Maria de Nazareth Baudel Wanderley1
RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S025-S044, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
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des de cada uma destas situações, que lhes dão lação jurídica, por pequenos agricultores, que
conteúdo social particular. nelas produziam para o consumo próprio, mas
No caso do campesinato do Brasil, é preciso também para o mercado.
considerar que a agricultura brasileira, na qual ele O “sistema de posse” não se extingue com a
está historicamente inserido, manteve, mesmo Lei de Terras de 1850, porque as grandes proprie
longamente após o fim do período colonial, seus dades, localizadas, desde o início da colonização,
traços estruturantes, que consistiam na grande em áreas próximas ao litoral, deixavam, nas regi
propriedade monocultora e no trabalho escravo. ões mais distantes, grandes espaços, não apro
Este fato indiscutível não impediu, no priados juridicamente, que também podiam ser
entanto, que se constituíssem, nos interstícios ocupados por camponeses “posseiros”.
internos e externos dos latifúndios, espaços que Outro sistema de acesso precário à terra con
escapavam, de direito ou de fato, da ocupação sistia na instalação de famílias de trabalhadores,
pelos senhores da terra e que eram, sob formas em uma pequena área (“sítio”), no interior das
distintas, usados produtivamente por pequenos fazendas – de cana de açúcar, de café etc – auto
agricultores camponeses. Pode-se, assim, afirmar rizada pelos próprios proprietários, onde podiam
que as particularidades acima referidas resul cultivar alguns produtos alimentares em volta da
tam das estratégias de resistência camponesa ao casa de moradia. O trabalhador, no entanto, era
modo como se estruturou a atividade agrícola no obrigado a trabalhar na cultura principal, rece
país, desde seus primórdios, sob o domínio dos bendo ou não um pagamento monetário comple
grandes empreendimentos e de sua capacidade mentar, sob a forma de salário. Naturalmente, o
de criar espaços para uma outra agricultura, a de uso da terra estava condicionado ao vínculo de
base familiar e comunitária. trabalho com o patrão, não havendo nenhuma
Longe, portanto, de negar a existência do garantia quanto à sua continuidade (ANDRADE,
campesinato, no Brasil, trata-se de compreender, 1964).
em cada caso, as estratégias – fundiárias, produti A ambivalência da situação de moradores e
vas e familiares – e a amplitude desta capacidade colonos suscitou um grande debate em todo o
de iniciativa que, dependendo das circunstân país: trabalhadores ou camponeses? O que ocul
cias concretas, pode oscilar entre a possibilidade tava este tipo de relação? Para o proprietário, sem
de negociar, de forma subalterna e assimétrica, a dúvida, esse sistema era apenas uma forma de
ocupação de espaços precários e provisórios e a recrutamento de mão de obra, com reduzidos
criação efetiva de raízes mais profundas de modo custos monetários, uma vez que transferia para
a estabelecer, no longo prazo, comunidades cam o próprio trabalhador o ônus de sua subsistência.
ponesas com mais perenidade. Para os “moradores” ou “colonos”, como eram
respectivamente chamados nas zonas canaviei
ras do Nordeste, especialmente de Pernambuco e
2. As formas precárias nas zonas de produção de café em São Paulo, esta
de acesso à terra: a posse precária era a única via de acesso, mesmo em condições
e o sistema de morada extremamente precárias, à terra e à possibilidade
de organização de uma base produtiva de cará
A legislação fundiária colonial, de origem ter familiar, que permitia a cultura de produtos de
portuguesa, que perdera legitimidade com a subsistência, cujo excedente podia ser, eventual
independência nacional, em 1822, só foi substitu mente, destinado ao mercado (PALMEIRA, 1977).
ída em 1850, criando, assim, um lapso de tempo É importante registrar que há uma grande
em que apenas vigorava a posse efetiva da terra. diversidade de modalidades de cessão precária
Este “vazio” jurídico favoreceu, naquela ocasião, da terra, que variam de um máximo de subordi
a ocupação precária destas terras, isto é, sem titu nação do trabalhador às demandas de trabalho
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movimento sindical, já referido, é exatamente da Federação onde a luta pela terra não esti
neste período, que surgem em Pernambuco as vesse presente, de forma mais ou menos aguda”
primeiras organizações das Ligas Camponesas (MEDEIROS, 1989, p. 110).
que, espalhando-se em seguida em várias regiões O momento da redemocratização, que se ins
do país, expressam suas demandas em termos de titucionaliza com o fim dos governos militares e a
uma reforma agrária, que significasse a real e efe promulgação da Constituição de 1988, significou
tiva distribuição de terras (JULIÃO, 1962). Uma a (re)emergência dos movimentos sociais, que
demanda claramente camponesa. puderam, assim, construir publicamente suas
Por sua vez, a integração econômica das fron análises da realidade brasileira, em oposição às
teiras agrícolas ao modelo econômico dominante visões até então dominantes e impositivas e for
resultou na deflagração de conflitos pela terra e mular suas demandas políticas e suas estratégias
na também massiva desarticulação das tradicio de luta. Da mesma forma, o Estado também inicia
nais relações de posse, predominantes nestas um processo de democratização em suas diver
regiões. Fragilizados pela ausência de titulação sas instâncias, que o torna mais apto a acolher as
jurídica de suas posses, os camponeses sofrem demandas da sociedade, amparadas nos novos
as consequências da concentração fundiária, que preceitos constitucionais.
é a face mais aparente do capital que se impõe No que se refere ao meio rural, é fundado, em
por meio de grandes empresas agropecuárias 1984, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem
(ESTERCI, 1987). É por esta razão que a moder Terra (MST). Por sua vez, o Movimento Sindical
nização agrícola brasileira é denominada “con Rural, que existia desde o início dos anos 1960, se
servadora” (SILVA, 1982). Ela provoca – de uma fortalece, então, sob a liderança da Confederação
certa forma, paradoxalmente – um movimento Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
de luta pela terra, que se estende por todas as (Contag). São estes movimentos, cada um a seu
regiões do país, porém, e mais intensamente, no modo, que reinscrevem no debate da sociedade,
Norte e no Centro-Oeste (MARTINS, 1981). Em a atualidade da questão fundiária e a pertinência
1980, um documento da Conferência Nacional das lutas pela terra pelos camponeses expropria
dos Bispos do Brasil (CNBB), intitulado “A Igreja e dos ou com pouca terra.
os problemas da terra”, denuncia com veemência Os marcos dessas lutas nesses períodos são o
a “extrema violência da luta pela terra em nosso Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30 de novem
país, com características de uma guerra de exter bro de 1964) – promulgado na vigência do pri
mínio, em que as baixas mais pesadas estão do meiro governo militar – e, posteriormente, o I
lado dos lavradores pobres” (CNBB, 1980). Plano Nacional da Reforma Agrária, lançado em
Escrevendo no início dos anos 1980, José de 1985. Progressivamente, multiplica-se o número
Souza Martins afirma que “hoje, no Brasil, a ques de assentamentos rurais. O maior número foi
tão política no campo é, principalmente, a ques implantado na década de 1990, durante o Governo
tão da propriedade da terra” (MARTINS, 1982, de Fernando Henrique Cardoso, sob o efeito
p. 11). No mesmo sentido, Leonilde Sérvolo de das pressões dos movimentos de luta pela terra
Medeiros identifica, como traço comum a todos (MEDEIROS, 1989, 1994, 1999; BERGAMASCO e
os movimentos sociais rurais, neste período, “a NORDER, 1996; SCHMIDT, MARINHO e ROSA,
resistência dos trabalhadores rurais, fossem pos 1998; MARTINS, 2003; LEITE, 2004).
seiros, arrendatários, foreiros ou moradores, em Não resta dúvida que a ideologia conserva
deixar a terra em que trabalhavam e da qual dora dos governos militares, bem como suas prá
estavam sendo expulsos” (MEDEIROS, 1989, ticas autoritárias e repressivas, favoreceram a
p. 34). Por esta razão, a luta pela terra se disse consolidação do modelo da modernização con
mina ao ponto de que, como afirma esta autora, servadora no Brasil. Com a redemocratização,
“não houve, na década de 70, um único estado foi possível introduzir no debate da sociedade
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novas ideias e propostas de novos modelos de foi duramente perseguido, como “subversivo”
agricultura. O ponto de partida dessa discussão, pelos governos militares, que dirigiram o Brasil
eminentemente política, é o reconhecimento de de 1964 a 1985. A busca de uma expressão poli
que as unidades familiares de produção não são ticamente mais “neutra” levou, nesse período, a
incompatíveis com o desenvolvimento agrícola, que fossem adotadas, oficialmente, denomina
isto é, de que são capazes de transformar seus ções como “pequenos produtores”, “agricultores
processos de produção, no sentido de alcançar de subsistência”, “produtores de baixa renda”
novos patamares tecnológicos, que se traduzam que, além de imprecisas, carregavam um forte
pela maior oferta de produtos, maior rentabili conteúdo depreciativo.
dade dos recursos produtivos aplicados e a plena Nos anos 1990, a categoria “agricultura
valorização do trabalho. Esta afirmação atinge familiar” foi adotada pelo próprio Estado, ao
diretamente o argumento central que justificava formular um vasto programa de apoio aos agri
o apoio irrestrito e exclusivo, dado no Brasil à cultores (Pronaf), cuja atividade estivesse organi
grande propriedade, considerada como a única zada pela e para a família (ABRAMOVAY, 1998;
em condições de modernizar o setor agrícola e ao ABRAMOVAY e VEIGA, 1999; MATTEI, 2005).
modelo de modernização “produtivista” que foi Com isso, diluía-se o conteúdo histórico-político
apoiado pelo Estado. que a palavra “camponês” inspirava, ao mesmo
tempo em que se afirmava, pela primeira vez, o
reconhecimento da condição de produtor agrí
4. Conceituação do campesinato: cola e uma valoração positiva de suas particu
uma disputa política por laridades. Atualmente, ela é consagrada, não só
reconhecimento pelas instituições do Estado, mas também pelos
próprios atores sociais, seus beneficiários.
A compreensão do que seja um campesi A respeito do Pronaf, Maria José Carneiro
nato no Brasil continua a ser objeto de um amplo considera que
debate e de acirradas disputas políticas, que
envolve, entre outros, pesquisadores acadêmicos, [...] a proposta de um programa de fortaleci
formuladores de política e os distintos movimen mento da agricultura familiar voltado para
tos sociais. Está em questão o lugar social destes as demandas dos trabalhadores – sustentado
em um modelo de gestão social em parceria
agricultores, que se expressa por meio do signifi
com os agricultores familiares e suas organi
cado que se atribui às categorias “campesinato”,
zações – representa um considerável avanço
“agricultura familiar” e “agronegócio”.
em relação às políticas anteriores. Tal tenta
No Brasil, a referência ao campesinato assume
tiva de ruptura é intencional e explícita no
dupla conotação. Por um lado, o campesinato próprio texto do Pronaf, quando ele chama a
corresponderia, para muitos, às formas mais tra si o desafio de construir um novo paradigma de
dicionais da agricultura, realizadas em pequena desenvolvimento rural para o Brasil sem os vícios
escala, dispondo de parcos recursos produtivos, do passado (CARNEIRO, 1997, p. 70).
pouco integrado ao mercado e à vida urbana e
frequentemente identificado à incivilidade e ao Os agricultores familiares são ainda perce
atraso econômico e social. Neste sentido, ele se bidos, por alguns, como integrantes das princi
distinguiria da agricultura familiar, a qual, apesar pais culturas agropecuárias do País, inclusive das
de ter também condições de produção restritas, grandes cadeias produtivas globalizadas. Neste
estaria mais integrada às cidades e aos mercados. caso, eles são incluídos na categoria genérica do
Por outro lado, a palavra “camponês” carrega “agronegócio”, juntamente com os grandes pro
um forte conteúdo político, pois ela é frequente prietários e empresários do setor agrícola do País.
mente associada ao movimento camponês, que Esta corrente, ideologicamente mais ligada a este
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mesmo setor, considera o agronegócio em sua ções particulares, atribuindo a cada um caracte
dimensão estritamente econômica, capaz de gerar rísticas excludentes e, mesmo antagônicas em
interesses comuns a todos aqueles que, de uma relação aos demais, deve-se atentar para a cons
forma ou de outra, são agricultores. Negam-se, tituição de um vasto campo de agricultores não
assim, as dimensões identitárias que nutrem as patronais e não latifundiários que, como foi dito
categorias “camponês” e “agricultor familiar”, acima, exercitam formas próprias de viver e tra
retirando delas toda referência à constituição de balhar no mundo rural. Esse conjunto se carac
sujeitos políticos e, frequentemente, desconhe teriza por uma grande diversidade de situações
cendo o caráter subalterno de sua participação concretas, que geram múltiplas identidades,
setorial, que exclui qualquer possibilidade de ade com distintas relações com a cidade, com o mer
são econômica e política à grande propriedade e à cado e com o Estado (HISTÓRIA SOCIAL DO
grande produção. CAMPESINATO, 2008/2010).
Nos dias atuais, percebe-se a revalorização Assim sendo, mais importante é perceber
das categorias “camponês” e “campesinato”. Isso que, apesar da heterogeneidade referida, todas
ocorre, sobretudo, no interior dos próprios movi estas situações concretas apontam para a existên
mentos sociais, que as associam à profunda crítica cia, no meio rural brasileiro, de produtores agrí
aos processos da modernização conservadora e à colas, vinculados a famílias e grupos sociais que
crescente valorização das práticas agroecológicas. se relacionam em função da referência ao patri
mônio familiar e constroem um modo de vida e
As novas proposições e ações coletivas por uma forma de trabalhar, cujos eixos são consti
uma agricultura diferente se apóiam forte
tuídos pelos laços familiares e de vizinhança. É
mente nas críticas das noções de modernidade
a presença desta característica que nos autoriza
e de modernização, esboçando os contornos
a considerá-los camponeses, para além das par
de uma outra modernização, que repousa
ticularidades de cada situação e da conexão (ou
nas noções e significações de “coletivo” e de
“comunidade/local” (ALMEIDA, 1999, p. 33). superposição) das múltiplas referências identitá
rias, assumindo que os conceitos de campesinato
De fato, grupos cada vez mais numerosos e agricultura familiar podem ser compreendidos
de camponeses se organizam, em todas as regi como equivalentes.
ões, com o objetivo de afirmar a autonomia dos
agricultores familiares, considerando-os portado
res de uma experiência camponesa, que os torna 5. Perfil atual da agricultura familiar
capazes de assumir, sob outros moldes, o pro no Brasil
gresso da agricultura e do meio rural brasileiros.
Para além das divergências conceituais, outra
Todas as críticas portam em si uma ideia cen grande dificuldade consiste em quantificar este
tral e dominante que é a de preservar uma universo de agricultores familiares camponeses.
certa categoria social e produtiva na agricul
Até recentemente, as estatísticas oficiais não dis
tura: o camponês, o pequeno agricultor/pro
punham de critérios que permitissem distinguir
dutor ou, ainda, o agricultor familiar e, por
as unidades familiares do conjunto dos estabele
conseguinte, a necessidade de reorientar os
sistemas produtivos e as tecnologias emprega
cimentos agrícolas. Para superar a imprecisão das
das na direção de um reforço na capacidade categorias adotadas, os pesquisadores formula
econômica e de autonomia dessa categoria vam exercícios de aproximação, mais ou menos
(ALMEIDA, 1999, p. 58). bem sucedidos, que variam ao sabor das con
cepções teóricas de cada um e das restrições das
Parece-nos, portanto, evidente que, mais do informações disponíveis. Assim, ainda nos anos
que recortar campos distintos, com denomina 1970, a pesquisa realizada sob a coordenação de
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José Graziano da Silva adotou o pressuposto de alocados ao setor patronal, esta forma de agri
que a produção camponesa estaria concentrada cultura revela uma grande capacidade produ
nas faixas de área até 50 hectares, informação tiva. Do conjunto dos agricultores familiares, que
mais objetiva, disponível no Censo Agropecuário ocupa 30,5% da área total, 75% são proprietários
de 1970. A partir deste recorte, os referidos auto de áreas que, para a grande maioria, não ultra
res puderam perceber a passam os cinco hectares. É nessas exíguas e insu
ficientes áreas que a agricultura familiar chega a
[...] importância das formas da pequena pro absorver 76,9% do pessoal ocupado na atividade
dução no conjunto da produção agropecuária.
agrícola em todo o País e produz o equivalente a
Essa importância se revela em três planos: no
37,9% do valor bruto da produção agropecuária
número de pessoas envolvidas, tanto pelo seu
nacional, beneficiando-se, apenas, de 25,3% dos
valor absoluto, como em comparação com o
financiamentos destinados à agricultura.
que deveria representar a forma dominante
de trabalho sob o desenvolvimento do capital, Só recentemente, o IBGE, em cooperação com
ou seja, o assalariamento; em termos geográ o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
ficos, isto é, da ocorrência generalizada dessas elaborou para o último Censo Agropecuário de
formas em praticamente todas as regiões estu 2006 uma grade de variáveis, que permitiu, pela
dadas; e, finalmente, na sua contribuição no primeira vez, introduzir a categoria de estabeleci
produto gerado (SILVA, 1978, p. 240). mentos familiares em seus levantamentos (IBGE,
2006; FRANÇA et al., 2009). Essa categoria é tam
Posteriormente, Sonia Bergamasco e Angela bém definida levando em consideração pressu
Kageyama, analisando os dados do Censo postos teóricos e condicionamentos operacionais:
Agropecuário de 1980, construíram uma tipologia ela se baseou nas concepções adotadas pela Lei da
dos agricultores familiares, entendidos enquanto Agricultura Familiar (Lei n. 11.326/2006, Art. 3º),
aqueles que utilizam mão de obra familiar, em que considera as exigências de que o produtor:
sua atividade produtiva. Segundo estas autoras,
os estabelecimentos familiares correspondiam a I - não detenha, a qualquer título, área maior
71,6% do total dos estabelecimentos e se diferen do que 4 (quatro) módulos fiscais;
ciavam internamente em empresas familiares que II - utilize predominantemente mão de obra
contratam trabalhadores permanentes, estabele da própria família nas atividades econômicas
cimentos familiares complementados por empre do seu estabelecimento ou empreendimento;
III - tenha renda familiar predominantemente
gados temporários e os familiares puros, sem
originada de atividades econômicas vincula
trabalhador externo à família (BERGAMASCO e
das ao próprio estabelecimento ou empreen
KAGEYAMA, 1990).
dimento;
Baseando-se nos Censo Agropecuário de IV - dirija seu estabelecimento ou empreendi
1996, um estudo, realizado pela FAO, em coo mento com sua família.
peração com o Ministério do Desenvolvimento
Agrário, coordenado por Carlos Guanzirolli, Segundo esses dados, havia naquela data,
formulou uma nova metodologia para apre em todo o País, um total de 4.367.902 estabeleci
ender o perfil da agricultura familiar no Brasil mentos familiares, definidos, segundo os critérios
(GUANZIROLLI et al., 2001). De acordo com esta legalmente fixados, nos termos acima indicados,
abordagem, de um total de 4.859.732 estabeleci o que correspondia a 84,4% do total dos estabe
mentos agrícolas, 4.139.369 são estabelecimentos lecimentos agropecuários. Essas unidades de
familiares, o que corresponde a 85,2%. produção familiares possuíam 80,25 milhões de
Esta pesquisa confirmou a contribuição mar hectares, equivalentes a 24,3% da área total.
cante da agricultura familiar. Apesar de não dis Tal como já indicavam as conclusões dos
por dos recursos produtivos comparáveis aos estudos anteriores, os novos dados reiteram que
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a agricultura familiar permanece significativa a linha de pobreza definida pelo Banco Mundial,
mente responsável pela produção de alimentos os autores do Programa definiram o público
no Brasil. Com efeito, provém deste setor, entre beneficiário do mesmo como “aquela parcela
outros bens: 87% da produção de mandioca; da população que não possui renda suficiente
70% do feijão, 58% do leite, 46% do milho, 38% para garantir sua segurança alimentar, estando,
do café, 34% do arroz, bem como, 59% do reba portanto, vulnerável à fome” (SILVA, BELIK e
nho de suínos, 50% dos efetivos avícolas e 30% TAKAGI, 2001, p. 70). As conclusões deste estudo
do gado bovino. apontam para
Para realizar essa intensa e diversificada ati
vidade, os estabelecimentos familiares ocupam [...] um público potencial beneficiário de
44,043 milhões de pessoas, pertencentes a
um grande contingente de trabalhadores: 12,3
9,324 milhões de famílias. Esta população
milhões de pessoas, correspondentes a 74,4%
pobre representa 21,9% das famílias e 27,8%
do total do pessoal ocupado na agricultura bra
da população total do país, sendo 19,1% da
sileira. Destes, 90% constituíam a força de traba
população das regiões metropolitanas, 25,5%
lho familiar. O Censo de 2006 confirma, assim, das áreas urbanas não metropolitanas e 46,1%
mais uma vez, o peso dessa forma de produção, da população rural. Em termos absolutos,
ao mesmo tempo em que revela os limites de sua representam, respectivamente: 9.003 milhões,
reprodução, subordinada que está à perpetuação 20,027 milhões e 15,012 milhões, para cada
da concentração fundiária, marca da história da área de residência (p. 74).
agricultura e do mundo rural brasileiros. Cerca
de metade dos estabelecimentos familiares está Estes dados revelam com clareza que, embora
localizada na região Nordeste, onde representam não corresponda ao maior número de pobres do
89% dos estabelecimentos agrícolas da região. país, a pobreza que se manifesta nas áreas rurais
é, relativamente, a mais expressiva, uma vez que
atinge quase a metade da população do campo.
6. A pobreza rural Estudos recentemente elaborados atestam que os
programas de transferência de renda adotados
Estes dados, no entanto, não podem ofuscar nos últimos governos, para as populações mais
a forte e continuada incidência de situações de pobres, têm conseguido alterar esta realidade,
pobreza, inclusive da pobreza extrema no meio provocando significativos aumentos dos níveis
rural brasileiro. de renda e redução da desigualdade social.
São numerosos os estudos que tentam quan Também crescem hoje no Brasil as aborda
tificar a pobreza rural, utilizando, para isso, crité gens sobre a pobreza que incorporam outras
rios distintos. Como exemplo, o documento que dimensões econômicas e sociais, para além da
integrou O Mapa da Fome, elaborado em 2003, dimensão exclusivamente monetária. Segundo
tomou como parâmetro o valor da cesta básica Ângela Kageyama e Rodolfo Hoffmann,
familiar para definir o número de famílias cuja
A noção de pobreza refere-se a algum tipo
renda não é suficiente para adquiri-la (PELIANO,
de privação, que pode ser somente mate
1993). Por este critério, cerca de 32% dos brasilei
rial ou incluir elementos de ordem cultural
ros (aproximadamente 54 milhões de pessoas)
e social, em face dos recursos disponíveis de
foram considerados pobres.
uma pessoa ou família. Essa privação pode
O Programa Fome Zero, implantado durante ser de natureza absoluta, relativa ou subjetiva
o primeiro Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, (KAGEYAMA e HOFFMANN, 2006, p. 80)
construiu uma metodologia que procurou defi
nir o “público vulnerável à fome”. Usando como Os referidos autores formularam uma clas
base o valor de um dólar por dia per capita, que é sificação de “pobres e não pobres”, objetivando
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“considerar a pobreza não apenas pela baixa se dê a essa verdadeira população sobrante,
renda, mas também pela privação de bens essen marginal do ponto de vista das necessidades
ciais, cuja disponibilidade depende em parte de internas de acumulação do sistema (SILVA,
gastos públicos” (KAGEYAMA e HOFFMANN, 1995, p. 127).
2006, p. 83). Com base nesses critérios, reite
ram a constatação de que “o Nordeste e a zona
rural continuam a ser os grandes ‘depósitos’ da
7. “Franja periférica”,
pobreza no Brasil” (KAGEYAMA e HOFFMANN, “pobres do campo”, “camponeses”:
2006, p. 97). olhares distintos,
Recentemente, os textos publicados pelo políticas diferenciadas
Instituto Interamericano de Cooperação para a
Agricultura (IICA) sobre essa questão oferecem A partir do final dos anos 1980, forma-se,
um conjunto de análises sobre o que é conside progressivamente, um amplo consenso, no sen
rado “a nova cara da pobreza rural” (IICA, 2006, tido da necessidade de inclusão social deste vasto
2007, 2012b e 2013). Dentre esses estudos, Claudio setor reconhecido como agricultura familiar.
Salvadori Dedecca et al. referem-se à “necessidade Consenso que deixa, no entanto, uma larga mar
de se analisar a pobreza numa perspectiva mul gem ao debate e às escolhas políticas dissonantes
tidimensional, que alargasse o enfoque centrado quanto a questões centrais: quem são estes agri
na visão monetária do problema, isto é, da rela cultores? Como compreender sua diversidade?
ção estreita entre necessidade básica de renda e Quais políticas devem ser implementadas para
pobreza” (DEDECCA et al., 2012, p. 17) Com o apoiá-los social e economicamente? As categorias
objetivo de subsidiar as políticas sociais, os refe “franja periférica”, “pobres do campo” e “cam
ridos autores estabeleceram seis dimensões con poneses” condensam o sentido das divergências
sideradas relevantes: “inserção no mercado de que se cruzam ao longo do tempo.
trabalho, renda familiar corrente, acesso à terra,
acesso à educação, perfil demográfico das famílias 7.1. A franja periférica
e condições de vida” (DEDECCA et al., 2012, p. 29).
O que é importante considerar em todas O estudo FAO/Incra (1994), acima referido,
estas análises é que se trata, fundamentalmente, distinguiu, num total de 7 milhões de estabeleci
da pobreza gerada como consequência direta mentos, quatro categorias: patronal, abrangendo
do modelo de desenvolvimento rural prevale 500 mil estabelecimentos; familiar consolidada,
cente na sociedade brasileira e da forma como foi abarcando 1,5 milhão; em transição, correspon
implantada no Brasil a moderna agricultura. Para dente a 2,5 milhões e periférica, somando 2,5
José Graziano da Silva, milhões de unidades produtivas4. Em termos
proporcionais, essas categorias correspondiam
Muito se tem falado e escrito sobre o “notá respectivamente a 7,1%, 21,5%, 35,7% e 35,7% do
vel” desempenho do ponto de vista produ número total dos estabelecimentos agropecuários
tivo da nossa agropecuária nessas décadas
do País.
passadas, especialmente na crise dos anos 80.
Considerando em particular as duas últimas
Mas, pouco se fala sobre o resultado do ponto
categorias, que totalizam 4 milhões de estabeleci
de vista social desse modelo de crescimento
agroindustrial excludente que aumentou
mentos, o referido estudo afirma:
ainda mais a concentração da renda e a pro
porção de pobres no campo. E quase nada se
tem escrito sobre o que fazer com os excluídos,
4. O Relatório FAO/Incra constituiu o principal documento
os “barrados do baile”, os descamisados, ou os de análise e proposições que inspirou a concepção do
pobres do campo ou qualquer outro nome que Pronaf.
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Por falta de capacidade de autofinanciamento, Essa concepção, segundo a qual parte sig
pela exiguidade e fraqueza de suas terras, pela nificativa dos estabelecimentos familiares está
falta de capacitação de seus recursos humanos, à margem da atividade agropecuária, foi ado
ou por ser vítima do forte viés urbano das políti tada por diversos outros pesquisadores, que a
cas públicas, uma importante fatia da agricultura
qualificam como “franja periférica”, “conjunto
familiar tende à degradação, seja pela migração
marginal de estabelecimentos” e “desvalidos”.
para as cidades, seja por meio da pulverização
Nessa perspectiva, as famílias e os indivíduos
minifundiária que gera estabelecimentos de ter
não podem ser considerados sequer como pro
ceira categoria (FAO/INCRA, 1994, p. 12).
dutores de baixa renda, visto que não possuem
Como consequência, para as ações do Estado, a nenhuma renda monetária proveniente da pro
pesquisa FAO/Incra formulou duas grandes orien dução agropecuária. Sua sobrevivência é asse
tações. Em primeiro lugar, considerando que seria gurada por ocupações temporárias e precárias
possível estabelecer uma “zona de transição for e os seus estabelecimentos constituem “mais
mada pela faixa mais fragilizada da agricultura fami locais de residência e subsistência de uma mão
liar e pela faixa menos desvalida da grande massa de obra desempregada ou subempregada, do
de sítios periféricos”, o “foco das políticas governa que, propriamente, empresas do setor agrope
mentais para a agricultura” deveria ser ocupado cuário” (FAO/INCRA, 1994, p. 12).
por esses agricultores “em transição” (FAO/INCRA, Consequentemente, afirma-se a impotência
1994, p. 13). Em segundo lugar, reiterando a concep de medidas de política agrícola para melhorar as
ção de que os “periféricos” não podem ser conside condições de vida e de trabalho desse segmento
rados apropriadamente como agricultores, conclui: e se preconiza o apoio a atividades não agrícolas,
capazes de absorvê-los produtivamente.
O grande desafio é a criação de instrumentos A confirmação, em termos quantitativos, da
que gerem novas oportunidades de expan diversidade de situações, no interior do grande
são e/ou reconversão produtiva para o maior grupo de estabelecimentos familiares, consti
número dos estabelecimentos que se encon tuiu, sem dúvida, um grande avanço naquele
trem na categoria transitória entre a “perifé
momento. No entanto, parece também evidente
rica” e a “familiar consolidada”. Muitos desses
que os resultados obtidos, as análises formuladas
instrumentos ajudarão a agricultura familiar
e as propostas de política encaminhadas refletem,
em geral. Mas seria ilusão imaginar que pode
riam responder também às dificuldades das
antes de tudo, as concepções teóricas e as esco
cerca de 2,5 milhões de famílias que vivem em lhas metodológicas de seus autores, sobretudo,
estabelecimentos totalmente marginais (FAO/ no que diz respeito às relações da agricultura
INCRA, 1994, p. 15). familiar com o mercado, que não incorporam a
valorização do autoconsumo e da autoprovisão
O estudo propõe ainda que: do estabelecimento familiar e ao trabalho externo
da família, visto como uma perda de substân
Parte desse último contingente, principal
cia da condição de agricultor e como se fosse
mente, os jovens, deverá ser beneficiada pela
uma experiência exclusiva de agricultores “peri
política de reforma agrária, como ocorreu com
féricos”. Além disso, apesar de admitir que os
pouco mais de 300 mil famílias assentadas nos
últimos anos. E a geração de empregos não dados possam refletir circunstâncias conjunturais
agrícolas, de preferência rurais, bem como a pouco favoráveis, estas não são levadas em conta
prestação de serviços temporários, que sur na caracterização dos tipos propostos. O semiá
girão da dinamização da agricultura familiar, rido nordestino, por exemplo, corresponde, exa
abrirão oportunidades para os demais (FAO/ tamente, a essa situação de perda, como analisa
INCRA, 1994, p. 15). Tânia Bacelar de Araújo:
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S040 O Campesinato Brasileiro: uma história de resistência
permitem compreender uma intensa rela distribuição de crédito aos mais pobres. O acesso
ção entre trabalho, terra e família segundo ao crédito deve estar inserido numa política mais
a visão de mundo destes produtores rurais ampla e completa, que considere o indivíduo ou
(ALBUQUERQUE NETO e SILVA, 2012, p. 15). a família que o recebe, não apenas como pobre,
mas como um agricultor que, se apoiado conve
nientemente, tem potencialidades para assegu
7.3. Camponeses
rar, em melhores condições, a sobrevivência de
Se a referência à categoria “franja periférica” sua família e participar da produção da riqueza
aponta para a perda de substância da condição de sua comunidade local. O apoio em questão
de agricultores, a de “pobres do campo” supõe diz respeito ao acesso ao conjunto dos recur
que a superação deste estado de pobreza deve sos produtivos e aos bens e serviços necessários
ser buscada através das mais diversas atividades não apenas à reprodução de uma qualidade de
não agrícolas, sem necessariamente o respaldo vida considerada socialmente satisfatória, mas,
da centralidade da unidade de produção familiar. sobretudo, no sentido apontado por Steven M.
Em todos estes casos, as políticas públicas se dis Helfand e Vanessa da Fonseca Pereira, da cons
tanciam das afirmações identitárias, dos próprios trução do “patrimônio dos pobres” (HELFAND e
agricultores, que não podem ser caracterizados PEREIRA, 2012, p. 126).
apenas como não produtores de renda monetária. Colocando-se na perspectiva dos sujeitos
De fato, a adoção da renda monetária prove analisados, e não daquela ditada pelas regras do
niente da atividade agropecuária como critério mercado, registra-se com muita frequência que as
distintivo dos estabelecimentos se contrapõe ao categorias familiares consideradas “em transição”
reconhecimento das especificidades dessa agri e “periféricas” não hesitam em se definir como
cultura familiar que se reproduz em condições agricultores, em suas práticas presentes e em seus
particularmente hostis na realidade brasileira. projetos de futuro. Para eles, a produção para o
próprio consumo ou para o consumo interno do
As configurações camponesas são bastante
seu estabelecimento é uma prática que os legi
diversas, entretanto as visões correntes tendem
timam como agricultores familiares. Apesar da
a compreendê-las por meio de noções pré
forma subordinada e precária, sua inserção nos
-concebidas, como a caracterização dos campo
neses como praticantes de uma agricultura de
mercados agropecuários é reivindicada como um
subsistência e desprovidos de mecanismos de elemento central de suas estratégias produtivas.
geração de renda. Assim, necessitam de inter Se o trabalho fora do sítio familiar se impõe como
venção exterior de modo a modernizar suas uma necessidade para complementar a renda ou
práticas agrícolas para se posicionarem no pata para encaminhar profissionalmente os filhos, ele
mar de geradoras de renda e de maior inser não é percebido em contradição com as ativida
ção no mercado. Essa pré-noção, que pode ser des agrícolas, porém, de modo articulado a essas,
identificada na formulação de diversos agentes sob a forma de um sistema de atividades fami
como intelectuais, agências governamentais, liar, sobre o que muito ainda há a compreender.
igrejas e organizações não governamentais,
Assim, como para afirmar sua identidade de agri
não dá conta das diferentes formas de organi
cultores, eles têm uma experiência acumulada
zação social, das instituições econômicas e das
de estratégias e de práticas sociais, inclusive no
práticas culturais do campesinato (GODOI,
MENEZES e MARIN, 2009, p. 23). campo produtivo, que revelam sua capacidade
de sobreviver, enfrentando situações de grande
Assim como a condição de pobreza não se precariedade, a respeito do que, no Brasil, já se
esgota na reduzida disponibilidade de renda dispõe de uma vasta bibliografia.
monetária, expressa na relação dólar por dia, a Não é demasiado insistir que as políticas é
superação da pobreza não se esgota na simples que devem responder às necessidades concretas
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