Você está na página 1de 28

ASCENSÃO E QUEDA DO DEUS MITRA

Ir.'. William Almeida de Carvalho


Este estudo buscará enfocar o tema Mitra em cinco partes: a)
as origens antigas do Deus; b) o culto e a liturgia do mitraísmo; c)
a derrota frente ao cristianismo; d) resquícios mitraícos e sua
influência sobre a maçonaria e e) como seria um mundo moderno
mitraíco à guisa de conclusão. Utilizamos, para este trabalho,
enciclopédias e diversos textos da Internet, principalmente o texto
de Jean-Louis dB no "La parole circule".

I - As Origens Antigas do Deus Mitra.


Existe muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia
védica, Mitra significava 'amigo', no persa avéstico era traduzido
como 'contrato'. Esta última definição é a que prevalece nos
nossos dias, sendo pois Mitra a personificação do contrato.
Segundo os etimologistas, Mit(h)tra é composto de um sufixo
instrumental - "tra" - que significa instrumento de trabalho e de
um prefixo "mi" que é encontrado em todas as línguas indo-
européias sob diferentes raízes. "Mei" pode significar ainda "lugar,
encontro". Em sânscrito "mitram" significa "amigo". Mitra
significando, pois, 'contrato' e 'amigo' não se opõem realmente,
visto que não existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se
fala em 'pacto de amizade'? Mitra se encontra sob diferentes
ortografias: Mihr, Meher, Meitros, etc.
Os trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os
de Georges Dumézil sobre a Índia védica demonstram uma
estrutura fundamental da sociedade e da ideologia das diferentes
sociedades indo-européias. A sociedade é dividida em três classes:
sacerdotes, guerreiros e agricultores que correspondem a uma
ideologia religiosa trifuncional: a função da soberania mágica, da
sacrificadora e da jurídica (Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin);
a função dos deuses da força guerreira (Indra, o etrusco Lucumão-
Marte e Thor) e, finalmente, a das divindades da fecundidade e da
prosperidade econômica (os gêmeos Nâsatya ou os Asvins, Tatius
[e os sabinos]-Quirino e Freyr).

Encontra-se o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia desde


1380 a. C. Este Proto-Mitra estaria associado a Varuna e forma
uma dualidade antitética e complementar. Mitra seria a face
jurídico-sacerdotal, conciliadora, luminosa, próxima da terra e dos
homens enquanto Varuna seria o aspecto mágico violento, terrível
e tenebroso. Mitra torna-se, pois, a garantia do compromisso, a
força deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom direito pela
força atuante. A antítese Mitra-Varuna encontra-se também em
Roma com a oposição dos dois primeiros reis: Rómulo (Varuna-
Júpiter), semi-deus violento e Tatius (ou Numa-Mitra), ponderado
e sábio, instituidor das questões sagradas e das leis, ligado
igualmente aos deuses da fertilidade e do solo. Mitra é o Deus
soberano sob seu aspecto racional, claro, regrado, calmo,
benevolente, sacerdotal. Seu papel é secundário quando esta
isolado de Varuna, mas compartilha com este todos os atributos da
soberania. O Sol é seu olho, nada lhe escapa. A conclusão de um
acordo se fará através de um sacrifício ao Deus Mitra, mas um
sacrifício incruento, pelo menos no início, pois, mais tarde,
terminará por aceitar sacrifícios sangrentos. Esta evolução é
metaforizada pelo papel de Mitra na história dos Deuses, pois
terminará por ser associado à morte do Deus Soma. Na origem,
Mitra recusa-se a participar da morte ritual, sendo amigo de todos,
pois prestará sua ajuda para, no final, ser um ator ativo na morte
ritual.

O Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra


mais conhecido e divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano.
A influência da antiga religião iraniana para a formação religiosa
do Ocidente é bastante significativa: o tempo linear, a articulação
dos diversos sistemas dualistas - sejam cósmicos, éticos ou
religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração de uma escatologia
'otimista' que proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a salvação
universal; a doutrina da ressurreição dos corpos; certos mitos
gnósticos; a mitologia dos Magos etc.

Na religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o


Bem) e os daêvas (o Mal) sempre foi presente, já que na Índia
védica aconteceu o contrário: no conflito entre os devas e os asura,
aqueles foram vencedores, pois tornaram-se os verdadeiros
deuses, ao triunfarem sobre as divindades mais arcaicas - os asura
- que nos textos védicos são considerados figuras 'demoníacas'.
Processo similar, ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã:
os antigos deuses, os daêvas, foram demonizados (ai, dos
perdedores!). Eliade argumenta que "pode-se determinar em que
sentido se efetuou essa transformação: foram sobretudo os deuses
de função guerreira - Indra, Saurva, Vayu - que se tornaram
daêvas. Nenhum dos deuses asura foi 'demonizado'. Aquele que,
no Irã, correspondia ao grande asura proto-indiano, Varuna, torna-
se Aúra-Masda".
Aqui, a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra
sendo que a função continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da
aurora, guardião que socorre as criaturas, onisciente e vitorioso.
Aúra, tornando-se progressivamente Aúra-Masda, transforma,
também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o
paulatinamente num deus guerreiro. Mitra continua deus do
contrato e do acordo e assegura uma ligação entre os diferentes
níveis da sociedade da qual é garantidor da ordem, representada
pelo gado e a fecundidade. Interessante notar que aquela trilogia
de Dumézil - sacerdote, guerreiro e agricultor - começa a ser
baralhada. Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará
os sacrifícios, notadamente os do Touro. Seu papel de deus
guerreiro, contudo, crescerá à medida que Aúra-Masda fortifica e
torna dominante o seu lugar no Panteão dos Deuses. Tal 'evolução'
é lógica, pois como deus garantidor da ordem, sempre estará ao
serviço do respeito da lei e do contrato para aqueles que o
reverenciam. Com o tempo metamorfoseia-se num deus violento e
cruel. É um deus solar com mil olhos e orelhas e, como vimos, um
deus da fertilidade dos campos e dos rebanhos. Atua, como
Hermes, no papel de psicopompo, ou seja, condutor das almas dos
mortos, pois como senhor dos Céus conduz as almas até o Paraíso.

Mitra foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o


reverenciava; sob Dario houve um breve eclipse, pois este,
segundo alguns especialistas, era partidário de Zoroastro; e
reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza persa, o dia
de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de
embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica.

Mitra retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos


e dos contratos, sob a influência dos Magos. Estes foram uma
classe de sacerdotes dos antigos medas com um papel sacrificial
importante e que entre os gregos antigos gozavam de uma
reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No
Panteão dos Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou
Anahita, a gênia feminina do fogo, uma espécie de Virgem
Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura feminina associada a
Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida, exigindo
de seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a
resistência a toda forma de sensualidade. Vale salientar que o
maior Mithraeum (templo) construído em Kangavar na Pérsia
Ocidental era dedicado a esta deusa. Segundo reza o Mihr Yasht, o
extenso hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a história
de Mitra é a seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos
Grandes Deuses, Aúra-Masda mandou construir-lhe uma mansão
no cimo do Monte Hara, ou seja, no mundo espiritual, além da
abóbada celeste. Postou-se aí como o protetor de todas as criaturas
e não era adorado como todos os outros deuses menores com
preces rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote
de Mitra que o adorava e lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria
e prescreve o rito próprio ao culto de Mitra no paraíso. Mitra,
assim, retorna à terra para o combate contra os daêvas sem,
contudo, conseguir vencê-los. Somente quando Mitra se une a
Aúra Masda o destino dos daêvas será selado. Mitra será, a partir
daí, adorado como a luz que ilumina todo o mundo.

No tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu


Panteão e, em troca, introduzirão, na religião persa, seu culto
solar, tendo a astrologia como um dos seus pontos mais fortes.
Convém salientar que a cultura judaica sofrerá uma influência
marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro em 597
a.C. No judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único
criador do Mundo e do Universo, ou seja a totalidade absoluta do
real, contendo inclusive o mal. O dualismo Iavé - HaShatan advém
de uma crise espiritual que se seguiu ao cativeiro babilônico,
personificando aspectos negativos da vida, sob a forma de Satã,
que se tornará progressivamente também eterno. Satã seria, então,
o fruto de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com
as doutrinas dualistas iranianas. Esta tradição impactará
fortemente o cristianismo nascente.

O Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de


Alexandre e a queda do império persa durante o ano de 330 a. C.,
pois Alexandre e 10.000 de seus soldados macedônios se casam
com mulheres persas e mais, dentro do ritual persa. Sabe-se que
alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados pelas mães
persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É
deveras conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do
inimigo persa, nunca obteve uma grande popularidade na Grécia,
apesar de continuar a manter a influência junto à aristocracia meda
e iraniana. Tanto assim que o nome Mitrídate (dado a Mitra) é
encontrado em diversos reis partos, do Bósforo e do Ponto Euxino.
A arqueologia tem descoberto diversos templos - Mitreas - na
Armênia. Apesar da pouca influência junto ao povo grego, a
religião iraniana entrou num vasto movimento sincrético junto à
cultura helênica. Mitra era adorado em todo o império de
Alexandre e os Magos continuavam a ser os sacerdotes
sacrificadores. O culto repousava sobre uma cronologia
escatológica de 7.000 anos, cada milênio sendo governado por um
planeta. Daí advém a série dos 7 planetas, dos 7 metais, das 7
cores etc. Durante os 6 primeiros milênios, Deus e o Espírito do
Mal combatem pela supremacia e, quando o Mal parecia vitorioso,
Deus enviou o Deus solar Mitra (Apolo, Hélio) que domina o
sétimo milênio. No fim deste período setenal, a potência dos
planetas cessa e um incêndio universal recobre o mundo.

Curioso nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei


do Ponto, anterior ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi
anunciado por um cometa, um raio caiu sobre o recém-nascido,
deixando-lhe uma cicatriz. A educação deste rei é uma longa série
de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação como uma
encarnação de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal
cristão. Ele será o último rei de uma longa lista de grandes reis
Mitridates. Conquistou quase toda a Ásia Menor por volta de 88 a.
C., mas foi derrotado pelos romanos em 66. Provavelmente aliou-
se aos piratas Cilicianos dos quais falaremos a seguir. Foi,
também, o primeiro monarca a praticar a imunização contra os
venenos, a qual, segundo o Aurélio, se adquire por meio da
repetida absorção de pequenas doses deles, gradualmente
aumentadas, daí o nome mitridatismo.

A grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma


refinada e final do paganismo pré-cristão foi discutida pelo
historiador grego Heródoto, pelo biógrafo, também grego,
Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio, pelo herético
gnóstico Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.

O contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a


partir de Comageno na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros
testemunhos sobre Mitra, como um Deus dos Mistérios no
primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos piratas Cilicianos
em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de resistência
e luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz
que celebravam em segredo 'os mistérios de Mitra'. Sua capital era
Tarso, onde nasceu S. Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O
símbolo da cidade era o combate do Leão com o Touro.
Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram na Ásia Menor e
na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no
mundo helênico, principalmente, como vimos, na aristocracia.
Cita-se que o rei Tiridate quando veio a Roma para ser coroado rei
da Armênia por Nero, dirigiu-se ao imperador chamando-o por
Mitra (Deus Sol).

O Mitra romano faz sua 'rentrée' no Império através dos Mistérios.


O termo "mistério" possui um sentido muito preciso. Os mistérios
gregos, e depois romanos, foram numerosos: Dionísio, Elêusis,
Cibele, Átis e Deméter. Podem ser ainda citados os de Ísis,
Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno etc. Uma certa bruma
enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios, mas o
comum entre eles, era o aspecto 'solar', apesar de todos
esconderem sua identidade essencial. Desnecessário dizer que, por
serem os mistérios, secretos e ocultos, poucos documentos escritos
chegaram até nossos dias. O pouco que se sabe sobre eles advém
da patrística cristã que, na ânsia de combater o mitraísmo,
terminou por nos legar uma série de descrições sobre o mesmo.
Alguns autores gauleses chegam a afirmar que assim como a
maçonaria foi a religião clandestina da IIIª República Francesa, o
mitraísmo sustentava subterraneamente a ideologia da Roma
Imperial.

A inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo


Plutarco (Vita Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67
a. C., de 20.000 prisioneiros Cilicianos (uma província na costa
sul oriental da Ásia Menor) que praticavam os "ritos secretos" de
Mitra. Daí, a epidemia mitraíca se alastrou por todo o mundo
romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos das tropas de
ocupação romana com as outras culturas mitraícas, tendo atingido
o seu zênite no século III, quando começou a travar uma luta de
vida e morte com o cristianismo. Tanto assim que do século II ao
IV da nossa era, os Mithrae (ou Mithraeum no singular) - templos
dedicados ao culto do deus - chegaram a ser mais de 40 em Roma.
Um dos maiores templos construídos podem ser encontrados hoje
nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu.
Esta adoração não se restringia somente à capital do Império, mas
principalmente às cidades portuárias da atual Itália: Óstia, Antium,
no mar Tirreno; Aquiléia, no Adriático, Siracusa, Catânia, Palermo
etc. Paralelamente, a propagação se dá na Áustria, na Germânia,
nas províncias danubianas, na Polônia, na Hungria e Ucrânia e
num movimento de volta, nas províncias da Trácia e da Dalmácia,
num retorno à Grécia e a Macedônia. No terceiro século,
encontram-se traços mitraícos na Criméia, no Eufrates, no Egito e
sobretudo no Maghreb. Curioso é que a Espanha e Portugal
sofreram pouquíssima influência. A Gália oriental, renana e belga,
pagou o seu tributo, assim como também a Aquitânia. Encontram-
se vestígios na região parisiense, como também em Boulogne sur
Mer. Na Inglaterra, a concentração se dá em Londres e na região
norte, ao longo do muro de Adriano, até Canterbury. Locais de
adoração mitraíca foram encontrados também, na Bretanha, na
Romênia, na Alemanha, na Bulgária, na Turquia, na Pérsia, na
Armênia, na Síria, em Israel etc. No final do século III, Mitra era
adorado da Escócia à Índia, chegando até a oeste da China, onde
era conhecido como Amigo, nome que indica uma filiação védica.

Mitra passa a ser representado como um general militar. É o


Amigo do homem durante a sua vida e seu protetor contra o mal
após a sua morte. Mitra não é só propagado pelos militares
romanos como também pelos funcionários, comerciantes, artistas,
meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos do
conhecimento. Ao contrário da Grécia, penetra nos meios mais
modestos e populares. Por mais de trezentos anos, os romanos
adorarão Mitra.

Em meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar.


Os neófitos começaram a congregar-se sob os Flávios,
espalhando-se o culto na época dos Antoninos e Severos. Os
próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios, havendo
suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo
(185-192) que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto,
seguido por Sétimo Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto
do Deus solar sob a forma de Sol invictus. O culto foi
reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial virá,
entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas
emanações, não parece que Mitra tenha recebido uma
preponderância imperial na corte dos Césares pagãos. Deve-se
notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo, sua
influência não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem
que isto se deveu à exclusão das mulheres nas funções litúrgicas.

II - Representações Litúrgicas e Ritualísticas do Deus Mitra


Mitra é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de
um jovem montado num touro e, com uma das mãos, empunha
uma adaga para o degolar. Alguns afrescos, encontrados na parte
mais central do Mithraeum (templo subterrâneo de adoração),
representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou para o
lado, significando desgosto com o que está fazendo.
Sincreticamente, encontram-se ainda imagens de Teseu matando o
Minotauro ou Perseu chacinando a Górgona ou, ainda, Hércules
esfolando o Touro. Mitra está vestido em trajes orientais e muitas
vezes circundado por dois meninos ou pastores que podem
simbolizar o levante e o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés
- montante e vazante - e ainda, a vida e a morte. A cena
possivelmente se passa numa gruta. Um corvo, mensageiro do sol,
está quase sempre na borda do rochedo. Vê-se ainda um cão se
aproximando para beber o sangue da vítima, uma serpente
enroscada dentro de uma pequena cratera e ao redor de um
recipiente, um leão ameaçador, espigas de trigo sobre o rabo do
touro e um escorpião que pica os testículos do animal morto.

A figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela


sua força e vigor. Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um
monstro metade-homem metade-touro que vivia no Labirinto nos
subterrâneos da ilha de Creta e que exigia um sacrifício anual de
seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido morto por Teseu.
Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando
bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo
de Salomão em Jerusalém, era adornado com chifres de touros que
acreditavam ser portadores de poderes mágicos. O touro era
também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos símbolos
animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste
poderoso animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da
Espanha e do México, no rodeio dos 'cowboys' dos EEUU e
agora, também, no Brasil.

Os estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram


ser os mistérios mitraícos derivados das antigas religiões iranianas
explica parcialmente como a cena da morte do Touro - conhecida
como tauroctonia - inexiste na mitologia iraniana com a figura de
Mitra. Cumont responde que teria encontrado textos que
apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força
cósmica do mal na religião iraniana.

Somente a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos


Mitraícos (1971) levantaram-se novas hipóteses para explicar esta
incongruência. A iconografia tauroctônica seria, na verdade, um
mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo os estudos de David
Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na tauroctonia
padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo
de uma faixa contínua no céu: o boi tem um paralelo com a
constelação do Touro, o cachorro com o Cão Menor, a serpente
com a Hidra, o corvo com o Corvus e o escorpião com Scorpio; ii)
a iconografia mitraíca, em geral, é permeada por imagens
astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e as
estrelas são permanentemente encontrados na arte mitraíca.

A pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a


astronomia greco-romana, focaliza o seu caráter "geocêntrico" no
tempo dos mistérios mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no
centro do universo e tudo girava à sua volta. Nesta cosmologia, o
universo era imaginado como estando contido numa grande esfera
no qual as estrelas eram fixadas em várias constelações. Hoje
sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o seu
eixo cada dia, mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por
dia a grande esfera das estrelas fazia a sua rotação sobre a terra,
oscilando num eixo que corria da abóboda do polo norte para o do
sul. No seu giro, a esfera cósmica carregava o sol, explicando
assim a oscilação do mesmo sobre a terra.

Além deste movimento, os antigos atribuíam um segundo


movimento mais vagaroso. Enquanto hoje sabemos que a terra
gira ao redor do sol durante o ano, na antigüidade acreditava-se
que, durante o ano, o sol - que estava bem mais próximo do que as
outras estrelas - viajava sobre a terra, traçando um grande círculo
no céu tendo como fundo as outras constelações. Este círculo,
traçado pelo sol durante o ano, era conhecido como o zodíaco,
uma palavra significando 'figuras vivas', pois o sol passeava,
durante o ano, sobre doze diferentes constelações que
representavam diversas figuras de animais e formas humanas.
Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande
esfera de estrelas, suas várias partes - tais como os eixos e os pólos
- jogavam um papel crucial na cosmologia de seu tempo.
Particularmente, um importante atributo da esfera das estrelas era
muito mais bem conhecido do que hoje: o equador, denominado
na época de equador celeste. Assim como o equador terrestre é
definido como um círculo ao redor da terra eqüidistante dos pólos,
também o equador celeste era entendido como um círculo ao redor
da esfera das estrelas eqüidistante dos pólos desta mesma esfera.
O círculo do equador celeste era visto como tendo uma
importância especial por causa dos dois pontos em que ele cruzava
com o círculo do zodíaco: estes dois pontos eram os equinócios,
ou seja, o local onde o sol, no seu movimento através do zodíaco,
cortava-o no primeiro dia da primavera e no primeiro dia do
outono. Assim, o equador celeste era responsável pela definição
das estações e, por esta razão, tinha uma significação
concretíssima ao lado seu significado astronômico mais abstrato.
Um outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não
estava fixo, possuía um movimento lento alcunhado de "precessão
dos equinócios". Este movimento, sabemos hoje, é causado por
uma oscilação na rotação da terra sobre seu eixo. Como resultante
desta leve oscilação, o equador celeste parece mudar sua posição
no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido como
a precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais
facilmente é uma mudança na posição dos equinócios ou seja, os
locais onde, como vimos acima, o equador celeste cruza o
zodíaco. Desta maneira, esta precessão resulta num movimento
vagaroso para trás ao longo do zodíaco, passando sobre uma
constelação do zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo todo o
zodíaco a cada 25.920 anos. Hoje, por exemplo, o equinócio da
primavera está no final da constelação de Peixes, mas, em algumas
dezenas de anos, estará entrando em Aquário - já se fala muito,
atualmente, na Era de Aquário. A grosso modo, o equinócio da
primavera estava em Touro entre 4.000 a 2.000 a.C. mais ou
menos; em Áries de 2000 a.C. até o nascimento de Cristo, ou seja
nos tempos greco-romanos; a Era de Peixes - o cristianismo -, da
gênese do mesmo até a nossa mudança de milênio e de 2000 e
poucos em diante, a tão decantada Era de Aquário.

Ulansey descobriu que, neste fenômeno da precessão dos


equinócios, estaria a chave para desvendar o segredo do
simbolismo astronômico da tauroctonia mitraíca. Para as
constelações desenhadas nas tauroctonias mais comuns havia uma
coisa constante: todos eles estavam posicionados no equador
celeste como na época imediatamente precedente à Era de Áries
dos tempos greco-romanos. Durante esta idade anterior, que
podemos chamar de Era de Touro (como vimos durou mais ou
menos de 4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época
estavam Taurus (Touro, o equinócio da primavera), Canis Minor
(o Cão), Hydra (a serpente), Corvus (o Corvo) e Scorpio (o
Escorpião que estava no extremo oposto do Touro, ou seja, o
equinócio do Outono). A coincidência é impressionante, todos
estas constelações estão representadas nas tauroctonias.

Em muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada


de estrelas. Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o
fim da Era de Touro e o começo da Era de Aries no equinócio da
primavera e Mitra, o deus Todo-Poderoso, que poderia reger e
mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos do filósofo
neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna, onde
se posiciona o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua
parte mais recôndita, seria, na verdade, uma 'imagem do cosmos'.

Como curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica


sobre a interpretação psicanalítica do morte do touro, sendo um
dos pontos básicos de divergência e conflito entre ambos,
resultando, posteriormente, em separação definitiva.

Mitra, Deus solar, também é representado com a cabeça de um


Leão quando é saudado com o título de Sol invictus. São os
afrescos, encontrados em Mênfis, com as coxas peludas, patas de
caprino e a cabeça radiada. Mitra Leoncéfalo, portando as chaves,
é outra imagem lapidar, pois fora das cenas tauroctônicas, ele é
representado em momentos de refeição ou de iniciação.

No tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do


Mithraeum e na presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e
orações; manducação de pão e sumpção de água e vinho,
acompanhadas de fórmulas sagradas; danças de luzes e fórmulas
de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao ocaso. As
festas realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se
festejava uma semana inteira, sendo cada dia destinado a um
planeta. Comemorava-se, de modo especial, o dia natalício do
deus (Natalis Invicti), a 25 de dezembro. Os ofícios dos templos
faziam-se à luz de velas, com toques de sinos e com hinos, cujo
teor não se conhece, porque se perderam.

O Mithreum típico era uma pequena câmara retangular


subterrânea (25x10m) com um teto arqueado. Um corredor dividia
o templo ao meio, com bancos de pedra dos dois lados de 80 cm
de altura no qual os membros do culto podiam descansar durante
suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30 pessoas.
No fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma
representação - normalmente um relevo entalhado e algumas vezes
uma escultura ou pintura - do ícone central do mitraísmo: a
tauroctonia ou a cena da morte do touro, conforme descrito acima.
Outras partes do templo eram decoradas com várias cenas e
figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso
d'água ou, na falta destes, de um poço. Havia centenas, talvez
milhares, de templos mitraícos no Império Romano.

Os adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo


contemplativo. O seu culto encorajava a ação e um grande rigor
moral. Para os soldados, a resistência ao mal e às ações imorais
representavam uma vitória tão importante quanto as militares.

Reuniam-se, em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual


iniciático. Partilhavam o banquete sacramental com os deuses e
finalizavam com uma aliança entre o sol e Mitra. O repasto, sobre
os despojos de um touro, era seguido de um sacrifício, muitas
vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro: cabras,
javalis e/ou galináceos.

Consagrava-se o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o


sangue do touro e comia-se a carne. O processo da iniciação
mitraíca requeria a subida simbólica de uma escada cerimonial
com sete degraus, cada um feito de um metal diferente para
simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente galgando esta
escada cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito podia
atravessar os sete níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram:
Corax (Corvo), Nymphus ( Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão),
Peres (Persa), Heliodromus (Corrida do Sol) e Pater (Pai); cada
grau era protegido por um planeta (na cosmologia da época):
Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o Sol e Saturno. Cada
dignitário apresentava a vestimenta e a máscara correspondente ao
seu grau. Como todo rito mitraíco a estrutura hierárquica era
setenária. Os adeptos tinham a sua divisão de papéis: o chefe
(pater), o papel de Mitra, o heliodromo (sol), o corvo
apresentavam as carnes e as bebidas aos convivas dentro de uma
ordem hierárquica. A carne era assada sobre os altares dentro da
concepção do sacrifício do mundo greco-romano.

Os rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por


"inductio". Antes de serem admitidos, os candidatos eram
interrogados, sondados, informados num local distinto do templo.
Em seguida, eram submetidos a uma série de provas, nus e com os
olhos vendados, marchavam às apalpadelas diante de um
mistagogo para finalizar se ajoelhando diante de um personagem
que portava uma tocha diante de seus olhos. A seguir, com as
mãos atadas às costas, colocavam um joelho no chão ao mesmo
tempo que um sacerdote cingia-lhes a cabeça com uma coroa. No
final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz parte da tipologia
iniciática das sociedades secretas em geral: olhos vendados,
resistência física, morte simbólica, etc.

Reprova-se, nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios


humanos. Tal suposição advém de se ter encontrado, nos diversos
Mithrae, restos de esqueletos humanos.

Apesar de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a


"teodicéia" mitraíca. Sabe-se, contudo, que os "mistérios" da
Antigüidade revelam um mito ou uma história santa que legitima a
liturgia. É uma certa explicação do Mundo e da passagem do
homem sobre o mesmo que dá toda a força aos "mistérios", sejam
eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos. A religião de
Mitra se independentizou de suas origens orientais, agindo como
um imã que atraiu diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos
etc. Finalizou como um Deus adaptado ao Império Romano,
explicando assim o seu sucesso. Uma das grandes ironias da
história é o fato de que os romanos terminaram por adorar um
deus de um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O
historiador romano Quintius Rufus assinala no seu livro História
de Alexandre que antes de ir batalhar contra os "países anti-
mitraícos" de Roma, os soldados persas oravam a Mitra pela
vitória. Sem embargo, tendo as duas civilizações inimigas estado
em contato de conflito aberto ou latente por mais de mil anos, os
adoradores de Mitra migraram dos persas, através do frígios da
Turquia, até os romanos.

Numa análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história


do Mundo. Saturno (ou Cronos, representando o Tempo) reinava
soberano sobre o Mundo, quando entregou a Júpiter o raio, uma
arma letal que serviu para derrotar os gigantes e gênios do mal.
Alguns autores hipotetizam que este gênio do mal poderia ser o
Oceano que cobria a Terra.

Mitra, Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge


miraculosamente de uma rocha com um barrete asiático, tendo em
uma das mãos uma tocha luminosa e na outra, a adaga. Pastores
assistem e ajudam este nascimento. Mitra, em seguida, é
encontrado junto de uma árvore ceifando o trigo. Depois é visto
atirando com um arco sobre uma parede rochosa onde jorra uma
fonte que sacia os pastores. Alguns autores concluem que as forças
do mal (Oceano?) tentaram aniquilar os humanos pela fome e pela
sede e que Mitra, salvador dos homens e Deus protetor, interveio
para os alimentar e saciar sua sede, não só dos homens como dos
rebanhos. Nota-se, também, que o papel "justiceiro" das tradições
asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em socorro do Mundo
para fazer respeitar a Lei Divina.

Começa, agora, a perseguição ao Touro. O touro está em


conjunção com a lua, seus dois chifres formam o crescente. O
touro contem os elementos vivos (o esperma do touro purificado
pelo raio da lua produzirá os espécimens animais). Mitra tem a
missão de subtrair estas forças vivas das tentações maléficas. O
touro se refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo
ao local. Mitra alcança o animal, agarra os seus cornos e consegue
cavalgá-lo. Depois, prende as patas traseiras do animal, arrasta-o
até a gruta onde um corvo, mensageiro do Sol, impõe-lhe a tarefa
de matar o animal insubmisso. A morte do touro atrai uma
serpente e um cachorro que se apressam em sugar o sangue que
jorra da ferida enquanto um escorpião (algumas vezes um
caranguejo ou um 'câncer') fisga os testículos da vítima para
aspirar sua força vivificante.

Cumont afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente


com o sangue que escorre da calda do touro. Do corpo da vítima
moribunda nascem as ervas e as plantas salutares... De sua medula
espinal germina o trigo que dá o pão, de seu sangue, a vinha que
produz a beberagem sagrada dos mistérios.

É após a morte do touro que um conflito se abate entre Hélio e


Mitra. O Sol, ajoelhado diante da tauroctonia, perde sua
prerrogativa de astro soberano. Mitra torna-se o verdadeiro Sol
Invictus que vem salvar a criação. O Sol reconhece a
preeminência de Mitra pois se faz iniciar no grau de Soldado
(Miles).

III - O Cristianismo Triunfante


O fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e
vem acompanhado da entronização do cristianismo como religião
do Império Romano. Como vimos, o mitraísmo sofria o passivo de
praticar uma liturgia elitista em pequenas sociedades secretas na
qual as mulheres eram excluídas. Não se propunha ser uma reli-
gião de massa, aberto a todos, como o cristianismo. Era uma
religião otimista e Mitra teve o grande defeito de não ter morrido
para salvar o mundo.

Como os persas eram inimigos hereditários do Império Romano,


os cristãos fizeram de tudo para ligar o mitraísmo a uma religião
"inimiga", persa por excelência, pois os romanos não deveriam
adorar um deus importado do adversário. Apesar de tudo parece
que Constantino manifestou uma certa simpatia pelo mitraísmo,
principalmente na sua versão de "Sol invictus". Quando este
primeiro imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na
clandestinidade, poupou os mitraístas pois estes possuíam muita
influência junto aos militares que eram o cimento do Império. O
'punctus saliens' no qual os cristãos atacavam os mitraístas era a
sua propensão aos sacrifício animais. Quando estes sacrifícios
foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos vitais do
culto mitraíco.

O combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser


lido nos escritos de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta
religião utilizava indevidamente o batismo e a consagração do pão
e do vinho. Dizia, ainda, que o mitraísmo era inspirado pelo diabo
que desejava zombar sobre os sacramentos cristãos com o intuito
de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo sobreviveu
até o século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos
Anauni e conseguiu sobreviver no Oriente Próximo até os dias de
hoje.
No curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino,
Gibbon afirma que se assistiu a um retorno temporário ao
mitraísmo, tendo este Imperador se reconhecido até mesmo como
adepto e chegando a construir um Mithraeum nos calabouços de
seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período de
tolerância quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o
cristianismo tornou-se religião de Estado e o paganismo foi
definitivamente interditado. O mitraísmo sobreviveu em Roma até
394 sendo que a Basílica de São Pedro foi construída sobre o local
do último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí, o
cristianismo construiu, boa parte de seus templos, acima de
cavernas que continham Mithrae, seja em Roma seja nas
províncias do Império. A catedral de Canterbury e a de São Paulo
em Londres, o mosteiro do Monte Saint-Michel e algumas
catedrais em Paris estão construídas sobre antigos Mithrae em
ruínas.

Os pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são


inúmeros. O nascimento de Cristo é anunciado por uma estrela
assim como o de Mitridate Eupator. Ambos são nascidos de uma
Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de Deus. A caverna, a
gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de Mitra.
A presença de pastores e de seu rebanho também estão presentes
em ambos os nascimentos. A gruta de Belém é prenhe de luz e
Mitra é um deus solar. Além do mais, o ouro, símbolo do Sol, tem
uma importância crucial na liturgia cristã. Deus é Amor mas
também Luz. O nascimento dos dois deuses foi a 25 de dezembro,
solstício de Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo não
teria nascido no dia 25 e que, somente com o fim do mitraísmo, a
Igreja Cristã, "cristianizou" o dia como a festa do Natal. Tanto
Cristo como Mitra eram castos e celibatários. Todas as duas
religiões são fundadas sobre um sacrifício salvador do Mundo,
mas com a morte de Cristo, o cristianismo tira a sua vantagem e
sua superioridade. A morte do Touro encontra um símile na luta de
São Jorge com o dragão. A vontade de neutralizar as potências do
mal, a guerra entre as duas potências e a vitória do Bem. A
consagração do pão e do vinho estão presentes entre os cristãos e
os iniciados de Mitra. No grau de Soldado (Miles), o iniciado é
marcado com uma cruz de ferro em brasa sobre a fronte. A
imortalidade da alma e a ressurreição final. As igrejas antigas
possuem criptas subterrâneas que evocam os templos mitraícos. A
fraternidade e o espírito democrático das primeiras comunidades
cristãs se assemelham muito ao mitraísmo. A fonte jorrando da
rocha, a utilização de sinos, os livros e as velas, a água santa e a
comunhão, a santificação do Domingo (fora da tradição judaica do
Sábado), a insistência numa conduta moral, o sacrifício ritual, a
angeologia, a teologia da luz, dualidade deus-diabo, o fim do
mundo e o apocalipse são também comuns em ambas as religiões.

Outro símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel.


Vestimentas vermelhas e barrete frígio são comuns a ambos como
também as velas incrustadas em árvores (de Natal) nas cerimônias
natalinas.

IV - Sobrevivência Mitraíca e sua Influência na Maçonaria


Encontram-se traços mitraícos nas diversas gnoses e
principalmente nas heresias dualistas cristãs. O esoterismo do
gnosticismo cristão foi muito influenciado pelas religiões egípcias
e iranianas. Os segredos, revelados aos "Perfeitos", referiam-se
aos mistérios da ascensão e descida de Cristo através dos Sete
Céus habitados pelos anjos. Autores modernos chegam a afirmar
que o gnosticismo é um fenômeno pré-cristão de origem iraniana
que poluiu o cristianismo nascente. A influência dos cultos
iranianos e especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani são
insofismáveis. Desde o século III d. C., o segredo mitraíco força
as portas da barca de São Pedro. A pressão deste dualismo
maniqueísta percorre toda a Idade Média. O bogomilismo da
Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X
colocando Satã no lugar de Deus, infligindo um poder
considerável sobre as heresias Cátaras e Albigenses no alvorecer
do século XII na Europa Ocidental. Estas heresias gnósticas cristãs
professavam a asserção de que Deus não teria criado o Mundo,
estando este sob o domínio de Satã - assimilado ao demiurgo
Yahvista. O verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se
dão estes embates entre o Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado
Cristo para salvar os homens ao mostrar-lhes o método da
libertação.

Outra difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os


Cavaleiros do Templo, pois estes sofreram a influência dos
maniqueus. No culto a Baphomet, também conhecido como o
filho de Mitra, havia um ícone representado por um Touro ornado
com uma chama entre seus cornos...

O culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas


semelhanças com a maçonaria propriamente dita. A fraternidade
entre os membros, a exigência de uma conduta moral, a vontade
de defender, de maneira ativa e não contemplativa, o bem e a
virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e mitraícos. A
defesa da ordem política e social, o culto exclusivamente
masculino são também pontos comuns. Ritualisticamente
encontram-se os seguintes traços: a mania pelo número 7, a
existência de graus iniciáticos, as velas, os altares, a Luz, as
palavras de passe, etc. O templo maçônico pode ser visto como
uma gruta mitraíca ou se não se quiser ir muito longe o símile
poderá ser feito com a câmara de reflexões; o teto estrelado do
templo tem profunda semelhança com os mitraícos. Os templários,
a tradição judaica e cristã foram os grandes transmissores de
símbolos mitraícos. Os dois São Joães - de Inverno e de Verão -
tem profunda vinculação com os dois pastores da tauroctonia. O
sacrifício ritual fundador de Hiram está muito próximo do
sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento militar,
encontrado nos altos graus do escocesismo, é uma prova cabal da
influência mitraíca.

Outro símile estaria no mais baixo grau de iniciação - o grau de


Corvo (Corax) - simbolizava a morte do novo membro, o qual
deveria renascer como um novo homem. Isto representava a fim
de sua vida como um não-crente (ou descrente) e cancelava
pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis. Curioso salientar
que o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume
zoroástrico de expor os mortos em elevações funerárias para ser
comido pelas aves de rapina. Este costume continua, até os dias de
hoje, sendo praticado pelos Parsis da Índia, descendentes dos
persas seguidores de Zaratustra.

O simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos,


poder ter um paralelo com o touro, pois este era uma óbvia
representação da masculinidade pela natureza de seu tamanho, de
sua força e de seu vigor sexual. Ao mesmo tempo, o touro
simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos e as
forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no
solo. O sacrifício do touro simboliza a penetração do princípio
feminino pelo masculino, a vitória da natureza espiritual sobre a
animalidade, tendo um paralelo com as imagens simbólicas de
Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh aniquilando Huwawa
(grafia de Eliade), São Miguel dominando Satã, São Jorge
vencendo o dragão, o Centurião lancetando Cristo e, por que não
nos referirmos a um ícone moderno: Sigourney Weaver lutando
contra o Alien?

Finalmente, o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos


mistérios e uma sociedade secreta. Tal como os ritos de Deméter,
Orfeu e Dionísio, os rituais mitraícos admitiam candidatos em
cerimônias secretas cujo significado era do conhecimento somente
do iniciando. Como todos os outros ritos de iniciação
institucionalizados do passado e do presente, este culto dos
mistérios permitia aos iniciados ser controlado e posto sob o
comando de seus líderes. Ao ser iniciado, o neófito tinha que
provar sua coragem e devoção nadando através de rio caudaloso,
escalando um rochedo íngreme ou pulando através das chamas
com suas mãos atadas e os olhos vendados. Ao iniciado era
também ensinado o segredo das palavras de passe mitraícas que
eram usadas para identificação mútua como também era auto-
repetida freqüentemente como um mantra pessoal.

V - Como seria um Mundo Mitraíco à Guisa de Conclusão


O legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje
em dia, tal como o apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca.
Os adoradores de Mitra foram os primeiros no Ocidente a pregar a
doutrina do direito divino dos reis. Foi a adoração do sol,
combinada com o dualismo teológico de Zaratrusta, que
disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV (1638-
1715) na França e outros soberanos deificados na Europa
mantiveram o seu absolutismo monárquico.

Alguns estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C.,


nunca a Europa esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana
quando Diocleciano, oficialmente, reconheceu Mitra como o
protetor do Império Romano, nem mesmo durante as invasões
muçulmanas.

Especulações teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de


estado, dado pelos centuriões adoradores de Mitra, tivesse
impedido Constantino de estabelecer o cristianismo como a
religião oficial do Império, o mitraísmo poderia possivelmente
sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência
teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo "ipso
facto" que os ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira,
sido simultaneamente anulados e, talvez, com um número
crescente de crucificações. Esta ausência do cristianismo, devido à
continuação do mitraísmo no Ocidente, teria obstado o
crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas
necessariamente não teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã
não teria, assim, conquistado religiosamente a Pérsia, a adoração
de Mitra poderia ter continuado no panteão de Zaratrusta. Como
conseqüência, o mitraísmo poderia ter penetrado com mais força
nos panteões da Índia e da China e, possivelmente, teria aportado
nos países do Extremo-Oriente.

Continuando com a especulação saxã que resultou na "lenda


negra" da dominação espanhola no Novo Mundo, Colombo
realizou os seus descobrimentos em pleno período da Inquisição,
fenômeno este representativo da culminância de mais de mil anos
de uma das maiores religiões monoteístas semítica - o
cristianismo. Se o mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o
ano de 1492, os povos indígenas das Américas poderiam ter sido
expostos à adoração de Mitra no lugar dos missionários católicos.
Imaginaríamos, assim, o Taurobolium - ritual de regeneração ou
sacrifício do touro, no qual o sangue do animal era derramado
sobre o iniciado - sendo sido transposto e sincretizado com o ritual
da caça do búfalo dos índios das planícies do Oeste americano e a
cerimônia do sacrifício dos maias, incas e astecas, e
provavelmente, estes impérios não teriam sido aniquilados pelos
brutais conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.

Se non è véro, è bene trovato...

VI - BIBLIOGRAFIA
BARBAULT, Anne, Introdução à Astrologia, Ed. Nova Fronteira,
Rio de Janeiro, 1991.
CHEVALIER, J. e Gheerbrant, A. Dicionário de Símbolos, José
Olimpio Editôra, Rio de Janeiro, 1988.
COIL, Henry Wilson, Coil's Masonic Encyclopedia, Macoy
Publishing & Masonic Supply Co., Inc., Richmond, Virginia,
1995.
ELIADE, Mircea, História das Crenças e das Idéias Religiosas, IV
vols., Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1983.
ELIADE, Mircea, Iniciaciones Místicas, Ed. Taurus, Madri, 1975.
Encyclopaedia Britannica, 30 vol., 1982
FARIA, Romildo de (org.), Fundamentos de Astronomia, ed.
Papirus, Campinas, 1987.
FRANZ, Cumont, Astrology and Religion among the Greeks and
Romans, Kessinger Reprints (1912), Montana, s/d.
FRANZ, Cumont, Mysteries of Mithra, Kessinger Reprints
(1910), Montana, s/d.
FRANZ, Cumont, Oriental Religions in Roman Paganism,
Kessinger Reprints (1911), Montana, s/d.
FRAU ABRINES, Lorenzo, Diccionario Enciclopédico de la
Masonería, vol. v, Editorial del Valle de Mexico, México, 1976.
FRAZER, James George, O Ramo de Ouro, Círculo do Libro -
Zahar, São Paulo, 1986.
GIBBON, Edward, The History of the Decline and Fall of the
Roman Empire, III vols., The Penguin Press, England, 1994.
GROUSSET, R. e LÉONARD, E.G. Encyclopedie de la Pléiade -
Histoire Universelle, III vols., Librairie Gallimard, Paris, 1957.
HALL, M.P. An Encyclopedic Outline of Masonic, Hermetic,
Qabbalistic and Rosicrucian Symbolical Philosophy, Golden
Anniversary Edition, The Philosophical Research Society, Los
Angeles, CA, 1979.
MACKEY, A.G. Enciclopedia de la Francmasonería, 4 vol.,
Editorial Grijalbo, Mexico, 1981.
MOURÃO, Ronaldo R. F., Dicionário Enciclopédio de
Astronomia e Astronáutica, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro,
1987.
NAUDON, Paul, Histoire, Rituels et Tuiler des Hauts Grades
Maçonniques, Dervy Livres, Paris, 1984.
PILE, A. Morals and Dogma of the Ancient and Accepted Scottish
Rite of Freemasonry, Charleston, 1871.
ULANSEY, David, The Origins of the Mithraic Mysteries, Oxford
University Press, New York, 1989.
WESTCOTT, W. Wynn, The Resemblances of Freemasonry to the
Cult of Mithra, Ars Quatuor Coronatorum, vol. XXIX, London,
1916.

Você também pode gostar