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Russell Kirk: A Ilusão dos Direitos Humanos

Russell Kirk, 1987

“Existe algo ainda mais importante que as liberdades civis: a sobrevivência de


governos legítimos”.

Os Direitos Humanos, dizem alguns, não são integralmente assegurados em El Salvador.


Outros descobriram, tardiamente, que os direitos humanos não são totalmente
assegurados no Camboja. Nosso governo nacional engaja-se em um curioso cálculo moral
quando tenta sopesar os vários méritos e deméritos dos regimes em Uganda, Granada,
Chile e Iugoslávia – sem falar na União Soviética e na China Comunista.

Por quais padrões os “direitos humanos” devem ser mensurados? O que, de fato,
queremos dizer com esta controversa expressão “direitos humanos”? Ofereço-lhes
algumas re exões sobre este assunto.

A expressão “direitos humanos” apareceu pela primeira vez na política americana,


acredito, quando o presidente Woodrow Wilson opôs-se aos “direitos de propriedade”. O
presidente Franklin Roosevelt também opôs os direitos humanos contra os direitos de
propriedade. Provavelmente, o presidente Jimmy Carter pensou em empregar este termo
por in uência de seus antecessores, quando montou um aparato burocrático para julgar
as nações, censurando os estados subordinados por não alcançarem aquela perfeição dos
direitos humanos desfrutada nos Estados Unidos da América.

Desde o início, o odor da demagogia impregnou-se no uso político da linguagem dos


“direitos humanos”. Pois todos os direitos são direitos humanos. Alguém sugere um
código de direitos desumanos? Cães e gatos não gozam de direitos. Os estados não
possuem direitos (apesar dos argumentos constitucionais); estados gozam de poderes.
Deus está acima dos direitos e a humanidade não pode reivindicar direitos contra Deus.
A propriedade não possui direitos, é inanimada e não humana. Os seres humanos, ao
contrário, têm direitos sobre sua propriedade legal. O direito de manter as propriedades
reais e pessoais é um dos mais importantes direitos civis; o crítico Paul Elmer More
declarou que, no que concerne à civilização, o direito à propriedade é mais importante que
o direito à vida. O presidente Wilson, bem familiarizado com teoria política e história, devia
ter consciência de sua falsidade quando opôs os “direitos de propriedade” aos “direitos
humanos”. O presidente Franklin Roosevelt poderia ter alegado ignorância, fosse ele
acusado deste abuso de termos.

Estou sugerindo, você há de perceber, que um termo tão vago como “direitos humanos”
pode ser facilmente distorcido a favor dos políticos; e que pode ser perigoso empregá-lo.
Não obstante, por trás deste termo débil, repousam velhas verdades e velhos erros.

Quando políticos e publicitários aclamam “direitos humanos”, a quais conceitos eles estão
se referindo? Provavelmente, há no fundo de suas mentes – supondo que sejam re exivos
– o conceito de “lei natural”, ou o conceito de “direitos civis”, ou ambos os conceitos.

Estes dois termos podem ser de nidos bem mais facilmente que “direitos humanos”. No
entanto, atualmente, a etiqueta “direitos humanos” está em voga. Está incorporada na
Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Aparece, inclusive, em
traduções de documentos emitidos pelo Vaticano. E, claro, é amado pela mídia das
massas.

Podemos extrair alguma substância por trás da etiqueta? A suposição subjacente aos
“direitos humanos” parece ser esta: da natureza do homem derivam certas imunidades
pessoais as quais todos os governos e todas as pessoas no poder deveriam respeitar. Esta
é a doutrina do direito natural, como a encontramos em Cícero e nos escolásticos. A esta
visão jusnaturalista, conferindo certas imunidades contra a operação do poder, está
vinculado o conceito de dignidade humana – uma crença de origens cristã e clássica
misturadas. Uma vez que a noção de “direitos humanos” está fundada sobre as doutrinas
do direito natural e da dignidade humana, ela pode reivindicar uma origem venerável.
Algumas palavras de de nição podem ser úteis aqui.

Este termo jurídico e político, direito natural, pode ser de nido como um conjunto de
regras de ação frouxamente entrelaçadas, prescritas por uma autoridade superior ao
Estado. Estas regras presumem-se derivadas do mandamento divino, da natureza do
homem ou da experiência humana em geral ao longo de milhares de anos. Partindo de
Aristóteles, através de Cícero e dos jurisconsultos romanos, uma continuidade da crença
no direito natural deu parte ao que chamamos de “o Ocidente”. Após o triunfo da Fé
Cristã, esta doutrina jusnaturalista entrelaçou-se à moralidade cristã e ao pensamento
social. Foi exposta com um vigor especial por São Tomás de Aquino.

Como Sir Ernest Barker escreveu sobre o direito natural, “Esta justiça é concebida como
sendo a lei superior ou última, procedente da natureza do universo – do Ser de Deus e da
razão do homem. Segue-se que a Lei – no sentido da lei de última instância – está de
alguma forma acima do processo legislativo”.

A di culdade de de nir o direito natural de perto e de descobrir sanções claras para


invocá-lo envolve necessariamente a doutrina do direito natural em controvérsias. Mas
permanece nos Estados Unidos e em alguns outros países um apego popular à crença do
direito natural que ainda possui vigor.

Em essência, como observa A. P. d’Entreves, a doutrina do direito natural é “uma


a rmação de que o direito é uma parte da ética”. Assim, quando muitas pessoas se
referem a “direitos humanos”, elas têm em mente, vagamente pelo menos, a doutrina do
direito natural: a convicção de que um ser humano é titular do direito a um certo
tratamento porque, por sua própria natureza, ele é algo melhor do que uma besta.

Esse entendimento está intimamente ligado ao que Pico della Mirandola, cinco séculos
atrás, chamou de “a dignidade do homem”: a aspiração dos humanistas, por uma
disciplina da razão e da vontade, de tornar o homem não muito inferior aos anjos. Em
suma, o político que emprega a expressão “direitos humanos” evoca em algum grau, no
entendimento popular, espíritos ancestrais; ele evoca tanto o modelo medieval do homem
quanto o modelo renascentista do homem, mesmo que nem o político nem seu ouvinte
estejam cientes da magia. Presenças fantasmagóricas, crenças ressuscitadas, parecem
justi car este encantamento dos “direitos humanos”.

Então, em novembro de 1983, dirigindo-se à Assembléia Nacional da Coréia do Sul, o


presidente Ronald Reagan declarou: “Os Estados Unidos saúdam as metas que os
senhores estabeleceram para o desenvolvimento político e para incentivar o respeito aos
direitos humanos”. Presidentes democratas introduziram  “direitos humanos” ao nosso
discurso político; um presidente republicano agora aceita a expressão como um jargão
político convencional. Por este termo, presumo, o presidente Reagan queria se referir às
“liberdades civis”.

E quando muitas outras pessoas escutam as palavras “direitos humanos”, elas as tomam
como sinônimo de “direitos civis” ou “liberdades civis”. Assim, o apego americano aos
conceitos de direito natural e dignidade humana está ligado à ênfase americana nas
liberdades civis; e estas duas predileções, fundindo-se, parecem conferir uma substância à
amorfa doutrina dos “direitos humanos”.

Porém, a noção de “direitos humanos” não descende do ensino do direito natural que se
estende de Aristóteles a Burke; nem é “direitos humanos” sinônimo de liberdades civis. Há
alguns instantes, procurei de nir brevemente o conceito de direito natural; agora deixe-
me dizer algo à respeito dos direitos civis.

Um “direito civil” é uma garantia de que o cidadão está protegido contra certas ações que,
de outra forma, o Estado poderia tomar para a desvantagem do cidadão. Tais direitos são
comumente declarados como negativos – que as tropas não devem ser instaladas em
residências privadas, por exemplo, ou que as punições não devem ser cruéis ou inusuais.
Entende-se que os direitos civis acarretam os deveres civis correspondentes, sendo o mais
importante deles o dever de manter a supremacia da lei da qual tais direitos são
derivados.

A extensão e o exercício dos direitos civis variam muito de uma cultura ou comunidade
política para outra – porque “direitos civis” são produtos da experiência histórica de
determinados povos. Nunca existiu um código universal de liberdades civis.

O direito ao julgamento pelo júri, por exemplo, tão zelosamente assegurado na Grã-
Bretanha e nos Estados Unidos, nunca prevaleceu na França. Isso não signi ca que os
“direitos humanos” sejam reprimidos pelos franceses. De outro modo, sugere que a
ordem, a liberdade e a justiça são obtidas de diversas maneiras em diferentes lugares e
épocas.

As liberdades civis existem tanto no direito comum (“commom law”) como no direito
Romano (“civil law”), mas o caráter particular desses direitos varia de um sistema político
para outro. Impor um padrão americano de direitos civis a uma sociedade de origens
muito diferentes – sobre um estado muçulmano, por exemplo – derrubaria o antigo
padrão de justiça sem estabelecer efetivamente os padrões americanos.

Para resumir minhas de nições, o direito natural é uma teoria da justiça, derivada de
convicções religiosas ou quase religiosas sobre a natureza do homem; enquanto
liberdades civis são imunidades práticas na lei, derivadas do desenvolvimento político de
uma nação durante um longo período de tempo. Super cialmente, a ilusão do século XX
dos “direitos humanos” pode aparentar ser a lha desses pais veneráveis. Mas, na
realidade, a noção de “direitos humanos” é uma ideia bastarda recém-nascida. Seu pai foi
a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, a qual o governo dos Estados
Unidos da América recusou-se a assinar. Seu avô era a Declaração dos Direitos do
Homem, promulgada pelos Revolucionários Franceses e por Tom Paine – e também
rejeitada, em sua época, pelo governo americano. Amigos do direito natural e das
liberdades civis americanas seriam tolos se permitissem que esta noção ilegítima de
“direitos” universais imprescritíveis lhes fosse impingida. A fedelha poderia causar sua
ruína.

***

Os direitos só podem ser criados se derivarem de algum corpo de lei. As abstrações que
chamamos de “direitos humanos” não têm sanção no direito positivo da maioria dos
países; a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode receber o consentimento
formal de vários governos, mas em nenhum lugar essa Declaração é observada e aplicada.
A que lei positiva apela o oprimido no Camboja ou em Uganda? A nenhuma, de fato. Em
tais domínios, o único apelo é para as leis da natureza – isto é, para uma justiça de origem
mais que humana. E os esquálidos oligarcas que presidem a anarquia do Camboja e de
Uganda sorriem sobre os fundamentos da lei natural. “Pague os soldados”, como disse
Septimius Severus; “o resto não importa”.

“Direitos” são imunidades, garantias de que certas coisas não podem ser feitas a uma
pessoa contra sua vontade. Os direitos podem ser garantidos apenas em uma ordem
social civil. Em uma condição de anarquia, ninguém goza de direitos, porque não existe
autoridade justa à qual uma pessoa possa apelar contra a violação de direitos. Portanto, o
que chamamos de Estado, ou comunidade política organizada, é necessário para a
realização de qualquer direito.

Nada obstante, o governo de qualquer estado pode se tornar opressivo. Pode ignorar ou
virtualmente extirpar direitos de minorias ou maiorias. Portanto, direitos permanentes
não devem ser considerados apenas concessões de um governo particular. Os verdadeiros
direitos encontram sua sanção ou em uma teoria da natureza humana ou nos costumes
estabelecidos há muito tempo em um povo. A primeira destas sanções é o que chamamos
direito natural; a última, o que chamamos de direitos civis.

Devemos ter cuidado ao supor que todos os benefícios sociais civis que os cidadãos dos
Estados Unidos desfrutam atualmente são direitos “naturais”, universalmente aplicáveis.
Tampouco deveríamos supor que as liberdades civis de nosso próprio país podem ser
exportadas para culturas de países diferentes. Seria desumano que nos tornássemos
ideólogos fanáticos, exigindo um padrão universal in exível de “direitos humanos”.

Na atual e confusa discussão dos direitos humanos na América e no estrangeiro,


precisamos recordar uma observação de Dostoiévski, em Os Demônios. Aqueles que
começam com liberdade ilimitada, diz Dostoiévski, devem terminar com um despotismo
ilimitado.

Nem tudo que homens e mulheres desejam é seu direito. Sendo a política a arte do
possível, os direitos não existem ilimitados, no abstrato. Todo direito é limitado por algum
dever correspondente; e aqueles que reivindicam o direito a tudo, logo descobrem que
lhes resta o direito a nada.

Ao nal do século XVIII, Edmund Burke, em resposta aos revolucionários franceses, fez
uma distinção entre os direitos “reais” e os “pretensos” direitos dos seres humanos.¹ Burke
foi ao mesmo tempo um defensor do direito natural e um defensor das liberdades civis
em sua forma inglesa. Ele declarou que a “doutrina militar” (que agora chamamos de
ideologia) estava destruindo os direitos reais de homens e mulheres, mesmo quando
proclamava os pretensos direitos, que não podem ser obtidos.

Há certos direitos reais inerentes a todos os seres humanos na sociedade, escreveu Burke.
Como argumentara em seu processo contra Warren Hastings, esses direitos são tão
válidos na Índia quanto na Grã-Bretanha. “Se a sociedade civil é feita para a vantagem do
homem”, escreveu Burke em 1789, “todas as vantagens para as quais é feita se tornam seu
direito. É uma instituição de bene cência; e o direito em si só é bene cência atuando pela
lei. Os homens têm o direito de viver de acordo com essa lei; eles têm o direito de obter
justiça, como os seus companheiros, quer estejam em função pública ou em ocupação
comum. Eles têm direito aos frutos de sua indústria e aos meios de tornar sua indústria
frutífera. Eles têm direito às aquisições de seus pais; à nutrição e melhoria de seus
descendentes; à instrução na vida e ao consolo na morte. O que quer que cada homem
possa fazer separadamente, sem passar sobre os outros, ele tem o direito de fazer por si
mesmo; e ele tem direito a tudo o que a sociedade, com todas as suas combinações de
habilidade e força, possa fazer a seu favor”.

Burke enfatizou que os homens também têm o direito de serem restringidos pelo governo
– isto é, o direito de serem salvos de sofrer as consequências de seus próprios vícios e
paixões, o que equivale ao direito de viver sob o domínio da lei; ao direito de ser protegido
em seu trabalho, sua propriedade, sua herança; ao direito de instrução religiosa e consolo;
ao direito à igualdade de tratamento pelo Estado.

Ainda assim, não nos voltamos preferencialmente para estas a rmações gerais e abstratas
sobre o direito, Burke continuou explicando. Ao contrário, quando tratados injustamente,
recorremos primeiro ao que Burke chamou de “direitos escriturados” – isto é, os direitos
civis de nosso país, conforme expressos em cartas, constituições, estatutos, costumes
antigos. O direito estatutário e o direito comum (common law), e não o direito natural, são
os meios regulares para garantir direitos de nidos.

Apelos ao direito natural são o nosso recurso apenas em tempos de extrema opressão
sem meios regulares de reparação; pois o direito natural não é um código de regras
aplicável; é um conjunto de princípios jurídicos pelos quais devemos ser guiados em nossa
construção do direito positivo.

Embora as formas políticas e legais variem amplamente de nação para nação, ainda existe
em toda civilização uma apreensão da lei natural, derivada de uma compreensão da
natureza humana. Todos os legisladores devem ter em mente os direitos reais dos seres
humanos quando lidam com os direitos escritos de seu país.

A compreensão de Burke do direito natural e dos direitos escritos não foi totalmente
esquecida nos Estados Unidos. De fato, o pensamento de Burke entrou na Constituição e
em sua interpretação, especialmente, através do Chefe de Justiça John Marshall, que foi
poderosamente in uenciado por sua leitura de Burke. Esta subjacente a rmação
americana de justiça natural e direitos civis prescritivos deu aos Estados Unidos uma
tensão saudável entre as reivindicações de ordem e as reivindicações de liberdade. Em
nossa política interna, pelo menos, entendemos que a segurança perfeita não pode ser
alcançada, nem pode aperfeiçoar a liberdade: precisamos equilibrar uma em relação à
outra. Da mesma forma, entendemos razoavelmente que todo direito está casado com
alguma responsabilidade. Assim, por trás disso, o estranho termo “direitos humanos”
possui, na opinião pública norte-americana, alguma substância.

Mas o século XX são tempos tortos; Burke previu a chegada do nosso tempo problemático.
Em país após país, a ideologia totalitarista submergiu tanto a lei natural quanto as
liberdades civis. Se não fosse pelo poder sobrevivente dos Estados Unidos, o
remanescente da ordem, da justiça e da liberdade poderia ser engolido pela Ideologia do
Leviatã.

Nos assuntos internacionais, no entanto, os Estados Unidos precisam tomar cuidado com
o que Sir Herbert Butter eld chama de “retidão”, um erro fundamental na diplomacia –
isto é, a autojustiça nacional. A República Americana não possui virtude e poder su cientes
para impulsionar as noções americanas de “direitos humanos” em todo o mundo. Mesmo
uma a rmação maciça do poder americano, uma cruzada pelos “direitos humanos”,
poderia destruir mais do que restaurar. O compromisso da América no Vietnã, a versão
dos direitos humanos do presidente Lyndon Johnson, foi uma lição salutar a este respeito,
se em nenhum outro. Não é missão dos Estados Unidos estabelecer universalmente
alguma imitação da ordem política e econômica americana. Todo povo precisa encontrar
seu próprio caminho para a ordem, a justiça e a liberdade. Como Daniel Boorstin
escreveu, a Constituição americana não é para exportação. Ele quer dizer que nossa
Constituição nasceu da peculiar experiência histórica dos americanos. Assim também é
com a constituição de todos os povos. Não devemos esperar que o modelo americano de
tribunais seja estabelecido prontamente na Indonésia, por exemplo; ou que o sufrágio
universal (que até os suíços não adotaram até anos muito recentes) seja adotado da noite
para o dia na África do Sul; ou que as grandes e prósperas corporações privadas
industriais apareçam abruptamente na Iugoslávia.

Uma tentativa de impor a curto prazo o padrão americano de direitos, além de ser
irremediavelmente impraticável, teria consequências distintas daquelas que a maioria dos
americanos deseja. É bem concebível que esta insistência forçada em um programa total
de “direitos humanos”, neste momento, possa trazer o triunfo de ideologias totalitaristas
hostis tanto ao direito natural quanto ao direito positivo. Há um governante pior que o Rei
Log: ele é o Rei Stork.²

Considere como a demanda induzida por “direitos humanos” tornou-se o instrumento


principal para derrubar o governo Diem no Vietnã do Sul. Esse governo estava envolvido
em uma luta desesperada para repelir a agressão dos comunistas do norte;
simultaneamente, teve de lutar contra facções dentro de suas próprias fronteiras –
partidos e seitas munidos de suas próprias forças armadas. Apesar destas enormes
di culdades, o governo Diem era uma ordem constitucional, sustentando uma Assembleia
Nacional e realizando eleições para ambos os cargos legislativo e executivo. No entanto, a
esquerda trouxe contra o governo Diem a acusação de que o regime não assegurava
perfeitamente as liberdades civis, “direitos humanos”; foi dito, um pouco vagamente, que
os budistas eram discriminados. Figuras dominantes dos meios de comunicação
americanos repetiram essas acusações até que o governo Kennedy abandonou Diem – e
tornou possível o seu assassinato. Que triunfo para os direitos humanos! Agora, reina em
Saigon, como em Hanói, uma impiedosa dominação de marxistas que eliminaram o último
vestígio de liberdades civis. A demanda por liberdade ilimitada terminou em despotismo
ilimitado.

O mesmo processo pode ser observado em El Salvador. Até Henry Kissinger exortou o
governo sitiado daquele infeliz pequeno estado – um governo democraticamente eleito – a
expandir seus “direitos humanos” em tempos de guerra civil, com inimigos mortais a
poucos quilômetros da capital. Existe algo ainda mais importante que as liberdades civis: a
sobrevivência de governos legítimos. Acho curioso que os inimigos do Estado tenham
direito à proteção total de suas liberdades pelo próprio Estado que pretendem derrubar.
Durante a Guerra Civil nesta República, o Presidente Abraham Lincoln não hesitou em
rejeitar este tipo de liberalismo desintegrado: suspendeu mandados de habeas corpus.
Constituições não são pactos de suicídio.

Alguém se incomodou em indagar aos fanáticos por “direitos humanos” quais condições
políticas e sociais podem ser consideradas como um cumprimento satisfatório do ideal
dos “direitos humanos”? Podemos supor que, no mínimo, todos os artigos da Declaração
de Direitos da América teriam que ser observados e aplicados com muito escrúpulo; que
os governos seriam levados a cabo por partidos “moderados” ou “intermediários” de um
elenco socialdemocrata (partidos quase inexistentes na maior parte do mundo); que a
perfeita liberdade de expressão, incluindo manifestações de rua de facções militantes, não
seria meramente garantida, mas encorajada; que as forças armadas de um país seriam
reduzidas a um mínimo, caso não fossem abolidas por completo; que, é claro, as forças da
polícia secreta seriam proibidas e a polícia comum, dirigida por comitês de cidadãos; que o
sufrágio universal prevaleceria, com eleições frequentes; que um Estado de bem-estar
social proveria uma grande proporção de cidadãos com generosos direitos; que toda
demanda por direitos mais abundantes seria prontamente satisfeita. Com efeito, a visão
dos “direitos humanos” para o mundo é uma versão moderna do liberalismo sentimental
mais avançado da Inglaterra vitoriana, somada a uma considerável dose de socialismo.

Uma di culdade principal dessa noção utópica de “direitos humanos” triunfante é que tal
sociedade, na maior parte do mundo, seria derrubada em muito pouco tempo por uma
gangue ideológica ou outra – ainda que não colapsasse com seu próprio peso. O
imperialismo soviético daria pouca atenção a alguns desses países; outras variedades de
totalitarismo fanático triunfariam em outros lugares. O sonho liberal começou a se
transformar em um pesadelo há um século. O mundo torto em que nos encontramos não
tolerará uma loso a política de cafeteria. As coisas serão como serão; por que devemos
procurar nos enganar?

E por que deveríamos esperar que outras nações, sem as nossas tradições políticas e
instituições sociais estabelecidas há tanto tempo, não fossem dotadas dos recursos
materiais dos EUA, para alcançar o que é imperfeitamente alcançado nos Estados Unidos?
Nós, americanos, desfrutamos do cumprimento total dos “direitos humanos”? Andar pelas
ruas com segurança razoável é a mais básica das liberdades civis; no entanto, milhões de
americanos não ousam sair à noite, e alguns di cilmente ousam se aventurar de dia.
Presumivelmente, a segurança das crianças na escola é um direito civil básico; mas em
todas as cidades americanas os alunos são agredidos diariamente e alguns mortos. Não
temos reivindicações de direitos insatisfeitos? Médico, cure-se a si mesmo.

Não almejo deboches. É muito desejável que a recuperação da ordem, da justiça e da


liberdade seja promovida em todo o mundo; devemos ser gratos, neste tempo difícil, por
pequenas compaixões. Mas a política internacional, como as políticas internas, é a arte do
possível. Exigir que outros países atinjam rapidamente o ideal liberal é esperar o que não
podem realizar; em alguns casos, é de esperar que eles trabalhem sua própria destruição.

É também uma demanda muitas vezes pouco sincera, às vezes hipócrita. Os Estados
Unidos apoiam, com empréstimos gigantescos, o déspota assassino que governa o Zaire,
porque em qualquer momento ele pode servir à nossa vez na África; mas nossos
diplomatas não se preocupam em investigar severamente sua aplicação dos “direitos
humanos”. Nosso Departamento de Estado se abstém vigorosamente de qualquer palavra
que possa incomodar aos senhores da Iugoslávia, onde qualquer esperança de recuperar
algum grau de liberdade civil fora destruída como na Polônia; para a Iugoslávia é uma
espécie de baluarte contra a União Soviética. Nós reservamos nossos sermões sobre
direitos humanos para estes aliados e estados subordinados como se não pudessem ou
não fossem romper com os Estados Unidos sob qualquer circunstância.

Nos assuntos das nações, di cilmente pode ser de outro modo. Pois o objetivo da política
externa é manter e promover o interesse nacional – não embarcar em cruzadas morais.
Buscamos uma aliança informal com a China comunista e, portanto, fazemos grandes
concessões aos oligarcas de Peiping, até mesmo ao ponto de sustentar que o governo
legítimo do Camboja é o regime feroz do Khmer Vermelho, agora dirigido para a Tailândia
– o domínio com os piores “direitos humanos” se registra neste desumano século XX –
simplesmente porque esse reconhecimento é conveniente à política chinesa. Isto é o
realismo na diplomacia. Depois, descarregamos nossas consciências pedindo a El Salvador
que seja gentil com os terroristas.

A política externa, repito, não é um exercício de moralismo. Nós ajudamos na conversão


da Rodésia para o Zimbábue, com muita conversa farta sobre direitos humanos dirigida ao
governo anterior, porque a América precisa dos recursos minerais daquele país; e nossos
estadistas calcularam que seria possível destacar a principal facção negra da in uência
soviética. Por mais imperfeita que seja a realização dos direitos humanos na Rodésia, a
justiça e a liberdade civil estão sendo extintas no Zimbábue. Acho desagradável encobrir o
interesse nacional com frases impactantes sobre direitos humanos. O que nós
buscávamos, na verdade, era o cromo – não o estabelecimento de um paraíso de direitos
humanos no coração da África.
O que quer que seja feito pelo exemplo e pela persuasão para manter os altos princípios
do direito natural e da liberdade civil, devemos fazê-lo. Mas não devemos nos iludir
imaginando que o mundo possa ser redimido por jawboning³  – muito menos pelo
jawboning que enfraquece e ofende governos que não são hostis aos Estados Unidos. E em
1987, não devemos falar em Newspeak. “Direitos humanos” é um termo da moda, muitas
vezes arrogante, prontamente empregado para promover causas hostis às genuínas
ordem, justiça e liberdade. Não nos deixemos assoberbar pelo nosso próprio petardo
verbal.

Tradução: Valéria Cutrim

NOTAS:
[1] Os “pretensos direitos”, nos termos de Burke, “são todos extremos: na medida em que
são meta sicamente verdadeiros, eles são… politicamente falsos”. (Burke, Re exions). N. do
T.

[2] Referência à fábula The Frogs Who Desired a King (As Rãs que Desejavam um Rei), de
Esopo. N. do T.

[3] “Jawboning” é um termo comumente utilizado para referir-se a apelos públicos (como
de um presidente) para in uenciar as ações especialmente de empresários e sindicalistas.
N. do T.

© Russell Kirk. The Wise Men Know What Wicked Things Are Written on the Sky. Regnery,
1987.

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