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E OUTRAS CRÔNICAS
Walcyr Carrasco
Apresentação
CONTO OU NÃO CONTO? Pois bem, digo. Neste ano prometo perder
a barriga. Posso até visualizar o sorriso descrente de quem estiver lendo estas bem
traçadas linhas. Falo da minha barriga há tempos. Prometer, nunca prometi. O caso
é o seguinte: todo final de ano enfio o pé na jaca. Vou a festas. Devoro pernis,
bacalhoadas, tênderes, arroz com passas, lentilha com lingüiça (a lentilha é para dar
sorte, a lingüiça porque é bom mesmo). Esbaldo-me como se estivesse próximo do
Juízo Final. Desta vez, foi pior ainda. Afinal, havia boa possibilidade de que o Juízo
Final acontecesse. Desde criancinha ouço falar nisso. Para que fazer regime, se o
mundo podia acabar no réveillon?. O resultado é visível: minha barriga ultrapassou
todos os limites. Seja dita a verdade. A gula é o único pecado que vem com o
castigo junto. Fiz outras promessas. Uma delas é fugir de tudo que é "alternativo".
Passei as últimas décadas reverenciando essa palavra. Cada vez que comia um prato
de broto de feijão em um restaurante "alternativo", eu me sentia mais saudável.
Ouantas vezes tomei suco de couve pela manhã? Confesso: até macrobiótica tentei.
Tudo começou quando estive em um restaurante do tipo. O dono me garantiu que
se tornara um homem equilibrado e sem ansiedades. Passei dez dias comendo arroz
integral. Depois dessa fase radical, incluí bardana e peixe no cardápio. No final do
primeiro mês tive uma inequívoca experiência extra-sensorial. Estava deitado, de
olhos abertos, quando um hambúrguer-salada flutuou na minha frente. Estiquei os
maxilares, pronto para abocanhar a delícia. Ao morder, quase perdi a língua. A
visão etérea do hambúrguer se desfez. Saí pela madrugada atrás de uma lanchonete.
Comi três hambúrgueres e quase fui parar no hospital. Recentemente li uma
reportagem sobre as propriedades do dry martíni. Sim, ele é antioxidante. Combate
os radicais livres. Pesquisa científica. E o vinho tinto? É bom para o coração,
dizem. Enquanto eu comia bardana e tomava chá de jasmim, os desregrados é que
se davam bem! Sinto arrepios ao ouvir falar em "alternativo". Prometo tirar a
diferença neste milênio.
Vou ler todos os romances policiais e ouvir as músicas bregas a que tenho
direito. O caso é que adoro um bom policial, mas meus amigos vivem dizendo que
um intelectual deveria estar se abastecendo de livros mais sérios. E sou louco por
boleros. Quem vai a minha casa mexe em meus CDs e suspira. Dizem que não há
nada que preste. Não há. Mas eu gosto. E se eu gosto, presta. Pelo menos para
mim. Fica mal para um intelectual, eu sei. Talvez eu desista de ser intelectual, mas
não dos boleros.
Quero me transformar em um homem bom. Um anjo. Prometo, com
todas as minhas forças, nunca mais falar mal de mulheres ao volante. A estatística
demonstra que elas sofrem menos acidentes. Pensarei nisso cada vez que pedir
passagem e uma delas me cortar pela direita. Elevarei meus olhos, pensando:
"Perdoai-as, elas não sabem o que fazem". Terei a mesma atitude perante os
motoqueiros. Quando cinco ou seis deles cruzarem em diagonal na minha frente,
batendo no meu espelho e me xingando, manterei um sorriso harmônico no rosto.
Nem pensarei que a CET deveria dar duro em cima deles. Mas que estão
trabalhando e por isso têm o direito de transformar as pistas em uma loucura. Não
sou bom? Durante os engarrafamentos, procurarei manter a calma. Farei meditação
transcendental cada vez que a 23 de Maio ficar paralisada.- Talvez um dia o carro
saia levitando.
Finalmente, eis minha última promessa. É séria. Quero perder o ranço de
esquerda. Passei toda a minha vida analisando cada fato dentro do seu contexto.
Arre! Cada vez que via um mendigo, decidia não ajudar porque o problema, afinal,
é da sociedade como um todo. Da distribuição de renda. Do... Se explicasse tanta
responsabilidade social ao pedinte, acho que levaria uns tapas. Outro dia, no
semáforo, apareceu uma senhora com um bebê. Dei a esmola e me senti bem.
Pronto. Que teoria resolveria a vida dela?
Com tudo isso, eu me sentirei um anjo. O anjo carrasco. Soa bem. Eu
gosto. Quem sabe?
Síndrome de Carrapato
Eu, Cidadão
Truque no Assaltante
O Automóvel
Culinária Afetiva
O Pinheiro
Os Ex-Ricos
Desculpa Esfarrapada
Vocação
Sinal Vermelho
Adeus ao Fogão
O Mestre da Faxina
Generais do Cotidiano
A Etiqueta Carioca
Delírios de Honestidade
O Drama da Gorjeta
NUNCA SEI QUANTO dar de gorjeta. Nem se devo dar. Às vezes, sinto-
me constrangido porque dei pouco. Na maioria das ocasiões me revolto. Com
manobristas de restaurante, por exemplo. Até algum tempo atrás, ninguém cobrava
pelo serviço. Quando eu entrava no carro ou saía, o manobrista ficava segurando a
porta. Se não colocasse uma cédula na sua mão, seria obrigado a partir com a porta
aberta, arrastando o sujeito pelo asfalto. Soltar o carro sem gorjeta, ele não soltava!
Agora os restaurantes resolveram cobrar pelo estacionamento. Adianta? O
manobrista continua de pé, com a porta escancarada, aguardando. Vou pagar duas
vezes? Podem me chamar de sovina, mas nunca! Entro e parto com altivez,
enquanto ele me atira dardos com os olhos!
Nunca me recusei a pagar o serviço em restaurante. Dia desses estava com
dois amigos no Esplanada Grill. Veio a conta, calculamos a parte de cada um. O
garçom insinuou:
— Os senhores bem que podem caprichar mais um pouco no cheque.
Pago os 10% do serviço e ainda devo dar por fora? Nem tinha sido
atendido com tanta presteza assim! Meu amigo Ricardo ficou em dúvida:
— Venho sempre aqui. E se quando voltar não for bem tratado?
— Você chama o gerente e reclama! — aconselhei.
Partimos com uma sensação ruim! Também vi, no supermercado Santa
Luzia, uma senhora dando gorjeta ao açougueiro para comprar um bom corte de
carne. Quer dizer que eu, por nada oferecer, vou levar o pior?
Em hotel, sempre é uma saia-justa. O sujeito carrega as malas, mostra o
quarto, liga a televisão, explica o funcionamento do ar-condicionado e sorri, como
se estivesse diante do Tom Cruise. Vasculho os bolsos. Raramente encontro
alguma coisa. Em geral, o dinheiro miúdo ficou com o motorista de táxi, que jamais
tem troco! Abro a boca e digo:
— Ih... sinto muito, mas...
É como se eu tivesse me transformado em uma aranha-caranguejeira. O
mocinho se afasta e sorri, arreganhando os dentes como um serial killer:
— Não tem importância!
Oh, céus! Nada é mais terrível que a raiva contida de quem não ganha
gorjeta e acha que merece. O mesmo vale para quem leva gorjeta pequena. Havia
uma padaria nos Jardins onde sempre tomava café da manha. Certa vez um senhor
comeu seu pão com manteiga e deu o troco ao rapaz do balcão:
— Isso é para você tomar um café.
A resposta foi rápida:
— O senhor desculpe, mas para um café está faltando.
Envergonhadíssimo, o homem completou o valor. Eu, por mim, arrancava
as moedas da mão do ingrato!
De flanelinhas, nem se fala. São capazes de ataques de fúria, se dou pouco
dinheiro. O jeito é pedir desculpas:
— Olha, sinto muito, não vi que estava sem dinheiro quando saí de casa,
mas outro dia dou mais, prometo...
Só falta assinar uma promissória!
Seja dita a verdade. Há lugares onde as pessoas são treinadas para
agradecer. No mesmo Santa Luzia, no Santa Maria, nos supermercados Pão de
Açúcar que contam com esse serviço, os empacotadores são capazes de receber um
real com a expressão de quem ganhou um bilhete de loteria. O Almanara não cobra
serviço na conta e lembra que a pessoa será sempre bem-vinda, dando ou não
gorjeta. Basta oferecer um pouco a mais para ouvir um sonoro "muito obrigado"!
Mas são exceções.
Digo a verdade: isso não é coisa só de São Paulo, não! Duas vezes, em
restaurantes de Nova York, tive de correr atrás das garçonetes para conseguir o
troco. Simplesmente se faziam de desentendidas para ver se eu, um turista
selvagem, passaria pelo constrangimento de exigir o meu!
E irritante. A maioria das pessoas que conheço recebe seu salário e olha lá!
Fazer o serviço com qualidade é obrigação. Não conheço nenhum professor que
ganha gorjeta dos alunos se a aula é bem dada! Decidi: posso levar fama de pão-
duro. Mas gorjeta, comigo... só quando eu achar que merecem!
Más Intenções
ENTRA ANO, SAI ANO, é sempre a mesma coisa. Começo a delirar com
as boas intenções para 1996. Não adianta refletir que se trata de uma data simbólica
e que a vida não vira de cabeça para baixo de uma noite para outra. A passagem do
ano mexe com a gente. Vejo meus amigos em torno, repletos de resoluções.
Lembro do ano passado e tento me acalmar. Um deles me garantiu, na noite do 31,
que até o final do ano (este que termina) faria seu primeiro milhão de dólares
vendendo ações. Quando o ouvi, fiquei com os neurônios verdes de inveja e
pensei: "Por que nunca aprendi a vender ações para também ganhar meu
milhãozinho?".
Meu amigo está, realmente, próximo dessa quantia. Em saldo negativo no
banco. Não passou para a frente uma ação sequer e economiza até nas bitucas de
cigarro. Outra amiga, atriz iniciante, falava comigo animada, em fevereiro:
— Li meu mapa astral. Este será o meu ano. Vou ter grande projeção na
tevê. Tenho a intuição de que vou virar estrela de novela.
De fato, apareceu na tevê. Como vítima de um assalto, chorando histérica e
dando declarações aos gritos. Ganhou, é verdade, seus cinco segundos de fama.
Tem crises de nervos cada vez que ouve falar em mapa astral. Há pessoas mais
modestas. O sonho de uma amiga é tão simples quanto irrealizável: emagrecer. Já a
encontrei, neste final de ano, com um copo de cerveja na mão e um prato repleto
de lombo de porco com molho de ameixa. Espantei-me:
— Na semana passada você estava de regime estrito!
— E só desta vez. O ano está acabando mesmo. Fica para o próximo.
Aguarde!
Aguardo, sim! Aguardo o dia em que, em vez de andar, ela vai sair rolando.
(Regimes quebrados nas festas são um capítulo à parte. As pessoas nunca se
enganam tanto como nesta época.) O aspecto mais trágico dessas resoluções é a
despedida. A pessoa resolve deixar de fumar a partir de janeiro e manda ver em dez
maços cotidianos até o réveillon, para dar o adeus definitivo. Fica à beira de um
ataque e volta a fumar no dia 2. Outra promete nunca mais usar o cheque especial,
a partir do Ano-Novo. Corre aos shoppings e torra o que pode, com um fantástico
sentimento de autoconfiança. Afinal, aquela fase da vida está terminando e nunca
mais ela gastará tanto. Quase é presa por calote. E, logo depois do réveillon,
lembra-se de que esquecera de comprar só mais uma coisinha.
Certo ano despenquei numa loja prestes a fechar, batalhei com o gerente e
consegui levar um despertador digital. Tudo porque estava decidido a acordar às 6
da manha para correr no Ibirapuera. Era importante iniciar o ano com o pé direito.
Ou melhor, com o relógio certo, começando a correr na exata manha do dia l.. Já
me vi atlético e bronzeado, veloz como um puro-sangue, vencendo a próxima São
Silvestre. Saí do réveillon de madrugada, preocupado, com a camisa branca
marcada de vinho. Senti que não estava na melhor forma para cumprir a resolução.
Recorri a um estratagema. Adiantei o relógio quatro horas: "Quando ele tocar,
pensarei que são 10. Na verdade, serão 6. Levanto e saio correndo sem tomar café,
para não atrasar".
Despertei com o barulho horrendo. Vi que eram 10, mas lembrei que
talvez fossem 6. Fiquei em dúvida. Desliguei o relógio com um argumento: "Se já
são 10, significa que não cumpri a promessa. Sou um crápula comigo mesmo.
Assim nunca serei atlético". Suspirei, virei para o lado e ronquei docemente.
Um fato é inegável: resoluções de Ano-Novo são mais frustrantes do que
panetone sem passas. Desta vez, tirei a máscara.
Decidi não virar o ano garantindo que serei tão afável quanto um poodle.
Confesso: meu coração pulsa repleto de deliciosas más intenções para 1996. É que
as boas intenções de Ano-Novo só servem para provar uma coisa: que ninguém é
de ferro. Felizmente. Se todo mundo cumprisse as promessas torturantes desta
época, o planeta seria tão chato quanto um réveillon com menu dietético.
Cada Um por Si
Medo da Velhice
A Vida no Mato
O Ponto X
Pequenos Abusos
Striptease no Inverno
Adoráveis Felinos
Arroz-Doce
Casa Própria
O Casamento
Absurdos Natalinos
Cabeças-de-Vento
A Praça
Palavrinha Perigosa
A Vida é Falsa
O Cardápio do Medo
Esplendor em Ruínas
Pequenas Virtudes
Pedestres à Vista!
A Sereia e o Mergulhador
AMOR PELA INTERNET? Nada mais comum hoje em dia. Meg Ryan e
Tom Hanks não se conheceram assim em Mensagem para Você. Por que eu não
posso ter a mesma sorte? Teclar e dar de cara (ou melhor, de teclas) com Meg
Ryan! Romeu e Julieta não se amaram em uma sacada de pedra? Muito mais
confortável descobrir a alma gêmea numa cadeira macia, comendo batatinhas fritas
e entrando nas salas de bate-papo da internet. Ouvi histórias. Uma jovem casou-se
dessa forma com um alemão. Só se viram em Berlim, um ano depois do primeiro
contato. Mandou um postal com letra trêmula, dizendo que estava muito feliz,
embora nunca mais tenha enviado nenhuma outra notícia. Como conhecer alguém
numa cidade onde todos são anônimos? Certa moça foi à luta pela internet. Buscou
o amor sob o pseudônimo de "Gata Amorosa". Recebeu cantadas com detalhes
impublicáveis da anatomia masculina. Tentou "Sereia". Entrou em uma sala de
conversa para casais. Choveram mensagens. Descartou imediatamente o
"Garanhão" e "Marido/SP", por oferecerem poucas perspectivas de amor eterno.
Foi quando o "Mergulhador 27/SP" respondeu:
— Tenho 1,80 metro, 71 quilos, cabelos castanho-claros.
Gosto de mergulhar. E você, como é?
Por prudência, inspirou-se em "A Pequena Sereia", a original.
— Sou do tipo mignon, 1,60 metro, loira e muito romântica. Tenho 23
anos. Adoraria trabalhar em um programa infantil.
Trocaram e-mails. Durante as semanas seguintes, escreveram-se todos os
dias. Dispararam confidencias. Falaram de amor.
Só faltava um detalhe: conhecerem-se pessoalmente. Hesitaram.
A hora da verdade sempre dá medo. Finalmente, marcaram o encontro, na
área de alimentação do Shopping Paulista. "Se for um estrangulador, é mais
seguro", pensou a romântica mas prática Sereia.
Foi de preto, como combinado. Passou vinte minutos à procura do
Mergulhador. Deveria estar com uma camiseta e casaco de couro. Finalmente,
bateu os olhos em um sujeito calvo, de bigodes grisalhos, tipo cantor de tango
aposentado. Quando ia fugir, ele ergueu a cabeça e... sorriu! Não de felicidade, mas
de susto.
Sereia????????????
— Mergulhador???????????? ,
— Pensei que você fosse mais magra.
— Eu era, mas andei comendo muito doce... Foram só uns quilinhos.
— Não me leve a mal, é que a idade também...
— Ih, será que bati o número errado? — disfarçou, inocente.
Falsa, sim. Irritadíssima também. Aquilo era barriga de mergulhador? Só se
ele fosse a âncora dó barco.
— E você, não se atrapalha com os bigodes na máscara, quando
mergulha?
— Ah! Eu mergulhei uma vez, numa excursão em Cancún.
Gostei muito. Nunca esqueci.
— E os 27? .
— Achei que fosse uma forma de começar a conversa. As pessoas são
muito preconceituosas quando a gente conta a ida de verdadeira. Não tenho ido
muito à praia por falta de grana.
Era gerente comercial, mas agora montei uma microempresa, estou
começando tudo de novo. Você gosta de praia? Quem sabe algum dia a gente vai
numa que eu conheço. Tem uma pensão que dá desconto.
Se a moça pudesse, faria um raio cair naquela careca. Ele também a
encarava com tristeza. Como ela ficaria de brilho e tiara da Pequena Sereia? Estaria
mais para Orca, a baleia assassina, do que propriamente para uma sereia. Tinham
vontade de chamar a polícia e acusar um ao outro de falsidade ideológica. Por
educação, continuaram conversando. Quando viram, estavam rindo. Sereia, hein?
Mergulhador? Pois sim!
Andam se encontrando até hoje. Ela comprou uma tiara da Pequena Sereia
só para fazer piada. Amor pela internet é assim. Escreve-se por linhas tortas. Mas
até acaba dando certo.
Reis do Consumo
Elegância Escaldante
Vida de Cachorro
Família Unida
Dia de Compras
Tudo É Possível
O Dia do Ciúme
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