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SOU ANGOLEIRO QUE VEM DE ANGOLA1:

IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES DA CAPOEIRA ANGOLA


“DE PASTINHA” EM GOIÂNIA

BARREIRO, ALESSANDRA SILVA


Universidade Federal de Goiás
Faculdade de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
E-mail:capoeiracoruja@yahoo.com.br

Resumo

O presente trabalho apresenta como problemática central a construção da identidade e


identificação angoleira na cidade Goiânia. Iniciamos com uma diferenciação entre os dois
macroestilos de capoeira: Angola e Regional, não no sentido de hierarquizar, mas por
entendermos que as identidades se constroem em oposição uma a outra. Logo em seguida
retomamos as narrativas de origem para entendermos como os discursos sobre o passado
estão diretamente ligados as identificações atuais. No último tópico contamos um pouco da
história da capoeira Angola em Goiânia, ainda baseada nas revisões bibliográfica tendo em
vista a não finalização do trabalho de campo, e suas ligações com a vertente de capoeira
difundida por mestre Pastinha, ligações essas que fazem com que esses grupos sejam
reconhecidos como angoleiros, mas não engessam sua organização e lhes garantem
singularidades tanto em relação a capoeira Angola de Salvador ,por exemplo, quanto entre os
grupos de Capoeira Angola de Goyano, Guaraná e Vermelho em Goiânia.

Palavras-chave: capoeira angola, identidade e identificações.

1
Canto corrido uma das formas musicais cantadas na roda de angola e presente no livro de BOLA SETE,
Mestre. 2003, p.151.
1. INTRODUÇÃO
Ao longo do tempo a capoeira ganhou diferentes nomenclaturas e significados:
luta, dança, jogo, brincadeira, esportes, entre vários outros símbolos de identificação,
e muitas discussões foram e são feitas em torno da ou das identidades e origem da
capoeira. Podemos, no entanto, afirmar que a capoeira foi uma luta de libertação
desenvolvida em tempos de escravidão, que se originou a partir de elementos da
cultura africana, e das necessidades da realidade brasileira: condição de escravo e
busca pela sobrevivência, e que ao longo do tempo resignificou e recriou, de acordo
com as novas necessidades.
Segundo Bruhns (2000) A capoeira passou por três momentos: criminalização, período
em que a capoeira foi incluída no código penal, onde as pessoas que fossem pegas
praticando capoeira poderiam ser presas. A legalização da capoeira é o momento que
esta prática é retirada do código penal, no entanto sua legalização não foi
acompanhada pelo reconhecimento social. O processo de legitimação da capoeira
ocorre perante os discursos esportivos e o processo de esportivização. Segundo Silva
(2005) O processo de esportivização leva a capoeira assumir vários códigos
esportivos de padronização e tende a transformá-la em esporte. Além do discurso
esportivo, outra estratégia de reconhecimento e aceitação da capoeira foi a
nacionalização dessa prática: a capoeira como luta genuinamente brasileira. No
período denominado institucionalização, a capoeira sistematiza seus conhecimentos e
da origem aquilo que Passos (2010) denomina de dois macroestilos: capoeira
Regional, representada por mestre Bimba, e capoeira Angola, representada por
mestre Pastinha. O referido autor utiliza a expressão macroestilo, pois reconhece que
existem inúmeras ramificações, linhagens e vertente de capoeira além da Regional e
dá Angola.
O termo linhagem, assim como várias palavras “nativas” que aparecerão no texto,
possui significado diferente daquele relacionado aos estudos de parentesco, que
vinculam o termo a descendência familiar e étnica. No caso da capoeira, o termo
linhagem é utilizado para tratar origem de cada indivíduo, não só relacionado à
vertente de capoeira, mas também ao mestre com quem cada um iniciou a capoeira
ou tem ligação. Nesse contexto, você pode ser, além de Angoleiro, da linhagem de
Pastinha, Canjiquinha, Traíra ou outro mestres da Capoeira Angola (privilegiarei a
utilização do apelido que o nome de registro, pois essas pessoas são conhecidas e
populares por esses apelidos, não com nome de registro). Nos atentamos a essas
questões quando ao entregar o TCLE (Termo de Consentimento Livre Esclarecido)
onde tinha o título do projeto, “Trajetórias, Identificações e Corporeidades na Capoeira
Angola de Pastinha”, Mestre Goyano disse que não poderia participar da pesquisa,
tendo em vista que não se considera da linhagem de Pastinha, e acrescentou que
Mestre Pastinha foi o mestre mais conhecido da capoeira Angola, se tornou um ícone,
mas que existe vários outros grandes mestre.(Diário de campo,08\06\2013)Este é o
motivo pelo qual o termo “de Pastinha” se encontra entre aspas nesse trabalho, pois
provavelmente será retirado.
No momento de busca de legitimação da capoeira se dá a diferenciação entre Angola
e Regional, pois até então só existia a nomenclatura capoeira.

Esse processo, no entanto (criação da Luta Regional Baiana), criou


reações no meio da capoeiragem baiana, e logo articulou-se um
movimento liderado por Vicente Ferreira Pastinha, o mestre Pastinha,
entre outros capoeiras da época, que buscava a preservação das
formas originais e tradicionais de se praticar capoeira; a ludicidade e
a ritualidade, deixadas de lado pela “eficiência” da capoeira Regional.
Criou-se então a denominação “capoeira Angola” para caracterizar
essa prática, em oposição às transformações empreendidas por
mestre Bimba. (ABIB, 2004, p.42)

Mestre Bimba criou a Luta Regional Baiana, ou capoeira Regional, pois acreditava
que a capoeira deixava a desejar nos aspectos de luta. Para isso, introduziu
elementos do batuque (luta cujo objetivo era jogar o adversário no chão utilizando as
pernas), golpes de outras procedências, elementos do modelo esportivo de luta,
padronizou a indumentária, assumiu um perfil militarista, entre outras modificações.
(PIRES 2002)
Tanto Hall (2006, p.40) ao afirmar que “Eu sei quem ‘eu’ sou em relação com ‘o outro’
(por exemplo, minha mãe) que eu não posso ser.” quanto Abib (2004, p.29) “Toda
identidade se estabelece em oposição explícita a outra identidade” fazem afirmações
que explicitam as diferenças existentes entre Capoeira Angola e capoeira Regional,
reforçadas por Pires (2002, p.89) na seguinte afirmação: “A capoeira Regional e a
capoeira Angola foram construídas em oposição uma a outra.”
Essa oposição, em alguns momentos mais e ou outros momentos menos acentuada,
levou uma auto-afirmação da capoeira Angola, para que além da identificação comum,
capoeirista, fosse criado outro grupo ou subgrupo de identidade e identificações
comum: angoleiro\angoleira. Pode-se até jogar angola, mas ser angoleiro\angoleira
perpassa pelo campo mais complexo das identidades e identificações. Essa será uma
das categorias a serem aprofundadas, já que ainda não terminamos o trabalho de
campo e portanto só temos dados de papel. Para Mestre (2003, p.188) “Portanto, o
que difere realmente a angola da regional é principalmente, a filosofia empregada nas
duas escolas. O mestre angoleiro procura passar ao discípulo o culto os rituais e
preceitos existentes na capoeira Angola .”
2. SOU ANGOLEIRO QUE VEM DE ANGOLA
Vale lembrar que o título desse artigo “Sou angoleiro que vem de angola”, corrido
freqüentemente cantado nas rodas de angola, tem a ver com a afirmação de Hall
(2009, p.108): “As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um
passado histórico com a qual elas continuariam a manter uma certa correspondência.”
Ser Angoleiro que vem de Angola, como veremos logo em seguida, possui uma
conotação muito maior do que a simples relação da diáspora dos africanos trazidos e
escravizados no Brasil.Ser Angoleiro que vem de angola evoca compromisso e noção
pertencimento com o que chamamos de cultura afro brasileira, identificação política.
Conhecer a narrativa de origem da capoeira é compreender a identificação do grupo e
do capoeirista por isso abordarei algumas delas aqui. Temos três hipóteses de
identificação. Uma dessas hipóteses é que a capoeira seja brasileira, sendo que essa
defesa da capoeira como manifestação “genuinamente brasileira” aparece como
expressão do caráter nacional por subtração (SCHWARTZ apud REIS, 2001), está
vinculada tanto ao processo de legitimação da capoeira, tornando-a símbolo de
identidade nacional, e ao mesmo tempo a tentativa de desvincular das raízes negras,
africanas, discriminadas e marginalizadas. Dificilmente esta hipótese será levantada
pelos e pelas capoeiristas angoleiras devido seu distanciamento das origens negras e
africanas, portanto contrária a alguns ideais de luta, que apresentaremos no decorrer
do texto.
As duas outras vertentes, africana e afro-brasileira, reconhecem a capoeira como
diretamente ligada à cultura africana, valorizam e buscam manter as tradições
africanas, em maior ou menor medida. Vieira (1998, p.3) afirma que “a origem da
capoeira africana é defendida geralmente pelos praticantes de capoeira angola” e esta
afirmação é reforçada como uma fala de Mestre Pastinha: “Não há dúvida de que a
capoeira veio para o Brasil com os escravos africanos”. De fato os termos: geralmente,
às vezes e por alguns angoleiros, são necessários, pois estas afirmações aparecem
reconstruídas em diferentes contextos. No livro de Pires (2002, p.64) o autor apresenta
a visão histórica de Mestre Pastinha como: “Ela era uma luta de combate de alguma
tribo africana e teria adquirido aspectos lúdicos no Brasil.”
Ainda relacionado as narrativas de origem da capoeira, João Pequeno (2000, p.29 e
30) acrescenta:
Perguntei a ele (um africano) se lá tinha capoeira e ele respondeu
que tinha só que o nome não era capoeira, era dança do N’golo.
Depois seu Pastinha indo a África ele trouxe um quadro com duas
figuras jogando capoeira e ele disse que lá na África era “passo da
zebra”, aí que eu não sei, mas penso que N’golo lá seja zebra. Seu
Pastinha me contava que se tornou com o nome Capoeira aqui no
Brasil, porque Brasil é mato e o mato é onde eles iam treinar
Capoeira.

Mesmo que para nós não seja interesse primordial a discussão sobre a origem da
capoeira, sabemos que a narrativa de origem faz parte da construção da identidade de
um grupo, e que nesse caso, angoleiros\angoleiras, essa ligação com a África tem a
ver com o ser negro, com respeito ou mesmo participação de religiões africanas,
manutenção e preservação da cultura africana e/ou afro brasileira. Indo ao encontro
dessas afirmações, Mestra Janja, mestra de capoeira Angola da linhagem de mestre
Pastinha, no evento Ginga Menina realizado no dia 09 de março de 2012 na cidade de
Goiânia afirmou que: “A prática da capoeira é uma prática eminentemente política. [...]
Missão é a luta contra o racismo. A capoeira é comprometida com a liberdade e
igualdade.”
O “ser angoleiro\angoleira” ultrapassa a idéia de alguém que pratica capoeira angola,
angoleiro é alguém que pratica, exclusivamente, capoeira Angola, segue os princípios
dessa prática, muitos deles ainda deixados por mestre Pastinha, como diz Mestre Bola
Sete (2003) existe uma filosofia que caracteriza o angoleiro.
Segundo Mestre Guaraná, também da linhagem de Capoeira Angola de Pastinha e
responsável por um dos grupos de capoeira Angola pesquisados, Calunga, em uma
fala pública realizada em sua escola no evento de comemoração do Dia da
Consciência Negra no dia 19 de novembro de 2011 “os três pilares da capoeira Angola
são: diálogo/dialética, filosofia e espiritualidade. Essa espiritualidade é baseada na
religião africana, na maioria das vezes o candomblé.” Mestre Chuluca, também da
linhagem de capoeira de Pastinha e responsável por um grupo de Capoeira Angola na
Cidade de Goiás, no mesmo evento reafirma: “Quem quer treinar Capoeira tem que ter
compromisso com Santo.” A respeito das identidades Hall (2009, p. 109) afirma que:

É porque as identidades são construídas dentro e não fora do


discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações
e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas
específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de
modalidades específicas de poder e são, assim, mais um produto de
marcação da diferença e exclusão do que signo de unidade idêntica,
naturalmente constituída, de uma ‘identidade’ em seu significado
tradicional – isto é uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade
sem costuras, inteiriças e sem diferenciação interna.

A partir dessa afirmação construiremos o nosso próximo tópico sobre a capoeira


Angola “de Pastinha” em Goiânia onde poderemos estudar características locais e
discursos específicos, aprofundando o que começamos anteriormente quando
inserirmos as falas dos sujeitos de pesquisa.
Vale à pena retomar ao enfático título “capoeira Angola de Pastinha” para tentar
explicar de que capoeira é esta que estamos falando. Logo no início desse trabalho
Passos (2010) nos alertou sobre a existência de dois macroestilos de capoeira: Angola
e Regional e a existência de outros microestilos que se desdobram em variações
desses estilos ou mesmo reconstruções, assim optamos por enfatizar o termo
capoeira Angola de Pastinha por reconhecermos que existem outros representantes e
linhagem de capoeira Angola, no entanto após as reflexões do Mestre Goyano,
apresentadas no próximo tópico, ficou uma interrogação para forma de nos referimos a
estes grupos, Calunga, Barravento e Só Angola, que diferencia da capoeira de Mestre
Sabú, conhecido segundo Brito (2010) como pioneiro da Capoeira Angola em Goiás.

A capoeira Angola, assim como a capoeira Regional também surgiu


de um movimento de ruptura entre praticantes da capoeira em São
Salvador. Alguns praticantes começaram a implementar a capoeira
com outras concepções, mas eles não formaram um grupo coeso,
pelo contrário bastante heterogêneo e Capoeira Angola surge com
várias tendências. [...] Para Pastinha a capoeira Angola possui
características próprias, o que a diferenciaria de lutas esportivas
como judô, jiu-jitsu, luta livre americana e outras. [...]Mestre Pastinha
buscou aspectos da capoeira nos rituais religiosos dos caboclos e
candomblés. Nessas práticas estaria a essência da capoeira Africana
parte do que ele desejava buscar para construir a capoeira Angola.
(PIRES, 2003, p.63 e 72)

Em nenhum momento desconsideramos ou queremos hierarquizar as diferentes


construções culturais da capoeira, mesmo que isso apareça em várias obras, apenas
optamos por estudar uma tendência de capoeira Angola, cujo maior representante e
ícone, Vicente Ferreira Pastinha, mais conhecido como mestre Pastinha, inculca e faz
refletir sobre como este homem e sua forma de organizar, pensar, lutar , entre outras
coisas mesmo após trinta e um ano de sua morte pode ter tanta influência, ser
lembrado e saudado ainda hoje. Parece-me, e digo parece-me pelo fato de estarmos
apenas começando este estudo, que pensar a capoeira Angola “de Pastinha”,
identidade e identificações culturais não é algo tão harmônico. A capoeira Angola “de
Pastinha”, ou a capoeira Angola em Goiânia, ainda busca se afirmar, e manter
conexões com passado tanto como uma forma de valorizar esta identidade, quanto de
tentar sair da subalternidade.
Ainda sobre a capoeira Angola “de Pastinha” Pires (2003) apresenta algumas
modificações e construções realizadas pelo Mestre:
Implantação do uniforme que tinha a cor seu time do coração, Ipiranga, preto e
amarelo, a proibição de jogar descalço e sem camisa;
Além das normas de vestimenta para capoeira Angola Mestre Pastinha
elaborou alguns princípios para o jogo que iam desde a não utilização das mãos no
adversário ao não uso da valentia, ou seja, deveria ser utilizada apenas para defesa,
mantendo aspectos, teatrais, lúdicos e de brincadeira;
Sobre o angoleiro (no livro a palavra aparece somente no masculino), afirmou
que deveria ser calmo, calculista, ter lealdade com companheiro, obediência absoluta
as regras, laçar mão de inúmeros artifícios para enganar e distrair o adversário
(malícia) e deveria carregar certo misticismo;
Orientou que os ensinos da Capoeira angola deveriam englobar os aspectos
teóricos e práticos;
Definiu que os instrumentos que compõe a capoeira Angola são: o berimbau,
pandeiro, reco-reco, agogô, atabaque e chocalho;
Mestre Pastinha sempre foi contrário à utilização de golpes de outras lutas,
mesmo reconhecendo o pequeno número de golpes temia descaracterização;
Como retratado anteriormente, Mestre Pastinha buscou bastante os aspectos
religiosos. Podemos notar isso na musicalidade; Iê viva meu Deus.

A partir desse processo de invenção cultural mestre Pastinha


organiza um padrão de capoeira Angola que se tornou hegemônico,
apresentando poucas variações no decorrer de décadas posteriores.
Nessa descrição sobre capoeira Angola, podemos perceber que
mestre Pastinha, a partir da tradição anterior, inventou uma nova
tradição, na qual a capoeira se apresentou dentro de um novo ritual,
onde ela é ‘luta, é mais defesa e mais aperfeiçoamento no sistema de
dança’ Portanto, a capoeira Angola é tida como tradicional não
porque obedeça a uma lógica de capoeira praticada pelos
predecessores diretos de mestre Pastinha, mas sim pelo fato de a
capoeira Angola ter algo a ver com a praticada pelos africanos.
(PIRES. 2003 p.84, grifo do autor)

Tanto pelos registros históricos, quanto pelas narrativas dos angoleiros e angoleiras e
inegável a grande importância que mestre Pastinha possui para capoeira Angola,
começo a duvidar de que haja poucas variações e reconhecer que existem outras
influências. Os três grupos que tenho pesquisado, ao contrário da afirmação realizada
na citação acima, têm apresentado grandes variações e reinvenções diferentes das
apresentadas anteriormente, no entanto o mais interessante é que essas invenções
não fazem com que esses grupos deixem de ser identificados como capoeira Angola.
3. IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÕES DA CAPOEIRA ANGOLA

“DE PASTINHA” EM GOIÂNIA

Entendemos que Stuart Hall (2006) quando se propõe a utilizar o termo identificação
ao invés de identidade pretende reforçar o processo de construção em oposição a
ideia de identidade como algo fixo e acabado, no entanto ainda utilizamos os dois
termos pelo fato dos grupos estudados evocarem esta categoria. “Nessa era de
globalização todos tem acesso a tudo de forma superficial e não tem ligação a nada,
mas nós precisamos de identidade, isso que nos mantém juntos” (Mestre Goyano,
Diário de campo do dia 12\06\2013) Seja na musicalidade, oralidade e\ou
corporeidade percebemos muitos elementos que apontam para auto afirmação e
reconhecimento e valorização do Angoleiro\angoleira.“Quando me perguntam o que a
capoeira me deu, ou o que eu ganho com isso, respondo que ela não tem mais nada
para me dar, ela me deu a coisa mais importante desse mundo: a identidade.” Mestre
Chuluca·. (Fala proferida no evento organizado pelo grupo Calunga, no dia 19/11/11,
Goiânia, em comemoração ao dia da Consciência Negra.)
Se por um lado ouvimos falar em crise da identidade, sabemos, por outro lado, que a
identidade ainda é um forte instrumento de luta política e social, exatamente por isso
Stuart Hall (2009) afirma que o conceito de identidade é estratégico e posicional.
Reconhecemos que este conceito e possibilidade de identidade como instrumento
estratégico é uma motivação para constante afirmação de angoleiro\angoleira,
percebo isso em campo já que ouço continuamente “nós angoleiros”, mas não parece
ser o único nem principal motivo de autoafirmação.
É importante ressaltar que este artigo faz parte de estudos iniciais sobre a “Trajetória,
identificação e corporeidade da capoeira Angola ‘de Pastinha’ em Goiânia”, portanto
trabalhamos ainda com indícios e questionamentos, tendo em vista os limites
provocados por ainda estar em campo. Sendo assim as trajetórias e história da
capoeira em Goiânia que apresentaremos a seguir ainda são muito mais baseadas
nas revisões bibliográficas que nas narrativas dos sujeitos da pesquisa, ao contrário
do que pretendemos fazer na dissertação.
Segundo Brito (2010) a capoeira iniciou-se em Goiânia na década de 1960 com de
Manuel Pio Sales, Mestre Sabú. Nascido na cidade de Goiás no dia 06 de maio de
1940, Mestre Sabú foi para Salvador com três anos de idade, e se formou na capoeira
com Mestre Caiçara, angoleiro da Bahia. Ferreira (2002, p.14) em seu trabalho final do
curso de Educação Física sobre “A capoeira na cidade de Goiânia” afirma que Mestre
Sabú: “Baseado na sua experiência e na observação da capoeira ele elabora seu
método pessoal de ensinar, trabalhando pela divulgação e preservação da capoeira.”
Sendo descendente da capoeira de Mestre Sabú, posso afirmar que ele, de fato,
construiu um método próprio de ensinar e praticar a capoeira, com algumas
singularidades das características apresentadas anteriormente sobre a capoeira
Angola de Pastinha. Mestre Sabú, como vários outros grandes mestres, deu novos
significados e recriou a capoeira a partir das necessidades e contexto em que viveu. A
capoeira ganhou novos sentidos e certamente aquela Capoeira Angola que aprendera
em Salvador já é era a mesma. Após a chegada do pioneiro da capoeira Angola em
Goiás, ainda tivemos a vinda do maior representante da capoeira Regional, Mestre
Bimba no ano de 1972.
Brito (2010) conhecido como Mestre Suíno em seu livro, que pretende contar a
história da capoeira em Goiás, afirma que existe “uma nova linhagem de capoeira
Angola” representada por Guaraná, Caçador, Besouro, Vermelho e Valéria, diferente
daquela apresentada por Mestre Sabú. É sobre essa nova linhagem de capoeira que
passaremos a discutir, e contaremos novamente com a contribuição de Ferreira (2002)
para falar sobre o que ele denominou de Capoeira de Angola da escola de Pastinha
em Goiânia e em nosso trabalho, até o momento, chamamos de Capoeira Angola de
Pastinha.
Os dados que Ferreira (2002) apresenta são baseados tanto no vídeo da II Mostra
Goiana de Capoeira Angola, em 2001, segundo ele, suas conversas informais com
Mestre Guaraná (coordenador do Grupo Calunga, um dos grupos pesquisados, e
naquela época, mestre do autor referido acima) e acrescentaria sua experiência no
universo da Capoeira Angola. A Capoeira Angola começou em Goiânia no ano de
1987, (aqui Ferreira se refere ao que ele denomina de Capoeira Angola da Escola de
Pastinha, não ao Mestre Sabú) estando mais restrita ao Jardim Novo Mundo, com os
capoeiristas citados anteriormente por Brito, Guaraná, Besouro, Caçador, Goiano e
Valeria, sendo que Valéria não aparece no trabalho de Ferreira. Em 1988 Leno passa
a integrar o grupo de Angoleiros, atualmente é responsável pelos trabalhos da FICA
(Fundação Internacional de Capoeira Angola) único grupo que não foi fundado em
Goiânia e que não faz parte da pesquisa, pois no período de elaboração do projeto
não tinha mais de dez anos, um dos critérios para pesquisa. Apesar de ter tido contato
com a capoeira Angola anteriormente, desde 1982, Mestre Goyano foi o último a
deixar o universo da capoeira regional, entre os anos de 1993/94.

No ano de 1986 aconteceu um Festival de capoeira em Brasília,


promovido pela entidade Praia Verde, onde foram Vermelho e
Caçador e naquele Festival estavam presentes alguns dos principais
mestres de Capoeira Angola do Brasil entre os quais Boca Rica,
Curió, Moraes e João Pequeno. Os dois capoeiristas de Goiânia
quando voltaram de Brasília estavam decididos a mudar suas práticas
para a Capoeira Angola, juntamente com Besouro e Guaraná que não
puderam ir àquele Festival de Capoeira. Os quatro não tinham
pretensão de dar aulas, mas foi quando eles foram convidados a dar
aula em um projeto da comunidade do Jardim Novo Mundo, que
buscava utilizar agentes culturais da própria comunidade. Daí surgiu
o Grupo Só Angola em 1988, grupo pioneiro da Capoeira Angola da
escola do Mestre Pastinha no Estado de Goiás, com Vermelho,
Caçador, Guaraná, Besouro, Valéria e Ana Maria os quais
começaram a dar aulas de Capoeira Angola no Centro Comunitário.
(FERREIRA, 2002, p.18)

Desde 1988 os angoleiros (uso no masculino porque nos textos sempre aparecem
assim, somente em outro artigo faremos a discussão da mulher na capoeira Angola
em Goiânia) de Goiânia criaram um intercâmbio com mestres de Salvador,
principalmente Curió, Boca Rica, Lua Rasta. Além das visitas realizadas a cidade de
Salvador muitos mestres de Capoeira Angola também passaram pela cidade de
Goiânia, (Morais, Cobra Mansa, Neco, Curió, Boca Rica, João Grande), sendo que
alguns deles foram trazidos por pessoas de outras vertentes de capoeira. Atualmente
o mestre Vermelho possui uma ligação direta com mestre Boca Rica e mestre
Guaraná com mestre Curió, ambos residentes em Salvador e difusores da capoeira
Angola de Pastinha, já mestre Goyano (que afirmou que não era da escola de
Pastinha) não possui ligação direta com nenhum mestre de Salvador, ao falar do seu
mestre ainda se remete ao Suassuana, seu primeiro mestre de quando treinava
capoeira Regional. Percebemos que os mestres de Capoeira Angola “de Pastinha”
tiveram influências de diferentes mestres, talvez um dos motivos pelos quais todos os
grupos de Goiânia (os três grupos pesquisados) tenham identidade local. Parece obvio
que os grupos tenham identidade local, no entanto estamos nos referindo ao fato
desses grupos não possuírem os mesmos nomes e normas dos mestres de referência
como na maioria das vezes acontece.
No ano de 1992, Besouro e Guaraná saíram do Grupo Só Angola, atualmente
coordenado pelo mestre Vermelho e seu irmão mestre Caçador, e criaram o grupo
Mandinga, inativo atualmente. Em 1995 mestre Goyano reformulou o grupo Barravento
para prática exclusiva de capoeira Angola, em 1998 mestre Guaraná criou o grupo
Calunga de capoeira Angola e em 2000 o treinel Leno (é chamado de treinel aquele
que na ausência do mestre fica responsável pelos treinos e demais atividades) fundou
o grupo Angolêrê, e desde então transitou entre as cidades de Goiás, de onde é
natural, e Goiânia.
Os grupos de Capoeira angola na cidade de Goiânia, que se definem e são
considerados como angoleiros, buscam guardar a ancestralidade de mestre Pastinha
e muitos de seus princípios.
Nas sociedades tradicionais o passado é venerado e os símbolos são
valorizados porque contem e perpetuam a experiência de gerações. A
tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço inserindo
qualquer atividade ou experiência em particular na continuidade do
passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados
por práticas sociais recorrentes. (GIDDENS apud HALL, 2006, p.14)

Essa explicação de Giddens é um dos caminhos para entendermos porque depois de


trinta e um anos de sua morte, mestre Pastinha continua sendo a maior referência da
capoeira Angola, não só em Salvador, mas em Goiânia no Brasil e no mundo.
A identidade, como Hall (2006, p.12) aponta “Estabiliza tanto os sujeitos, quanto os
mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e
previsíveis.” Desse modo quando falamos de capoeira Angola em Goiânia, falamos ao
mesmo tempo de unidade, da roda com a instrumentação que mestre Pastinha
propôs, porém não a mesma ordem dos instrumentos, com capoeiristas jogando
calçados e com camisa, uns com camisa amarela outras com camisa branca, com
vários elementos comuns que identificam os grupos como de angola e os sujeitos
como angoleiros e angoleiras, e ao mesmo tempo com características singulares de
Barravento, Calunga ou Só Angola. Sendo que essas características são associadas,
também, a outras identidades comuns, seja ela racial e/ou religiosa. Ser negro,
valorizar a cultura africana, participar do movimento negro ou de religiões africanas
parece ser um dos pontos comuns entre os representantes dessa vertente de
capoeira. “Para dizer de forma simples: não importa quão diferente seus membros
possam ser em termos de classe gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-
los numa cultura, para representá-los todos como pertencentes à mesma família
nacional.” (HALL,2006, p.59)
A capoeira Angola “de Pastinha” em Goiânia carrega muitas características e ao
mesmo tempo singularidades que a diferencia de sua forma vivida na Bahia, digo
muitas características e singularidades sem contudo apontá-las, pois somente com o
aprofundamento do trabalho de campo poderemos decifrar as entrelinhas, o
detalhamento das identidades e identificações capoeira Angola “de Pastinha”, de
Guaraná, de Vermelho e de Goyano nesse lugar, Goiânia.
Nesse artigo só conseguimos cantar/contar apenas parte da ladainha, canto que inicia
a roda de capoeira onde é contada a história da capoeira e dos seus personagens
sem que os capoeiristas possam jogar e apresentar seus conhecimentos na roda da
academia. Como teremos outras rodas, espaço onde se joga, apresenta os
fundamentos e aprendizagens da capoeira, terminamos nosso texto com aquilo que
abre a roda, uma ladainha de Mestre Pastinha citada no livro de Mestre Bola Sete
(2003, p.74)
Bahia, minha Bahia
Capital é Salvador
Quem não conhece a capoeira
Não lhe dá o seu valor
Todos podem aprender
General e também quem é doutor
Quem desejar aprender
Venha a Salvador
Procure o mestre Pastinha
Ele é o professor.

REFERÊNCIAS
ABIB, Pedro. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo de saberes na roda.
Campinas, SP: UNICAMP/CMU; Salvador: EDUFBA, 2004
BRITO, Elto Pereira. A história da capoeira em Goiás contada por seus pioneiros:
Mestre Osvaldo e Mestre Sabú. Goiânia Grasfset. 2010
BRUHNS, Heloisa Turini. Futebol, carnaval e capoeira: entre as gingas do corpo
brasileiro. Campinas, SP: Papirus, 2000.
FERREIRA, Ézio. A capoeira na cidade de Goiânia. Monografia (graduação).
Faculdade de Educação Física. Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2002.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu (org. e trad.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
p. 103-133.
––––– A identidade cultural na pós-modernidade.Tradução Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro.Rio de Janeiro:DP&A,2006.
MESTRE. Bola Sete. A capoeira na Bahia. 4ªed. Rio de Janeiro. Pallas. 2003.
PASSOS, João Luís. Projeto Roda Mundo: performance e globalização da
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antropologia.São Paulo.Hucitec,2010.
PIRES, Antonio Liberac.Bimba, Pastinha e Besouro Macangá :três personagens da
capoeira baiana.Tocantins/Goiânia:NEAP/Grasfset.2002.
BARREIRO, Alessandra Silva. As manifestações do processo de esportivização da
capoeira. Monografia (graduação). Faculdade de Educação Física. Universidade
Federal de Goiás. Goiânia, 2005.

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