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DÚVENDOR ­ UM TRIBUTO A TOLKIEN     WWW.DUVENDOR.COM.

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O Livro Negro de Arda 
The Black Book of Arda

Escrito em 1992 por


N. Vassilyeva & N. Nekrasova

Traduzido por
Tatyana ‘Moriel’ Zabanova

O Livro Negro de Arda  Página 1 
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SUMÁRIO 
 
 
Nota da Tradutora  ..........................................................................................................................................................  Pag. 3 
Nota das Autoras  .............................................................................................................................................................  Pag. 5 
Prólogo  ................................................................................................................................................................................  Pag. 9 
 
1 – Primeira Parte: O Coração do Mundo 
          1.1 – O Nome. Os Dias antes dos Dias  ..........................................................................................................  Pag. 10 
          1.2 – Assim está escrito nas crônicas dos Fiéis  .......................................................................................  Pag. 22 
          1.3 – Medo. O início dos Tempos  ...................................................................................................................  Pag. 23 
          1.4 – Sobre Aulë e Yavanna. O Início dos Tempos  .................................................................................  Pag. 26 
          1.5 – Criações da solidão. O início dos Tempos  ......................................................................................  Pag. 31 
          1.6 – O ferreiro e o aprendiz. O Início dos Tempos  ...............................................................................  Pag. 32 
          1.7 – A Primavera de Arda. As Eras das Lâmpadas  ...............................................................................  Pag. 36 
 
2 – Segunda Parte: Mandaram Esquecer 
          2.1 – Aquele que se atreve a ver. As Eras das Trevas  ...........................................................................  Pag. 41 
          2.2 – O Punhal. As Eras da Escuridão  ..........................................................................................................  Pag. 47 
          2.3 – Os Quatro. As Eras das Árvores da Luz  ...........................................................................................  Pag. 54 
          2.4 – Gerados pelo Escuro. Do despertar dos Elfos até o ano 487 ..................................................  Pag. 56 
          2.5 – As sete Estrelas  ..........................................................................................................................................  Pag. 63 
          2.6 – Sobre a chegada dos Homens  ..............................................................................................................  Pag. 64 
          2.7 – Sobre os cavalos alados. Ano 15 do despertar dos Elfos  .........................................................  Pag. 67 
          2.8 – Cálice. Anos 488‐500 do despertar dos Elfos  ...............................................................................  Pag. 73 
          2.9 – Absinto. Ano 497 do despertar dos Elfos  .......................................................................................  Pag. 77 
          2.10 – O discípulo e o mestre. Anos 500‐502 do despertar dos Elfos  ...........................................  Pag. 91 
          2.11 – O senhor e o servo. Ano 500 do despertar dos Elfos  ..............................................................  Pag. 104 
          2.12 – A guerra da luz. Ano 502 do despertar dos Elfos. A Guerra dos Poderes  ......................  Pag. 106 
          2.13 – Festa dos Íris. Ano 502 do despertar dos Elfos ..........................................................................  Pag. 112 
 
3 – Terceira Parte: A Coroa de Ferro 
          3.1 – O cativeiro de Melkor. Anos 502‐802 do despertar dos Elfos  ...............................................  Pag. 138 
          3.2 – Sobre Finwë e Miríel. A prisão de Melkor. Anos 654‐655 do despertar dos Elfos  .......  Pag. 147 
          3.3 – Ano 802 do despertar dos Elfos  ..........................................................................................................  Pag. 153 
          3.4 – Jardins de Lórien. Ano 803 do despertar dos Elfos  ....................................................................  Pag. 155 
          3.5 – Luz nas palmas. Anos 803‐866 do despertar dos Elfos  ............................................................  Pag. 160 
          3.6 – Sobre a morte das árvores de Valinor.  Anos 867‐869 do despertar dos Elfos ..............  Pag. 168 
          3.7 – A fuga dos Noldor. Anos 870‐871 do despertar dos Elfos  ......................................................  Pag. 173 
          3.8 – A Terra da Estrela. Anos 516‐872 do despertar dos Elfos  ......................................................  Pag. 177 

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NOTA DA TRADUTORA 
 
 
Conhecido em inglês como The Black Book of Arda, The Black Silmarillion ou Chronicles of Defeated (O 
Livro Negro de Arda, O Silmarillion Negro ou Crônicas dos Derrotados, em português) é um romance 
publicado na Rússia por N. Vassilyeva e N. Nekrasova por volta de 1992, baseado em O Silmarillion de 
J.R.R. Tolkien.   
 
De  acordo  com  o  livro  de  Vassilyeva  e  Nekrasova,  o  Vala  Melkor  não  era  originalmente  o  Grande 
Inimigo da Terra‐média, mas sim um sábio Professor e um mártir, enquanto que o Criador Eru Ilúvatar 
e os Valar são representados como tiranos sem remorso. Melkor tentou atuar em Arda de acordo com 
seu próprio pensamento, mas isto era contra a vontade do Criador. O conflito entre Ilúvatar e Melkor 
causou a expulsão de Melkor e a batalha deste contra Eru e os Valar. 
 
Os  primeiros  rascunhos  deste  livro  surgiram  na  Internet  no  início  dos  anos  90.  Em  1995  ele  foi 
publicado pela primeira vez. Depois da publicação, as autoras passaram a trabalhar com a Segunda Era, 
criando um conjunto de contos sobre Númenor e Harad. Finalmente, em 2000, foi publicada uma versão 
reescrita e amplamente modificada do livro, em dois volumes, cada um escrito por uma das autoras.  A 
essa  altura,  em  meio  a  jogos  de  RPG  e  fanfictions  inspiradas  em  fanfictions,  já  estava  plenamente 
incorporado ao universo dos tolkienados russos. 
 
Não diria que concordo com todas as idéias do livro. Em particular, é mais próximo daquilo que penso o 
segundo volume da edição de 2000, escrito por Illet. O enredo é simples: na Quarta Era, um oficial do 
exército  de  Gondor  é  designado  para  investigar  a  veracidade  de  um  estranho  livro  –  na  verdade  o 

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próprio Livro Negro de Arda ‐ e interrogar o seu guardião. “Eu não acredito na verdade dos vencedores. 
Eu não acredito na verdade dos vencidos. Tanto estes quanto aqueles mentem.” 
 
Mas a versão publicada em 1995 é considerada canônica, e foi essa edição que decidi traduzir, como a 
mais marcante, a mais conhecida e sem dúvida a mais controversa. E, principalmente, é a primeira do 
gênero. 
 
Para as citações do Silmarillion, usei o livro da Martins Fontes – na maioria dos casos. 
 
As ilustrações foram retiradas de uma edição mais recente do livro (Editora Memories). 
 
 
 
Sobre a transliteração e a pronúncia 
 
No  livro,  há  um  bom  número  palavras  ‐  nomes  de  pessoas  e  lugares  principalmente  –  que  foram 
mantidos iguais aos originais. Vou me esforçar ao máximo para adequá‐los ao padrão de Tolkien, mas, 
por via das dúvidas, listarei algumas coisas aqui: 
 
• CH, H – Tolkien diferencia os sons CH e H, porém em russo esta diferenciação não existe. Nas 
transliterações oficiais das autoras, sempre é usado o H, motivo pelo qual o utilizarei em maior 
parte dos casos. 
• Y  –  i  curto:  um  i  breve,  átono,  semelhante  ao  j  de  algumas  línguas  nórdicas,  a  transliteração 
correta é j. 
 
 
 
Algumas observações gerais 
 
No  início  era  o  Verbo.  Na  versão  russa  é  “Palavra”,  e  por  motivos  óbvios  não  me  apeguei  à  citação 
bíblica exata. O russo tem algumas estruturas pseudo‐arcaicas, às quais quase todos apelam ao tentar 
dar um ar mais mitológico ao texto. Uma dessas estruturas é o “e” patológico no início da frase. Outra 
particularidade  do  russo  é  a  perda  da  conotação  religiosa  de  algumas  palavras  (afinal  os  70  anos  de 
socialismo afetaram bastante o país) alma, inferno, pecado... Certamente há uma porção dessas palavras 
no livro, e serão traduzidas literalmente. 
 
Optei  por  usar  “você”  ao  invés  do  “tu”  e  “vós”  por  motivos  puramente  paulistas:  o  “você”  me  parece 
mais adequado. 
 
É bom termos uma breve introdução aos padrões de beleza russos: existe naquela terra uma adoração 
generalizada aos  indivíduos  de  pele  clara  e  cabelos  escuros.  De  modo geral,  pele  clara  (mais clara do 
que a média) é considerada um grande trunfo: é um resquício do czarismo – os nobres ficavam em casa 
e eram branquinhos, e os servos trabalhavam no campo e ficavam bronzeados. Como todo mundo, os 
russos têm um gosto por tudo aquilo que é raro na terra deles (por exemplo o nariz levemente aquilino, 
das  pessoas  e  não  de  Águias  de  Manwë)  ou  pelo  menos  um  nariz  reto:  nariz  arrebitado  é  ordinário 
demais.  
 
Outra  coisa  importante,  eu  citei  os  70  anos  de  socialismo.  Além  dessa  paixão  por  pele  clara  há  um 
conceito totalmente nobre de mãos bonitas, e um interesse bem maior por essa parte do corpo do que, 
digamos, no Brasil. Diferentemente da Europa, o ponto não eram mãos e pés pequenos, mas mãos finas 
de dedos longos. Novamente, é algo que os camponeses não tinham. 
 
Gostaria  de  chamar  a  atenção  também para  os  pseudônimos  que  as  autoras  escolheram.  Nekrasova  é 
Illet e Vassilyeva é Niennah. Elhe Niennah, mais exatamente. Isto é muito importante. 

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NOTA DAS AUTORAS 
 
 
...Deve‐se  acreditar  em  si  mesmo?  Se  deve‐se,  até  que  ponto?  Deve  ser  dito  ‐  isso  é  assim,  porque  eu 
quero que seja assim? Porque eu gosto disso? Deve‐se tomar o conto de fadas por realidade? 

No início era a Palavra. 

E era Palavra – o nome, aquele que “não se enumera mais entre os nomes dos Valar, e não se pronuncia 
mais em Arda”. E eram ‐ duas damas pedantes, humanitária e “técnica”, que não acreditaram naquilo 
que este nome significa ‐ “Aquele que se ergue em poder”.  

No início era a pergunta. 

Seria  possível  lembrá‐la  agora  ‐  aquela  primeira  pergunta,  para  a  qual  não  se  acha  resposta  na 
aparentemente lógica narração. E quando a resposta foi encontrada, ruiu o harmonioso esquema, e o 
tecido bordado em ouro do belo conto de fadas começou a se desfazer sob os dedos... e ‐ o que está por 
traz dele? 

No início era o olhar. 

Olhar da pessoa não acostumada a dividir as pessoas em amigos e inimigos, vilões e heróis, Escuros e 
Brancos. Não acostumada a acreditar cegamente em ninguém e em nada. 

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...Nos mesmos temos vergonha de admitir para si que representamos por toda a vida. Representamos 
escondidos  de  nos  mesmos.  Asseguramos‐nos  de  que  é  somente  a  nossa  imaginação,  conto  de  fadas, 
que  isso  é  só  nosso...  e  ‐  maravilhamos‐nos  com  aqueles  que  atrevem‐se  a  revelar  o  conto  de  fadas 
deles, o jogo deles aos outros, os invejamos dolorosamente: pois isso é tão difícil ‐ abrir‐se, porque vão 
bater,  e  o  que  é  pior  –  rir  –  aqueles,  que  não  se  atreveram.  Aqueles,  que  tiveram  medo  de  fazer  eles 
mesmos. Nem todos agirão assim; mas mesmo um só golpe é dor... Mas mesmo assim – o jogo, o sonho, 
o conto de fadas estão conosco. Até o fim.  

Mas o quanto disso é um conto de fadas? O quanto – é jogo?  

Um  dia,  dizem,  John  Ronald  Reuel  Tolkien  recebeu  um  parecer  interessante  de  um  dos  seus 
interlocutores  ‐  “Não  foi  você  que  escreveu  ‘O  Senhor  dos  anéis’”.  E  ele  ficou  feliz  por  pelo  menos 
alguém mais ter compreendido isso.  

Um  dia,  Balzac  dizia  que  a  “Comédia  Humana”  lhe  foi  ditada  por  seu  gêmeo  fantasma.  E  o  “homem 
negro” empurrou Mozart para a criação do “Réquiem”.  

O que é isso, então? Possivelmente ‐ imaginação do criador. Possivelmente ‐ outra existência, que nem 
todos são capazes de ver...  

E se ‐ todos?  

E cada um vê da maneira dele: a própria face de um todo ou, como se diz atualmente, a própria reflexão. 
Mas a maioria mesmo assim segue o Guia. Ele pode ser um escritor que criou um conto de fadas sobre a 
visão dele (mas quem e como desenrolou esta visão à frente dele?) ‐ e como resultado, a exaltação, o 
maravilhar com a beleza da narração e com o talento do autor cegam e ordenam ver somente assim...  

Dizem, somente aquelas obras são verdadeiramente perfeitas, em que você nada deseja mudar, que não 
deseja reescrever ou continuar. Essas são poucas, e os livros de J. R. R. Tolkien não se enumeram entre 
elas  ‐  afirmação  que  milhares  de  leitores,  que  tratam  “O  Silmarillion”  e  “O  Senhor  dos  anéis”  como  a 
Bíblia, tentarão contestar. Mas para aquele que está acostumado a não somente olhar, mas também a 
ver, é óbvio que nas obras do professor Tolkien nem tudo foi dito.  

Vamos falar sinceramente: aquilo que nos chamamos de Arda – existe. Nos acreditamos nisso, ‐cada um 
de seu modo, ‐ mesmo se a razão nos diz que isso é um delírio, que isso não pode ser. Isso ‐ é. E ‐ será. E 
a nossa maneira de sentir, nossa fé no mundo chamado Arda muda e cria‐o até mesmo agora. E para 
aquilo que vocês verão abrindo esse livro ‐ quase a voz do que grita, desesperado, no deserto ‐ olhem 
vocês  mesmos.  Tentem,  pelo  menos.  Só  não  sigam  a  nossa  trilha.  Procurem  a  própria.  Este  livro  é  só 
uma tentativa de chamar a atenção.  

Como isso começou e porque? Longa história. Diremos só uma coisa ‐ chegou o tempo de acreditar nos 
próprios  pensamentos,  visões,  delírios,  sonhos  ‐  e  lógica.  A  visão  buscava  aquilo  que  não  foi  dito  e 
aquilo  que  era  incoerente  na  narrativa  de  Tolkien.  A  lógica  preenchia  as  lacunas.  As  emoções 
verificavam a exatidão da suposição. Visões e sonhos ‐ colocavam de frente para o fato: isso foi assim.  

...Ou, talvez, tudo começou de uma forma totalmente diferente?  

“Então, meu jovem, ‐ disse um Nazgûl na já na terceira idade, com número 24 e o emblema da guarnição 
de Morgul costurado na roupa, girando nos dedos o passaporte do espectro jovem e admirado que se 
esticava como um cordão na sua frente, ‐ vejamos, o que é que você tem aí...” 

Assim era o início. Piadinhas inofensivas, anedotas “da vida da Universidade de Morgul” ‐ mais nada.  

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E  ‐  a  Guerra  da  Ira,  páginas  fechadas  do  “Silmarillion”:  somente  um  ano  depois  irá  compreender  que 
não as releu nenhuma vez.  

E ‐ um nome, quase nunca pronunciado em voz alta.  

No início era – o Nome.  

Já não há como lembrar, quem disse pela primeira vez: “Eu vi. Foi assim”. Quando pela primeira vez o 
“Silmarillion” foi fechado e deixado de lado (“Ouça, mas isso já não presta para nada! Melhor darmos 
uma olhada nos mesmas...”). Quem pela primeira vez entoou com zombaria: “Claro‐claro, já que são os 
sábios em Eressëa que dizem...” 

Quando  atrás  das  lendas  sobre  vitórias  gloriosas,  e  belos  e  valentes  heróis,  pela  primeira  vez  –  nem 
todo o sangue infiltrou‐se na terra – começou a brotar uma outra verdade.  

Já depois – justificativas confusas: “Mas Gardner em seu ‘Grendel’, essencialmente, fez a mesma coisa...”  

Já depois: “Mas não foi uma pessoa que escreveu o ciclo sobre Conan...” 

Já depois ‐ olhar estranho para o espaço e o artificialmente calmo: “Eu lembro...” 

Tudo  isso  ainda  será.  Agora  há  somente  –  o  Nome,  e  perguntas  que,  parece,  ninguém  se  fez  durante 
todo o tempo que passou desde a publicação de “O Senhor dos anéis” e de “O Silmarillion”. E há duas ‐ 
com  inclinação  para  filologia  e  história  respectivamente  ‐  que  tiveram  a  vontade  de  terminar  de 
construir o incompleto retrato do mundo.  

O livro que você tem agora nas mãos não é uma critica de Tolkien. É uma tentativa de contar sobre Arda 
na língua dos Homens, e não na das lendas e mitos élficos.  

Se para você “O Silmarillion” é somente um conto de fadas ou “soma das mitologias” ‐ feche o livro: você 
errou na escolha.  

Se  você  procura  “mais  alguma  coisa  sobre  os  Hobbits”  ‐  feche  o  livro:  aqui  não  há  nem  aventuras 
divertidas,  nem  milagres  alegres;  aqui  ninguém  atira  pinhas  em  lobos  nem  leva  conversas  astuciosas 
com um dragão um tanto burro.  

Nos  não  pretendemos  dizer  a  verdade  em  última  instância:  olhem  com  seus  próprios  olhos,  pois 
ninguém pode ser objetivo até o fim.  

Não nos esforçamos para arrancar a coroa uns e elevar outros, não substituímos o negro pelo branco: 
simplesmente  ‐  ninguém,  nunca  e  nada  perguntou  aos  vencidos  (e  eles  foram  mesmo  vencidos?).  A 
história é escrita pelos vencedores, e a história dos vencedores é “O Silmarillion”.  

Nos não inventávamos viradas inesperadas na narração, não amontoávamos horrores: a guerra é cruel 
mesmo sem isso, nos todos simplesmente acostumamos‐nos a pensar sobre essa crueldade...  

Vejam então, como é ‐ a primeira guerra do mundo.  

Vejam, aqueles que faziam de Arda um jogo, que liam maravilhados sobre vitórias sobre o Inimigo, que 
saboreava o final feliz ‐ o preço da vitória é este.  

E, pode ser, vocês pensarão sobre isso. Sobre porque os vencidos podem estar acima dos vencedores.  

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E alguém, como uma criança ofendida, se atirará a defender o belo conto de fadas com cartas iradas.  

E alguém vai bater a mão na testa – pois tudo é tão obvio, meu Deus, onde estavam os meus olhos!..  

E alguém simplesmente encolherá os ombros e mostrará a costas.  

Já vimos tudo isso.  

Mas, talvez, ao menos um – pensará.  

Vejam: no mundo não há nem o Mal absoluto nem o Bem absoluto. Vejam: a justiça que desconhece a 
piedade transforma‐se em crueldade sem sentido.  

Vejam.  
 
Estamos  abertas.  Não  nos  escondemos.  A  escolha  foi  feita.  Se  alguém  ouviu  ‐  tudo  bem.  Se  alguém 
seguirá o próprio caminho ‐ tudo bem. Se alguém odiar – que seja.  

Os narradores não têm espadas.  

Niennah, Illet 

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PRÓLOGO 

 
Quem sabe, quem dirá, quando surgiu em Arta o Livro que se tornou a memória do mundo? Aquele que 
conhece a língua da Grande Sabedoria em que foi escrito poderia ler nele palavras sobre mistérios de 
Ëa, sobre como a luz nasceu das trevas, sobre como foi criado o mundo. Talvez, o Livro seja mais antigo 
que a própria Arta, talvez tenha surgido junto com o mundo. Que mãos o tocavam nas eras da juventude 
do mundo ‐ foram mesmo somente as mãos de Melkor, ou este Livro foi criado pelo pensamento e pela 
memória dele? Quem saberia disso agora? Os Sábios silenciam, e os videntes dizem: “Isso está oculto de 
nós”.  Talvez,  somente  o  Senhor  do  Escuro  saiba  –  mas  quem  dará  o  passo  para  além  do  Limiar  para 
perguntá‐lo, quem dos viventes poderá retornar e contar? 
 
O Livro foi escrito pelo tempo, é o Livro da verdade cuja língua é compreensível a todos, mas poucos o 
viram.  Ele  guarda  os  segredos  da  terra  e  das  estrelas,  e  até  mesmo  o  Senhor  do  Destino  não  sabe  de 
tudo o que ele esconde em suas páginas. 
 
Quem dirá porque os que vão pelo Caminho do Escuro guardam o Livro da Memória? Talvez porque aos 
que seguem sob a bandeira da Dor não foi dado o direito de esquecer. Talvez porque o Escuro gerou a 
memória e a dor, a luz e a verdade... dizem que o Livro por si só elege o Guardião, e poucos têm forças 
para  carregar  este  pesado  fardo.  Talvez  a  palavra  e  o  ato  mentirosos  possam  enganar  os  sentidos,  a 
mente e o coração, é possível mentir a si mesmo e acreditar nesta mentira, mas o Livro não mente. 
 
O Livro existe enquanto existe o mundo ‐ ou talvez o mundo exista enquanto existir o Livro, quem sabe? 
Mas  este  laço  é  indissolúvel  tal  como  aqueles  laços  que  mantêm  a  unidade  de  Arta.  Ninguém  pode 
alterar  uma  palavra  que  seja  no  Livro  da  Verdade,  mesmo  desejando  isso  com  todo  o  coração,  assim 
como é impossível reverter o correr do rio do Tempo. Os feitos dos que seguem os caminhos do Escuro 
e da Luz, os feitos de glória e de vergonha, os feitos de justiça e de injustiça, do bem e do mal ‐ sobre 
tudo  isso  fala  o  Livro.  É  possível  ocultar  um  feito  dos  olhos  humanos  e  dos  olhos  dos  Imortais,  mas 
aquele que lê o Livro lê a verdade. 

O Livro Negro de Arda  Página 9 
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PRIMEIRA PARTE. O CORAÇÃO DO MUNDO 
 
O NOME. OS DIAS ANTES DOS DIAS 
 
 
“Havia  Eru,  o  Único,  que  em  Arda  é  chamado  de  Ilúvatar.  Ele  criou  primeiro  os  Ainur,  os  Sagrados, 
gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado. E ele lhes 
falou,  propondo‐lhes  temas  musicais;  e  eles  cantaram  em  sua  presença,  e  ele  se  alegrou.  Entretanto, 
durante  muito  tempo,  eles  cantaram  cada  um  sozinho  ou  apenas  alguns  juntos,  enquanto  os  outros 
escutavam; pois cada um compreendia apenas aquela parte da mente de Ilúvatar da qual havia brotado 
e  evoluía  devagar  na  compreensão  de  seus  irmãos.  Não  obstante,  de  tanto  escutar,  chegaram  a  uma 
compreensão mais profunda, tornando‐se mais consonantes e harmoniosos...” 
 
Assim diz a lenda élfica “Ainulindalë”. 
 
...Ninguém  jamais  soube,  tampouco  sabe  agora  e  dificilmente  saberá  algum  dia  de  onde  ele  chegou, 
quem  ele  era  e  porque  desejou  criar  um  mundo  obediente  à  própria  vontade,  separado  dos  demais 
mundos que brilhavam nas profundidades negras de Ëa entre as estrelas incontáveis. 
 
Assim foi o Plano: o Mundo será novo, diferente dos outros. E este mundo será correto e imutável, pois 
assim deseja Eru, pois isso agrada a ele. E tudo no mundo será assim como ele disse e tudo que existirá 
no mundo estará glorificando o Único. 
 
Então  ele  criou  em  Ëa  uma  esfera  fechada,  e  dentro  dela  estava  o  Vazio,  que  devia  tornar‐se  uma 
barreira separando o mundo de Ëa. Mas o poder para a criação precisou ser tirado do exterior e, desde 
o  início,  a  existência  de  Ëa  penetrou  na  esfera  não‐Ëa.  E  a  esfera  era  somente  uma  lacuna  no  tecido 
comum, e existia somente graças à Ëa. 
 
E  Eru  entrou  em  não‐Ëa,  e  ali  estavam  as  suas  mansões,  em  que  não  havia  Escuro,  mas  também  não 
havia  Luz,  pois  ali  não  havia  nada.  “Aqui,  ‐  disse  ele  ‐  Eu  criarei  o  novo  mundo”.  Mas  para  que  este 
mundo fosse diferente, o próprio Criador precisava transformar‐se num novo ser, que desconhecesse 
os  outros  mundos  e  Ëa.  Mas  ele  não  possuía  este  poder.  Ele  somente  podia  fazer‐se  cego,  esquecer 
sobre tudo o que está fora dos limites das suas mansões. E disse ele: “Que fique este mundo cego, e que 
por toda a eternidade não veja o Escuro de Ëa. E que este mundo saiba apenas que Eu sou seu Criador e 
Senhor. Que seja assim”. 
 
O Escuro primordial acomodava em si os mundos de Ëa, e as mansões de Eru eram o Nada finito entre 
as estrelas incontáveis. O Escuro estava em volta – imenso, a tudo dando vida, cheio de força ilimitada. 
Ele parecia rir daquele que tentava não vê‐lo, apesar dele mesmo ter sido gerado pelo Escuro. E então 
Eru  disse:  “Que  haja  nas  minhas  mansões  o  não‐Escuro!”  E  não  havia  mais  Escuro  nas  mansões  dele, 
mas isto também não era a Luz, pois a Luz nasce somente no Escuro. E todas as forças de Eru foram 
gastas  na  criação  do  Vazio  e  do  não‐Escuro,  ele  as  dissipou  na  luta  com  Ëa  e  com  o  Escuro,  com  a 
memória e com a visão. Então ele foi novamente obrigado a buscar forças em Ëa, e novamente o Existir 
penetrou no Vazio. De Ëa  e do Escuro, com a força do próprio pensamento e da vontade, Eru criou o 
primeiro daqueles a quem ele chamou de Ainur. Mas, ao olhar para ele, Eru assustou‐se, pois viu nele a 
encarnação de tudo aquilo que queria esquecer, daquilo que não desejava ver. O primeiro dos Ainur não 
era nem parte do pensamento, nem parte dos planos de Eru. 
 
Então  Eru  pegou  a  Luz  e  misturou‐a  com  o  Escuro,  pois  a  Luz  não  somente  expulsa  o  Escuro,  como 
também devora os outros fogos. E assim ele criou os outros Ainur, e em cada um deles havia parte do 
Escuro e parte da força de Ëa. Todos eles podiam ver e conhecer o Escuro, mas a não‐Luz de Eru cegava 
os seus olhos e eles eram obedientes à vontade daquele que os criou. E, para subjugar o primeiro dos 
Ainur, o seu filho mais velho, Eru tirou‐lhe o nome e chamou‐o ‐ Alcar. 
 
...O nome não é somente um entrelaçamento de sons. É você, seu “Eu”. E ele, diferente dos outros, está 

O Livro Negro de Arda  Página 10 
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privado  até  mesmo  disso.  Alcar,  Esplendor.  O  nome  é  parte  de  força  dele,  da  sua  essência  ‐  e  foi‐lhe 
tirado. Deram‐lhe um outro. Quem fez isso? Para que? Alcar. Alcar. Estranho, frio. Morto. 
 
Ainur devem sentir o nome como uma parte de si, seu “eu sou”. Ele repete os nomes deles, e os rostos 
dos Ainur por um momento tornam‐se definidos. É uma alegria ‐ ouvir como lhe chamam por uma frase 
musical que se tornou expressão do seu ser. Fundo acorde violeta e púrpura: Námo. Cordão de prata, 
luz perolada um tanto amarga: Nienna. Eco esverdeado, com brilho frio: Irmo. Tinir surdo de cobre e 
ouro: Aulë.  
 
Estes estão mais perto, semelhantes em algo e ‐ diferentes. E o nome dele não possui nem cor, nem som 
vivo.  Alcar.  Al‐car.  Uma  pedra  morta  que  brilha.  Insuportável  tormento  ‐  ouvir,  mas  não  foi  lhe  dado 
lembrar um outro nome. Um estranho. Diferente. Por quê? Quem responderia? 
 
No canto dos Ainur soa o eco de uma outra música, mas de onde ele a conhece? Ele perguntava. Não há 
resposta. Talvez isso é o dom dele, especial, que o diferencia dos outros? Não. Por quê? Os outros vêem 
a bela face de Eru ‐ ele não percebe os traços numa luz inconstante. Por quê? Ou ele é cego? Ele. Quem ‐ 
ele? Alcar. O retinir de pedras preciosas caindo sobre um vidro. Alcar, Esplendor. Alcar, aquele que não 
possui um nome. 
 
E  ali,  fora  dos  limites  da  morada  do  Único,  está  o  Vazio  e  as  eternas  trevas.  Assim  disse  ele,  o  Único, 
Criador onisciente. E o espírito do Ainu estava vazio. Não seria melhor partir para lá, para o Nada que 
compõe a essência dele, para não ter que ver os rostos claros e alegres dos Ainur, para não ouvir este 
nome ‐ Alcar... Estranho. Diferente. Ele não conhece a alegria ‐ o primeiro presente da existência para 
ele foi a solidão e o isolamento. Melhor – não existir, retornar ao Nada, para sempre deixar as mansões 
de Eru... 
 
A escuridão caiu sobre ele em uma macia e ensurdecedora ausência de sons. Então, isso que é o Nada? 
Mas porque é tão difícil fazer um passo para frente ‐ como se uma enorme mão encostasse no seu peito, 
repudiando‐o...  Se  ele  é  parte  do  Nada,  porque  o  Vazio  também  não  o  aceita?  Será  –  novamente  um 
estranho?.. 
 
Então ele atirou‐se para frente com a força do desespero, através da parede elástica, e de repente viu. 
 
“É possível que aqui, no Escuro, seja possível ver? – ele ainda pôde pensar, desnorteado. ‐ E não há sons 
no vazio ‐ porque eu ouço? O que é isso?.. Música... palavra... nome... Nome?!” 
 
Melkor. 
 
“Meu  nome.  Eu.  Isso  ‐  sou  Eu.  Eu  lembro.  Melkor.  Eu.  Isso  é  o  meu  “eu  sou”.  Existência.  Vida.  Chama 
clara. Vôo. Alegria. Isso ‐ sou eu...” 
 
Mas de qualquer modo, mesmo isso lhe pareceu insignificante perto da capacidade de ver. Ele não sabia 
o que era isso, mas as palavras arrancavam‐se dos seus lábios e então ele disse: Ahe, Escuro. 
 
E  as  faíscas  claras  na  escuridão  ‐  o  que  é  isso?  Ae,  Luz...  Gele,  Estrela...  Luz  ‐  somente  no  Escuro...  de 
onde é que eu sei disso?.. Eu sempre soube... Ele estendeu os braços às estrelas e ‐ ouviu. Isso são as 
estrelas  que  cantam?  Ele  conhecia  esta  música,  ele  ouvia  seus  ecos  nas  melodias  dos  Ainur...  Sim,  é 
isso...  Ele  compreendeu  isso  e  riu  ‐  baixo,  como  se  tivesse  medo  de  fazer  a  música  calar‐se.  Mas  ela 
soava cada vez mais clara e confiante, e seu “eu” era uma parte da Música. Ele tornou‐se uma canção 
dos mundos, ele voava no Escuro entre as estrelas incontáveis, chamando‐as ‐ e elas lhe respondiam... 
Então ele disse: “Isto é Ëa, Universo”. “Mas ele dizia ‐ Vazio, Nada... Será que ele não sabe sobre isso? 
Não viu? Ele, Eru, que a tudo vê?..” 
 
Eru. Ere. Chama. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 11 
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“Esse é o nome dele?.. Sim... mas porque então ‐ Único? Quem disse isto? Ou ele também é aquele que foi 
privado do nome? E por quê eu consegui lembrar o meu nome somente agora? Será que Eru, Ere, fez 
assim?  Para  quê?  Por  quê  ‐  comigo?  Eu  preciso  entender...  Mas  se  ele  não  lembra  o  nome  dele  ‐  eu 
contarei a ele! Eu trarei de volta o nome dele, eu contarei sobre Ëa ‐ eles precisam ver! Eu voltarei, eu 
direi: eu vi, eu ouvi, eu entendi...” 
 
Assim  Ainu  novamente  obteve  o  nome,  e  a  vontade  do  Único  não  mais  o  acorrentava.  E  o  seu 
pensamento e os seus planos não eram partes do pensamento e dos planos do Único. 
 
Assim o Único deixou de ser Único, pois agora eles eram dois. 
 
E Ainu Melkor retornou às mansões de Eru: os irmãos o receberam surpresos e tímidos, pois viram que 
o aspecto dele mudou. E ele era, entre outros Ainur, como um jovem audaz na roda das crianças. Agora 
ele não trajava mais as vestes de luz irisada, mas as do Escuro, e a noite de Ëa caía dos seus ombros 
como  um  manto.  E  o  rosto.  Como  se  estivesse  iluminado  por  dentro  com  uma  cintilação  trêmula, 
mudando imperceptivelmente ‐ mas mesmo assim definido. O olhar ‐ límpido e decidido, olhos claros 
como estrelas. 
 
Corajoso e calmo ele se apresentou a Ilúvatar e começou a falar: 
 
‐  Agora  eu  vi  estrelas  incontáveis  ‐  Luz  no  Escuro  ‐  e  muitos  mundos.  Você  dizia  ‐  fora  das  suas 
luminosas  mansões  há  somente  o  Vazio e  as  trevas  eternas.  Mas  eu  vi  luz,  e  isso  era  Luz.  Diga,  como 
devo entender as suas palavras agora? Ou você queria que nos mesmos víssemos, e ouvíssemos o Canto 
dos Mundos? Talvez cada um deve, por si próprio, chegar ao entendimento... 
 
‐ Eu falei‐lhes a verdade: somente em Mim é o início e o fim de tudo o que existe e a Chama Imperecível 
do Ser. 
 
‐ Sim, eu sei, eu entendi: Ere ‐ Chama! 
 
Ele disse ‐ Ere, e neste mesmo instante o semblante de Ilúvatar tornou‐se nítido e definido. E Ainu foi 
dolorosamente  surpreendido  pela  ira  que  desfigurou  a  face  do  Criador.  Mas  como  assim?  Não  é  uma 
alegria ‐ lembrar o próprio nome? Ou Ilúvatar queria esquecê‐lo? Mas por quê? 
 
...Trono  brilhante,  vestes  luminosas...  Como  isso  tudo  parecia  falso  e  ridículo  para  aquele  que  viu  a 
grandeza  de  Ëa!  Assim  a  criança,  querendo  brincar  de  rei,  cobre‐se  de  penduricalhos  de  cores 
berrantes, pensando ingenuamente que a roupa a colocará acima dos outros. Melkor sorriu tristemente. 
 
‐ Você é grosseiro e desrespeitoso. Você diz palavras de revolta e não se dá conta do que fala. Não há 
mais nada além de Mim e dos Ainur, nascidos do Meu pensamento. Enquanto a sua visão é somente a 
sombra dos Meus planos, o eco da música ainda não criada... 
 
‐ Não, eu vi, eu ouvi o Canto do Universo... Talvez você nunca tenha abandonado a sua morada? Então, 
se assim desejar, eu serei seus olhos. Eu contar‐lhe‐ei sobre os mundos... ‐ Ainu sorriu. 
 
‐ Cale‐se. As suas palavras são insanas. Ou você duvidou da minha onipotência ‐ você, cega ferramenta 
em  Minhas  mãos?  Ou  se  atreve  a  pensar  que  consegue  compreender  toda  a  profundidade  dos  meus 
planos? 
 
‐ Perdoe, mas... 
 
‐ Eu não desejo mais ouvi‐lo. 
 
Melkor partiu, sem saber o que pensar. Ele tentava entender o que fez para provocar a ira de Eru ‐ e não 
encontrava resposta: “Mas eu vi”, ‐ pela centésima vez repetia ele para si mesmo. As mansões brilhantes 

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pareciam‐lhe agora opacas e sem cor. Aquilo que antes o impressionava pela grandiosidade, revelou‐se 
insignificante,  pretensioso  e  digno  de  pena,  não  havia  ali  espaço  suficiente  para  ele,  e  ele  novamente 
abandonou a morada de Ilúvatar. Assim começaram as suas viagens em Ëa, e seus pensamentos cada 
vez menos se assemelhavam aos dos outros Ainur. 
 
“A  Melkor,  entre  os  Ainur,  haviam  sido  concedidos  os  maiores  dons  de  poder  e  conhecimento,  e  ele 
ainda tinha um quinhão de todos os dons de seus irmãos. Muitas vezes, Melkor penetrara sozinho nos 
espaços vazios em busca da Chama Imperecível, pois ardia nele o desejo de dar Existência a coisas por 
si mesmo; e a seus olhos Ilúvatar não dava atenção ao Vazio, ao passo que Melkor se impacientava com 
o Vazio. E no entanto ele não encontrou o Fogo, pois este está com Ilúvatar. Estando sozinho, porém, 
começara a conceber pensamentos próprios, diferentes daqueles de seus irmãos...” 
 
E Ainu Melkor teve o plano de criar o seu próprio mundo, e em sua alma nasceu a Música cuja melodia 
se entrelaçava ao Canto dos Mundos. Assim foi o plano: o mundo será novo, diferente dos outros. Ele 
será criado de fogo e gelo, do Escuro e da Luz, e no equilíbrio deles e no combate deles serão criadas 
formas mais belas do que as visões geradas pela música dos Ainur e de Ilúvatar. Na sua dualidade, este 
mundo  será  imprevisível,  furiosamente  livre,  e  não  conhecerá  a  imutabilidade  da  calma  sem 
pensamentos. E aqueles, que virão a este mundo, serão à imagem e semelhança dele ‐ livres; e a Chama 
Eterna arderá nos corações deles... 
 
E este mundo pareceu belo a Melkor, e ele estava feliz, pois compreendeu que é capaz de criar. 
 
Assim Ilúvatar deixou de ser o único Criador.  
 
Então Melkor retornou às mansões de Ilúvatar, e a música permanecia na alma dele, e música eram as 
palavras  dele  quando  ele  falava  a  Eru  e  aos  Ainur  sobre  o  plano.  E  esta  música  era  bela  e, 
impressionados  com  a  beleza  dela,  os  Ainur  começaram  a  cantar  junto  com  Melkor  ‐  no  início 
timidamente e desunidos, mas depois eles começaram a compreender melhor os pensamentos uns dos 
outros,  e  o  seu  canto  soava  cada  vez  mais  coordenado,  e  nele  se  enlaçavam  os  pensamentos  mais 
ocultos deles. 
 
E  o  seu  coro  perturbou  Ilúvatar,  pois  ele  ouviu  na  Música  o  eco  do  Canto  dos  Mundos  que  desejava 
esquecer.  E  ele  interrompeu,  irado,  o  canto  e  não  desejou  ouvir  Melkor,  mas  decidiu  criar  a  própria 
Música para abafar a Música de Ëa.  
 
E  Ilúvatar  tentou  penetrar  nos  pensamentos  de  Melkor,  mas  compreendeu,  surpreso,  que  não  é  mais 
capaz de fazê‐lo. Os pensamentos dos outros Ainur eram para ele um livro aberto, mas em Melkor ele 
via agora algo estranho, incompreensível e, por isso, assustador. Ele entendeu só uma coisa ‐ Melkor é 
um Criador; e é preciso apressar‐se, antes que ele descubra o próprio poder... 
 
Naquele  tempo,  Manwë,  aquele  que  era  o  irmão  mais  novo  do  Ainu  rebelde  nos  planos  de  Ilúvatar, 
chegou ao trono de Eru; assim falava ele: 
 
‐ O mais poderoso entre outros Ainur é aquele que tomou para si o nome Melkor ‐ Aquele que se ergue 
em poder. Mas o orgulho o cega e inspira‐lhe pensamentos de revolta, como se ele pudesse se equiparar 
ao Grande Criador de tudo o que Existe. Certamente, não é à toa que ele oculta de nos os pensamentos 
dele; provavelmente, ele planejou algo maligno... 
 
E  Ilúvatar  inclinou  benevolentemente  a  cabeça,  e  disse  consigo  mesmo:  “Vejo  Eu  que  não  há 
pensamentos rebeldes na alma de Manwë. Por isso, no mundo que Eu criarei, que seja ele o Rei, pois é 
obediente a Mim e realizará a Minha vontade no mundo que criarei”. 
 
Os  Ainur  eram  cegos  ao  Escuro;  porém  entre  eles  estavam  aqueles  que  viam  no  Escuro,  mas  viam 
também os desejos de Ilúvatar. Por isso, Ainië Varda chegou ao trono de Eru e disse: 
 

O Livro Negro de Arda  Página 13 
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‐ Senhor! Eu vejo o mesmo que Melkor vê. Mas, se essa é a Sua vontade, ordene ‐ e eu não verei mais. 
 
E Ilúvatar falou: 
 
‐ Você é livre para ver aquilo que desejar. Mas os outros devem ver somente aquilo que Eu desejo. Que 
você faça assim. 
 
E, curvando‐se, assim falou‐lhe Varda: 
 
‐  Poderoso  é  Ainu  Melkor,  e  os  pensamentos  dele  estão  ocultos  de  nos.  Mas  eu  acho  que  estes 
pensamentos  são  perigosos  para  nos,  e  é  por  isso  que  ele  os  oculta.  Não  somos  nos,  fracos,  que 
poderemos combatê‐lo. Mas Você é onipotente: dome‐o então, para que ele não intimide mais os outros 
com  suas  palavras  de  revolta  e  não  faça  nenhum  mal.  E  assim  falarei  eu  agora:  eu  renego‐o  para  a 
eternidade, pois não há nada acima dos Seus grandiosos planos para mim. E, se Você julgar o renegado 
digno de uma punição, que se realize o Seu julgamento justo. Que seja a Sua vontade. 
 
E  Eru  inclinou  a  cabeça  benevolentemente;  e  Varda  afastou‐se  com  uma  reverência.  Então  Ilúvatar 
pensou assim: “Eu vejo que Varda compreendeu os Meus pensamentos e que ela é obediente à Minha 
vontade. Por isso, no mundo que Eu criarei, que seja ela a Rainha, para expulsar das almas dos outros a 
revolta”. 
 
E  foi  assim:  Eru  convocou  todos  os  Ainur,  e  ergueu  a  mão  dele,  e  soou  uma  Música  ‐  aquela  que  ele 
queria lhes dar. Mas ela era parte da música de Ëa, pois também o Único veio de Ëa e, por mais que ele 
se esforçasse, não poderia criar algo absolutamente distinto. Somente uma coisa estava ao alcance dele 
‐ alterar a Música de Ëa de acordo com a própria vontade. E aos Ainur pareceu que o Único mostrou a 
eles, nessa música, mais do que havia mostrado anteriormente e, maravilhados, eles se curvaram a Eru. 
 
Todos, menos Melkor. 
 
E Eru disse‐lhes: 
 
‐ A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música. E, como 
eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema, 
cada  um  com  seus  próprios  pensamentos  e  recursos,  se  assim  o  desejar.  Eu  porém  me  sentarei  para 
escutar;  e  me  alegrarei,  pois,  através  de  vocês,  uma  grande  beleza  terá  sido  despertada  em  forma  de 
melodia. 
 
Então  Ainur  começaram  a  transformar  o  tema  do  Único  na  Música  Magnífica.  E,  ao  ouvi‐la,  Melkor 
compreendeu  que  Eru  deseja  criar  um  mundo  belo,  mas  vazio  e  sem  rumo.  Mas  a  falta  de  um  rumo 
transforma  a  beleza  em  nada,  e  a  correção  e  a  impecabilidade  da  simetria  fazem  a  face  do  mundo  se 
parecer  com  uma  máscara  morta  e  fria.  Então  Melkor  decidiu  mudar  a  Música  de  acordo  com  o  seu 
próprio plano, não seguindo o plano de Ilúvatar. E a sua canção dizia: “Eu vi Ëa e outros mundos, e eles 
são belos. Eu ouvi o Universo, e ouço o mundo que ainda está por nascer ‐ e que ele seja belo, e que Ëa 
se enfeite com ele”. E havia entre os Ainur aqueles que repetiam, mesmo que fossem poucos. E a Música 
da Criação fazia surgir, para os Ainur, estranhas e belas formas. 
 
...Profundo  acorde  de  muitas  vozes  ‐  cálice  de  pedra,  cheio  de  vinho  amargo  cor  de  rubi  das  notas 
vibrantes das cordas... 
 
...espelhos que refletem estrelas... 
 
...escadarias que levam para o alto... 
 
...notas agudas das agulhas apontadas para o céu, harmonia das torres sombrias... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 14 
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...Como a vagamente preocupante neblina embriagadora nasce sobre as lagoas... 
 
...Como chora com gotas cintilantes o alto céu noturno... 
 
...e se estendem às tristes estrelas as árvores ‐ braços da terra... 
 
...Estas flores estão vivas? O que elas falam? Sobre o que é o seu levemente amargo, picante e inebriante 
murmúrio?.. 
 
...o acre do escuro dos espinhos de zimbo, amargura de prata do absinto... 
 
...Coma  dos  frutos  dessa  terra  ‐  e  conhecerá  a  sabedoria  do  existir.  Lave  o  rosto  com  a  viva  água  do 
córrego da mata ‐ e poderá ver... 
 
...De quem é esta dança no céu ‐ sinais desconhecidos... prata escura ‐ asas do vento... de onde vem esta 
música? 
 
Quem é aquele? 
 
Ainda  vagas  figuras  ilusórias:  só  ‐  finas  mãos  esvoaçantes,  só  ‐  olhos  brilhantes...  Apareceram  ‐  e 
sumiram; e uma vaga, sem nitidez, tristeza remexeu‐se na alma... 
 
O que é isso? 
 
Ahe. Escuro. 
 
O que é isso? 
 
Ae. Luz. 
 
O que é isso? 
 
Ore, Noite. Gele, Estrela. Ier ‐ Lua... 
 
O que é isso? 
 
Aente, Dia. Saere, Sol. 
 
De repente ‐ uma estridente, amarelo‐esverdiada nota de flauta faz contrair os músculos do rosto.  
 
Diamantes amarelados das notas rolando ‐ impiedosa luz morta, ossos branqueados pelo sol... 
 
Mas  se  eleva,  com  escura  grandiosidade,  negra,  cintilando  com  faíscas  azuis,  onda;  Aheor,  Força  da 
Escuridão é o nome dela. 
 
E afoga‐se o brilhante Vazio: do Escuro nasce a Luz e, como uma estrela tremula, agita‐se nas mãos do 
alado Ainu Escuro. 
 
Qual é o seu nome? 
 
Aeanto. 
 
Aquele que traz a Luz... 
 
Orgulhoso e calmo, o Alado estava perante o trono de Eru, e o seu olhar dizia: eu vi. 

O Livro Negro de Arda  Página 15 
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“Você não viu nada e não poderia ter visto!” ‐ respondeu o olhar do Único. 
 
E  os  Ainur  viram  que  o  Único  sorriu.  E  ele  ergueu  a  mão  esquerda,  e  deu  um  novo  tema  a  eles, 
semelhante ao tema anterior e ao mesmo tempo diferente: esta música era alegre e confiante, e ganhou 
uma  nova  beleza  e  força.  O  Alado  compreendeu  então,  que  a  música  de  Eru  cria  um  mundo  onde  o 
Equilíbrio será sacrificado à Predestinação, e a calma imutável deste mundo matará a sua beleza. E soou 
novamente  a  Música  do  Alado  ‐  em  dissonância  com  o  tema  de  Ilúvatar.  E  na  tempestade  de  sons, 
muitos  dos  Ainur  se  confundiram,  e  silenciaram.  E  a  Música  de  Melkor  soava  ‐  um  violino  diabólico: 
uma  veloz  flecha  negra.  E  o  Canto  se  erguia  numa  onda  amargamente  salgada,  e  faíscas  esverdeadas 
luziam em seu topo ‐ sobre as verdes e douradas ondas densas da música de Eru, ela voava como um 
vento  gelado  e  ardente,  e  rasgava  como  um  punhal  a  brilhante,  irisada  de  suaves  acordes, 
invariabilidade surda. E a música do Único se dissolveu, e somente a impensadamente linda voz doente 
de  um  violino  solitário  ecoa  na  morada  clara:  o  Tempo  nasce  da  sua  inexistência,  e  o  coração  do 
desconhecido pulsa com o fogo do Movimento eterno... 
 
 “Você vê demais”, ‐ respondeu Eru, mas o Alado não baixou os olhos. 
 
Então Ilúvatar ficou sombrio. Ele ergueu a mão direita, novamente jorrou a música, e aos Ainur pareceu 
que nunca antes eles haviam ouvido música mais bela. 
 
Melodia de Eru ‐ refinadamente bela, doce e suave, sombreada por uma leve tristeza, corria perante os 
olhos dos Ainur com a sedosa transparência cor de água‐marinha das harpas e fitas pastel dos ecos do 
cravo ‐ gotas de pedras preciosas escorrendo lentamente entre os dedos. 
 
Mas a música de Melkor também alcançou a concordância: rebeldes e ameaçadoras vozes inquietas das 
trombetas ‐ pesada bronze negra, afiado aço escurecido, a prata amarga das tríades em menores. Uma 
pontada de dor ‐ a espiral de gelo e estrelas da voz do violino; mãos unidas em súplica ‐ o cintilar das 
ametistas  escuras  ‐  a  calma  funda  e  um  pouco  amarga  do  violoncelo;  o  negrume  gótico  do  órgão  ‐ 
grandeza da dor, a fria sabedoria da Eternidade; montanhas desabando, avalanches caindo no abismo... 
Em alguns momentos, a Música parecia lutar consigo mesma ‐ sons opacos, vermelhos e salgados; em 
alguns  momentos,  voava  para  o  alto  ‐  e,  de  algum  lugar  desconhecido,  surgia  o  triste,  transparente 
como uma fonte, tema de uma flauta solitária, que transpassava o coração trêmulo como uma agulha de 
prata.  E  o  ritmo  surdo  ‐  batimentos  do  coração  ‐  unia  milhares  de  diferentes  e  estranhas  melodias. 
Parecia  que  as  paredes  luminosas  das  mansões  se  derretem,  se  dissolvem,  desaparecem,  e  com 
milhares de olhos olha o Escuro, e o veloz vento negro rasga o ar parado.  
 
...Olhe: a sua frente está o Caminho ‐ a clara lâmina‐facho de gelo; pise nele ‐ o Portão está aberto, você 
está  livre  ‐  como  se  tivesse  enormes  asas  nas  costas.  Isso  é  o  fim  ‐  é  o  começo  ‐  é  uma  dádiva 
desconhecida... Isso ‐ é a Eternidade olhando para o seu rosto com olhos de ametista da esfinge... 
 
O que é isso? 
 
Você  sabe:  isso  é  o  Escuro.  Veja  como  a  luz  nasce  no  Escuro,  brota  do  Escuro,  como  das  cintilantes 
gotas‐sementes escorrem em brotos finos e ainda fracos as estranhas melodias da vida... 
 
O que é isso? 
 
Você  sabe:  isso  são  as  estrelas,  isso  são  os  mundos,  isso  é  o  Existir,  isso  é  Ëa.  Veja  como  o  Escuro 
estende a mão para a Luz: eles não são inimigos, eles são duas metades, duas partes de um inteiro: aeli 
ishani tael. 
 
O que é isso? 
 

O Livro Negro de Arda  Página 16 
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Você sabe: isso é a Chama, isso é o fogo eterno do Movimento, isso é o início da contagem do Tempo, 
isso é ‐ a vida... 
 
E  os  dois  temas  se  entrelaçaram,  mas  não  se  misturaram,  completando  um  ao  outro,  mas  não  se 
fundindo.  E  a  Música  de  Melkor  era  mais  forte,  pois  com  ela  irrompia  no  Vazio  a  força  de  Ëa,  aquele 
Canto dos Mundos pelo qual foi gerada a Música do Alado, que dá a existência, que expulsa o Nada. E 
Eru viu que o Alado vencerá nesta luta e que é imenso o poder dele, e não é no Único que está a fonte 
deste poder. 
 
“...No  meio  dessa  contenda,  na  qual  as  mansões  de  Ilúvatar  sacudiram,  e  um  tremor  se  espalhou, 
atingindo  os  silêncios  até  então  impassíveis,  Ilúvatar  ergueu‐se  mais  uma  vez,  e  sua  expressão  era 
terrível de ver. Ele então levantou as duas mãos, e num acorde, mais profundo que o Abismo, mais alto 
que o Firmamento, penetrante como a luz do olho de Ilúvatar, a música cessou.” 
 
Assim, irado, Eru interrompeu a Música, e seu último acorde dizia: “Aquilo que será daí em diante, você 
não verá”. E de novo Melkor não baixou os olhos. Mas também o próprio Ilúvatar não poderia ver o que 
acontecerá daí em diante. 
 
E quando ele viu aquilo que a Música criou, compreendeu que a força de Ëa o havia vencido. E odiou 
Melkor, e em seu íntimo amaldiçoou‐o. Mas os outros Ainur ainda eram obedientes a ele. Então Ilúvatar 
falou assim: 
 
‐  Poderosos  são  os  Ainur,  e  o  mais  poderoso  dentre  eles  é  Melkor;  mas,  para  que  ele  saiba,  e  saibam 
todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá‐las para que vejam 
o que fizeram. E você, Melkor, verá que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais 
remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não 
ser  senão  meu  instrumento  na  invenção  de  coisas  ainda  mais  fantásticas,  que  ele  próprio  nunca 
imaginou. 
 
E  então  os  Ainur  sentiram  medo,  e  não  podiam,  ainda,  entender  as  palavras  que  foram  lhes  ditas; 
somente o Alado olhou em silêncio para Ilúvatar e sorriu. Mas o seu sorriso era triste. 
 
Então Eru abandonou as suas mansões, e Ainur o seguiram. E Eru disse a eles: 
 
‐ Contemplem a sua música! 
 
Os  Ainur  receberam  aquilo  que  lhes  pareceu  uma  visão,  transformando  em  visível  o  que  antes  era 
Música; mas ninguém, além de Melkor e Eru, sabia que isso não era uma visão, mas a realidade. E Ainur 
viram  o  mundo  nas  carinhosas  mãos  do  Escuro,  mas,  por  não  conhecer  o  Escuro,  o  temiam  e  não  o 
compreendiam. E Eru colocou em seus corações cegos: Melkor criou o Escuro; pois Eru já não conseguia 
ocultá‐lo, somente proibir que o entendam e aceitem estava ao alcance dele. E os Ainur sentiam medo 
de olhar para o Escuro e nada viam nele, e por isso não conheciam e não viam a Luz. 
 
Mas enquanto os Ainur olhavam, estupefatos, para o mundo novo, a sua história começou a desenrolar‐
se para eles. Então novamente falou Ilúvatar: 
 
‐ Contemplem a sua música! Este é seu repertório. Cada um de vocês encontrará aí, em meio a imagem 
que  lhes  apresento,  tudo  aquilo  que  pode  parecer  que  ele  próprio  inventou  ou  acrescentou.  E  você, 
Melkor, descobrirá todos os pensamentos secretos da sua mente e perceberá que eles são somente uma 
parte do todo e subordinados à glória dele. 
 
E Alado viu que Eru desejava envergonhá‐lo com estas palavras; e novamente sorriu ele, e estranho era 
este seu sorriso, e nem os irmãos dele, nem Ilúvatar o compreenderam. 
 

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E  muitas  outras  palavras  disse  Ilúvatar  aos  Ainur  naquele  momento.  Assim  isso  é  contado  em 
Ainulindalë:  
 
“...E, em virtude da lembrança das suas palavras e do conhecimento que cada um tinha na música que 
ele  próprio  criara,  os  Ainur  sabem  muito  do  que  foi,  do  que  é  e  do  que  será,  e  deixam  de  ver  poucas 
coisas. Mas algumas coisas há que eles não conseguem ver, nem sozinhos nem reunidos em conselho; 
pois a ninguém a não ser a si mesmo Ilúvatar revelou tudo o que tem guardado; e em cada Era surgem 
novidades que não haviam sido previstas, pois não derivam do seu passado...” 
 
E  Alado  viu  que,  apesar  de  ter  encarnado  no  mundo  os  planos  do  seu  coração,  o  seu  trabalho  ainda 
estava inacabado. E os Ainur surpreenderam‐se ao verem que chegaram ao mundo novas criaturas, que 
não estavam nos seus pensamentos. “...E perceberam que eles próprios, na elaboração da sua música, 
estavam  ocupados  na  construção  da  sua  morada,  sem  saber,  no  entanto,  que  ela  tinha  outro  objetivo 
além da própria beleza. Pois os Filhos de Ilúvatar foram concebidos somente por ele; eles não estavam 
no tema que Ilúvatar propusera no início, e nenhum dos Ainur participou da sua criação...” 
 
Então os Ainur viram a chegada dos Elfos, o Primeiro Povo; e os amaram, pois podiam os compreender. 
Por isso pensavam pouco sobre os Sucessores ‐ os Homens. 
 
“Ora, os Filhos de Ilúvatar são Elfos e os Homens, os Primogênitos e os Sucessores. Em meio a todos os 
esplendores  do  Mundo,  seus  vastos  palácios  e  espaços  e  seus  círculos  de  fogo,  Ilúvatar  escolheu  um 
local para habitarem nas Profundezas do Tempo e no meio das estrelas incontáveis...” 
 
Mas Melkor olhava para os homens e via que eles são a encarnação dos seus planos, estranhos e livres, 
diferentes  dos  Ainur  e  dos  Primogênitos.  E  eles  receberam  dádivas  incompreensíveis  aos  Ainur: 
liberdade  e  direito  de  escolha.  Eles  poderiam  mudar  não  somente  o  próprio destino,  mas  também  os 
destinos do Mundo, e não obedeceriam nem aos Poderes de Arda, nem mesmo ao Único. E, ao morrer, 
eles  partiam  por  caminhos  desconhecidos,  pra  além  do  limiar  de  Arda,  por  isso  os  chamam  de 
Visitantes ou Forasteiros. 
 
Nem  Ainur,  nem  Eru  conheciam  a  essência  ou  sentido  dessas  dádivas,  pois  estas  eram  dádivas  de 
Melkor. Mas depois os Ainur chamaram a Morte de a Dádiva do Único, pois esta era verdadeiramente 
grandiosa e incompreensível a eles... 
 
E os mais poderosos dos Ainur inclinaram seus pensamentos àquele mundo que viam, e Melkor foi o 
primeiro deles. Mas assim se dizia depois: 
 
“...Desejava submeter à sua vontade tanto Elfos quanto Homens, por invejar‐lhes os dons que Ilúvatar 
prometera  conceder‐lhes;  e  Melkor  desejava  ter  seus  próprios  súditos  e  criados,  ser  chamado  de 
Senhor e ter comando sobre a vontade dos outros...” 
 
Os Ainur olhavam com surpresa e alegria para o mundo novo; e naquele tempo Ilúvatar o chamou de 
Pequeno Reino, Arda. As antigas palavras do Escuro, palavras de Ëa eram a língua de Eru e Ainur, pois 
Ilúvatar  desconhecia  outras  palavras.  Mas,  tal  como  a  não‐Luz  ofusca  os  outros  fogos  e  expulsa  o 
Escuro, assim Eru tornou obscuro o sentido da língua de Ëa, e o significado das palavras foi perdido e 
trocado, esquecido e reinventado. Por isso não são muitos os que sabem e lembram que o nome dado 
ao mundo era, na língua de Ëa, Arta, Terra. 
 
Coisas distintas atraíam os espíritos dos Ainur no novo mundo. E a água, que se chama Esse na língua 
do Escuro, era mais próxima ao Ainu Ulmo. E, ao ver isso, assim pensava Melkor: 
 
 “A  água corrente  leva  a  tristeza,  o  marulho  traz  visões,  a  água  da  fonte  cura  as feridas  da  alma...  Em 
verdade,  bela  é  a  água...  E  a  aliança  da  água  e  do  gelo  criará  o  novo  e  o  belo...  Veja,  meu  irmão,  os 
castelos de gelo, como se fossem fundidos da luz das estrelas; ouça ‐ e ouvirá os galhos congelados das 
árvores tinirem no vento, ouvirá flores gélidas se abrirem – inalcançáveis, como vagos sonhos tristes; e 

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o mais leve toque da respiração morna os faz desaparecer. E o manto de estrelas de neve cobrirá a terra 
no frio, para aquecer os brotos das ervas e das flores, que deverão desabrochar na primavera... Você vê 
tudo isso, meu irmão? Que sejamos aliados nos nossos trabalhos, e que o mundo se embeleze com as 
nossas criações!” 
 
Mas Ilúvatar começou a falar, e disse a Ulmo: 
 
‐ Não vê como aqui neste pequeno reino, nas Profundezas do Tempo, Melkor atacou sua província? Ele 
ocupou o pensamento com um frio severo e implacável, mas não destruiu a beleza das suas fontes, nem 
de seus lagos cristalinos. Contempla a neve, e o belo trabalho da geada!.. 
 
E Melkor pensava:  
 
 “Maravilhosas  coisas  novas  serão  criadas  pela  união  do  fogo  e  da  água.  E  haverá  no  mundo  nuvens, 
semelhantes a castelos de ar, sempre mundanas e inalcançáveis; e aqueles que virão ao mundo verão 
nelas  os  ecos  dos  pensamentos  e  sonhos  deles,  e  as  chamarão  de  Canto  do  Céu.  Sobre  as  lagoas 
noturnas  nascerão  neblinas,  vagas  e  movediças  como  miragens,  como  sonhos  semi‐esquecidos...  E  as 
chuvas lavarão a terra, acordando para a vida os vivos. Que seja sólida a nossa união, que se embeleze o 
mundo com as nossas criações, que ele se torne a pérola de Ëa!” 
 
E Alado sorriu. 
 
Mas falou Ilúvatar assim: 
 
‐  Melkor  criou  calores  e  fogo  sem  limites,  e  não  conseguiu  secar  seu  desejo  nem  sufocar  de  todo  a 
música dos mares. Admira então a altura e a glória das nuvens, e das névoas em permanente mutação; e 
ouve a chuva a cair sobre a terra! E nessas nuvens, você é levado mais para perto de Manwë, seu amigo, 
a quem ama. 
 
E assim pensou Ulmo: 
 
“Quão cruel é Melkor, se desejou matar a música da água! Em verdade, não é ele um criador, mas um 
destruidor; e prevejo eu que ele se tornará um inimigo a nos”. 
 
E na mesma hora Ulmo desviou o seu espírito de Melkor. E assim respondeu ao Único: 
 
‐  Na  verdade,  a  Água  tornou‐se  agora  mais  bela  do  que  o  meu  coração  imaginava.  Meu  secreto 
pensamento não havia concebido o floco de neve, nem em toda a minha música estava contida a queda 
da chuva. Procurarei Manwë para que ele e eu possamos criar melodias eternamente para seu prazer! 
 
E quando o Alado ouviu isso, o seu sorriso tornou‐se triste, pois ele compreendeu os desejos de Ilúvatar 
e os pensamentos de Ulmo. 
 
Mas enquanto Ulmo falava, a visão apagou‐se, e assim foi porque Ilúvatar interrompeu a Música.  
 
Então houve inquietação entre os Ainur, mas Ilúvatar os chamou e disse: 
 
‐  Conheço  o  desejo  em  suas  mentes  de  que  aquilo  que  viram  venha  na  verdade  a  ser,  não  apenas  no 
pensamento, mas como vocês são e, no entanto, diferente. Logo, eu digo: Ëa! Que as coisas Existam! E 
mandarei  para  o  meio  do  Vazio  a  Chama  Imperecível;  e  ela  estará  no  coração  do  Mundo,  e  o  Mundo 
Existirá; e aqueles de vocês que quiserem, poderão descer e entrar nele. 
 
Assim, pelo nome do universo ‐ Ëa ‐ foi chamado o mundo, e de agora em diante esta palavra significava 
o Mundo que É na língua dos Fiéis. 
 

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E  o  primeiro  daqueles  que  escolheram  o  caminho  dos  Valar,  Poderes  de  Arda,  foi  Melkor,  o  mais 
poderoso deles. Então assim falou Ilúvatar: 
 
‐  Agora  o  seu  poder  será  restrito  pelos  limites  de  Arda,  enquanto  esse  mundo  não  ficar  finalizado 
inteiramente.  E  que  seja  assim:  de  agora  em  diante  vocês  serão  a  vida  deste  mundo,  e  ele  será  a  sua 
vida.  
 
E  diziam  depois  os  Valar:  assim  é  a  necessidade  do  amor  deles  ao  mundo,  que  eles  não  poderão 
abandonar os seus limites. 
 
Mas, ao olhar para Alado, Ilúvatar pensava assim: “Nunca mais você perturbará a Minha tranqüilidade, 
e  nunca  vencerá  ‐  um  contra  todos  neste  mundo!  Que  seja  a  Minha  vontade,  e  que  você  esteja  para 
sempre preso a ele pela Minha ordem”. 
 
E Ilúvatar somente atirou ao Alado, em despedida: 
 
‐ Você vê demais! 
 
Mas o Alado nada lhe respondeu e partiu. E treze Ainur o seguiram. 
 
E depois, vendo que Melkor não se resignou à vontade dele, Ilúvatar enviou a Arda o décimo quinto ‐ 
Vala Tulkas, chamado de Ira de Eru, para que ele combata ao renegado. 
 
...E  ele  viu  o  mundo,  e  pareceu‐lhe  ‐  este  é  o  coração  de  Ëa;  uma  onda  de  carinho  e  de  uma  tristeza 
incompreensível tomou conta da sua alma. E Alado estava feliz ‐ mas a felicidade misturava‐se à dor; e 
ele sorria, mas lágrimas estavam em seus olhos. Então ele estendeu as mãos ‐ e o coração de Ëa deitou 
nas suas palmas como uma estrela trêmula, e o seu nome era Kor, o que significa ‐ Mundo. E Alado riu 
feliz, alegrando‐se com o jovem, belo e indefeso mundo. 
 
...Parecia  que  aqui  não  há  nada  além  das  nuvens  de  vapor  escuro  e  chamas  furiosas.  Somente 
relâmpagos  branco‐azulados  flagelam  o  caos  de  nuvens,  acertam  o  mar  de  fogo  escuro.  E  é  quase 
impossível  adivinhar  como  será  este  jovem  mundo  em  fúria.  É  por  isso  que  os  outros  Valar  receiam 
entrar  nele:  a  fúria  dos  elementos  é  diferente  demais  daquilo  que  foi  revelado  para  eles  na  Visão  do 
Mundo. 
 
Ele  alegrava‐se,  sentindo  o  poder  do  mundo  que  despertava.  E  não  é  isso  uma  alegria  ‐  olhar  para  o 
rostinho  do  recém‐nascido,  adivinhar  como  ele  será?  Não  é  alegria  ‐  quando  sinais  desconhecidos  de 
fogo ganham para você um significado, juntando‐se em palavras de sabedoria? Não é alegria ‐ sentir a 
melodia  que  nasce  do  caos  de  sons?  Milhares  de  melodias,  milhares  de  temas  se  transformarão  em 
música, atados somente pelo ritmo comum. Milhares de temas, milhares de caminhos, e não é ele que 
decidirá agora como será o caminho do mundo, como será a face dele. Somente ouvir. Só se tornando 
uma coisa só com este mundo é possível compreendê‐lo. 
 
Ele  era  o  coração  ardente  do  mundo,  ele  era  as  montanhas  que  se  elevavam  em  direção  ao  céu  em 
colunas de fogo, ele era o pesado manto das nuvens e deslumbrantes traços dos relâmpagos, ele era o 
veloz  vento  negro...  Ele  ouvia  o  mundo,  ele  era  o  mundo,  uma  nova  melodia  que  se  enlaça  ao  eterno 
Canto de Ëa. 
 
Por alguma razão ele não temia perder a si dissolvendo‐se nas chamas do mundo. O coração dele batia 
forte  e  ritmicamente,  e  de  repente  ele  percebeu  ‐  aqui  está  aquele  pilar  que  ajudará  o  mundo  a 
encontrar a si mesmo. Se alguém o visse ele agora, o consideraria um deus ‐ terrível, grandioso e belo. 
Lentamente  acalma‐se  a  fúria  dos  elementos,  e  ele  já  está  no  topo  de  uma  montanha,  com  vestes  de 
chamas escuras, com asas de fogo nas costas ‐ como a alma do mundo encarnada: coroa de relâmpagos 
está sobre a sua cabeça, e o vento negro são os seus cabelos. Ele ergue os braços ao céu, e de repente 

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surge um silêncio ensurdecedor: rasga‐se a densa camada de nuvens, e sobre a cabeça dele acende‐se a 
Estrela. E soa a Música, e com uma amargura clara a ela se enlaça a voz da Estrela... 
 
De agora em diante será assim para sempre: para ele não há vida sem o mundo, e não há vida para o 
mundo sem ele. 
 
Arda, Reino. Arta, Terra. Kor, Mundo. 
 
“Eu dou a você um nome, coração de fogo. E chamo você ‐ Arta; e enquanto soa o seu canto em Ëa, você 
se chamará assim“. 

O Livro Negro de Arda  Página 21 
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ASSIM ESTÁ ESCRITO NAS CRÔNICAS DOS FIÉIS 
 
 
“No início era a palavra; e a palavra pertencia ao Criador... 
 
E disse ele: “Ëa! Que as coisas existam!” E surgiu o mundo. E o Único criou o céu e a terra, mas a terra 
estava  deserta  e  vazia,  e  sombras  pairavam  sobre  o  abismo.  Então  ele  enviou  para  aquela  terra  os 
Ainur, e disse‐lhes: “Preparem esta terra para a vinda dos meus Filhos”. Mas junto a eles, também foi a 
Arda o Inimigo do Mundo, Senhor do Escuro, pois ele desejou que Arda se tornasse seu domínio. E ele 
travou guerras com os Poderes de Arda, e a terra não conhecia paz. 
 
Ele era, no início, o mais poderoso entre os Ainur, e o seu nome era Melkor, Aquele que se ergue em 
Poder. Mas ele perdeu o direito de ser nomeado assim, e o seu nome não é mais pronunciado em Arda. 
Ele voltou o seu coração para o mal, e Noldor, os que sofreram mais do que outros com a sua maldade, 
chamaram‐no de Morgoth ‐ o Inimigo Escuro. 
 
E ele pensava, insignificante, que o pensamento de Ilúvatar, o Criador de Tudo o que Existe, abandonou 
o mundo, e que não haverá retribuição para os feitos malignos dele. Mas não era assim, pois o espírito 
do Único pairava sobre o mundo e nada estava oculto dos olhos de Ilúvatar. Por isso, preocupado com o 
destino  de  Arda,  Único  enviou  ao  mundo  um  poderoso  Ainu,  em  auxílio  aos  outros.  O  nome  dele  era 
Tulkas, e os Grandes chamaram‐no de Ira de Eru. E pela ordem do Rei do Mundo, Vala Manwë, Tulkas 
confrontou o Inimigo e o derrotou, e o Inimigo foi expulso do mundo e permaneceu no Vazio por muito 
tempo, não se atrevendo a retornar. 
 
E hoje, em glória ao sábio Manwë, cujo rosto brilha com a luz da benevolência do Único, nos chamamos 
o primeiro dia do Mundo de Dia de Manwë, o dia em que o Escuro foi expulso do mundo. 
 
E Ulmo ‐ Senhor das Águas, criou os mares e os oceanos, e domou a selvageria das águas de Arda. É o 
nome dele que o segundo dia da Criação leva. Aulë, o Grande Ferreiro, domou o corpo de Arda, e criou 
montanhas e vales, e confinou as chamas que queimavam o mundo sob a terra. Aquele era o terceiro 
dia, e ele leva o nome de Aulë. Yavanna, esposa de Aulë, plantou as sementes das ervas e das plantas, 
para que florestas crescessem em Arda – alegria para os olhos do Criador. E era o dia de Yavanna ‐ o 
quarto dia. E Aulë forjou as Lâmpadas dos Valar, e a Varda, Senhora das Estrelas, as preencheu com Luz. 
E  o  quinto  dia  recebeu  o  nome  de  Varda,  Aquela  que  traz  a  Luz.  E  árvores  se  ergueram  em  Arda,  e 
acordaram  ervas  e  flores.  Então  Oromë,  o  Caçador,  levou  para  o  mundo  os  animais,  e  eles  vagavam 
pelos vales e sob as cúpulas das florestas. E o sexto dia da Criação foi chamado de dia de Oromë. 
 
Assim foram feitos a terra e o céu e todo o seu exército. 
 
E os Valar olharam para o mundo e viram que isso era bom. 
 
E até o sétimo dia, eles concluíram todos os trabalhos que eles estavam fazendo; e admiraram a beleza 
do  mundo,  e  seus  corações  se  alegraram.  E  o  Único  estava  bastante  contente.  E  no  sétimo  dia,  então, 
Manwë convocou os Valar para um grande festejo na ilha de Almaren, e os Poderes descansaram dos 
seus trabalhos”. 

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MEDO. O INÍCIO DOS TEMPOS 
 
 
Naquele  tempo,  eles  não  eram  inimigos  ‐  não  existia  nem  a  própria  palavra  “inimigo”.  O  mundo  era 
jovem, e não havia alegria maior para os jovens Valar do que criar o novo. 
 
...Aulë estava de pé, fitando o fogo; perante seus olhos, erguiam‐se visões ainda vagas de um novo plano. 
Vala Escuro aproximou‐se silenciosamente e ficou ao seu lado. 
 
‐ A chama está dançando... 
 
‐ Você... está vendo algo nela? 
 
‐ Sim. Olha ‐ a lava rachada lembra escamas, negras e douradas e vermelhas, e as chamas ‐ asas... 
 
‐ Como você adivinhou? ‐ Aulë alegrou‐se. ‐ Ah sim, claro! Sabe, eu só agora entendi até o fim, eu agora 
mesmo estava pensando sobre isso! Mas será que o vivo pode viver no fogo?.. 
 
‐ Tente... 
 
O mais velho dos Ainur traçava, pensativo, uns símbolos estranhos no ar. 
 
‐ O que é isso? ‐ interessou‐se Aulë. 
 
‐ A dança das chamas. Você também achou que isso lembra escritas ou runas? 
 
‐ Que?.. 
 
‐ Sinais, para anotar palavras, pensamentos, formas... 
 
‐ Para quê? 
 
‐ Para, ao mudar, não perder uma parte da sabedoria. Nem todos entre aqueles que ainda chegarão ao 
mundo serão iguais aos Ainur. Será útil para eles. Isso será chamado – Cyat‐er. Ou – Cyertar. Mas me 
perdoe, irmão, eu vejo surgiu um plano em seu espírito. Eu o deixarei... 
 
...Ele  criou  do  fogo,  cobre  e  ouro  enegrecido  o  flexível  corpo  escamoso  da  salamandra,  as  asas  –  de 
chamas,  os  grandes  olhos  alongados  ‐  de  gotas  de  obsidiana.  A  criatura  negra‐dourada‐vermelha 
escorregou  da  sua  palma  para  o  redemoinho  do  fogo,  e  Aulë  ficou  petrificado  de  surpresa:  a  criatura 
dançava, e na dança do fogo ele adivinhava os mesmos sinais que Melkor havia traçado. A base da dança 
era a runa Llah ‐ o Fogo da Terra, e ele pensou que aquela‐que‐dança‐no‐fogo deveria se chamar assim 
mesmo ‐ Llah. 
 
Aulë sorria feliz, olhando para a nova criatura, imaginando como Melkor ficará surpreso e alegre ‐ ele 
sabia se  alegrar  surpreendentemente  com  as criações  dos  outros...  O  sorriso  continuou  assim mesmo 
em  seu  rosto,  abrindo‐se  em  dentes  raivosamente  arreganhados,  quando  algo  ardente,  semelhante  a 
um aro de metal em brasa invisível, apertou a sua cabaça. Círculos rubros e negros começaram a dançar 
nos  seus  olhos  e,  com  um  gemido,  ele  desmoronou  lentamente,  murmurando  sem  voz  ‐  por  que,  por 
que, por que... 
 
“Isso não estava no Plano”. 
 
Ele não ouviu mais nada. 
 
‐ ...Aulë... Meu irmão! O que houve... Acorde... O que houve com você?! 

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Olhos cor  de cobre  escuro com  minúsculos pontos  negros das  pupilas.  Que  nada reconheciam. Cegos. 
Mortos. 
 
Ele ergueu Aulë do chão ‐ o corpo do Ferreiro pendia molemente nos seus braços, ‐ sacudiu‐o, olhou nos 
olhos, repetindo como a um feitiço ‐ acorde... 
 
Devagar, muito devagar, o olhar de Aulë começou a adquirir algum sentido, mas agora nos seus olhos 
havia uma expressão nova ‐ o medo, o horror insano que a tudo devora. 
 
‐ O que aconteceu com você? Está sentindo alguma dor? 
 
‐ Dor... ‐ por letras, num ritmo sem sentido. ‐ Então, isso é que é dor. Eu não agüento mais assim. Não 
agüento. 
 
Ele repetia essas palavras infinitamente ‐ uma firme voz morta, balançando devagar de um lado para o 
outro. E Melkor começou a entender o que havia acontecido. 
 
‐ Isso... foi por causa do seu plano? 
 
As mãos de Aulë estremeceram: 
 
‐ Não havia isso no Plano. Isso não deve existir. 
 
‐ Irmão!.. 
 
Melkor novamente sacudiu‐o com força pelos ombros. Aparentemente, funcionou; Aulë agitou a cabeça 
desesperadamente ‐ e de repente começou a sussurrar de um modo confuso, com ardor: 
 
‐  Não  posso  ver  isso,  dói...  Não  quero  matar...  Porque  isso  está  vivo  ‐  eu  imploro,  faça  alguma  coisa, 
porque me obrigarão a destruir ‐ isso não deve existir, mas eu não quero, não posso... 
 
‐ Venha comigo. Verá, me bastarão poderes para protegê‐lo. 
 
‐ Não, não adiantará, nada mais adiantará... Eu não quero, que ‐ de novo, que fique assim ‐ com você... 
 
Melkor encolheu os ombros, mas permaneceu calado. 
 
‐ Não, é que você não faz idéia de como isso dói... Acredite‐me... Sei, você é forte, você sabe e pode mais 
que todos nos juntos... 
 
Vala Escuro reparou consigo mesmo nesse: “você” e “todos nos”. 
 
‐ ...mas ele é mais forte, ele o vencerá... Eu peço, Melkor, meu irmão ‐ resigne‐se... ‐ a cada palavra, aquilo 
ficava  mais  nítido  nos  olhos  de  Aulë  –  aquele,  recente,  insuportável  horror,  ele  falava  cada  vez  mais 
rápido, afogando‐se nas palavras. ‐ Ou ‐ vá, esconda‐se, proteja‐se ‐ compreenda, todos, todos estarão 
contra você, todos, até eu ‐ sim, sim, e eu também, porque eu não suportarei, não conseguirei ‐ contra 
todos, mesmo que você amaldiçoe, mesmo que despreze, mas eu tenho medo, eu sei que isso é o medo, 
eu sei, sei, eu entendo tudo, mas ‐ ficarei com eles... Sei ‐ você não perdoará, já não importa, não há eu, 
compreenda, não, isso é somente uma casca, mas dentro dela ‐ nada, além do medo – não há nada; você 
não  entenderá,  você  não  sabe  o  que  é  isso...  E  depois,  algum  dia,  as  suas  forças  não  serão  mais 
suficientes, então se apresse para criar, você de qualquer jeito não sabe fazer de outra forma, porque de 
qualquer jeito esse castigo o alcançará, você será destruído, mas não importa ‐ enquanto pode... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 24 
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Ele  parou  de  repente,  um  gemido  soltou‐se  dos  lábios  esbranquiçados  –  ele  caiu  no  chão,  o  corpo 
contorcendo‐se, agitou‐se brevemente e ficou imóvel. 
 
Isso  era  um  sentimento  novo  ‐  como  uma  onda  de  fogo  negro:  a  ira.  Melkor  ergueu‐se,  cerrando  os 
punhos, endireitou‐se e, jogando a cabeça para traz, gritou: 
 
‐ Você... Único! Deixe‐o! É fácil dominar aquele que é mais fraco; mas você tente ‐ comigo! 
 
E ele ouviu palavras vindas do nada, do vazio morto e gelado: 
 
“Você disse”. 
 
Ele esperou um golpe, uma dor ‐ não havia nada. Lançando um breve olhar para o céu, ele ajoelhou‐se 
ao lado do corpo estendido no chão, colocou a mão sobre a fronte de Aulë e ficou imóvel... 
 
‐ ...Venha aqui, pequena, ‐ baixo e triste, estendendo a mão através das chamas. – Olha só como tudo se 
deu... 
 
A pequena salamandra de fogo voou para a sua palma, dobrou as asas e enrolou‐se – pequeno coágulo 
de lava fria, só os olhos escuros olham com tristeza e culpa. 
 
‐ Vai viver comigo, fazer o quê... Só que seria melhor se ele também fosse embora conosco, o que você 
acha? 
 
A salamandra mexeu‐se e piscou. 
 
‐ Talvez, ele ainda junte coragem... 

O Livro Negro de Arda  Página 25 
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SOBRE AULË E YAVANNA. O COMEÇO DOS TEMPOS 

 
‐ Ouça, será que você nunca teve vontade de criar algo seu, totalmente novo? 
 
As pupilas de Yavanna dilataram‐se: 
 
‐  Para  quê?  Como  pode  ser  possível  criar  algo  mais  belo  do  que  o  pensado  pelo  Único?  E  não  é  a 
felicidade suprema ‐ realizar a vontade Dele, personificar os planos Dele? 
 
‐ Mas não é interessante criar um animal alado ou uma criatura que poderá viver e na água, e na terra? 
 
‐ Para quê? Pois isso significa ‐ desobedecer ao Plano da Criação. 
 
‐  Mas  nos  também  fomos  criados  pelo  Ilúvatar;  e  significa  que  não  podemos  criar  nada  contrário  à 
vontade dele. 
 
Yavanna  falava  em  tom  de  sermão,  como  se  explicasse  algo  a  um  Maia‐aprendiz  incapaz  de 
compreender: 
 
‐ Os animais devem viver na terra, ser quadrúpedes e cobertos por pêlos. No ar, vivem os pássaros, na 
água ‐ os peixes, cobertos por escamas. Assim foi o Plano. Poderia isso ser de outra maneira? 
 
‐ Claro! Vamos, eu lhe mostrarei! 
 
“Isso não é bonito?” ‐ perguntava Melkor. Yavanna acenava com a cabeça meio incerta, mas a sua fronte 
ficava cada vez mais sombria e, finalmente, ela disse, franzindo a testa: 
 
‐ Isso não deve existir. Nos podemos somente realizar a vontade do Único; mas algo assim a contradiz. 
Nos somos uma ferramenta nas mãos Dele, e nenhum de nos pode compreender toda a profundidade 
dos planos Dele. 
 
‐ Veja, é você mesma que fala... pode ser que essa parte da Visão não é conhecida por você. 
 
‐ Não. Todos os kelvar e olvar deverão ser minhas criações. A ninguém de nos foi dado intrometer‐se 
naquilo  que  os  outros fazem.  Você,  digamos: foi  dado  a  você  o poder  sobre  o  fogo  e  o gelo.  Você  não 
deve  criar  o  vivo.  Fazendo  isso,  você  desobedece  à  vontade  do  Único.  Caia  em  si,  ‐  disse  Yavanna 
suavemente. ‐ Compreenda, aquilo que você faz é um pecado. Desista. Não há nada acima da vontade do 
Único. 
 
‐ ...Veja. 
 
Aulë encolheu os ombros: 
 
‐ São pedras ordinárias, nada de especial... 
 
‐ Ouça atentamente, ‐ Melkor sorriu. 
 
Depois de um breve silêncio Aulë perguntou, surpreso: 
 
‐ O que é isso? Canto... ou música... não entendo. De onde? 
 
‐ Este é o Canto da Rocha. Você gosta? 
 
O Ferreiro olhou para o Alado de forma um tanto estranha: 

O Livro Negro de Arda  Página 26 
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‐ Tal coisa não estava no Plano de Eru. 
 
‐ Agora estará. Você não quer mesmo que seja assim? Isso não é bonito? 
 
Algo incompreensível acontecia com o rosto de Aulë. Estava rígido como uma máscara, mas de tempos 
em tempos contorcia‐se levemente, e a voz estava rouca quando ele disse: 
 
‐ Ninguém se atreve a mudar o Plano da Criação! 
 
‐ Mas você sabe que nos mesmos criávamos a Música... 
 
‐ Não! Ela foi gerada pelo pensamento do Único, e ninguém poderá mudá‐la contra a vontade Dele! 
 
‐  Veja  o  que  você  mesmo  diz.  Pois  Eru  queria  que  este  mundo  se  tornasse  belo  ‐  e  não  foi  nos  dado 
embelezá‐lo de acordo com os nossos pensamentos? E o que há de mau nisso, se nos... 
 
‐  Cale‐se!  ‐  gritou  Aulë  com  desespero.  ‐  Será  que  você  ainda  não  entendeu:  tudo  deve  ser  de  acordo 
com a vontade do Único, e não como desejamos nos!.. 
 
Ele parou. 
 
‐ O que? ‐ perguntou Melkor, abalado. ‐ O que você disse? 
 
Aulë olhou‐o apavorado. 
 
‐ Nada... ‐ a voz dele tremia. Ele inspirou convulsivamente e adicionou, nítido e rispidamente: 
 
‐ Nada. Eu. Não. Falei. Você ouviu mal. 
 
‐ Repita! 
 
‐ Não tenho o que repetir! 
 
‐ Não tenha medo. Eu entendo. Eu o ajudarei, prometo. 
 
Melkor quis segurá‐lo Aulë, mas aquele recuou rapidamente, protegendo‐se com o braço como de um 
golpe: 
 
‐ O que você entende? 
 
‐  Sim,  Eru  ainda  tem  forças  para  castigar  aqueles  que  não  o  obedecem.  Eu  sei  o  que  é  isso.  Vença  o 
medo. Eu te ajudarei. Acredite, todos juntos nos somos mais poderosos do que ele. Nos somos livres. E 
ele verá isso. Ele vai entender ‐ deve entender. Não tenha medo. Acredite em si mesmo. ‐ Melkor falava 
suavemente, mas nos olhos escuros de Aulë havia somente horror e desespero. 
 
‐ Vá embora, ‐ respirou ele, por fim. 
 
‐ Venha comigo. Então Eru não poderá atrapalhá‐lo. 
 
O rosto de Aulë alterou‐se dolorosamente: 
 
‐ Vá embora, ‐ pronunciou ele, rouco. ‐ Eu peço. Eu ainda virei, virei, mas vá embora agora. 
 
Melkor meneou a cabeça: 

O Livro Negro de Arda  Página 27 
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‐ Você nunca virá. E quando nos encontrarmos‐nos novamente... 
 
Ele voltou‐se para o outro lado e repetiu surdamente: 
 
‐ Quando nos encontrarmos‐nos novamente... 
 
‐ Vá embora! ‐ gritou Aulë. 
 
Agora  ele  sentava  no  chão,  apertando  a  cabeça  com  as  mãos,  balançando  de  um  lado  para  o  outro. 
Depois se ergueu, e Melkor viu seus olhos vazios. A voz do Ferreiro era monótona e sem vida: 
 
‐ Aquilo que contradiz os Planos do Único não deve existir. 
 
Ele ergueu o braço. 
 
‐ Pare! Se você fizer isso, você nunca mais ouvirá a voz de Arta... Ouça‐me, eu imploro! 
 
“Não dá para fazer nada pela força, impossível... O abuso do poder gera o mal. Ele deve entender!..” 
 
‐  Não  precisa  ter  medo,  está  ouvindo?  Acredite‐me,  ninguém  pode  nos  proibir  de  criar.  Mas  se  você 
começar a destruir, justificando isso com o “assim mandou Eru”, a fronteira entre o bem e o mal deixará 
de  existir  para  você.  Sobrará  somente  a  vontade  de  Eru,  e  você  realmente  se  transformará  numa 
ferramenta cega na mão Dele... E você deixará de ser um Criador! ‐ expirou Melkor furiosamente. 
 
‐ Cale‐se... eu não devo escutá‐lo! Vá embora! Está me ouvindo, vá embora! 
 
...O fogo irrompeu das rachaduras da terra, e em alguns minutos no lugar do vale havia somente uma 
lagoa  de  chamas  ‐  como  uma  ferida  inflamada.  E  pareceu  a  Aulë  –  ele  ouviu  ou  um  suspiro,  ou  um 
gemido da própria terra. 
 
E depois veio o silêncio ensurdecedor. 
 
E o Ferreiro escondeu o rosto nas mãos, sem forças para suportar o olhar de Melkor, porque nos olhos 
do Alado não havia nada além de dor e compaixão. 
 
... E mesmo assim, ele existe em algum lugar ‐ o vale da Rocha Cantante. Os homens do Oriente contam 
sobre ele, e havia Elfos que o viram e ouviram o Canto da Rocha. Se bem que as lendas dos Elfos não 
falam sobre isso. Mas o eco da memória vive no nome do reino élfico de Gondolin ‐ Terra das Rochas 
Cantantes... 
 
...Mas mesmo assim, Melkor mais uma vez foi até os Valar. Até a Valië Yavanna. Ela o recebeu receosa. 
 
‐ Ouça‐me, ‐ pediu Melkor. ‐ Vocês querem criar um mundo que desconhece a morte? 
 
‐  Sim.  Pela  vontade  do  Único,  esse  mundo  será  um  jardim  em  flor,  e  belos  animais  vão  vagar  sob  as 
cúpulas das arvores... ‐ sorriu Kementári, sonhadora. 
 
‐  Vamos  supor.  Os  animais,  sem  conhecer  a  morte,  vão  proliferar  e  se  multiplicar,  e  muito  em  breve, 
acredite, os alimentos deixarão de ser suficientes. E então? 
 
Yavanna respirou fundo: 
 
‐ Para isso existe o Grande Caçador Oromë... 

O Livro Negro de Arda  Página 28 
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‐  Certo.  Caça  é  a  alegria  e  diversão  para  ele,  ele  não  conhece  o  cansaço...  Mas  mesmo  assim  ‐  é 
improvável que poderá dar um jeito em todos os animais. E depois ‐ ali, está vendo dois veados? Como 
você acha, o qual deles Oromë vai matar? 
 
‐ Não sei. 
 
‐ Eu te responderei. Aquele que é mais forte e mais rápido: que alegria há em perseguir um animal fraco 
e doente? O fraco deixará descendentes; sobreviverão ‐ os mais fracos dos fracos, e isso é degeneração. 
 
‐ Sim... ‐ pronunciou Yavanna, confusa. 
 
‐ E se tentar de um outro jeito? 
 
‐ Como seria? 
 
A criatura que saiu de traz das arvores por um sinal pouco notável de Melkor movia‐se suavemente e 
silenciosamente, flutuava sobre o solo; somente os músculos rolavam sob o pelo macio, cinza prateado 
com manchas escuras de mármore. Olhos verdes pareciam luzir com luz própria: leopardo das neves. 
 
‐ Bonito? 
 
‐ Sim... Que maravilha... ‐ suspirou maravilhada a Valië. 
 
Melkor sorriu ironicamente: 
 
‐  Só  que  não  é  de  graminha  que  ele  se  alimenta.  Ele  necessita  de  carne  para  sobreviver.  Olha,  que 
caninos! 
 
‐ Que horror, ‐ Yavanna recuou. 
 
‐ Não mais do que as diversões de Oromë. Só que este não vai matar por diversão. Somente o necessário 
para  ele  mesmo  sobreviver.  E  em  primeiro  lugar  ‐  os  fracos  e  os  doentes.  Sobreviverá  aquele,  cujas 
pernas  são  mais  fortes,  cuja  respiração  é  melhor,  cujo  coração  bate  com  mais  ritmo  ‐  para  fugir  da 
perseguição.  Sobreviverá  aquele  que  tem  uma  visão  mais  aguçada,  e  o  ouvido  mais  apurado  ‐  ele 
perceberá o inimigo a tempo. Sobreviverá aquele que tem chifres mais afiados, os cascos mais duros ‐ 
ele  poderá  defender‐se.  E  o  predador  que  não  conseguir  chegar  perto  da  presa  despercebido  ou 
alcançá‐la, não poderá existir. Equilíbrio. 
 
‐ Mas... Isso é cruel! 
 
‐ Falo novamente: não mais que as diversões de Oromë. 
 
‐ E você quer que esses vivam em todos os lugares? 
 
‐ Não. Esses ‐ nas montanhas; nas florestas e nas planícies ‐ totalmente diferentes. 
 
‐ Você... Você é cruel! Sim, sim, cruel! Você quer trazer a morte ao mundo! 
 
‐ A morte e a vida são os dois lados da existência. Morte chegará ao mundo ela mesma. Alias, já chegou. 
E não há nisso nem minha culpa, nem meu mérito. Será que você não vê? 
 
Yavanna ergueu‐se bruscamente: 
 
‐ Cale‐se. Vá embora daqui. Eu não quero ouvi‐lo. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 29 
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Melkor também se levantou: 
 
‐ Eu peço, pense. Ouça... 
 
‐  Eu  lamento  ter  lhe  dado  permissão  para  falar.  Vá  embora!  É  certo  o  que  falam  de  você:  você  é  o 
inimigo, o impiedoso mal cego! 
 
‐ Você mesma verá que eu falei a verdade, ‐ respondeu Melkor surdamente. 
 
‐ Eu não quero ver nada! Vá embora! Vá, está ouvindo?! 

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CRIAÇÕES DA SOLIDÃO. O COMEÇO DOS TEMPOS 

...Os homens não virão até aqui – até a terra noturna das geleiras eternas, o imortal reinado do frio para 
onde  ele  se  retirou,  atormentado  pela  dor  de  Arta.  Mundo  vivo  e  jovem,  que  os  Valar  domavam, 
refazendo‐o  de  acordo  com  a  vontade  e  com  os  planos  de  Eru.  Simplesmente  como  uma  afiada  faca 
corta o corpo de uma criança. Ele tentou falar, não o ouviam. Ele tentou mostrar‐lhes ‐ aqui, vejam, pois 
mundo existe, ele espera somente o toque das suas mãos, vocês estão despedaçando o vivo... Eles não 
viram.  Ele  falava  ‐  vocês  estão  matando  a  sua  música,  porque  esta  música  ‐  é  a  sua  música!  Eles  não 
entendiam. Ele implorava ‐ a quem – a quem ou a que vocês desejam adular? ‐ vocês sacrificam os seus 
planos, o mais sagrado do santuário das suas almas?! Eles viraram‐se contra ele. A guerra, na qual não 
havia vencedores. E ele quase não tinha mais forças. 
 
Também os Valar não virão até aqui ‐ às montanhas na fronteira do reino da noite eterna de inverno. 
Somente a Coroa no céu: sete ‐ fragmentos de gelo, uma ‐ chama clara. 
 
Helgor ‐ Montanhas Geladas. Helgor ‐ gelo amargo. Helgor, tristeza. 
 
Montanhas  coroadas  por  torres  talhadas  no  gelo  da  noite  eterna.  Somente  mais  tarde  este  primeiro 
refúgio  do  Vala  Escuro  será  chamado  de  Utumno;  agora  ninguém  sabe  sobre  este  lugar,  e  ele  vaga, 
solitário, pelas salas subterrâneas. Novamente ‐ só. 
 
Eles tornaram‐se criações da sua solidão ‐ aqueles a quem os homens do norte mais tarde chamarão de 
Espíritos  do  Gelo.  Ele  deu‐lhes  o  corpo  de  neblina  gélida  e  asas  de  tempestade  de  neve,  vestes  de 
chamas  de  gelo  cintilantes  e  frias  estrelas  dos  olhos,  pureza  cristalina  dos  pensamentos  e  vozes 
semelhantes ao sussurro dos pedacinhos delicados de gelo e ao tinir dos galhos congelados. De alguma 
maneira, eles pareciam humanos, mesmo que a aparência e a essência deles fossem outros. 
 
Se  os  Espíritos  do  Gelo  conhecem  o  amor,  eles  deviam  amavam  o  criador  deles.  Eles  raramente 
apareciam na morada dele ‐ mais freqüentemente ele é que ia até eles, e o estranho mundo cintilante 
que eles criavam e do qual faziam parte presenteava‐o com breves minutos de sossego, e a solidão o 
atormentava menos. 
 
Eles eram sábios e belos. Mas eles não eram humanos. 

O Livro Negro de Arda  Página 31 
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O FERREIRO E O APRENDIZ. O COMEÇO DOS TEMPOS 
 
 
Grande era o poder dos Valar, mas também os imortais podem cansar‐se dos seus trabalhos. Por isso 
assim foi: o Rei do Mundo reuniu os Poderes de Arda e disse a eles: 
 
‐ Tal como o Único criou os Ainur, frutos do pensamento Dele, agora criaremos nos também auxiliares 
para si, e eles serão parte do pensamento dos Grandes. E como Ainur ‐ ferramentas na mão do Único, 
cuja vocação é realizar a vontade Dele, assim eles se tornarão ferramentas em nossas mãos, e ser‐lhes‐á 
dado o nome ‐ Maiar. E eles serão nossos servos e nossos discípulos, povo dos Valar. E que crie cada um 
para  si  Maiar  à  própria  imagem  e  semelhança.  E  Eru  colocou  no  meu  coração  que  este  feito  será  de 
agrado Dele, e Ele dará vida às nossas criações como antes Ele deu a vida aos Ainur. 
 
E foi de acordo com as palavras dele. 
 
 “Vocês serão meus discípulos, mas não meus servos, e serão diferentes de mim ‐ pois para quê criar 
algo à própria semelhança, o próprio reflexo, a própria sombra? A noite de Ëa dar‐lhes‐á a sabedoria, 
Arta ‐ poder, e eu lhes darei a alma. Que os seus corações se abram para o Canto dos Mundos, que seus 
olhos vejam a beleza do Universo. A sua alegria tornar‐se‐á a minha alegria, e sua dor ‐ a minha dor, 
meu discípulos: como poderia ser diferente?..” 
 
O  Maia  mais  velho  abriu  os  olhos  e,  ao  ver  o  rosto  daquele  que  se  inclinava  sobre  ele  ‐  belo,  sábio  e 
inspirado  ‐  sorriu,  estendendo  as  mãos  para  o  Alado,  como  uma  criança.  E  Vala,  sorrindo  também, 
colocou as mãos sobre a fronte e o peito do discípulo. Maia fechou os olhos. 
 
“Parte do meu pensamento, parte da minha força, parte do meu coração ‐ meus discípulos...” 
 
...Uma  onda  atordoante  de  ódio  alheiro  desabou  sobre  ele,  derrubou‐o,  atirou‐o  à  cratera  uivante  do 
vazio veloz, tirando a consciência e as forças. Ele deixou de ver e ouvir, ele perdia a si; ele não lembrava 
nem do que houve com ele, nem de quanto durou este tormento. Somente quando isso tudo acabou, o 
escuro tocou suavemente o rosto febril, e estrelas olharam nos olhos dele... 
 
‐  ...Você  sofreu  mais  do  que  todos  por  causa  do  Inimigo,  Grande  Ferreiro;  que  agora  as  criações  do 
Inimigo tornem‐se seus servos, para o golpearmos com as armas que ele mesmo forjou. Ou talvez, com 
auxílio destas criaturas, nos poderemos penetrar na mente de Melkor, nas profundezas sombrias dos 
planos dele, pois essas criaturas são, em essência, parte da mente dele. 
 
‐ Imensa é a sua sabedoria, Manwë, realmente você é o Rei do Mundo, você, o mais poderoso de nos. 
Que seja assim como você diz. 
 
...As mãos de alguém deitaram sobre os ombros dele. Não aquelas ‐ fortes e carinhosas, apesar dessas 
palmas também irradiarem força. Ele abriu os olhos. E o rosto inclinado sobre ele era outro... 
 
‐ Quem é você? 
 
‐ Eu sou seu criador, senhor e mestre, eu sou Aulë, o Grande Ferreiro, senhor de tudo que é corpo de 
Arda. 
 
‐ E onde está ‐ aquele? 
 
‐ Quem? ‐ o olhar dos olhos escuros de Aulë tornou‐se tenso, quase assustado. 
 
‐ Aquele, de olhos límpidos, alado... Quem era ele? 
 
A voz áspera do Ferreiro arranhava os ouvidos: 

O Livro Negro de Arda  Página 32 
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‐ Isso foi uma visão sua. Alucinação. Você imaginou. Esqueça. 
 
O Maia respirou baixinho. “Alucinação... que pena...” 
 
‐ E eu? Quem eu sou? 
 
‐ Você é um Maia, criação da minha mente. E dar‐lhe‐ei agora um nome ‐ Aulendil, servo de Aulë. Você 
se tornará o meu auxiliar nos meus trabalhos e realizará a vontade o Único e dos Poderes de Arda. 
 
...Irmãos  ‐  mas  quão  diferentes  um  do  outro,  em  espírito  e  corpo...  O  melhor  aluno  ‐  Artano,  o  mais 
habilidoso ‐ Curumo. Um ‐ zombeteiro, audaz, outro ‐ calado, aplicado e esforçado. Um ‐ mestre, outro ‐ 
artesão. O mais velho tem os olhos de Melkor, o espírito de Melkor; o mais novo é quieto, bondoso e 
submisso,  dá  até  tristeza:  mandaria  para  longe,  só  que  não  tem  porquê...  Mas  com  Artano,  o  Ferreiro 
freqüentemente era severo e pouco afável: temia as perguntas estranhas, quase heréticas, do Maia, para 
as  quais  não  se  atrevia  a  buscar  respostas,  as  dúvidas  dele,  a  impetuosidade  dos  pensamentos  e 
decisões...  Gerado  pelas  Chamas,  ele  próprio  também  uma  chama  furiosa  e  desobediente:  Artano 
Aulendil, Artano Aikanaro... E era apavorante pressentir que algum dia a memória adormecida no fundo 
dos  olhos  iguais  a  duas  estrelas  luminosas  acordará.  E  então  ele  partirá  ‐  e  o  castigo  do  Único  o 
alcançará, tal como alcançou o seu criador... 
 
Um  dia,  Artano  trouxe‐lhe  um  punhal  ‐  o  primeiro  objeto  que  fez  sozinho;  e  novamente  o  medo 
despertou na alma do Ferreiro. Seres flexíveis com olhos de fogo se enlaçavam sobre o cabo, lembrando 
dolorosamente aquela, alada, que‐dança‐na‐chama. Aulë via a ofensa amarga nos olhos do discípulo: e 
ele que pensava que o mestre compartilhará a alegria dele, pois é a primeira criação... E ouviu ‐ palavras 
frias e indiferentes. “Será que você compreenderá ‐ não sou eu que falo, é o meu medo, a minha dor... 
Você é querido demais para mim, e eu temo por você...” Não compreendeu. Não quis. E a partir daquela 
hora, era como se uma muralha de isolamento tivesse se erguido entre eles. 
 
O próprio Aulë há muito se conformou com o destino dele; da vida anterior restou somente a amargura, 
saudade abafada. Ele tentava não recordar ‐ e, provavelmente, até conseguiria fazer isso, se não fosse 
Artano... 
 
E o Maia ainda não conseguia esquecer daquele, do primeiro que ele viu ao acordar. À toa ele procurava 
os  traços  do  Alado  nos  rostos  dos  Valar;  e  então  um  pensamento  estranho  brotou  em  seu  espírito  ‐ 
pensamento que lhe pareceu insano. Ele expulsava‐o, mas o pensamento não ia embora; e um dia ele se 
atreveu a fazer a pergunta ao Ferreiro: 
 
‐ Eu ouvi muito sobre o Inimigo, mestre, mas até agora eu não sei quem ele é e que nome leva. Como é a 
aparência dele? Porque ele é hostil aos Grandes? 
 
O medo piscou nos olhos de Aulë ‐ agora o Maia via isso claramente; as palavras soaram decoradas e 
artificiais: 
 
‐ Ele viu, ele, que leva o nome de Melkor ‐ o que se ergue em poder, que Arda está se transformando 
num maravilhoso jardim, deleite para os nossos olhos, pois as tempestades dela foram domadas. E ele 
viu também que os Poderes de Arda adquiriram aparências belas e nobres, semelhantes às das Crianças 
do Único. E a inveja estava no coração dele, e ele também tomou uma forma visível ‐ escura e terrível 
como o espírito dele, pois a raiva ardia dentro dele. Assim ele entrou em Arda, ultrapassando em força e 
grandeza  os  outros  Valar;  mas  a  destruição  é  a  força  dele,  o  mal  ‐  o  poder,  e  na  grandeza  dele  há 
somente horror. Ele se assemelhava a uma montanha cujo pico está acima das nuvens, com um manto 
de gelo e coroa de chamas, e o olhar dele queimava como fogo e era penetrante como frio. No passado, 
grandes dádivas de  poder  e  de sabedoria  foram dadas a  ele,  mas ele  se atreveu a se  rebelar  contra o 
Único. Inveja e ódio secaram a alma dele, e agora ele não pode criar mais nada ‐ além de zombarias com 
as criações dos outros. Por isso, a alegria dele está na destruição, e é por isso que o nome dele não se 
enumera mais entre os nomes dos Valar. 

O Livro Negro de Arda  Página 33 
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Artano pensou por muito tempo, e em seguida perguntou novamente: 
 
‐ Mestre, responda, de onde há nele a raiva e o ódio? Você mesmo dizia que todos os Ainur são criações 
da mente do Único; e não há nada nos planos deles que não tenha Nele o seu início. Mas isso significa 
que o mal também fazia parte da mente de Eru... 
 
Aulë ficou boquiaberto. 
 
‐ ...E conte‐me, o que é que ele invejou ‐ o mais poderoso entre os Ainur, que tinha parte nos dons de 
todos os seus irmãos? 
 
O Ferreiro finalmente recuperou a fala: 
 
‐  Como  você  se  atreve  a  pensar  algo  assim!  Como  você  se  atreve  a  insultar  o  Criador  de  Tudo  o  que 
Existe! Ou você pensou, besta insignificante, servo indigno dos Grandes, que pode compreender toda a 
profundidade dos planos do Criador do Mundo?! 
 
Maia  recuou  um  passo  involuntariamente  ‐  tão  inesperado  foi  este  acesso.  A  voz  do  Ferreiro  soava 
irada, mas os olhos imploravam – cale‐se, cale‐se... 
 
‐ Mas, Mestre, eu... 
 
‐ Saia da minha frente! 
 
O Maia se retirou, sem saber o que pensar; tanto essa ira demonstrativa, quanto o medo oculto eram 
igualmente incompreensíveis para ele. Ele entendeu: nem todo o pensamento pode ser pronunciado em 
voz alta, nem toda pergunta pode ser feita ‐ até para o mestre; e nem para todas as perguntas o mestre 
conhece a resposta. 
 
E quando Artano retornou, Aulë perguntou a ele: 
 
‐ Você arrependeu‐se das suas palavras? 
 
E, novamente, o Maia imaginou notar nos olhos do Ferreiro ‐ a súplica; e cedendo à súbita compaixão, 
ele respondeu, baixando os olhos: 
 
‐ Sim, ‐ e adicionou, ‐ senhor. 
 
Senhor. Não mais mestre. “Está tudo certo ‐ o que pode ensinar um covarde?” ‐ com tristeza pensou o 
Vala, mas falou em voz alta uma outra coisa: 
 
‐ Você expulsou os pensamentos rebeldes do seu espírito? 
 
‐ Sim, senhor, ‐ sem levantar os olhos respondeu o Maia. 
 
E o Ferreiro acreditou. Era apavorante demais ‐ não acreditar. 
 
‐ ...O você está fazendo, Grande Ferreiro? Para que servirão estes cálices enormes? 
 
‐ Assim disseram os Valar: que seja expulso do mundo o Escuro, que reine ali a Luz eterna. Por isso nos 
ergueremos as Lâmpadas no norte e no sul. 
 
‐  Porque  você  não  chamou  nenhum  de  nos,  seus  discípulos,  para  que  nos  o  auxiliássemos  em  seus 
trabalhos? 

O Livro Negro de Arda  Página 34 
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‐ Vocês ainda não compreenderam o suficiente a profundidade dos planos de Eru. Este é um feito para 
mim, os seus poderes não bastam. 
 
‐ Senhor, você disse ‐ Luz... O que é isso? 
 
‐ Luz destrói o Escuro ‐ o Mal: Luz é a vida, como o Escuro é a morte. Eru nos ordenou destruir o Escuro, 
para dar vida ao mundo. Como aquele que criou o Escuro foi expulso para lá dos limites de Arda, assim 
agora expulsaremos também o próprio Escuro, e haverá o dia eterno. 
 
‐ ...Veja quão belas são as Lâmpadas! 
 
‐ Senhor, diga... Isso que é Luz? 
 
‐ Sim, e porque você pergunta? 
 
O próprio Artano não sabia porque duvidou das palavras de Aulë, mas não queria falar sobre as suas 
dúvidas. Ele desviou o olhar: 
 
‐ Desculpe, senhor... Mas é que eu nunca vi a Luz... 
 
‐ Sim, isso é a Luz. E agora você verá em toda a grandeza os Planos do Único! 

O Livro Negro de Arda  Página 35 
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A PRIMAVERA DE ARDA. AS ERAS DAS LÂMPADAS 
 
 
Melkor ainda não recobrou as forças depois da luta com o Único e com os Valar. Ele agora permanecia 
além dos limites do mundo, e por um tempo os Valar obtiveram o domínio pleno sobre Arda. 
 
E era noite, mas eles não viram nem a Lua nem as estrelas. 
 
E era dia, mas eles não viram o Sol. 
 
Parecia‐lhes que o escuro os rodeia; pois pela vontade do Único seus olhos foram desviados até chegar 
a hora. 
 
Foi então que Aulë, o Grande Ferreiro, criou aquilo que Valar chamaram de Colunas da Luz. Cálices de 
ouro foram colocados sobre elas, e Varda os encheu de não‐Escuro, e Manwë os abençoou. E os Valar 
ergueram  estas  Lâmpadas:  Illuin  ‐  no  norte  e  Ormal  ‐  no  sul.  Criadas  do  Vazio  e  do  não‐Escuro,  elas 
fecharam na casca do Vazio uma parte de Ëa ‐ Arda. 
 
Naquele tempo, germinaram todas aquelas sementes que Valië Yavanna havia plantado na Terra‐Média, 
e plantas incontáveis cresceram, grandes e pequenas: musgos e liquens, e ervas, e samambaias imensas, 
e árvores ‐ como montanhas vivas, cujos topos alcançavam as nuvens, cujas bases estavam envoltas em 
penumbra verde; e flores coloridas e suculentas com pétalas carnudas saturadas de seiva doce e grossa. 
 
E vieram os animais, e eles passeavam pelos vales cheios de ervas, e povoaram os rios e os lagos, e a 
penumbra das florestas. 
 
E não havia em outro lugar uma quantidade tão grande de flores e um florescer tão impetuoso como ali 
onde se encontrava e se misturava a luz das Grandes Lâmpadas. E lá, na ilha de Almaren, a que está no 
Grande Lago, foi a primeira morada dos Valar ‐ naqueles tempos em que o mundo era jovem, e o verde 
jovem ainda era uma alegria para os olhos dos criadores. E por muito tempo, eles estiveram bastante 
contentes. 
 
Era  alegria  para  os  Valar  ver  os  frutos  dos  próprios  trabalhos;  e  eles  chamaram  este  tempo  de 
Primavera de Arda; e para que nada perturbasse o sossego do mundo, sem poder para controlar o fogo 
de Arda, eles tentaram o domar, e o encarceraram sob a terra. 
 
Mas  Valar  abriram  o  caminho  a  Arda  para  as  criaturas  do  Vazio;  e  aquelas  se  instalaram  nas  matas 
intransponíveis e nas cavernas profundas. De tempos em tempos, elas abandonavam os seus refúgios, e 
os  animais  apavorados  fugiam  delas,  e  as  plantas  murchavam  nos  lugares  por  onde  elas  passavam  ‐ 
como uma neblina cinzenta se arrastando. Assim o Vazio entrou no mundo. 
 
...Ele  não  conseguia  respirar;  cada  inspiração  lhe  causava  dor  ‐  pequenas  e  afiadas  agulhas  quentes 
espetavam  os  pulmões  por  dentro.  O  suor  formava  gotinhas  no  rosto  dele.  Parecia‐lhe  que  ele  está 
respirando uma neblina ardente, abafada, úmida e adocicada... 
 
O que é isso? 
 
Não havia necessidade de perguntar. Ele sabia: Arta. A vida de Arta era a vida dele, a dor de Arta ‐ a dor 
dele. 
 
Ele  novamente  entrou  em  Arda.  Isso  não  era  fácil:  como  se  uma  flexível,  elástica  muralha  invisível  o 
impedisse  de  passar;  como  se  uma  mão  enorme  o  empurrasse,  repelindo‐o,  pesada  e  insistente.  Ele 
venceu a resistência com dificuldade. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 36 
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E o mundo que o recebeu era assustador, pois o mundo morria; mas mesmo em sua agonia cruel, ele era 
belo. 
 
O eterno dia imutável acordou para a vida as sementes e os esporos de milhares e milhares de plantas. 
Enormes  árvores  estendiam‐se  na  direção  da  cúpula  em  brasas  do  céu,  e  ervas  nas  colinas  tinham  a 
altura  de  um  homem.  Mas  nas  florestas,  as  heras  e  as  trepadeiras  arrastavam‐se,  com  lentidão  e 
persistência,  para  o  alto,  cravando‐se  na  casca  áspera  e  enrugada,  e  nenhum  raio  de  luz  penetrava 
através  da  folhagem  pesada.  E  sob  as  árvores  gigantescas,  ervas  e  brotos  asfixiavam  uns  aos  outros, 
nasciam e morriam, mal tendo tempo de florescer. No ar quente e abafado, as ervas mortas, as flores 
murchas, as folhas caídas logo começavam a apodrecer, e o cheiro purulento misturava‐se ao aroma das 
flores que desabrochavam. O pólen ‐ neblina dourada ‐ estava por toda parte; tudo estava coberto por 
uma  camada  macia  e  quente,  e  o  gosto  doce  e  enjoativo  de  mel  não  desaparecia  da  boca,  e  os  lábios 
estavam  sempre  pegajosos  e  doces,  e o aroma  expresso  e pesado  das flores  atordoava.  O ar  quente  e 
úmido preenchia os pulmões. Plantas esmagavam e devoravam umas às outras, e agarravam‐se à vida 
na  agonia  da  morte;  e  trepadeiras  ferozes  sugavam  a  vida  das  árvores,  e  árvores  estendiam‐se 
insistentemente para o alto, tentando ultrapassar as outras... 
 
Mundo simétrico, onde reina o eterno não‐Escuro. 
 
Mundo simétrico, onde não há montanhas nem depressões. 
 
Aqui  os  rios  não  têm  para  onde  correr,  e  as  lagoas  se  transformam  em  pântanos,  cobertos  de  lodo  e 
lentilhas‐d’água, e o florescer destas é exuberante, e estranhas criaturas escorregadias se remexem ali, 
e uma pesada neblina verde‐dourada desliza a partir dos pântanos, colada ao chão: cheiro asfixiante da 
podridão e o aroma expresso, sentido quase fisicamente, das ervas do pântano... 
 
As plantas se entrelaçam, se movem, se arrastam, espremendo‐se mutuamente num abraço mortal; e na 
penumbra  das  florestas  fechadas,  musgos  escuros  corroem  os  troncos  das  árvores,  como  lepra;  e 
manchas de muco amarelo‐venenoso nas raízes delas são semelhantes a úlceras douradas, e as árvores 
apodrecem vivas, tornando‐se alimento para outras, e os animais enlouquecem... 
 
Assim foi a Primavera de Arda. 
 
Assim Melkor viu Arta. 
 
Ele apertou as têmporas com as mãos. 
 
O mundo gritava: o primeiro grito do recém‐nascido transformava‐se num berro furioso ‐ e no chiado 
de agonia. Arta gemia surdamente de dor, como uma mulher que não consegue dar à luz; o fogo, a vida 
dela, a queimava por dentro. 
 
O grito pulsava no cérebro dele no ritmo dos batimentos do sangue nas têmporas, sem silenciar, sem 
silenciar, sem silenciar nem por um minuto. 
 
A dor esmagava o coração dele como uma mão indiferente. 
 
O não‐Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz. 
 
O não‐Escuro reinava no mundo. 
 
Por um instante, pareceu ao Senhor do Escuro – tudo está acabado. 
 
Pareceu‐lhe ‐ é a destruição. 
 
Para Arta. 

O Livro Negro de Arda  Página 37 
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Para ele. 
 
E então ele ergueu o braço. 
 
E a terra tremeu sob os pés dos Valar. 
 
E as Lâmpadas ruíram: o Escuro devorou o não‐Escuro. 
 
Nas rachaduras da terra surgiu o fogo ‐ como o sangue ardente nas feridas abertas. 
 
Lava  corria  pelas  encostas  dos  vulcões,  queimando  as  úlceras  deixadas  pelo  não‐Escuro  no  corpo  de 
Arta e colunas de fogo com barulho ensurdecedor erguiam‐se até o céu. 
 
Novas  terras  erguiam‐se  das  profundezas  do  mar,  nascidas  da  água  e  do  fogo,  e  vapor  branco  fluía 
sobre as suas superfícies ainda quentes. 
 
E era noite. 
 
... E sobre a terra noturna em chamas, ele voava, sustentado pelas asas de vento negro, e ria, livre e feliz. 
 
Com  um  estrondo,  as  montanhas  ruíram  ‐  e  cresciam  novamente,  mais  altas  que  antes.  E  alguém 
sussurrou a Melkor: deixe a sua marca... 
 
Ele  desceu  e  pisou  no  chão.  Ele  apertou  a  palma  contra  a  lava  ainda  quente,  e  o  fogo  de  Arta  não 
queimou a mão dele; ele e o mundo eram uma coisa só. 
 
E ele navegou pelo rio de fogo no barco negro de lava fria, e Arta ria com riso de fogo, libertando‐se das 
correntes, e Melkor também ria com um riso feliz e jovem, a cabeça jogada para trás, alegrando‐se com 
a própria liberdade e o finalmente descoberto poder. 
 
... E era dia. E nas colunas de vapor, nas nuvens de fuligem negra que se precipitava lentamente sobre a 
terra, nasceu o sol, e a luz dele era vermelha, rubra, sangrenta. 
 
E houve um eclipse do Sol. 
 
O Sol transformou‐se num semicírculo de fogo, de brilho insuportável, e depois virou um disco negro ‐ 
escuridão ardente; e uma coroa de raios o rodeava, e nos batimentos deles, na dança dos lentos flocos 
de fuligem ouvia‐se o eco da rebelde e ameaçadora música; nela enlaçava‐se o triste sussurro de gelo e 
o leve tinir das estrelas, como uma sôfrega, dolorosamente carinhosa melodia de flauta; e o vento veloz, 
escaldante,  soava  como  as  vozes  baixas  dos  instrumentos  de  cordas;  e  o  coro  abafado  dos  picos  das 
montanhas ‐ o canto do órgão negro... 
 
...Agora ele estava no pico da montanha. Ele estendeu os braços para o disco negro em brasas, e uma 
espada escura com cabo negro de obsidiana deitou nas suas palmas, e entrelaçamento de sinais de fogo 
escorria pela lâmina num ornamento de serpentes: a Espada do Sol em Eclipse. 
 
Ele  caminhava  pela  terra,  ouvindo  a  respiração  ofegante  de  Arta.  Ele  falava,  e  suas  palavras  eram 
música. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que curam e expulsam a dor ‐ então o coração de fogo 
de Arta passou a bater com ritmo e confiança, e a respiração dela tornou‐se calma. E o mundo ficou em 
silêncio,  e  o  Alado  ouviu  o  baixo  murmúrio  das  plantas  que  não  nasceram,  ocultas  pelas  camadas  de 
fuligem. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que transformam a morte no sono, para acordar, no 
mundo novo, na hora certa, as ervas e as árvores. As palavras eram Música, que dá vida, que cria o vivo 
do morto. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 38 
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Mas enquanto ele falava, a chama do vulcão ergueu‐se até o céu novamente, e abriu‐se, e dela saíram 
novos  seres  desconhecidos,  assustadoramente  belos.  O  escuro  ardente  era  a  carne  deles,  e  os  olhos 
deles ‐ como lagoas de fogo. Alado olhou para eles, surpreso; e ele compreendeu que, sem o desejar, ele 
mesmo os acordou para a vida, pois elas nasceram do fogo da terra graças às palavras dele. E ele viu 
que elas vivem com vida própria, e vieram ao mundo para permanecer nele. Então Alado pensou: “Não 
pela minha vontade, mas graças a mim eles surgiram, e eu devo responder por eles e não posso deixá‐
los”.  E  as  novas  criaturas  transformaram‐se  em  na  corte  e  no  exército  dele.  Ele  deu‐lhes  o  nome  de 
Ahere,  Chamas  do  Escuro.  Eles  eram  de  natureza  diferente  dos  Maiar;  o  fogo  era  a  essência  deles,  e 
ninguém  poderia  nem  subjugar,  nem  domá‐los  completamente.  Crianças  de  Ilúvatar,  os  Primeiros 
Nascidos,  chamaram‐nos  de  Valaraukar,  e  de  Balrogs  ‐  Demônios  da  Força.  A  sua  vida  poderia 
prolongar‐se  eternamente,  mas  se  alguém  conseguisse  matá‐los,  eles  se  transformavam  em  chamas  e 
retornavam  ao  fogo  da  terra,  pois  não  possuíam  um  espírito  imortal,  mas  eram  a  encarnação  do 
elemento fogo, e fogo era sua essência. 
 
E  o  nome  do  primeiro  dos  Ahere  era  Neere,  Fogo;  os  Mortais  e  os  Elfos  o  conheceram  sob  um  outro 
nome.  Ele  tornou‐se  o  comandante  do  exército  dos  Demônios  das  Chamas  Escuras  quando  chegou  o 
tempo  de  guerra,  e  os  Elfos  o  nomearam  Gothmog.  Os  imortais,  nas  terras  de  Aman,  não  souberam 
como  chegaram  ao  mundo  esses  espíritos  do  fogo,  e  os  consideraram  Maiar.  Por  isso,  assim  diz 
“Valaquenta”: 
 
“Pois, dos Maiar, muitos foram atraídos por seu esplendor em seus dias de majestade, permanecendo 
fieis  a  ele  em  seu  mergulho  nas  trevas.  E  outros  ele  corrompeu  mais  tarde,  atraindo‐os  para  si  com 
mentiras  e  presentes  traiçoeiros.  Horrendos  entre  esses  espíritos  eram  os  valaraukar,  os  flagelos  de 
fogo que na Terra‐média eram chamados de balrogs, demônios do terror”.  
 
Eles eram poderosos e belos. Mas eles não eram humanos. 
 
...Quando  a  terra  acalmou‐se,  e  a  fuligem  a  cobriu  como  uma  capa  negra,  e  a  pesada  penumbra  dos 
nevoeiros dissipou‐se, Melkor viu um novo mundo. 
 
A  simetria  das  águas  e  das  terras  foi  destruída,  e  não  havia  mais  semelhanças  com  uma  máscara 
congelada  na  face  de  Arta.  Cadeias  de  montanhas  ergueram‐se  no  lugar  dos  vales,  o  mar  alagou  as 
colinas, e enseadas agudas cortaram as terras emersas. Furiosos rios indomados espumavam, uivando 
nas  corredeiras,  e  levavam  as  águas  até  o  oceano;  e  sobre  as  cachoeiras,  nas  rendas  de  gotículas  de 
água, da água e do Sol nasciam os arco‐íris. 
 
Assim o mundo conheceu a morte; e junto com a Arta, aquele que a amou esteve próximo da morte.  
 
Assim o mundo renasceu; e junto com a Arta, aquele que a amou ganhou poderes. 
 
Melkor respirou fundo, com todo o peito, o ar do mundo renovado. E ele sorria, mas a mão dele estava 
sobre o cabo da espada. 
 
A luta ainda não acabou. 
 
E,  para  combater  as  criaturas  do  Vazio,  novos  seres  foram  criados  por  Melkor.  Dragões  era  o  nome 
deles entre os Homens. 
 
Do  fogo  e  do  gelo,  pelo  poder  da  Música  da  Criação,  pelo  poder  dos  feitiços  do  Escuro  e  da  Luz,  eles 
foram criados. Arta deu poder e força aos corpos deles, Noite os dotou de inteligência e de fala. Grande 
era  a  sabedoria  deles  e,  desde  aquele  tempo,  os  homens  diziam  que  aquele  que  abater  um  dragão  e 
experimentar  o  coração  dele,  tornar‐se‐á  o  sábio  dos  sábios,  e  os  conhecimentos  antigos  serão 
mostrados a ele, e ele compreenderá a fala de todos os outros seres, mesmo que seja a dos animais ou 
dos pássaros, e as palavras dos deuses serão compreensíveis para ele. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 39 
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E a Lua emprestou os feitiços dela às criações do Senhor do Escuro, por isso o olhar deles encantava. 
 
Os primeiros a chegar ao Mundo foram os Dragões da Terra. Pesado era o passo deles, e a respiração 
deles era fogo, e os olhos luziam com ouro furioso, e a ira do Mestre que os criou ardia nos corações 
deles.  O  Sol  nascente  os  vestiu  de  cobre  vermelho,  tal  que  quando  eles  andavam  parecia  que  chamas 
saem de baixo das placas das escamas. E na criação deles, os Demônios do Fogo, Balrogs, auxiliaram o 
Senhor. Glaurung, que é também chamado de Pai dos Dragões, era da casa dos Dragões da Terra. 
 
E  era  meio  dia,  e  o  Mestre  criou  os  Dragões  do  Fogo.  O  sol  vestiu  os  corpos  deles  com  a  armadura 
dourada  de  escamas  flexíveis,  e  douradas  eram  as  asas  imensas  deles,  e  seus  olhos  eram  da  cor  de 
safiras  pálidas,  cor  do  céu  do  deserto.  O  vento  gerado  pelas  batidas  das  suas  asas  é  ardente,  e  até 
mesmo  o  metal  derrete  com  o  calor  da  respiração  deles.  Flexíveis,  graciosos,  velozes  como  flechas 
aladas,  eles  são  belos  ‐  e  a  beleza  deles  é  mortal.  Na  criação  deles,  o  Mestre  foi  auxiliado  pelo  seu 
discípulo Gorthaur, cujo nome significa ‐ “Aquele que possui o Poder das Chamas”. Da casa dos Dragões 
do Fogo, se conhece somente o nome de um dos últimos ‐ Smaug, o Dragão Dourado. 
 
No fim da tarde da última lua do outono, quando o sussurro gélido das estrelas só começa a enlaçar‐se 
na lenta melodia da neblina, quando o frágil vidro do primeiro gelo reveste a água e os flocos de neve 
faiscantes cobrem os galhos finos, vieram ao mundo os Dragões do Ar. A cintilação misteriosa dos fogos 
fátuos vivia nos olhos deles; estavam cobertos de aço e prata negra, e as asas deles eram de ardósia, e 
garras mais resistentes do que diamante. Silencioso e veloz, mais rápido que o vento, é o vôo deles; e 
eles receberam a fria, impiedosa sabedoria dos guerreiros. Poucos receberam a dádiva de ver a lenta 
dança  encantadora  deles  no  céu  noturno,  quando  as  estrelas  refletiam  nos  inúmeros  espelhos  das 
escamas  se,  e  a  luz  da  lua  os  lavava.  E  assim  dizem  os  homens:  aquele  que  viu  esta  dança  torna‐se  o 
servo da Noite, e a luz do dia não lhe traz mais alegria. E dizem ainda que na hora da dança do céu dos 
Dragões do Ar, estranhas ervas e flores germinam das sementes que dormiram no solo por dezenas de 
anos,  e  estendem‐se  para  a  Lua  pálida.  Aquele  que  as  recolher  na  Noite  da  Dança  dos  Dragões, 
conhecerá  a  grande  sabedoria  e  ganhará  imensos  poderes;  ele  tornar‐se‐á  algo  maior  do  que  um 
homem,  mas  nunca  mais  retornará  à  própria  casa.  Mas  se  a  raiva  e  a  sede  de  poder  estiverem  no 
coração  dele,  ele  morrerá,  e  o  espírito  dele  se  transformará  num  fogo  fátuo;  e  somente  na  Noite  dos 
Dragões  ele  irá  adquirir  uma  forma  espectral,  semelhante  à  humana.  Estes  eram  os  Dragões  do  Ar,  e 
Melkor criou‐os sozinho. Da casa deles, originou‐se Ancalagon, o Negro, o maior dos dragões. 
 
Os  Dragões  da  Águas  eram  filhos  da  Noite.  Havia  uma  lenta  beleza  nos  movimentos  deles,  e  eram 
vestidos  de  bronze  negro,  e  a  luz  da  Lua,  de  um  pálido  dourado,  vivia  nos  olhos  deles.  A  sabedoria 
antiga  do  Escuro  os  atraia  mais  do  que  os  combates;  escura  e  bela  era  a  música  que  os  criou.  Eles 
valorizavam  acima de  tudo o  silêncio,  companheiro das  reflexões;  e descobrir  os segredos  ocultos do 
mundo era o prazer supremo para eles. Por isso, eles elegeram como morada as profundezas das lagoas 
escuras  que  refletem  as  estrelas,  e  os  abismos  sem  fundo  dos  mares  orientais,  desconhecidos  e 
inalcançáveis  a  Ulmo.  Poucos  os  viram,  por  isso  nada  se  diz  sobre  eles  nas  lendas  dos  Elfos;  mas  as 
lendas dos homens do Oriente freqüentemente falam sobre Dragões sábios, Senhores das Águas... 

O Livro Negro de Arda  Página 40 
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SEGUNDA. MANDARAM ESQUECER 
 
AQUELE QUE SE ATREVE A VER. AS ERAS DAS TREVAS 
 
 
...Não restaram mais nomes. 
 
Mandaram esquecer. 
 
Somente pegadas na areia – na areia de diamantes, nos fragmentos pontiagudos e cortantes ‐ pegadas 
sangrentas de pés descalços. Mas o mar lavou também as pegadas, e o vento as secou também...  
 
Nada.  
 
Quando  as  Lâmpadas  ruíram,  um  tremor  correu  pelo  corpo  de  Arta,  como  se  um  toque  de  ferro  em 
brasa a acordasse. Crescendo surdamente, um rugido subiu ao céu das profundezas dela; e o sangue de 
fogo jorrou em chafarizes; e línguas de fogo dos vulcões lamberam o céu. Quando as Lâmpadas ruíram, 
elementos  até  então  adormecidos  rasgaram  as  correntes  que  os  prendiam.  Vento  raivoso  e  ardente 
arrancava  a  purulenta  coberta  de  vegetação  morta  do  corpo  de  Arta,  arrancava  as  montanhas  das 
profundezas dela, borrava pelo céu nuvens de fuligem e lama.  
 
Quando as Lâmpadas  ruíram,  relâmpagos  rasgaram o céu  cego,  e  a chuva  negra, derrubando tudo  no 
caminho, desabou ao encontro das chamas que se elevavam na direção do céu. As rachaduras da terra 
incharam de lava, e rios de fogo arrastaram‐se ao encontro das águas tiradas do lugar, e nuvens escuras 
de vapor se elevaram. E chegou a hora do Escuro, e não havia mais céu, e faíscas vermelhas afogaram‐se 
nas pesadas nuvens baixas, e relâmpagos branco‐azulados rasgavam os farrapos de fumaça. E não havia 
mais  sons,  pois  o  gemido  de  Arta  que  se  contorcia  em  dores  do  parto  era  tal  que  o  ouvido  já  não  o 
percebia.  E  em  silêncio  caíam  e  erguiam‐se  montanhas,  arrancavam‐se  placas  de  terra,  e  novos  rios 
batiam  contra  as  rochas  quentes.  Como  se  uma  mão  invisível  esmagasse  o  mundo  como  argila,  e  o 
modelasse novamente. E, muda, elevou‐se uma onda mais alta do que as montanhas mais altas de Arta, 
e  correu  silenciosamente  ‐  onda  de  água  sobre  as  ondas  da  terra...  E  a  carne  de  Arta  acalmou‐se,  e  a 
respiração irregular de fogo da terra tornou‐se audível.  
 
Quando as Lâmpadas ruíram, não havia luz, não havia escuro, mas este era o momento do Nascimento 
do Tempo. E a vida começou a andar.  
 
Quando  as  Lâmpadas  ruíram,  o  pavor  dominou  os  Poderes  de  Arda,  e,  amedrontados,  eles  ergueram 
muralhas de medo em torno de si. E do fundo do Grande Oceano, do corpo de Arda, eles arrancaram um 
pedaço de  carne  viva  e  criaram para  si  um  mundo,  e  deram‐lhe  o  nome  ‐  Aman.  De  agora  em  diante, 
Endorë significava para eles ‐ horror inimigo, e aqueles que não viraram as costas para ela não eram 
honrados pelos Valar...  
 
Quando  as  Lâmpadas  ruíram,  a  barreira  que  vedava  os  olhos  com  não‐Luz  deixou  de  existir.  E  ele, 
esquecido, perdido no mundo agonizante, viu o escuro. Ele estava assustado. Não havia lugar na terra 
que  permanecesse  firme  e  imutável,  e  ele  corria,  corria,  corria,  enlouquecendo,  e  o  mundo  louco 
desprovido  de  forma  e  de  aparência  pulava  na  frente  dele,  e  os  restos  de  razão  e  consciência  o 
abandonavam.  E  ele  caiu  ‐  criatura  cega  e  impotente,  e  o  seu  fraco  pedido  de  socorro  não  podia  ser 
ouvido no rugido das ondas, postas para correr pelo furioso e feliz Ossë.  
 
...E,  muda,  uma  onda  levantou‐se,  mais  alta  do  que  as  montanhas  mais  altas  de  Arta,  e  no  cume  dela, 
como  sobre  um  cavalo,  gargalhando  alegremente,  voou  Ossë.  Por  muito  tempo,  a  calma  morta  do 
mundo  pesou  grandemente  sobre  os  ombros  dele,  mas  ele  não  se  atrevia  a  desobedecer  ao  senhor 
Ulmo. E agora o coração dele encheu‐se de imensa alegria, ao ver que o mundo ganhou vida. E ele não 
se  importava  mais  com  as  ameaças  de  Ulmo  ‐  ele  farejou  o  próprio  poder.  A  onda  ergueu‐o  sobre  o 
mundo,  ele  viu  o  Vala  Alado  no  topo  de  uma  montanha  alta.  Melkor  ria  ‐  e  Ossë  ria  em  resposta, 

O Livro Negro de Arda  Página 41 
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sobrevoando  Arda  montado  na  onde.  E  naquele  primeiro  Dia,  Maia  Ossë  tornou‐se  aliado  do  Vala 
Escuro.  
 
A  água  ergueu  o  corpo  insensível  dele,  rodou‐o  e  o  atirou  sobre  o  cume  de  uma  colina  alta,  e  recuou 
novamente. E muitas vezes a água rolou por cima dele ‐ fria, salgada como sangue, banhando‐o, lavando 
a sujeira do corpo dele. O vento corria sobre ele, expulsando do céu a penumbra, lavando a fumaça dos 
vulcões, limpando o vidro negro da Noite. E quando ele abriu os olhos, a Noite olhava‐o com milhares 
de olhos. Ele não podia compreender ‐ o que é isso, onde, porquê? Isso é o Escuro? Isso é a Luz? E de 
repente disse ‐ sim, isso é a Luz, Luz verdadeira, e não aquilo que enredou Arda como uma teia, exalado 
pelas Lâmpadas. A eternidade olhava para o rosto dele, ele ouvia o sussurro das estrelas e as chamava 
por nome, e elas, cintilando, respondiam‐lhe. O Escuro carregava em si a Luz cuidadosamente, como a 
concha  ‐  uma  pérola.  Ele  já  estava  sentado,  com  a  cabeça  jogada  para  trás,  e  sussurrava  palavras 
incompreensíveis  que  vinham  de  algum  lugar  desconhecido,  e  o  vento  frio  da  Noite  recém‐nascida 
remexia os seus compridos cabelos dourado‐escuros. E ele nomeou o Escuro ‐ Ahe, as estrelas ‐ Gele, e 
as chamas vermelhas dos vulcões que estendiam as mãos rubras para a Noite ‐ Ere. E parecia‐lhe que 
Ere não é simplesmente Chama, mas algo ainda maior, mas o que ‐ ele não conseguia compreender. E 
ele amou procurar palavras e dar nomes ao que existe ‐ novos no mundo novo. 
 
E ele pisou no chão pela primeira vez, e viu que ele está sólido, e caminhou em direção ao desconhecido. 
Ele viu e a primeira Alvorada, e o Sol, e o Pôr‐do‐Sol, e a Lua; surpreendia‐se e alegrava‐se, dava nomes 
e cantava... E ele pensava: “Será que isso é obra do Inimigo? Mas isso é belo! Será que o mal pode ser tão 
belo  assim?  E  será  que  o  Inimigo  é  capaz  de  criar,  ainda  mais  algo  assim?  Talvez  isso  seja  um  erro, 
talvez  simplesmente  não  o  compreenderam?  Então  é  preciso  contar!”  Ele  não  teve  coragem  para 
procurar Melkor ele mesmo, temendo o poderoso Vala, por isso resolveu retornar e contar sobre o que 
viu.  
 
Manwë e Varda o receberam alegremente.  
 
‐ Eu pensei que você havia morrido, que Melkor matou‐o! ‐ falou carinhosamente Varda. ‐ Eu estou feliz 
em vê‐lo novamente!  
 
“Estranho. Eu sou um Maia, eu não posso morrer!” ‐ pensou ele,  surpreso. Alto, delicado, fino, ele era 
semelhante  a  uma  vela,  e  os  cabelos  dourado‐escuros  eram  como  chamas.  A  aquele  que  o  via,  por 
alguma razão parecia que ele rapidamente se queimará, apesar de ser um Maia e a morte não possuir 
poder sobre ele. E quando ele cantava perante o trono do Rei do Mundo, seus enormes olhos dourados 
irradiavam luz, como se o pôr‐do‐sol da Terra‐Média se refletisse neles.  
 
Ele  cantava  sobre  aquilo  que  viu,  sobre  aquilo  que  amou,  e  aqueles  que  o  ouviam  começavam,  de 
repente, a mudar em seus corações, e algo acontecia com a visão deles ‐ através da luz forte e constante 
do céu de Valinor eles distinguiam uma outra luz, e essa era ‐ a Luz. E o medo abandonava as almas, e os 
corações  aspiravam  à  Terra‐Média,  e  Melkor  já  não  parecia  tão  assustador.  A  canção  cintilava,  e  ela 
criava  o  pensamento.  Mas  Manwë  ergueu‐se,  e  de  repente  aquele  dos  olhos  dourados  viu  rosto 
contorcido dele e olhos amedrontadores. O Rei do Mundo agarrou o Maia pelos ombros, e as mãos dele 
eram mais duras do que as garras das águias. Ele atirou o Maia no chão e urrou: 
 
‐ Você! Insignificância, besta... Como se atreve... Vendeu‐se ao Inimigo! – provavelmente, Manwë bateria 
naquele dos olhos dourados, mas Varda o segurou: 
 
‐ Acalme‐se. Ele é somente um Maia, e seu espírito é fraco. E Melkor é experiente na mentira e em más 
visões, ‐ carinhosa era a voz dela, mas o olhar ‐ gelado. 
 
Manwë sentou‐se novamente. 
 
‐ Vá, ‐ ele falou severamente. ‐ Que Irmo, com os sonhos mágicos dele, expulse os feitiços malignos da 
sua alma. Vá! E vocês, ‐ ele olhou para todos os outros, ‐ lembrem: traiçoeiro é o Inimigo, as mentiras 

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dele  corrompem  até  os  mais  sábios!  Mas  aquele,  ‐  ele  elevou  a  voz,  ‐  que  sucumbir  à  tentação,  será 
castigado como um traidor! Lembrem‐se disso! 
 
O dos olhos dourados entrou na suave penumbra dos jardins de Irmo. Ele sentia amargura e dor; ele 
não  podia  entender  ‐  por  quê?  Não  podia  acreditar  nas  palavras  de  Manwë:  “Tudo  isso  é  uma 
alucinação; o Escuro é o mal, e atrás do Escuro há o vazio”. “Mas eu vi, eu vi!” ‐ repetia ele, apertando a 
cabeça com as mãos, e as lagrimas de mágoa escorriam pelas suas faces. Alguém tocou levemente no 
ombro dele. O dos olhos dourados virou‐se ‐ atrás estava o amigo de longa data dele, discípulo de Irmo. 
O  chamavam  de  vários  jeitos:  Mestre  das  Alucinações,  Sonhador,  Inventor,  Mago.  E  tudo  isso  era 
verdade. Ele era assim mesmo, imprevisível e inesperado, todo cintilante. E agora o dos olhos dourados 
via‐o  vagamente  na  penumbra  dos  jardins.  Somente  os  olhos  prendiam  a  atenção,  cinza‐claros, 
límpidos. Parecia que ele sorria, era impossível capturar esse sorriso no rosto belo, vago na sombra da 
nuvem  escura  dos  cabelos.  As  roupas  dele  eram  suavemente  acinzentadas,  mas  nas  dobras  elas 
brilhavam com ouro pálido e aço escuro. O dos olhos dourados olhou para ele, e na sua mente acendeu‐
se uma palavra nova ‐ Ayo, e essa palavra significava tudo o que era o discípulo de Irmo. 
 
‐ O que houve? ‐ perguntou ele, e a voz dele era suave e profunda. 
 
‐ Não acreditam em mim, ‐ com um suspiro semelhante a um soluço disse o dos olhos dourados.  
 
‐  Conte‐me,  ‐  pediu  Ayo,  e  o  dos  olhos  dourados  começou  a  falar  ‐  com  dor,  com  mágoa,  como  se 
estivesse  se  confessando.  E  quando  ele  acabou,  Ayo  colocou  as  mãos  sobre  os  ombros  dele  e  olhou 
atentamente, seriamente nos olhos daquele dos olhos dourados, e o rosto dele nesse instante tornou‐se 
definido ‐ extraordinariamente belo e encantador. 
 
‐ Não é uma alucinação, acredite‐me. Isso não é uma alucinação. Eu é que sei o que é alucinação e o que 
‐ verdade. 
 
 
 
 
 
 
‐ Mas por quê, então?.. 
 
‐ Eu não sei. Preciso pensar. Preciso ver eu mesmo... 
 
‐ Mas eu... ‐ ele não acabou de falar. Ayo tocou a tez dele com a mão e disse autoritariamente: 
 
‐ Durma. 
 
E o dos olhos dourados abaixou‐se devagar; as pálpebras dele pareciam saturadas de chumbo, a cabeça 
caiu sobre o ombro... Ele dormia. 
 
Yavanna disse, chorando amargamente: 
 
‐ Será que tudo aquilo que eu fazia, está morto? Será que as belas Crianças de Ilúvatar acordarão numa 
terra vazia e amedrontadora? 
 
E ergueu‐se discípula dela, cujo nome era Folha Primaveril. 
 
‐ Senhora, permita‐me visitar as Terras Abandonadas. Eu olharei para o que ali restou e contar‐te‐ei. 
 
Yavanna concordou com aquilo, e a Folha Primaveril partiu para a escuridão. 

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O  solo  sob  os  pés  era  macio  e  ainda  quente;  ele  estava  coberto  por  uma  grossa  camada  de  fuligem 
expelida  pelos  vulcões.  Como  se  alguém  tivesse  propositalmente  preparado  esta  terra  para  que  ela, 
discípula  de  Yavanna,  tivesse  a  grande  honra  de  testar  aqui,  nesse  amedrontador  e  vazio,  ainda  não 
organizado  mundo  a  própria  arte.  A  tentação  era  imensa.  Por  um  lado,  ela  deveria,  claro,  voltar  a 
Valinor e contar sobre o vazio e abandono de Arda, mas por outro ‐ tinha tanta vontade de fazer algo ela 
mesma, enquanto não há ninguém para proibir ou indicar o que fazer... Muita vontade. E ela pensou ‐ 
não haverá grande mal se eu demorar. Só um porquinho, ninguém vai perceber. Ela não pensava que 
agora está seguindo o caminho do Vala Escuro ‐ tentando criar o algo próprio. Ela não sentiu que vê. Vê 
aonde não deveria, porque na Terra‐Média está o Escuro, e ela sabia disso, e é impossível ver no escuro. 
Mas  agora  ela  não  tinha  tempo  para  isso.  Ela  ouvia  a  terra.  E  aquela  esperava  as  sementes.  E  Folha 
Primaveril ouviu e notou as vozes das plantas não nascidas e pensou, feliz ‐ significa que nem tudo foi 
destruído quando as Lâmpadas ruíram. Aquilo que era capaz de viver no mundo novo ‐ sobreviveu. Ela 
pegou um punhado de terra morna, macia, de grãos soltos, e esta era negra como o Escuro, e como o 
Escuro ocultava em si a vida. E Folha Primaveril caminhou pela terra, acordando as sementes. Ela via o 
Sol  e  a  lua,  as  Estrelas  ‐  mas  não  se  surpreendia.  Por  alguma  razão,  não  se  surpreendia.  Não  tinha 
tempo. E ela nem podia perceber isso ‐ por enquanto. E tudo crescia, esticava‐se para o alto, e junto com 
as  árvores  e  ervas,  o  olhar  dela  subia  em  direção  ao  céu.  E  ela  esqueceu  sobre  Valinor,  tomada  pela 
beleza do mundo vivo. 
 
Mas apesar de tudo, ela tinha tédio, sozinha. E por isso apareceram no mundo as árvores que cantam e 
flores que falam, flores que viravam as suas cabecinhas para o Sol sempre, mesmo em dias nublados. E 
havia flores que se abriam somente de noite, não podendo suportar o Sol, mas cumprimentando a Lua. 
Havia flores que floresciam somente num dia eleito, ‐ e nem todos os anos isso acontecia. Na Noite da 
Feitiçaria,  ela  caminhava  entre  as  ameaçadoramente  rubras  flores  cintilantes  dos  fetos,  às  quais  ela 
dotou de uma alma adormecida, capaz de realizar os sonhos. Mas isso ocorria somente na hora eleita. 
Do fundo das lagoas emergiam nenúfares prateadas e oscilavam lentamente sobre a água negra, e ela 
caminhava  vestida  com  uma  coroa  de  flores  aquáticas  cintilantes.  Ela  dava  almas  às  plantas,  e  elas 
falavam com ela. E os espíritos do vivo tomavam formas e voavam pelo céu, balançavam nos galhos e 
riam nas lagoas e rios. 
 
E ela criou plantas nas quais queria expressar a duplicidade do mundo. Nas raízes delas, nas folhas e 
flores  viviam  ao  mesmo  tempo  a  morte  e  a  vida,  pois  elas  estavam  cheias  de  veneno  que,  utilizado 
sabiamente, poderia trazer a cura. Mas melhor de tudo lhe saiam plantas que eram totalmente inúteis, e 
cujo sentido estava somente na beleza delas. Perfume, cor, forma ‐ ela gostava tanto de fazer mágicas 
com elas! Ela estava feliz, e pensava horrorizada sobre o retorno. Parecia‐lhe que tudo o que ela criou 
será lhe tirado e destruído... Mas ela tentava afugentar esses pensamentos. 
 
Naquele dia ela conversava com as flores do campo. 
 
‐  E  então,  para  que  é  que  vocês  servem? O  que  nos  diremos à  senhora  Yavanna  em  sua defesa,  hein? 
Nenhuma  utilidade...  Só  os  seus  olhinhos  que  são  tão  lindos...  O  que  é  que  nos  vamos  fazer?  Como 
justificar a nossa existência para que não nos expulsem? 
 
‐ Talvez, dizer que somos bonitas, que as abelhas beberão o nosso néctar, que aqueles que ainda não 
nasceram nos usarão para falar... Cada flor será uma palavra. Não é assim? 
 
Folha Primaveril virou‐se. Alguém estava atrás dela ‐ alto, olhos verdes, cabelos cor de noz madura. A 
roupa dele era cor de casca de árvore, a corneta de caçador estava presa ao cinto dele. Os braços fortes 
estavam  desnudados  até  o  ombro,  os  cabelos  presos  com  um  cordão  fino.  Folha  Primaveril  olhou, 
surpresa, para o forasteiro. 
 
‐ Quem é você? ‐ perguntou ela. ‐ Porque está aqui? 
 
‐  Eu  sou  Caçador.  E  por  que...  Talvez  porque  cansei  de  ver  como  Oromë  torce  o  nariz  para  minhas 
criaturas. 

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‐ Como assim? ‐ riu ela. Palavras engraçadas ‐ “torce o nariz”. 
 
‐ Diz que os meus animais são inúteis. Ele gosta de cavalos, de cães ele gosta ‐ para caçar os animais de 
Melkor. Mas existem mesmo esses animais? E em Valinor ele treina os bichanos dele caçando as minhas 
criaturas...  Eu  falei  para  ele  ‐  não  seria  melhor  adestrar  os  cães  em  Endorë  mesmo,  com  animais 
malignos... E ele mata os meus. Então eu dei‐lhes chifres, dentes e garras ‐ para se defender. E ele ficou 
irado e me expulsou. Aí eu fui para a Terra‐Média. E estou aqui ‐ ele deu um sorriso largo. – Pelo menos, 
aqui ninguém me impede de criar o inútil ‐ assim é que ele chama os meus animais. E eu acho ‐ aquilo 
que é bonito não é inútil mesmo que seja somente por ser bonito. Veja você mesma! 
 
E ela viu os veados, as raposas – de cor vívida, como pequenas chamas; viu os lobos ‐ o Caçador disse 
que eles ainda vão dar trabalho aos cães de Valinor. E o pai deles era o Lobo Negro ‐ lobo imortal, lobo 
falante. E eles iam pela Terra‐Média: ela ‐ sobre o Tigre Branco, ele ‐ montado no Lobo Negro. E eles não 
queriam se separar ‐ eles criavam a Beleza. O Caçador criou pássaros para as florestas dela e insetos 
multicolores ‐ para as flores e ervas; animais de campo e de floresta, e víboras que se arrastavam pelo 
chão;  e  peixes  para  os  lagos  e  rios.  Tudo  tinha  um  lugar  próprio,  todos  dependiam  uns  dos  outros,  e 
cada  vez  mais  fortemente  a  Beleza  Viva  ligava  o  Caçador  e  a  Folha  Primaveril.  Mas  aqui  e  ali,  eles 
encontravam  estranhos  seres,  desconhecidos  para  eles:  pássaros‐borboletas  semelhantes  a  pedras 
preciosas  rodopiavam  sobre  flores  esquisitas,  ou  um  peixe  alado  de  repente  subia  sobre  as  águas  do 
mar, ou um animalzinho orelhudo, semelhante a uma raposa, com grandes olhos inteligentes, espiava 
cautelosamente por traz de um monte de areia; e uma vez, tendo subido para o alto das montanhas, eles 
acharam  ali,  entre  as  rochas  frias,  uma  flor  que  lembrava  uma  estrela  prateada...  Como  se  alguém 
estivesse  por  perto,  e  esse  “alguém”  gostava  de  surpreendê‐los  com  dádivas  inesperados;  e  algumas 
vezes  ele  ria‐se  bondosamente  deles  ‐  como  quando  eles  estavam  sentados  na  beira  de  um  córrego 
quente e preguiçoso, e de repente um peixinho de olhos arregalados subiu sobre a raiz de uma árvore e 
ficou  olhando  para  eles,  estranhando.  Iti  até  soltou  um  grito  de  surpresa,  e  depois  riu 
involuntariamente ‐ a criatura era demasiadamente bizarra, e na rajada repentina de vento ouviu‐se o 
riso  de  mais  alguém,  mas  de  quem  ‐  eles  não  sabiam...  Entre  si  eles  chamavam  este  desconhecido  de 
amigo, e pensavam que, provavelmente, mais alguém vaga pela terra, semelhante a eles, e cria milagres 
‐ alegres ou de uma tristeza límpida; só que por alguma razão não quer se mostrar para eles. 
 
E  aconteceu  assim:  na  noite,  eles  viram  algo  incompreensível,  preocupante  e  belo.  Duas  flexíveis 
sombras aladas flutuavam silenciosamente no céu, rodopiando nos raios do luar. Isso era uma dança ‐ 
lenta, mágica, e eles ficaram por muito tempo parados, enfeitiçados, não se atrevendo e não desejando 
se mexer, e uma estranha música surda soava nos corações deles. 
 
‐ O que é isso? Quem é este? ‐ num sussurro de surpresa, perguntou a Folha Primaveril, olhando com 
olhos enormes para o rosto do Caçador. 
 
‐ Não sei... Isso não é meu. Oromë também não é capaz de criar algo assim... 
 
E  eles  se  entreolharam,  fulminados  pelo  pensamento  súbito:  “Será  o  Inimigo?”  Mas  conseguiria  ele 
criar, ainda mais algo assim? E os Pais dos Animais correram para o nordeste, levando aqueles que os 
montavam para os domínios amedrontadores do Inimigo. 

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O PUNHAL. AS ERAS DA ESCURIDÃO 

Assim dizem: os anões foram feitos por Aulë na escuridão da Terra‐Média. Pois, tão grande era o desejo 
dele  pela  vinda  dos  Filhos  do  Único,  para  ter  aprendizes  a  quem  ensinar  suas  habilidades  e  seus 
conhecimentos, que não se dispôs a aguardar a realização dos desígnios de Ilúvatar. E como as formas 
dos Filhos que estavam por vir não estavam nítidas em sua mente, ele criou de acordo com os planos 
próprios;  ele  deu  aos  Anões  uma  vida  longa,  e  aos  corpos  e  almas  deles  ‐  a  dureza  e  a  resistência  da 
rocha. Pois ele os imaginava não somente como discípulos, mas também soldados nas guerras contra 
Melkor, Senhor do Escuro. 
 
E  o  primeiro  ajudante  dele  na  realização  dos  planos  foi  o  mais  velho  dos  discípulos  dele  ‐  Artano 
Aulendil, igual ao próprio Ferreiro em poder e conhecimentos. 
 
Porém os feitos de Aulë não estavam ocultos do Ilúvatar; e, no exato momento em que o trabalho do 
Vala  se completava  e  ele  começava a  ensinar aos  Anões  tudo aquilo que  ele  mesmo  sabia  e  conhecia, 
Ilúvatar dirigiu‐lhe a palavra. E Aulë ouviu as palavras dele em silêncio. 
 
‐ Por que fez isso? Por que tentou algo que sabe estar fora de seu poder e de sua autoridade? Pois tem 
de mim como dom apenas sua própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de suas mãos e 
da  sua  mente  poderão  viver  apenas  através  dessa  existência,  movendo‐se  quando  você  pensar  em 
movê‐las e ficando ociosas se seu pensamento estiver voltado para outra coisa. É esse seu desejo? 
 
Maia  Artano  sabia  que  não  era  assim;  mas,  ao  ouvir  a  voz  do  Único,  perturbou‐se  e  não  se  atreveu  a 
dizer nem uma única palavra. 
 
E respondeu Aulë: 
 
‐  Não  desejei  tamanha  ascendência.  Desejei  seres  diferentes  de  mim,  que  eu  pudesse  amar  e  ensinar 
para que também eles percebessem a beleza de Ëa que tu fizeste surgir. Pois me pareceu que há muito 
espaço em Arda para vários seres que poderiam nele deleitar‐se; e, no entanto em sua maior parte ela 
ainda está vazia e enfadonha. Na minha impaciência cometi essa loucura. Contudo a vontade de fazer 
coisas está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento que 
graceja com os atos de seu pai pode estar fazendo isso sem nenhuma intenção de zombaria, mas apenas 
por ser filho dele. E agora o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um 
filho  ao  pai,  ofereço‐te  essas  criaturas,  obra  das  mãos  que  criaste. Faze com  elas  o  que  quiseres.  Mas 
não seria melhor eu mesmo destruir o produto de minha presunção? 
 
E, com lagrimas nos olhos, Aulë apanhou o grande martelo para esmagar os Anões. Então Maia Artano 
gritou: 
 
‐ O que está fazendo, mestre? Eles são vivos, são suas criações; detenha a sua mão! 
 
‐ Eu desobedeci à vontade do Único, do Criador de Tudo o que Existe, ‐ gemeu Aulë e ergueu o martelo; 
mas  Artano  agarrou  a  mão  dele,  tentando  impedir  o  golpe.  E  os  Anões  recuaram,  amedrontados,  e 
imploraram por clemência. 
 
Então, vendo a humildade de Aulë e o arrependimento dele, Ilúvatar teve compaixão dele e do plano. E 
assim disse: 
 
‐ Eu aceito a sua oferta. Veja agora: essas criaturas têm agora vida própria e falam com suas próprias 
vozes... 
 
E Aulë abaixou o martelo e alegrou‐se, e agradeceu a Ilúvatar: 
‐ Que abençoe o Único as minhas criações! 

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E Ilúvatar respondeu assim: ‐ Como Eu dei existência e carne aos pensamentos dos Ainur no início do 
Mundo, assim agora Eu darei um lugar no mundo para as suas criações. E serão eles assim, como você 
os  pensou;  Eu  dei  vida  a  eles,  e  não  mudarei  mais  nada  neles.  Contudo  não  tolerarei  o  seguinte:  que 
esses seres cheguem antes dos Primogênitos de meus desígnios, nem a sua impaciência será premiada. 
Eles  dormirão  sob  as  rochas,  até  que  os  Elfos,  Minhas  Crianças  na  Terra‐Média  acordem;  e  você 
esperará. Mas quando chegar a hora, eu os despertarei, e eles serão como filhos seus; e muitas vezes 
haverá discórdia entre os Meus filhos e os seus: entre os Meus filhos adotivos e os Meus eleitos. 
 
E Aulë agradeceu Ilúvatar novamente, ajoelhado, e fez segundo a palavra dele; por isso, até o despertar 
dos Elfos, os Sete Pais dos Anões dormiram sob as rochas. 
 
Mas  a  ira  estava  no  coração  do  Maia,  pois  ele  ouviu  a  mentira  de  Ilúvatar  e  viu  a  incompreensível 
obediência de Aulë. E ele disse assim: 
 
‐ Eu o julguei meu mestre, mas hoje eu o renego. Somente um covarde poderia erguer a mão para as 
próprias criações. 
 
‐ Você... ‐ Aulë engasgou de tanta indignação. ‐ Como você se atreve, uma ferramenta cega nas minhas 
mãos, servo, escravo, falar assim comigo! 
 
‐ Atrevo‐me. Eu não sou mais seu servo. E eu repito: você é covarde, como também todos aqueles que 
fugiram para Valinor! 
 
‐  Você...  você...  ‐  O  Ferreiro  não  encontrava  palavras;  e,  finalmente,  expirou  ‐  Vê‐se  Melkor  te  fez  a 
imagem e semelhança dele! 
 
Aulë tremia violentamente. 
 
‐ A‐ah, quer dizer que não foi você que me criou. 
 
‐  Sim!  E  se  mande  daqui,  vá  até  ele!  E  eu  te  amaldiçôo!  Você  ainda  voltará,  ainda  implorará  por 
clemência! ‐ o desespero transparecia na voz do Ferreiro. 
 
Artano mediu Aulë com um olhar de desprezo. 
 
‐ Covarde. 
 
E, cuspindo sob os pés de Aulë, ele virou‐se e foi embora ‐ para a escuridão. Aulë não teve coragem de ir 
atrás dele, não teve coragem nem mesmo para chamar o Maia. Ele retornou a Valinor. 
 
...O Maia andava rapidamente e com confiança, apertando os punhos. 
 
“Covarde, insignificante. Ilúvatar, pelo que se vê, não tolera rivais: amaldiçoou um, amedrontou o outro. 
Tudo bem. “Vá até Melkor”, diz? E irei. Ele, pelo menos, não tem medo de nada. Nem da ira do Único...” 
 
Ele parou. Pois falavam: Senhor do Escuro. Inimigo. 
 
“E eu estou indo para lá... O que ele fará comigo?.. Voltar? Reconhecer a culpa, arrastar‐se na poeira? Na 
frente daquele covarde?! Não mesmo! Não há caminho de volta para mim. Direi: eu vim, me aceite. Que 
faça o que quiser ‐ tudo é melhor do que a humilhação...” 
No portão negro de Helgor, ele parou, indeciso. Mas então uma figura surgiu na frente dele, esboço de 
chamas rubras na escuridão: Achero. Ele fez um sinal: siga‐me. E Maia obedeceu. O portão negro abriu‐
se. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 48 
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...  Eles  iam  pelas  longas  e  muito  inclinadas  escadarias  ‐  como  ao  coração  de  Arda,  por  seqüências 
infinitas de salas subterrâneas, e Maia olhava, surpreso, para os lados. Mas a ultima sala o impressionou 
mais do que tudo que ele havia visto. Assoalho negro de pedra; mas as paredes e o teto cintilam com 
uma  luz  suave  e  constante.  Como  correntes  de  água  petrificadas  ‐  colunas;  parece  ‐  toque‐as,  e 
responderão com um suave tinir... 
 
O Maia estava perante aquele a quem em Valinor chamavam de Senhor do Escuro; o guia desapareceu 
sem ser notado: ele estava sozinho. Ele levantou o olhar e ficou imóvel. 
 
Este rosto ‐ orgulhoso, majestoso e belo ‐ era o primeiro que ele viu ao acordar. E agora via novamente. 
 
“Melkor... Então, Melkor. Aulë disse a verdade”. 
 
‐ Saudações, Vala Melkor. 
 
Melkor olhou fixamente para o Maia; nos olhos dele brilhou uma sobra de zombaria: 
 
‐ Saudações também a você, Maia de Aulë, Artano‐Aulendil. 
 
O Maia estremeceu. 
 
‐ Eu não tenho mais nome. E não sou mais servo de Aulë! 
 
‐ Por quê? 
 
Maia começou a contar, apertando os punhos de raiva. Melkor ouvia em silêncio e por fim disse: 
 
‐ Quer dizer, foi assim que você partiu. Você é corajoso e audaz, Maia. E o que é que você quer de mim? 
 
‐ Eu quero tornar‐se seu discípulo. Eu não tenho nada ‐ alem disso, ‐ Maia tirou da cintura o punhal e 
estendeu‐o a Melkor. ‐ Tome. Mas me aceite como seu discípulo! 
 
Melkor, sem olhar, pegou a arma e sorriu torto: 
 
‐ Não se compra aprendizagem com oferendas. Por acaso, você não sabe disso? 
 
Mas,  quando  olhou  para  o  punhal,  o  rosto  dele  mudou.  Duas  serpentes  de  aço  enlaçavam‐se  sobre  o 
cabo, e os olhos delas brilhavam com um fogo vivo. 
 
‐ De onde você conhece este sinal? 
 
‐ Não sei... Talvez alguém contou, ou talvez eu sempre soube... Pareceu‐me ‐ a Sabedoria da Existência... 
 
‐ Você está certo; somente isso vem do Escuro. E as pedras? Eu nunca vi iguais; o que é? 
 
...O punhal foi o primeiro objeto que ele fez sem o auxílio de Aulë. Mas quando ele trouxe, feliz, a criação 
dele  ao  Ferreiro,  aquele  olhou  de  uma  maneira  estranha  para  o  cabo  do  punhal  e  disse,  ostentando 
indiferença: 
 
‐ O que você pode criar tal que não seja do meu conhecimento? Você é a continuação da minha mente, e 
nem nos seus planos, nem nos seus feitos há algo que não tenha o seu começo absoluto em mim. 
 
O Maia estava desnorteado. Aulë finalmente dirigiu o olhar para o próprio Maia: 
 
‐ E que roupas são essas? Por quê preto? 

O Livro Negro de Arda  Página 49 
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‐ Eu gosto. Será que você não vê: é bonito? 
 
A resposta era insolente. Aulë franziu a testa resmungou: 
 
‐ Bonito, bonito... Foi dito: os servos dos Valar devem vestir as cores deles. Por quê você se considera 
uma exceção? Bonito... Quem é que meteu isso na sua cabeça?  
 
‐ Você mesmo que disse: eu sou a continuação do seu pensamento, e nem nos planos, nem nos meus 
feitos há algo que não tenha seu começo absoluto em você! 
 
E,  olhando  para  o  Ferreiro  com  os  olhos  penetrantemente  claros,  o  Maia  sorriu.  Aulë  soube  o  que 
responder. 
 
...Pela primeira vez, alguém se interessou pelas criações do Maia Artano. Por isso, ele começou a contar, 
com alegria de criança, como pensou em fazer uma gema semelhante a uma gota de sangue de Arda; 
como pegou uma partícula do fogo de Arda e a aprisionou num cristal; como enfeitou com essas pedras 
aquilo que foi criado por ele... 
 
Melkor ouvia atentamente, às vezes fazia perguntas, e depois disse: 
 
‐  Você  tem  mesmo  o  dom  de  criar.  Então  por  que  você  me  procurou  –  afinal,  fala‐se  que  eu  não  sou 
capaz de nada além de destruir? 
 
O Maia olhou para as mãos de Melkor, deitadas calmamente sobre os braços do trono. Estreitas, fortes. 
Dedos finos e longos. Mãos surpreendentemente bonitas. 
 
‐ Você tem mãos de criador, ‐ disse Maia em voz baixa. ‐ Só que eu nunca vi as suas criações... 
 
O Vala sorriu ‐ quase imperceptivelmente, com o canto dos lábios ‐ cerrou os olhos e lentamente passou 
a mão sobre a lâmina do punhal. E esta começou a arder com um fogo de palidez gelada sob os dedos 
dele. 
 
O Maia olhou para Melkor, aturdido. 
 
‐ Como você fez isso? Nenhum deles sabe... 
 
‐  Eles  negaram  a  Escuridão  que  é  mais  antiga  do  que  o  mundo;  negaram  também  os  seus 
conhecimentos. E os feitiços do Escuro são mais fortes que os feitiços da Luz. É simples. 
 
Melkor estendeu o punhal ao Maia: 
 
‐ Tome. 
 
‐ Você... recusa o meu presente? 
 
‐ Isso é seu por direito. E eu já lhe disse: não se pode comprar a aprendizagem com oferendas, ‐ Melkor 
sorriu, mas desta vez tristemente. ‐ Tome. 
 
O Maia pegou a faca que cintilava friamente das mãos de Melkor. 
 
“Eu não sirvo, ‐ pensou o Maia com pesar, ‐ e eu não tenho para onde ir. Para que ele precisaria de mim? 
Sei muito pouco. Sou capaz de muito pouco. Tudo está acabado”. 
 
Melkor olhou atentamente para o jovem Maia e, levantando‐se do trono, falou brevemente: 

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‐ Vamos. 
 
O Maia seguiu‐o lentamente. 
 
“Agora  ele  dirá  ‐  vá  embora.  E  o  que  eu  vou  fazer?  Não  voltarei.  De  jeito  algum  voltarei.  Pedirei  de 
joelhos  ‐  que  deixe  aqui.  Tudo  o  que  quiser,  eu  faço.  Só  ‐  continuar  aqui  com  ele”,  ‐  pensava  o  Maia, 
obstinadamente. 
 
Eles estavam agora no cume da montanha. E Melkor falou ao jovem Maia: 
 
‐ Veja. 
 
No começo, aquele não via nada além da escuridão costumeira. E depois algo estourou sobre a cabeça 
dele, com uma luz ofuscante ‐ brilhante, fogosa, ardente... O Maia cobriu os olhos com a mão: 
 
‐ Luz... de onde? O que é isso? 
 
‐ O Sol. 
 
‐ Foi você que o criou? 
 
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe. 
 
E  o  Maia  olhava,  e  via  como  a  bola  de  fogo,  escurecendo  ‐  como  o  metal  derretido  que  esfriava,  ‐ 
desapareceu no horizonte. E veio a escuridão, mas agora ele via nela a luz ‐ faíscas, gotas que cintilavam 
com uma luz gelada. 
 
‐ O que é isso? 
 
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos... 
 
‐ Também criados pelo Único? Como Arda? 
 
‐  Não.  Eles  existiam  também  antes  de  Eru;  e  ele  não  é  o  único  criador,  apesar  de  tentar  a  todo  custo 
esquecer disso. O nome dele ‐ Eru ‐ significava inicialmente “Chama”; mas ele se nomeou Único e tenta 
fazer os outros acreditarem nisso. 
 
O jovem Maia provavelmente se assustaria se alguém que não fosse Melkor falasse isso. Mas agora não 
havia medo: ele acreditava em Melkor e admirava‐o. 
 
“Ele é realmente destemido. E realmente é o mais poderoso dos Ainur. Não é à toa que os Valar o temem 
tanto”. 
 
‐ Mas porque eu não via isso antes? ‐ perguntou o Maia. 
 
‐ Não somente você. Outros também ‐ até chegar a hora. Somente olham, sem ver. Vontade de Eru. Eu 
me alegro por eles não terem conseguido fechar os seus olhos. 
 
E, colocando a mão sobre o ombro do Maia, Melkor disse: 
 
‐ Você será meu discípulo. Eu decidi faz muito. Ainda quando vi a sua criação. 
 
Ele suspirou e adicionou, com uma tristeza incompreensível: 
 

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‐ Mas a primeira coisa que você fez foi um punhal... 
 
‐ Mestre... 
 
‐ De hoje em diante, o seu nome será Orthenner, Senhor do Poder do Fogo. 
 
E ele sorriu com um sorriso claro e calmo: 
 
‐ Ainda terei que lhe ensinar muitas coisas, Maia Orthenner... 
 
‐ ...E o que você gostaria de aprender? 
 
‐ Tudo. Tudo aquilo, que Aulë não sabe. 
 
‐ Para quê você quer saber isso? 
 
‐ Como assim ‐ para quê? – o Maia encarou Melkor, atônito. ‐ Para criar o novo. Para saber. Porque você 
pergunta? 
 
‐  Eu  não  quero  que  você  se  apresse.  Primeiro,  compreenda  a  si  mesmo.  Tenha  certeza  de  que  não 
utilizará os conhecimentos para o mal. 
 
‐ Mas o conhecimento pode ser o mal? 
 
‐ Claro. Aqui, veja. 
 
Melkor estendeu a mão, e Orthenner viu um estranho adorno negro‐dourado sobre o pulso dele. Não, 
não um adorno ‐ elegante e bela criatura cingia o braço do Mestre. 
 
‐ O que é isso? 
 
‐ Lokie ‐ Serpente. 
 
‐ Eu não sabia que algo assim existe... 
 
‐ O cabo do seu punhal ‐ lembra? 
 
‐ Sim... Mas me pareceu ‐ eu somente inventei, e aqui, vivo... 
 
‐ Estenda a mão. 
 
Orthenner obedeceu, e o frio e escamoso corpo da serpente enrolou‐se em volta do pulso dele. 
 
‐ Que linda... Isso foi você que fez? 
 
‐ Eu... Você diz ‐ linda? Mas ela é extremamente perigosa. 
 
‐ Como algo assim pode ser perigoso? 
 
‐  Pode.  O  veneno  dela  contém  a  morte. Mas  em  mãos  sábias  e  experientes,  esse  mesmo  veneno  pode 
trazer a cura. Dualidade. Por isso, em muitos mundos a serpente é o símbolo do saber: porque também 
o  saber  pode  trazer  tanto  a  vida,  quanto  a  morte.  E  também  é  perigoso  em  mãos  inexperientes,  pois 
pode transformar‐se em mal. Lembra, eu falei ‐ a sua primeira criação foi um punhal. Por isso perguntei. 
 
‐ Mas você também tem uma espada, Mestre... 

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‐ E a espada nem sempre serve à morte. 
 
Eles pararam. 
 
‐ Preste atenção. O que está ouvindo? 
 
‐ O canto do lobo. O rumor das asas de uma coruja. 
 
‐ Ouça. 
 
‐ Eu ouço como o vento canta nos galhos, como farfalha a relva. 
 
‐ Ouça com o coração, Discípulo. 
 
Orthenner ficou em silêncio por muito tempo. Depois disse, como se estivesse surpreso com as próprias 
palavras: 
 
‐ Sabe, Mestre... parece‐me: algo está se debatendo ‐ vivo, quer se soltar... e não consegue... 
 
‐ Você sabe ouvir. Veja. 
 
Com  a  espada,  Melkor  riscou  no  ar  um  sinal  estranho,  que  por  um  segundo  tornou‐se  luminoso,  mas 
quase no mesmo instante se desfez em faíscas azuladas, e tocou a terra com a lâmina. E ao Maia pareceu 
‐ a terra tremeu levemente. E no lugar em que a espada negra a tocou, abriu‐se uma fonte. Pondo‐se de 
joelhos, o Discípulo colocou a mão na água gélida e levantou os olhos brilhantes para o Mestre: 
 
‐ Como você fez isso? 
 
‐ Saberá, ‐ Melkor sorriu. 
 
‐ ...Sabe... de vez em quando parece que o mundo é tão frágil... 
 
‐ É por isso que eu quero que você seja cuidadoso. Aqueles conhecimentos que eu te transmito são um 
imenso poder; um movimento errado, um passo para fora do caminho ‐ e você começará a destruir. 
 
‐ Eu entendi, ‐ o Maia voltou‐se para Melkor ‐ e parou. 
 
“Asas?!” 
 
O  Vala  olhava  para  o  céu  noturno,  sorrindo  –  ou  com  os  próprios  pensamentos,  ou  para  algo  ainda 
inaudível a Orthenner. 
 
Enormes asas negras nas costas. 
 
“Claro... se os Valar podem tomar qualquer forma, quem é que deveria ser alado se não fosse ele?..” 

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OS QUATRO. AS ERAS DAS ARVORES DA LUZ. 

O dos olhos dourados dormia, mas o sono dele não era bem um sono. Pois lhe parecia que ele está em 
Arda ‐ em todos os lugares ao mesmo tempo: em Valinor e nas Terras Abandonadas; e vê e ouve tudo o 
que acontece. Ele via tudo ‐ mas nada podia. Não podia gritar que as estrelas – gele – não são criações 
de Varda, que isso é a Luz verdadeira... Ele via como partiu Artano; ele até invejou‐o, pois sabia que ele 
mesmo não teria coragem de ir até o Inimigo... E o Inimigo, ele já não podia mais chamá‐lo de Inimigo. E 
as palavras que vinham do nada caiam como chuva no coração dele, e ele compreendeu o sentido do 
nome ‐ Melkor... 
 
E depois ele viu o belo rosto de Ayo que estava curvado sobre ele. Ele sabia que era um sonho. Mas Ayo 
podia penetrar em quaisquer sonhos, e agora ele estava tirando do sonho o dos olhos dourados. 
 
‐ Tudo o que você viu é verdade, ‐ disse Ayo em voz baixa. ‐ Também é verdade que o Rei do Mundo e a 
Varda não querem que aquilo seja visto. Eu tenho dificuldade de compreender o porquê. 
 
O dos olhos dourados permanecia em silêncio. É sempre difícil perder a fé. Finalmente ele levantou a 
cabeça. 
 
‐ Eu não agüento mais, ‐ ele falou, como se sentisse dor. ‐ É preciso partir. 
 
‐ Ir para o lugar onde está o Inimigo? 
 
‐ Não. Simplesmente ir. Não “para onde”, mas “de onde”. 
 
‐ Não o deixarão. 
 
‐ Não importa. Senão seria melhor não acordar... 
 
‐ Está bem. Tentarei ajudar. Mas então também eu terei de ir... Como te deixar partir sozinho, do jeito 
que você é ‐ Ayo sorriu tristemente. 
 
Foram  aquilo  os  feitiços  de  Ayo,  ou  realmente  Manwë  e  Varda  não  mais  desejavam  ver  o  dos  olhos 
dourados aqui, mas o deixaram partir. Na verdade, ele ia somente para saber se já vieram ao mundo as 
Crianças de Ilúvatar ‐ Valar não desejavam abandonar Aman. Já Ayo não teve dificuldades em obter a 
permissão de Irmo, e os amigos partiram juntos. 
 
Eles saíam da lagoa de Cuiviénen ‐ frágeis, impotentes, assustados, completamente nus. E esta terra não 
era o paraíso de Valinor. E eles tremiam por causa do vento frio e aconchegavam‐se uns aos outros, com 
medo  de  tudo,  com  medo  desta  enorme,  monstruosa  dádiva  de  Eru  que  caiu  nas  mãos  fracas  e 
despreparadas  deles  ‐  com  medo  de  Endorë.  Na  noite  do  nascimento,  a  lua  não  era  visível,  e  na 
escuridão  se  escondia  o  medo.  E  somente  lá  em  cima  cintilava  algo  bondoso  e  belo,  e  um  dos  Elfos 
estendeu os braços para o céu, como se pedisse ajuda, e chamou: 
 
‐ Ele! 
 
Aquele que foi o primeiro a encontrá‐los, atendendo ao chamado deles, usava vestes negras, e aqueles 
que  partiram  com  ele  tornaram‐se  os  Elfos  do  Escuro,  mesmo  sendo  capazes  de  sentir  e  conhecer  a 
alegria da Luz antes de todos os irmãos deles. Pois eles receberam a dádiva da visão. 
 
Aquele que foi o segundo a encontrá‐los, era enorme, brilhante e de voz sonora, e muitos Elfos fugiram 
dele  apavorados  para  as  trevas  da  noite;  e  aqueles  que  partiram  de  Endorë  com  ele  tornaram‐se  os 
Elfos da Luz, mesmo desconhecendo a Luz verdadeira. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 54 
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Aqueles,  que  foram  os  terceiros  a  encontrá‐los,  eram  muito  semelhantes  a  eles  mesmos,  mas  muito 
mais sábios. E os Elfos que ouviram as canções daquele que tinha olhos dourados e que viram as ilusões 
de Ayo, apaixonaram‐se por Endorë e aí permaneceram para sempre. Eles se dividiram em diferentes 
casas e falavam línguas diferentes, mas em Valinor os chamavam de Avari, os Relutantes. 
 
Assim  o  dos  olhos  dourados  desobedeceu  à  ordem  do  Rei  do  Mundo,  pois  permaneceu  em  Endorë. 
Assim Ayo ficou nas Terras Abandonadas. Assim o Caçador não retornou, pois ele desejava criar. Assim 
não retornou a Folha Primaveril, pois o Caçador havia permanecido na Terra‐Média. E Ossë nunca havia 
abandonado aquela terra. 
 
O dos olhos dourados vagava pela terra, e os Elfos o respeitavam e amavam as canções dele, apesar de 
nem tudo compreender. Ele cantava e sobre Valinor, e sobre a Criação, e sobre as Lâmpadas, mas se Rei 
do Mundo ouvisse tudo isso, dificilmente o dos olhos dourados poderia cantar mais alguma canção. E 
somente os Elfos do Escuro, que viviam no norte, o compreendiam assim como ele se compreendia. Por 
isso ele gostava de estar entre eles, mas em segredo ‐ ele temia o poder e a grandeza de Melkor. 
 
...Foi assim que nasceram entre os Elfos da Terra‐Média as lendas sobre os deuses bondosos que viviam 
entre eles e ensinavam‐lhes a Beleza... 

O Livro Negro de Arda  Página 55 
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GERADOS PELO ESCURO. A ERA DAS ÁRVORES DA LUZ; DO DESPERTAR DOS ELFOS ATÉ O ANO 
487 

 
Os Elfos se libertavam lentamente dos grilhões sono. Fracos e impotentes nesse mundo imenso, eles se 
mantinham juntos. E neles acordou o desejo de falar uns aos outros, e dar nomes a tudo que os cercava. 
De  vez  em  quando,  parecia‐lhes  que  era  uma  voz  inaudível  que  lhes  sugeria  as  palavras.  E  eles 
chamaram a si de Quendi, Aqueles que Falam...  
 
Chegou a hora em que os Elfos desejaram abandonar o vale da lagoa de Cuiviénen e ver o mundo fora 
dos limites dele. Mas alguns dos que partiram para a escuridão não retornaram, e pela primeira vez o 
medo  acordou  nas  almas  dos  Elfos,  de  agora  em  diante  ligado  para  eles  com  o  escuro  e  a  escuridão. 
Diziam – o Caçador os levou com ele, e eles jamais retornarão. 
 
“O cavalo furioso carrega o terrível cavalheiro das trevas; a corte dele é a matilha de monstros... O trote 
do  cavalo  se  assemelha  às  trovoadas,  e  a  grama  murcha  aonde  ele  pisa;  fogo  infernal  é  o  olhar  do 
cavalheiro. Aquele que o encontra jamais retorna. Vento de fogo é a respiração dele, horror – a arma na 
mão dele, morte – a bandeira dele, as mansões – o inferno... Aquele que o encontrar jamais retornará”. 
 
“Entretanto, pouco se sabe daqueles infelizes que caíram na armadilha de Melkor. Pois, quem, entre os 
seres  vivos,  desceu  aos  abismos  de  Utumno,  ou  percorreu  as  trevas  dos  pensamentos  de  Melkor?  É, 
porém, considerado verdadeiro pelos sábios de Eressëa que todos aqueles quendi que caíram nas mãos 
de  Melkor  antes  da  destruição  de  Utumno  foram  lá  aprisionados,  e,  por  lentas  artes  de  crueldade, 
corrompidos e escravizados; e assim Melkor gerou a horrenda raça dos orcs, por inveja dos elfos e em 
imitação a eles, de quem eles mais tarde se tornaram os piores inimigos. Pois os orcs tinham vida e se 
multiplicavam  da  mesma  forma  que  os  Filhos  de  Ilúvatar;  e  nada  que  tivesse  vida  própria,  nem 
aparência  de  vida,  Melkor  jamais  poderia  criar  desde  a  sua  rebelião  em  Ainulindalë  antes  do  Início. 
Assim dizem os sábios. E, no fundo de seus corações negros, os orcs odiavam o Senhor a quem serviam 
por  medo,  criador  apenas  da  sua  desgraça.  Esse  pode  ter  sido  o  ato  mais  abjeto  de  Melkor,  e  o  mais 
odioso aos olhos de Ilúvatar”. 
 
Assim diz o “Quenta Silmarillion” 
 
Mas  foi  assim:  aqueles  que  tiveram  medo  do  Escuro  dissiparam‐se  pelas  florestas,  se  transformaram 
nos Elfos do Medo. O terror do desconhecido tomou conta dos espíritos deles; de agora em diante tanto 
a Luz, quanto o Escuro os assustavam igualmente. O medo deturpou não somente o exterior dele, mas 
também as almas, pois eles eram fracos. O medo os impelia para as florestas e para as montanhas, para 
longe dos Domínios do Vala Escuro, cujo poder e grandeza eles sentiam e por isso o temiam; para longe 
daqueles que eram do mesmo sangue que eles. Deste medo nasceu o ódio a todos os viventes. A beleza 
dos  Elfos,  Filhos  do  Único,  vivia  inicialmente  também  nos  Elfos  do  Medo;  mas  a  beleza  perfeita  é 
semelhante  à  monstruosidade  perfeita.  Assim  aconteceu  aos  Elfos  do  Medo.  Tudo  no  aspecto  deles 
parecia exagerado: enormes olhos alongados com pupilas pequeninas; uma boca pequena e de cor forte 
demais,  que  ocultava  dentes  quase  animalescos  –  pequenos  e  afiados  –  e  pequenas  presas,  dedos 
tenazes longos demais, parecidos com as patas de uma aranha... Ao olhar para eles, nascia no coração 
um  vago  e  invencível  horror,  e  eles  agora  fugiam  não  somente  dos  outros,  mas  de  si  mesmos...  E  os 
chamaram de Orcs, o que significa ‐ Monstros. 
 
As andanças dos Orcs pelas florestas também mudavam o aspecto deles. A vida selvagem os fez fortes e 
furiosos e os ensinou a caçar em bandos, semelhantes aos dos animais ferozes. Acostumados à eterna 
penumbra das cavernas e das florestas, eles odiaram a luz e passaram a temer o fogo; até o cintilar das 
estrelas  distantes  era  insuportável  para  os  olhos  deles.  Aqueles  que  recebiam  ferimentos  graves 
durante a caça eram mortos ou abandonados na floresta; algumas vezes ‐ quando tinham fome ‐ eram 
devorados:  Orcs  não  conheciam  a  compaixão.  Os  mais  fortes  e  impiedosos  tornavam‐se  seus  líderes: 
eles  admiravam  somente  a  força.  A  piedade  parecia‐lhes  uma  fraqueza,  compaixão  ‐  um  sentimento 
estranho e desconhecido, e eles encontravam o maior divertimento nos tormentos dos seres vivos. 

O Livro Negro de Arda  Página 56 
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Os Orcs tinham também uma língua própria, na qual ‐ distorcidos e irreconhecíveis – viviam os ecos da 
Língua do Escuro. Eles não possuíam nem cantos, nem lendas; as vozes deles se tornaram rudes, e um 
uivo rouco era o grito de guerra deles.  
 
Eles não tinham necessidade de aperfeiçoar a mente, mas neles desenvolviam‐se sentidos próprios de 
caçadores  noturnos:  audição  e  olfato  apurados,  a  capacidade  de  ver  na  escuridão,  infatigabilidade  na 
caça e a sede de sangue. E não havia salvação deles, crias da escuridão e do medo...  
 
E foi assim: os mais velhos dos Elfos, tomados pela alegria surpresa perante a visão do novo e jovem 
mundo e pela sede de conhecê‐lo, partiram para muito longe dos limites do Vale dos Elfos e vagavam 
sob a luz das estrelas ‐ pois ainda não eram capazes de ver o Sol e a Lua ‐ pelas florestas sombrias. E um 
dia encontraram um cavaleiro montado num cavalo negro. Os Elfos se surpreenderam, pois não sabiam 
que havia no mundo outras criaturas vivam semelhantes a eles. Mas não havia nada de ameaçador no 
cavaleiro, o rosto pálido dele era belo e sábio: Elfos não tiveram medo dele.  
 
O  cavaleiro  desceu  do  cavalo.  A  altura  dele  não  era  imensa:  simplesmente  muito  alto,  mais  alto  que 
qualquer um dos Elfos. As roupas dele pareciam tecidas da escuridão, e a capa voava atrás dele como 
asas negras, e os olhos dele eram estrelas.  
 
Os Elfos o estudavam com surpresa, e ele sorriu com o canto da boca, involuntariamente imaginando‐os 
em Valinor. Assim como eles eram agora: com roupas de peles, nas mãos ‐ lanças com pontas de pedra; 
somente alguns poucos calçavam sandálias com solas de madeira, com um trançado de tiras de couro 
até os joelhos...  
 
E para eles, tudo era estranho no desconhecido: e todo o aspecto dele, e as roupas (“Quão enorme deve 
ser um animal para que dê para fazer da pele dele uma capa dessas!”), e o cinto de placas de aço que 
cingia a cintura dele ‐ os Elfos não conheciam os metais; e a montaria dele ‐ os Elfos nunca viram um 
cavalo...  
 
O desconhecido estendeu a mão para um dos Elfos com a palma aberta para cima ‐ em sinal de paz. O 
Elfo repetiu o gesto dele e sorriu: 
 
‐ Quem é você? Como se chama?  
 
‐ O meu nome é Melkor, ‐ respondeu o desconhecido.  
 
‐ Melkor... Amor ao mundo? Um belo nome... Chamam‐me de Geleon. 
 
‐ Você também tem um belo nome: Filho das Estrelas.  
 
‐ Você é dos Elleri Quenno?  
 
Melkor notou para si que a língua deles se difere da língua dos outros Elfos: naquela língua o nome do 
povo soaria como Eldar Quendi.  
 
‐ Não, eu não pertenço ao seu povo.  
 
‐ Mas você parece‐se conosco, mesmo sendo diferente...  
 
‐ Eu sou dos Criadores do Mundo. Nos escolhemos um aspecto semelhante ao seu.  
 
‐ Então você é capaz de mudar de aspecto?  
 

O Livro Negro de Arda  Página 57 
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‐ Sim, mas com que finalidade? ‐ Melkor sorriu, mas no mesmo instante ocorreu algo estranho: enormes 
asas  negras cobertas  de  pó  de  estrelas abriram‐se,  uma  estrela acendeu‐se  na  tez  dele,  e  parecia  que 
estrelas estavam presas nos longos cabelos negros. 
‐ Então todos os Criadores do Mundo são tão... tão...  
 
Neste momento,  um garotinho de  uns  cinco  anos  apareceu  de trás do  pai,  que  estava  um  pouco  mais 
afastado: os olhos brilham, a boca está semi‐aberta de surpresa: 
 
‐ Que bicho é esse que você tem aí?  
 
‐ Um cavalo.  
 
‐ Posso passar a mão?.. Que bonito... Ele não morde?  
 
Melkor riu:  
 
‐ Não... Quer montar nele?  
 
O  pequeno  acenou  que  sim,  maravilhado.  Melkor  pegou‐o  nos  braços  e  colocou  na  sela;  o  menino 
passou a mão, com cuidado, pela crina comprida e densa do cavalo, levantou a cabeça:  
 
‐ Pai! Olhe!..  
 
Melkor notou uma menina, que se agarrava na saia da mãe: 
 
‐ E você, pequena? Vem cá.  
 
A menina envolveu com os braços os joelhos da mãe, olhando de esguelha para o Alado. A mãe fechou o 
rosto com as mãos.  
 
‐  Ela  não  fala,  Melkor,  ‐  falou  Geleon  depois  de  um  breve  silêncio.  ‐  Ela  perdeu  a  voz.  Sabe,  nos 
estávamos sentados em volta da fogueira, ela passeava por perto, e de repente ‐ um grito... Vimos ela 
correndo  até  a  fogueira,  e  atrás  dela...  Uma  criatura  assim  toda  horrível  saltou  para  a  campina  ‐ 
vestindo trapos, com costas encurvadas, patas compridas... e não patas ‐ braços, os dedos entortados, 
dentes arreganhados, e os olhos ‐ avermelhados, brilham, sem pupilas... O pior é que não era um animal. 
Aquilo era mais parecido conosco. Desde então... 
 
Melkor ficou sério: 
 
‐ Entendo. Qual é o nome dela?  
 
‐ Aeni.  
 
‐ Vaga‐lume... Não tenha medo de mim, pequena. Venha. 
 
A  menina  demorou  alguns  momentos,  depois  caminhou  para  frente  com  um  certo  receio.  Parou, 
olhando para o Vala de baixo para cima. Aquele se sentou na grama: 
 
‐ Dê‐me a mão, Aeni. 
 
A mãozinha da menina deitou confiantemente na palma de Melkor. Vala olhou atentamente nos olhos 
dela, passou a mão sobre os cabelos claros e macios. 
 
‐ Eu posso curá‐la. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 58 
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Mãe de Aeni iluminou‐se: 
 
‐ Isso... é verdade?  
‐  Sim,  só...  só  que  para  isso  preciso  levá‐la  comigo.  Se  você  deixá‐la ir,  bela  senhora.  Acredite,  eu  não 
farei mal algum a ela. 
 
A mulher refletiu, depois respondeu: 
 
‐ Eu acredito em você. Mas é difícil para mim separar‐me dela. Ela é a minha única... Isso vai demorar?  
 
‐ Alguns dias.  
 
‐ Desculpe... como você disse? Dia... o que é?  
 
‐ Ah, sim... Como eu sou tonto! Vocês não vêem... Vê ‐ aquela estrela? Quando ela passar sobre as suas 
cabeças pela sétima vez, a menina voltará. E eu prometo: a sua filha estará curada.  
 
‐ Agradeço‐o, Alado.  
 
‐ Vai comigo, pequena?  
 
A menina voltou‐se para a mãe, como se pedisse permissão, depois fez um sim com a cabeça. 
 
‐ Mamãe! Mamãezinha!  
 
A mulher tomou Aeni nos braços: 
 
‐ Você... fala, minha menina? Ele te curou?  
 
‐ Mamãe, olha só o que ele me deu! ‐ Aeni abriu o pequeno punho.  
 
‐ Vamos até a fogueira, pequena, eu vou olhar...  
 
‐ Para que? ‐ surpreendeu‐se a menina. ‐ Está tão claro...  
 
‐ Claro?... Vamos até a fogueira.  
 
Na  palma  da  menina  havia  uma  pequena  folhinha  de  bordo,  toda  cheia  de  veias  douradas,  com  uma 
brilhante gota de orvalho. A mãe a pegou com cuidado, com medo de que gota caia da folha...  
 
Ela era de pedra.  
 
‐ Que maravilha... ‐ falou Geleon baixinho. ‐ Como eu gostaria de criar coisas assim...  
 
‐ Aprenderá, ‐ respondeu Melkor, que havia se aproximado silenciosamente.  
 
‐ E porque Aeni diz que está claro?  
 
‐ Quem sabe, logo vocês entenderão...  
 
‐ Será que você não vê, mamãe? Bem ali, em cima, um fogo, muito brilhante, maior que a fogueira... Vê? 
Ele diz ‐ isso é o Sol, Saere, ‐ a menina pronunciou a última palavra com bastante cuidado. 
 
‐ Saere?  
 

O Livro Negro de Arda  Página 59 
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‐ Sim, sim! Ele diz ‐ é uma estrela, só que muito perto, por isso brilha tanto... 
 
A menina cantarolava alegremente, contando o que tinha lá onde ela tinha ido. Faltavam‐lhe palavras e 
ela  fazia  uma  careta  preocupada  ao  tentar  explicar  como  é  isso  ‐  um  palácio  de  pedra,  paredes 
cintilantes  das  cavernas,  altas  montanhas  negras...  Que  animal  estranho  que  tinha  lá  ‐  peludo,  negro, 
com olhos  ‐  como folhas  verdes  brilhantes,  carinhoso...  Depois,  cansada,  enrolou‐se  ao  lado  do  fogo  e 
adormeceu,  segurando  com  força  a  folha  de  bordo.  Pelo  rosto  do  menino,  que  não  saia  de  perto, 
percebia‐se que ele invejava ardentemente a Aeni; mas ele se conteve e, sentando do lado, começou a 
ouvir avidamente a conversa dos adultos.  
 
‐  Você  disse  ‐  um  dos  Criadores do  Mundo...  Quem  são  eles?  Como o  mundo  foi  criado?  ‐  interrogava 
Geleon. Melkor encostou‐se no tronco de uma arvore, cruzou os braços no peito e começou: 
 
‐ Havia Eru, que se chamou de Único, a quem passaram a chamar de Ilúvatar em Arta, Pai de Tudo o que 
Existe...  
 
Quando  a  história  acabou,  todos  ficaram  em  silêncio  por  um  tempo.  Depois,  Geleon  começou  a  falar 
novamente: 
 
‐ Então nos somos Filhos do Único?  
 
‐ Sim, é isso...  
 
‐  Conte,  e  onde  estão  outros  Imortais?  Por  quê  nos  nunca  os  vimos?  Você  disse:  vocês  vieram  a  Arta 
para  preparar  este  mundo  para  a  chegada  dos  Elfos  e  dos  Homens:  porque  então  somente  você  nos 
procurou? Ou os outros não sabem aquilo que você sabe? 
 
‐ Sabem. Mas eles abandonaram esta terra e agora permanecem na Terra dos Imortais, Valinor. Aqui, eu 
estou sozinho.  
 
‐ E por quê você não está entre eles?  
 
‐ O meu caminho difere do deles. Sem conhecer o Escuro, eles desde o início o negaram e podem viver 
somente na Luz. Agora o Escuro e a escuridão igualmente os assustam.  
 
‐ Os Imortais conhecem o medo? 
 
Melkor permaneceu em silêncio.  
 
‐ Você conhece os destinos do mundo. Diga, qual é o destino dos Elfos?  
 
‐ A vocês, foi pré‐determinada a imortalidade ‐ assim é a dádiva do Único. O seu destino é partir para a 
terra dos Imortais.  
 
‐ Mas nos não queremos partir! ‐ exclamou com ardor aquele que mais tarde viria a ser o Pintor.  
 
‐ E eu gostaria de dar uma espiada em Valinor, ‐ comentou alguém, pensativo. ‐ Ver e voltar...  
 
‐ Vocês não poderão voltar. Essa é a vontade do Único.  
 
‐ Mas se o nosso destino é partir, por quê fala conosco? ‐ perguntou Geleon.  
 
‐ Vocês não tiveram medo do Escuro, o que significa que conseguem compreendê‐lo, e então a essência 
do  Equilíbrio  dos  Mundos  se  revelará  a  vocês.  Vocês  poderão  libertar‐se  dos  grilhões  da 
Predeterminação, e então receberão o direito de escolher. 

O Livro Negro de Arda  Página 60 
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‐ Você dizia que esta escolha foi dada somente aos Homens... Então, nos passaremos a ser humanos?.. 
Imortalidade... E o que é a morte?  
 
‐ Somente os Mortais podem sair desse mundo, achar o próprio caminho a Ëa.  
 
‐ Essa também é uma dádiva de Ilúvatar?  
 
‐ Não. É uma dádiva minha para aqueles que romperem o circulo fechado da Predeterminação. 
 
‐ Eu ainda não compreendo tudo nas suas palavras. Precisamos pensar. Você ficara conosco?  
 
‐ Terei de deixá‐los por um tempo. Mas eu voltarei.  
 
‐ Nos o esperaremos, Alado.  
 
...Quando o Cavaleiro Negro desapareceu na penumbra da floresta, Geleon falou baixo, seguindo‐o com 
o olhar: 
 
‐ Parece que o compreendi... Se não houvesse o Escuro, nos jamais veríamos as estrelas...  
 
Ele  retornou,  o  Vala  Alado.  E  mais  uma  vez  falou  com  eles,  explicava,  respondia...  As  crianças  se 
apegaram  a  ele,  e  ele  lhes  contava  belas  histórias  sobre  ervas  e  estrelas,  sobre  animais  e  gemas...  As 
primeiras  crianças  neste  mundo  jovem,  eles  eram  seres  surpreendentes  –  confiantes,  abertos, 
maravilhados, meigos como flores frágeis. Maravilhosas criaturas ingênuas, era impossível não amá‐los. 
E  Melkor  achava  ‐  tudo  o  que  ele  cria  agora,  ele  cria  para  eles.  Assim  surgiram  no  mundo  seres 
surpreendentes: enormes borboletas negras com asas que brilham com verde e ouro; peixes voadores; 
moluscos  que  construíam  para  si  belas  casas  de  conchas;  unicórnios  e  golfinhos;  libélulas  com  olhos 
enormes, parecidos com jóias; as aranhas aquáticas prateadas e serpentes marinhas... E não havia para 
ele  uma  alegria  maior  do  que  ver  os  olhos  surpresos  das  crianças  e  ouvir:  “O  que  é  isso?  Que 
maravilha...”  E  agora,  ao  olhar  para  o  Mestre,  Orthenner  mal  conseguia  conter  um  sorriso.  Como  a 
pequena visitante de Helgor mudou tudo! E realmente ‐ que criaturas maravilhosas...  
 
Os elfos amaram o Alado. E uma vez Geleon disse a ele: 
 
‐ Quanto mais eu converso com você, Melkor, mais claramente eu entendo o quanto nos não sabemos... 
Mas eu penso assim: basta de andanças sem rumo pela terra. Se permitir, nos iremos junto com você.  
 
‐ Sigam. Eu mostrarei o caminho. 
 
...Eles se surpreendiam como crianças com tudo aquilo que viam ao redor ‐ e, em essência, eles eram 
mesmo  crianças.  Eles  gostavam  de  dar  nomes  ao  novo:  eles  viam  o  Sol  e  a  Lua,  mas  amavam  mais  a 
noite e as estrelas ‐ a Luz‐no‐Escuro. Sem o notar, eles já seguiam pelo caminho dos Homens, e Melkor 
não se surpreendeu quando Geleon perguntou: 
 
‐ Nos compreendemos a escolha que você nos oferece. E aceitamos o seu caminho.  
 
‐  Vocês  pensaram  sobre  tudo?  Não  se  apressem  com  a  resposta;  a  dádiva  da  morte  é  uma  dádiva 
terrível e grandiosa. Quem sabe, talvez me amaldiçoarão depois por essa escolha.  
 
‐ Não. Nos mesmos escolhemos este caminho; agora não há mais outro para nos.  
 
‐ Olhem para dentro de si. Haveria em voz medo ou dúvidas?  
 

O Livro Negro de Arda  Página 61 
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‐ Não, Melkor. Nos escolhemos o caminho com olhos abertos, e nenhum de nos jamais dirá que você nos 
atraiu para o seu lado com mentiras. Eu sei com o coração que você diz a verdade. Nos fizemos a nossa 
escolha, Alado. 
 
Ele  os  chamou  de  Elfos  do  Escuro,  Elleri  Ahe,  e  de  discípulos.  Para  eles,  ele  era  Mestre,  e  Aeanto,  ‐ 
aquele  que  traz  a  Luz...  No  norte,  no  vale  de  Gellome  ‐  ali  onde  estava  a  morada  de  Melkor,  ‐  eles 
construíram a cidade de madeira deles, e Melkor freqüentemente abandonava o castelo negro e vivia 
entre eles. Para o Maia Orthenner, eles se tornaram amigos e irmãos; ele se alegrava em se sentir um 
deles.  Na  língua  deles,  eles  pronunciavam  o  nome  dele  como  Gorthaur,  e  logo  ele  mesmo  passou  a 
considerar que este era o nome dele. O Mestre também passou a chamá‐lo de Gorthaur; somente de vez 
em quando, quando estava pensativo, ele chamava o Discípulo do jeito antigo ‐ Orthenner.  
 
E chegou a hora em que Melkor reuniu os Orcs, que tremiam de pavor do desconhecido, cegos para o 
Escuro  e  para  a  Luz,  nos  domínios  dele.  Ele  esperava,  com  ajuda  dos  discípulos  dele,  devolver‐lhes 
aquilo  que  eles  perderam  ao  render‐se  ao  medo.  Mas  a  escuridão  prendia  as  mentes  deles,  e  o  medo 
expulsava  qualquer  outro  sentimento  das  suas  almas.  Melkor  não  podia  mudar  nada.  Aos  Elfos  do 
Medo, restou somente a dádiva do Único ‐ a imortalidade. 

O Livro Negro de Arda  Página 62 
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AS SETE ESTRELAS 

"...  e  alto  no  Norte  como  um  desafio  a  Melkor  ela  pôs  a  coroa  das  sete  poderosas  estrelas  para  girar, 
Valacirca, a Foice dos Valar e o sinal do destino ..."  
 
Numa meia‐noite negra e gelada, naquela hora em que morrem os sons terrenos, sobre as eternas cãs 
das  montanhas  do  norte  ergueram‐se  as  sete  estrelas.  Sete  ‐  e  Uma.  Aqueles  cujo  destino  foi  vê‐las 
naquele  inalcançável  instante  em  que  o  limiar  entre  o  mundo  e  o  universo  quase  desaparece, 
repentinamente  começavam  a  ouvir  uma  música  silenciosa,  eternamente  viva.  Aquele  que  a  ouviu, 
jamais poderia esquecê‐la, ela soava para ele em todos os lugares e sempre: de dia ‐ no murmúrio do 
vento,  no  estrondo  de  uma  avalanche,  no  rugido  da  tempestade,  no  ranger  baixo  da  pena  sobre  o 
pergaminho, nas voltas silenciosas do falcão no forte azul do céu das montanhas; de noite ‐ no uivo do 
lobo, nas faíscas da fogueira, no canto da lua refletida na água parada... Palavras, cujo sentido é sentido 
com toda a alma ‐ mas é impossível decifrá‐las. Está na soleira da porta, mas não se atreve a entrar. 
 
Quem, que grande artífice criou esta maravilhosa coroa, quem coroou com ela as Terras Mortais? Sete 
estrelas  cintilavam,  tremulas  ‐  assim  estremece  o  mundo  nos  olhos  cheios  de  lagrimas.  Uma  ‐  ardia, 
calma. E somente prestando mais atenção, podia‐se notar que ela pulsa ‐ como bate um coração. Cada 
um dos que viram estas estrelas tentava entender ‐ o que significa esta coroa na noite. E nasciam lendas 
‐ belas e grosseiras, tristes e grandíloquas...  
 
 “Oito Aratar reinam em Arda. O líder deles é Manwë. Como uma coroa sobre a cabeça do governante ‐ 
sinal ameaçador aos escravos e aos maus, assim a Coroa da Terra‐Média ‐ ameaça e advertência sobre 
aquele  castigo  que  inevitavelmente  recairá  sobre  o  Inimigo.  Que  seja  ele  amaldiçoado  para  todo  o 
sempre, aquele que se atreve a desobedecer a Eru! 
 
...Como uma estrela na Coroa da meia‐noite ‐ assim é Manwë entre os Aratar. Os nomes dos Sete, que a 
toda Arda governam na grandeza ‐ a criadora das estrelas Varda e Ulmo, senhor das profundezas das 
águas,  mãe  de  tudo  o  que  vive  Yavanna  e  Aulë,  o  ferreiro,  senhor  dos  destinos  de  Arda,  senhor  dos 
mortos  Námo,  mãe  dos  que  sofrem  Nienna  e  Oromë,  senhor  dos  cavalos.  E,  um  sinal  da  glória  deles, 
Varda criou a Coroa da Terra‐Média, e a mais brilhante é a estrela  do senhor Manwë. E o Inimigo foi 
expulso do círculo dos Grandes, e que suma ele da face de Arda! Que a Coroa da Terra‐Média seja para 
ele um eterno desafio!..” 
 
 “...Vê ‐ ali em cima, sobre as montanhas ‐ a Coroa? Vê ‐ a Estrela? Dizem, ela não é o sol de um mundo 
distante,  como  aquelas  Sete.  Dizem,  o  Mestre  acendeu‐a  com  a  força  do  amor  e  a  magia  do  saber  há 
muito tempo, antes ainda do nosso acordar nas águas escuras da Lagoa. Isso é um sinal para aqueles 
que  eternamente  seguem  pelo  caminho  da  busca  e  dos  feitos,  do  saber,  do  amor  e  do  sacrifício.  Para 
aqueles  que  seguem  e  para  aqueles  que  ainda  não  nasceram  no  mundo,  mas  que  pisarão  sobre  este 
caminho. Dizem, é um desafio dos Valar. E dizem ainda ‐ se olhar com atenção e ouvir, notará como bate 
o  coração  da  estrela.  Mas  isso  tudo  são  somente  boatos  ‐  o  Mestre  somente  sorri  quando  você  o 
pergunta  sobre  isso.  E,  mesmo  assim,  eu  acho  que  é  verdade.  Porque...  Não  sei.  É  belo,  e  eu  acredito 
nisso, e por alguma razão o coração diz que é assim mesmo... E porque ‐ Sete e Uma? Eu não sei. Sete ‐ é 
um número mágico, nos somente compreendemos o significado dele há pouco tempo ‐ é o numero da 
verdade e da harmonia, e significa ‐ multiplicidade dos mundos. Pois é certo ‐ Sete Sois e Arta! Talvez, 
por  isso?  Verdade  que  alguns  dizem  que  as  Sete  estrelas  se  reuniram  assim  por  acaso,  mas...  é  uma 
coincidência boa demais. Provavelmente não. Em Ëa, essas Sete significam algo justamente para Arta. 
Mas por enquanto eu não sei. É preciso pensar e procurar...” 

O Livro Negro de Arda  Página 63 
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SOBRE A CHEGADA DOS HOMENS 

 
...Quem sabe, quem contará sobre quando surgiram em Arta os Homens? Os sábios dizem ‐ quando o Sol 
se levantou pela primeira vez sobre o mundo. Mas o Sol é mais antigo do que Arta, e o nascer dele foi 
visto muitas vezes por aqueles que tinham o dom de vê‐lo, e isso foi muito antes dos Homens. Os Elfos 
sabem somente sobre aqueles Homens que chegaram ao Ocidente nos dias de Finrod Felagund, sobre 
aqueles  que  depois  seriam  chamados  de  as  Três  Hostes  ou  de  Atani.  Sobre  os  outros  homens,  que 
escolheram  caminhos  diferentes  do  caminho  para  o  Ocidente,  os  Elfos  nada  sabiam.  Também  não 
sabiam  que,  desde  o  início,  os  Homens  eram  capazes  de  ver  o  Sol  e  a  Lua,  ‐  muito  antes  de  os  Elfos 
verem a Face do Dia e a Face da Noite. Os Homens receberam dádivas estranhas, e muitas delas eram 
estranhas e incompreensíveis para os Elfos. E elas não foram dados de uma vez, como aos Elfos, mas 
acordavam gradativamente, e, ao descobrir em si um novo dom, o humano não o perdia depois, mas o 
polia, passando‐o de geração em geração. Se, claro, ele mesmo não se assustasse com o próprio dom... 
 
Sobre o Despertar dos Homens contam as lendas que hoje são guardadas por poucos. Naquele vale que 
os Eldar chamam de Hildórien, acordaram primeiro aqueles que são chamados de Nascidos‐na‐Noite, 
apesar de eles terem chegado na hora anterior a alvorada, quando o céu no Oriente já começa a clarear, 
mas as estrelas da noite ainda são brilhantes. As lendas nomeiam quatro povos: Ahhi, Noturnos, e Aoi, 
Homens  das  Sombras  da  Floresta;  Ilhennir,  Filhos  da  Lua,  e  Ohor’tenn’ayri,  Aqueles‐que‐Vêem‐e‐
Preservam. 
 
Naquela  hora  em  que  no  céu  que  clareia  as  estrelas  ardem,  como  gotas  de  orvalho  prontas  para 
despencar, e sobre a terra escorre, num lento rio sonolento, uma cintilante neblina mágica, chegaram 
ao mundo os Elliri, Filhos da Estrela, o primeiro dos Povos do Amanhecer. Relva orvalhada e a neblina 
da manhã se dissolvendo ‐ povo Ennir ert’Sin, e os primeiros raios do Sol dourado ‐ homens de Eturu...  
 
São chamadas de Filhos do Sol as Três Hostes dos Edain; e irmãos deles ‐ o povo Asener, os homens de 
Hanatta e Nghatta, e tribos nômades que voam sobre a terra como o vento do meio‐dia. E a sombra do 
meio‐dia deu vida àqueles que se chamaram ‐ Ullayr Ghellah, o Povo das Estrelas da Meia‐Noite.  
 
E no pôr‐do‐sol, entraram no mundo os povos de Ana e Daon. Os últimos raios claros ‐ oferenda do Sol 
para  o  povo  Daho,  e  na  hora  do  nascimento  das  estrelas  chegaram  as  hostes  daquela  terra  que  foi 
chamada  de  Angellemar,  Vale  onde  Nascem  as  Estrelas.  E  quando  o  céu  ainda  não  teve  tempo  de 
escurecer no Ocidente, nasceram os que foram nomeados Irmãos dos Lobos.  
 
Nem  todos  os  nomes  foram  ditos,  e  muitos  povos  não  se  recordam  mais  da  Hora  do  Acordar.  A 
sabedoria perdida dos Ohor’tenn’ayri guardava os nomes de todos os povos, mas hoje não há ninguém 
para contar sobre isso, pois esta hoste sumiu da face de Arta; misturou‐se o sangue dos povos e dialetos 
deles,  as  lendas  que  eram  transmitidas  de  boca  em  boca  por  muitas  gerações  tornaram‐se  vagas.  E 
apesar de tudo, muitos lembram Daquele Que Vinha. Assim conta sobre ele o mito do Povo da Estrela: 
 
“E entre nos surgiu alguém, semelhante a nos, mas mais belo e mais sábio que nos. E ele veio na noite, e 
ele  vestia as vestes do  Escuro,  e asas  negras  estavam nas costas  dele.  E  os  cabelos  dele  eram como  a 
noite, e estrelas estavam enlaçadas neles, mas mais brilhantes que as estrelas eram os olhos dele. E ele 
falou  conosco,  e  a  fala  se  assemelhava  à  nossa,  mas  era  diferente,  e  as  palavras  dele  eram  música, 
semelhantes a llien tayre omm ellar ‐ canção que voa entre as estrelas; e tudo era compreensível para 
nos. 
 
E ele disse: Eu vim até vocês, pois desejava vê‐los. 
 
E ele disse: eu não vim para levá‐los pelos caminhos batidos; eu lhes apontarei os caminhos, mas vocês 
escolherão  o  seu  pela  própria  vontade,  e  sozinhos  seguirão  por  ele.  Se  desejarem,  eu  lhes  darei  os 
inícios dos conhecimentos que lhes ajudarão no caminho, mas vocês mesmos chegarão à sabedoria. E 

O Livro Negro de Arda  Página 64 
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quando for assim, vocês serão iguais a mim, e acima de mim, pois vocês são livres e podem mudar os 
destinos do mundo... 
 
E ele nos ensinava muitas coisas, e conversava conosco sobre tudo o que existe no mundo, e sobre tudo 
que é o corpo do mundo, e sobre a alma dele; e sobre estrelas incontáveis que brilham na escuridão... E 
ele nos falava sobre a criação do mundo, sobre a Grande Música e sobre os outros mundos que cintilam 
como pérolas entre as estrelas de Ëa. E ele contava como foram criadas as plantas e os animais, o Povo 
Mais Velho e os Homens, e ensinava a conversar com os espíritos das florestas, montanhas e águas, com 
animais e pássaros, ouvir as vozes da terra, das arvores e das ervas, canções das estrelas e canções do 
vento. 
 
Ele apareceu mais de uma vez, e nos o esperávamos, pois tínhamos sede de novos conhecimentos e nos 
alegrávamos ao descobrir o novo; e também porque o amávamos. Mas ele não nos revelou o nome dele, 
e  nos  o  chamávamos  de  Aquele  que  Amou  e  de  Mestre.  E  nos  entristecemos‐nos  quando,  um  dia,  ele 
partiu e não voltou...” 
 
Os homens não sabiam o nome Daquele Que Vinha, como não sabiam também quem era ele; e muitos o 
chamavam de Deus da Noite, e davam‐lhe muitos nomes. E os Elliri o chamaram de Elgo Thore, o que 
significa ‐ Aquele que Ouve o Mundo, Que Veio na Noite. 
 
Do vale do Acordar, os caminhos dos Homens se separaram, e cada povo achou uma terra que se tornou 
o  lar  dele.  Somente  os  Elliri  eram  Andarilhos  desde  o  início.  Eles  passaram,  vagando,  longos  anos,  e 
viram  muitas  terras,  mas  de  nenhuma  delas  falaram  –  eis  o  nosso  lar.  E  eles  estavam  felizes  com  a 
viagem, descobrindo para si o jovem mundo, os segredos e maravilhas dele. E no caminho, a Noite do 
Grande Feitiço os encontrou... 
 
...E alguém exclamou de repente: 
 
‐ Olhem!...  
 
Abrindo as asas imensas, um Dragão voava silenciosamente no céu noturno. As escamas cor de mel e de 
cobre brilhavam com o ouro opaco no luar; ele dançava, expondo o corpo elegante para a luz mágica, e 
os homens ouviram o surdo ritmo do feitiço da dança. Eles olhavam, sem desviar os olhos, cedendo aos 
feitiços  da  Dança  da  Lua,  e  nos  corações  deles  nascia  a  Música.  A  noite  cantava,  e  estranhas  flores 
pálidas  e  cintilantes  se  abriam,  um  aroma  levemente  amargo  e  triste  flutuava  no  ar,  e  soava  uma 
melodia baixa de flauta, e nela enlaçavam‐se, com brilhos de fogos escuros com tons de ouro vermelho, 
as notas cálidas das flores de feto. A noite soava com acordes surdos de órgão ‐ cantavam as árvores 
milenares, e os espíritos das florestas dançavam sem se ocultar dos olhares dos homens, e as canções 
deles  eram  indistinguíveis  das  canções  das  ervas  e  flores,  e,  sobre  o  veludo  roxo  e  negro  do  céu  de 
outono, as estrelas traçavam runas estranhas, e em uma dança encantada rodopiava o Dragão...  
 
Innire, Aquela que Dança sob a Lua, enlaçou nos cabelos dela as brancas florestrelas, e saiu, e seguiu a 
dança; e os espíritos da floresta dançavam com ela. E naquela noite, os homens falavam nas línguas de 
ervas e flores, pois não queriam quebrar o silêncio com o som da voz: as flores e ervas eram as palavras 
deles, e as estrelas os coroavam...  
 
Desde então, o dragão que dança no céu noturno sob a coroa da Sete estrelas, coroado com Uma, a mais 
brilhante, tornou‐se para os Elliri o sinal de alta sabedoria e da magia.  
 
Assim eles andavam pela terra ‐ Andarilhos da Estrela. E chegou a hora em que, nas suas viagens, eles 
viram  no  silêncio  da  meia‐noite  a  Coroa  que  baixou  sobre  as  montanhas  brancas  do  norte  e,  como  a 
gema  mais  preciosa  na  Coroa  do  Mundo,  brilhava  a  Estrela.  E  assim  acabaram  as  andanças  obscuras 
deles pela a face de Arta, pois a Estrela apontou‐lhes o caminho, e agora eles sabiam para onde ir.  
As  lendas  preservaram  os  nomes  antigos.  Havia  um  com  o  nome  de  Neyir,  Aquele  que  Aponta  o 
Caminho. Dizem que quando ele olhava para a Estrela, ele dizia ‐ ela sofre e ama. E uma vez, depois de 

O Livro Negro de Arda  Página 65 
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passar  a  noite  sob  o  céu  aberto,  sem  sono,  em  uma  tristeza  clara  e  estranha,  ele  veio  até  os  chefes  e 
disse: 
 
‐ Eu sei ‐ existe a Terra‐sob‐a‐Estrela, e o meu coração me chama para lá. Eu quero, eu devo encontrá‐la, 
por mais longo que seja o caminho. Quem irá comigo? 
 
E os homens acreditaram nele, pois sabiam que Neyir vê mais longe do que os outros com o coração. E o 
seguiram, pois nos corações deles também batia o chamado da Estrela.  
 
Por muitos dias e noites, por muitos anos eles seguiram a Estrela. Canções sobre a Grande Viagem são 
belas e tristes, cheias de saudade e esperança, pressentimento e fé, e nas canções soa o nome da Estrela 
‐ Meltor. Ninguém sabia porque a chamaram de Força do Amor, mas também ninguém perguntava, pois 
eles não poderiam imaginar um outro nome para a Estrela: eles sentiam mais do que podiam perceber 
então.  
 
E  as  Canções  da  Grande  Viagem  guardam  o  conto  sobre  os  homens  vestidos  de  negro,  cujos  olhos 
brilhavam como estrelas ‐ sobre os sábios andarilhos que vinham para falar com os homens, que lhes 
traziam  as  próprias  canções,  sabedoria  e  conhecimentos.  E  o  nome  do  povo  deles  era  parecido  com 
aquele que se deram os Andarilhos da Estrela: Elleri Ahe. 

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SOBRE OS CAVALOS ALADOS. ANO 15 DO DESPERTAR DOS ELFOS 

 
A  noite  de  outono  estava  viva.  Ouvindo  cuidadosamente  os  passos  do  tempo  ‐  o  som  das  gotas  de 
orvalho caindo ritmicamente dos galhos, ‐ ela estava imóvel na esperança de algo que só ela conhecia. A 
Noite ouvia o Tempo. E dois ouviam a noite. Lentamente, a eterna neblina do vale de Gellome escorria 
em  tiras  prateadas.  Na  primavera,  no  verão  e  no  outono,  as  ervas  aqui  pareciam  de  prata,  como  se 
estivessem cobertas de geada; só na primavera aqui floresciam as florestrelas que cintilam como feitiço 
primaveril nas coroas do Dia da Prata... O Maia sorriu. Agora, as estrelas floresciam no céu, apesar do 
luar,  era  possível  ver  os  traçados  familiares  das  constelações,  e,  de  tempos  em  tempos,  relâmpagos 
brancos das estrelas cadentes riscavam o céu. “Provavelmente, elas também agora se transformarão em 
flores...” O Maia olhava para o céu, sentindo como o encanto mágico da noite toma conta dele. Parecia 
que  a  noite  foi  e  será  eterna,  e  ele  continuará  assim  dentro  dela  ‐  eternamente  olhando  para  o  céu 
estrelado.  Lá  em  cima  voava  o  vento,  escorregavam  as  leves  nuvens  semitransparentes,  de  vez  em 
quando ocultando com o véu escuro os fios preciosos das constelações. 
 
Um vento repentino jogou para trás, num redemoinho, os cabelos do Maia ‐ prateados no luar.  
 
‐ Sobre o que você está pensando? ‐ perguntou Melkor em voz baixa, tocando o ombro dele. Gorthaur 
estremeceu, como se acordasse de um sonho: 
 
‐  Eu  vi...  Ou  me  pareceu?  –  ele  falou  quase  num  sussurro.  ‐  Essas  nuvens...  provavelmente  elas  me 
enganaram... Sabe, me pareceu de repente que ali, no céu, está um cavalo. Uma nuvem, coagulo da noite 
de lua cheia do outono – o corpo dele, as asas ‐ o vento do céu, a crina de neblina e riscos das estrelas 
cadentes, olhos ‐ o reflexo da lua numa lagoa noturna... Eu ouvi o vôo dele, a respiração dele é como o 
vento de outono... Mestre, como eu gostaria que isso não fosse somente uma visão... 
 
‐ Isso não é mais uma visão. Veja!  
 
Melkor apontou para algum lugar na neblina – e então, deslizando silenciosamente sobre a terra, surgiu 
o cavalo alado, aproximou‐se, pisando inaudivelmente, e parou perto deles, olhando torto com o olho de 
estrela. O Maia sorriu: 
 
‐ Foi você que fez isso? Novamente um presente?  
 
‐ Não, ‐ Melkor estava sério. ‐ Foi você mesmo. Simplesmente – teve muita vontade...  
 
Gorthaur já estava entrando, mas Neere o impediu.  
 
‐ O Senhor pediu para não perturbar, ‐ estrondeou Balrog.  
 
‐ E o que houve?  
 
‐ Disse ‐ ele precisa pensar. Você me desculpe, Gor...  
 
Maia acomodou‐se num canto com um suspiro: 
 
‐ Vou esperar. Preciso pedir uns conselhos ao Mestre...  
 
Ficaram calados.  
 
‐ Não entendo o que está acontecendo com ele, ‐ reclamou Gorthaur. – Não duvido, estes pequenos são 
uma verdadeira maravilha... Mas mesmo assim: sempre estão o rodeando. E, parece, ele está feliz. Logo, 
vejo, não poderemos nos esconder deles nem no castelo!  

O Livro Negro de Arda  Página 67 
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‐ Pois é, ‐ falou o Balrog com uma voz de baixo. ‐ Ontem mesmo apareceu aqui uma pequenina. O que 
você, pergunto, quer? E ela me responde assim seriamente: tenho, tipo, um negócio importante com o 
Mestre. E ‐ passa correndo por mim! Nem deu para abrir a boca... Vai, penso, se o negócio é importante, 
talvez precisem de mim também. Vou entrando direto para a oficina: ele fazia lá essa coisa esquisita de 
madeira... sabe, um deles ainda toca numa igual...  
 
‐ Alaúde, ‐ ajudou Gorthaur.  
 
‐ Certinho ‐ alaúde. Trabalho fino, é claro. Só o Senhor, mal viu essa pequenina, começou a sorrir, botou 
tudo de lado na mesma hora... Negocio importante! Ela lhe trouxe umas frutas!  
 
O Balrog calou‐se depois da fala descomunalmente longa. 
 
‐  Vi,  ‐  respondeu  Gorthaur,  ‐  os  morangos.  Eu  entro  ‐  eles  estão  lá  na  oficina,  sentados,  e  eu  nem 
acreditei  nos  meus  ouvidos  ‐  o  Mestre  está  cantando  algo  para  ela.  Bem  baixinho...  ‐  Maia  sorriu 
involuntariamente para a lembrança: a voz de Melkor era muito bonita. ‐ E ele  que não recusa quase 
nada às crianças. Estou certo: se amanhã alguém quiser voar de dragão, o Mestre vai permitir.  
 
‐ E o dragão? ‐ o Balrog riu.  
 
‐  Não,  eu  vou  falar  tudo  para  ele.  Basta,  ‐  o  Maia  levantou‐se  resoluto,  mas  nesse  momento  Melkor 
finalmente apareceu na porta. O rosto absolutamente feliz, os olhos brilham: 
 
‐ Sabe, Discípulo, eu entendi qual é o conto de fadas que eu contarei a eles.  
 
‐ Oh, Mestre... ‐ Gorthaur sorriu.  
 
Encontrar  um  quadro  semelhante  era  o  que  Gorthaur  menos  esperava.  Ele  sabia  que  Melkor  é 
imprevisível;  mas  aquilo  que  ele  viu  agora  não  correspondia  até  tal  ponto  à  figura  do  calmo  e  sábio 
Mestre, que Maia ficou perplexo. Eles... brincavam de batalha de neve! Parece que Melkor levou mais do 
que os outros: os cabelos dele estavam cobertos de neve, e havia neve grudada em toda a capa. “Uma 
maneira peculiar de expressar o amor pelo Mestre!” Se bem que aquilo que estava acontecendo parecia 
agradar ao próprio Vala. Ele ria ‐ abertamente e com alegria, como somente crianças sabem rir; atirou 
uma bola de neve para o ar, e ela se desfez em estrelas cintilantes, iluminando com uma luz suave os 
rostos rosados pela brincadeira dos Elleri.  
 
‐ Mestre! ‐ o chamou Gorthaur.  
 
Aquele se virou e foi em direção ao Discípulo, tirando, ao andar, a neve que grudou na roupa.  
 
‐ O que você está fazendo? Para que? 
 
Melkor, desviando –por um triz ‐ de uma bola de neve certeira atirada pelo Artífice, respondeu: 
 
‐ Para compreender os homens, é preciso dividir tudo com eles: e dor, e alegria, e trabalho, e diversão. 
Não é assim, Discípulo?  
 
‐ Sim, Mestre, mas mesmo assim... eles são simplesmente crianças, e você...  
 
Melkor riu com um riso jovem, feliz: 
 
‐ E por que não? Fale honestamente: você mesmo não quer tentar?  
 
Gorthaur se perturbou: 
 

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‐ Mas você é o Mestre... Como eles... Como eu...  
 
A bola de neve que o acertou no ombro, impediu o Maia de terminar a frase.  
 
Gorthaur abaixou‐se, pegou um punhado de neve na mão; uma segunda bola acertou a testa dele.  
 
‐ Se cuidem então! Vou mostrar!.. ‐ urrou ele com uma raiva fingida. ‐ Eu estou aqui a negócios, e é com 
isso aí que vocês me recebem!  
 
O Artífice não conseguiu desviar.  
 
‐ E isso é de mim! ‐ gritou Melkor, e a bola de neve, ao tocar o peito do Contador de Histórias, virou um 
pássaro branco.  
 
Gorthaur, virando o rosto coberto de neve para Melkor ‐ o Artífice Geleon não ficou devendo ‐ sugeriu, 
com um sorriso largo: 
 
‐ E então, Mestre, vamos mostrar a eles de que nos somos capazes?  
 
Melkor fez um sim com a cabeça, fazendo uma pirueta para desviar de mais uma porção de neve. 
 
Nas  mãos  do  Menestrel,  a  bola  de  neve  de  repente  se  transformou  num  pequeno  arminho.  O 
animalzinho  parou  como  uma  estatua  na  palma  do  elfo,  brilhando  com  contas  negras  dos  olhos, 
espirrou quando flocos de neve caíram em cima dele e se escondeu dentro casaco de pele do Menestrel.  
 
‐ Está se divertindo, Mestre? ‐ riu Gorthaur. 
 
...À  noite,  todos  se  reuniram  na  casa  do  Mago  ‐  aquecer‐se  em  frente  ao  fogo  e  secar  as  roupas 
molhadas.  Ouviam  o  Menestrel,  bebiam  vinho  quente  com  especiarias.  Melkor,  estudando  o  cálice  de 
ônix chapeado com prata ‐ presente do Artífice ‐ falava com Gorthaur a meia voz: 
 
‐  Claro,  um  simples  feitiço  é  suficiente  para  expulsar  o  frio,  secar  a  roupa;  os  Imortais  podem 
simplesmente não sentir frio. Mas não é mais agradável aquecer‐se perto do fogo na roda dos amigos, 
beber  um  bom  vinho  ‐  mesmo  que,  em  essência,  você  nem  tenha  necessidade  disso  ‐  simplesmente 
ouvir as canções e puxar conversa?  
 
‐ Você está certo, Mestre, ‐ respondeu o Maia, pensativo. ‐ E eu não consigo compreender: por quê em 
Valimar o chamam de Inimigo? Por quê dizem que você desconhece o bem, que não é capaz de criar? 
Perdoe se as minhas palavras te ofenderam... Mas não é mais fácil viver se você compreende os outros, 
diferentes de você mesmo? Se não tem medo? 
 
‐ Eu entendi o que você quis dizer. O mal está no fato deles não quererem entender. Claro que não lhe 
contaram que eu lhes ofereci uma aliança?  
 
‐ Não...  
 
‐  Não  é  de  admirar,  ‐  Melkor  riu  tristemente.  ‐  O  que  o  Inimigo  pode  fazer  de  bom?  Valar  temem 
desobedecer a vontade de Eru. E a aliança comigo significa exatamente isso. E, para que ninguém não 
possa nem mesmo conceber algo assim, me nomearam inimigo e apóstata. Significa que não pode haver 
nada de bom nem nos meus pensamentos, nem nos meus feitos.  
 
‐ Mas isso não é assim!  
 

O Livro Negro de Arda  Página 69 
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‐ E você, pode considerar um inimigo aquele que sabe amar, como você o sabe; que quer ver o mundo 
belo, como você o quer; que pode sentir e pensar, como você o faz; que se alegra igualmente com o dom 
de criar? Aquele que, em essência, deseja o mesmo que você? 
 
‐ Que inimigo seria ele, então?  
 
‐ Nisso é que está o problema, ‐ Melkor tomou um gole de vinho.  
 
‐ Sabe, ‐ Gorthaur disse baixo depois de um breve silêncio, ‐ eu estou tentando imaginar Aulë brincando 
de batalha de neve com os seus discípulos.  
 
‐ E então? ‐ interessou‐se Vala. 
 
‐  Não  dá,  ‐  suspirou  o  Maia.  ‐  Ele  não  se  rebaixaria.  Provavelmente,  nunca  viria  na  cabeça  dele 
transformar uma bola de neve num pássaro. Porque isso não tem nenhuma utilidade. É simplesmente 
bonito, interessante, divertido... E ele é o Grande Ferreiro, e por isso deve criar somente o grande e o 
útil. Para maior glória do Único. E disso ‐ que glória? Somente... Aquece o coração, será? Não sei, como 
dizer...  
 
Melkor suspirou: 
 
‐ Um dia eu te contarei, o que fez Aulë ficar assim...  
 
‐ Andarilho!  
 
O jovem virou‐se.  
 
‐ Ouça, Andarilho, o que aconteceu com seus olhos? 
 
Aquele ficou perplexo: aparentemente, nada de especial... O Pintor riu baixo: 
 
‐ Os seus olhos estão dourados...  
 
‐ O que? ‐ não entendeu Andarilho.  
 
‐ Dourados como mel, como o sol nascente. Veja você mesmo!  
 
O Andarilho sorriu: 
 
‐ E não há nada de engraçado. E não há nada para se surpreender. Olha os seus ‐ são azuis, os do Mago – 
verdes, como folhas no sol...  
 
‐ Verdade? ‐ subitamente, o Pintor ficou sério. ‐ Ouça, e por quê?  
 
‐ Mas não era sempre assim?  
 
‐ Não... Eram ‐ cinzas, os meus, os seus, os dele... Não consigo entender. Talvez, o Mestre responderá?  
 
‐ Antes não tínhamos tempo para reparar nisso...  
 
‐ Nos só agora percebemos...  
 
‐ Talvez, você sabe? Os estão se tornando diferentes, e os cabelos... Porque?  
 

O Livro Negro de Arda  Página 70 
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O  Vala  sorriu.  Quão  diferentes  eles  ficaram...  Mechas  desobedientes  de  cabelos  ondulados  dourados 
escuros caíam em desordem sobre os ombros do Andarilho, ele é todo assim claro, límpido e fino, como 
um  raio  de  luz.  O  olhar  do  Pintor  é  tenaz  e  aguçado,  mas  os  olhos  ‐  azuis,  aveludados,  como  safira 
escura,  e  os  cabelos  negros  estão  presos  por  uma  tira  fina  de  couro.  Ele  aparenta  ser  mais  velho:  o 
Andarilho, comparado com ele, é quase um menino, mesmo que os dois sejam dos Primeiros. Mas todos 
sabem  que  faz  tempo  que  o  Artífice  Orein  de  olhos  azuis  perde  e  a  coragem,  e  a  confiança,  e  a 
severidade, basta aparecer por perto a pequenina e delicada Halie – hábil bordadeira e tecelã.  
 
‐ Por quê, Mestre?  
 
‐ Simplesmente ‐ vocês são Homens. E os homens são todos diferentes, não se parecem um com o outro, 
como folhas de uma arvore, como estrelas...  
 
“Vocês são Homens. Assim como eu os via, quando ouvia o Canto de Ëa. Só que pela vontade de Eru eles 
serão tão pouco duradouros como faíscas, e serei eu capaz de devolver‐lhes aquilo que ele tomou? Ou a 
dádiva da liberdade se tornará para eles um castigo e um mal? Será que nisso Eru será o mais forte?” 
 
Foi uma conversa inesperada.  
 
‐ Conte, Gorthaur, e os outros Criadores do Mundo, aqueles que vivem em Valinor, eles são bonitos?  
 
Ele  ficou  pensando  por  muito  tempo,  pela  primeira  vez  descobrindo,  surpreso,  que  agora  os  rostos 
perfeitos dos Valar não lhe parecem nada belos. Nenhum traço errado, como se alguém tivesse como 
meta  a  criação  de  uma  beleza  perfeita,  e  conseguiu‐o,  mas  na  corrida  atrás  da  clareza  e  exatidão  das 
linhas  desapareceu  algo  principal,  tão  importante  como  impossível  de  capturar,  e  nestes  rostos  não 
havia  vida.  Todos  os  Valar  eram  diferentes  e  ‐  semelhantes,  mesmo  se  distinguindo  pelos  traços  dos 
rostos e alturas, cor dos olhos e dos cabelos. Alias, quase todos...  
 
Não, aqueles que ele via ao redor de si agora eram infinitamente mais belos. E o sonhador moreno de 
olhos  dourados,  o  Andarilho,  e  o  Armeiro,  zombeteiro,  de  ombros  largos,  Gellor‐Mago,  sempre 
pensativo e concentrado, e a impetuosa Allua, e quase majestosa Onnele Cyolla...  
 
‐ E as Valier? 
 
Pensando bem, era possível chamar de belas somente duas: Nienna e Estë. Justamente porque os rostos 
delas  foram  marcados  por  algum  sentimento.  Mas  a  obra  prima  de  acabamento,  a  perfeita  Rainha  do 
Mundo ‐ qual dos Homens a chamará de bela?  
 
‐ E o Rei... o irmão mais novo do Mestre?  
 
Manwë. Estranho: enormes olhos brilhantes e pestanas compridas não estragam em nada o irmão mais 
velho,  e  os  traços  do  mais  novo  são  quase  efeminados  ‐  por  quê?  Novamente  algo  impossível  de 
capturar...  
 
‐ Ouça, Gorthaur... eu pensei só agora... ‐ O Andarilho parecia envergonhado. ‐ Qual é a cor dos olhos do 
Mestre?  
 
E verdade ‐ qual? Cinza‐claros? Verdes? Azuis? Seria possível definir a cor das estrelas?.. Vinham‐lhe na 
cabeça  somente  comparações:  céu,  mar, estrelas...  Mas  o  céu também  não  é  sempre  azul,  as águas  do 
mar nem sempre parecem verdes... Relâmpago?.. Gelo?.. Aço?..  
 
‐ Não sei. Eu não sei.  
 
Eles  eram  diferentes,  os  Discípulos  de  Melkor,  Elleri  Ahe.  Havia  aqueles  em  cujas  mãos  o  metal 
começava a cantar e as gemas ganhavam vida. Havia aqueles que compreendiam a língua dos animais e 

O Livro Negro de Arda  Página 71 
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dos pássaros, das arvores e das ervas, e aqueles que sabiam ler o Livro da Noite... E aquele que sabia 
compor canções melhor que todos, chamava‐se ‐ Menestrel Escuro. O sinal dele era a estrela alada de 
nove  pontas:  aperfeiçoamento  da  alma,  o  caminho  do  coração  alado.  As  baladas  dele  pareciam  e  não 
pareciam  aquelas  que  o  Maia  dos  olhos  dourados  cantava;  talvez  porque  nelas  vivia  uma  tristeza 
desconhecida.  E  os  olhos daqueles  que  o  ouviam  se  enevoavam.  E aquele  que  via  os sinais do Escuro 
encontrou um meio de anotar os pensamentos. Ele criou os sinais tay‐an, que poderiam ser escritos no 
pergaminho  com  pena  e  com  pincel,  e  aqueles  que  poderiam  ser  gravados  nas  pedras  e  talhadas  na 
madeira. E entre os Elfos do Escuro, ele levava o nome de Amigo dos Livros.  
 
E  aquele  que  ouvia  os  cantos  da  terra,  as  contava  em  forma  de  contos  de  fadas  ‐  estranhos  e  sábios, 
alegres e tristes. Assim dizia ele: “Nossos filhos amarão estes contos; quando se começa a descobrir o 
mundo,  ele  parece  cheio  de  maravilhas  e  enigmas  ‐  que  seja  assim  naquelas  histórias  que  lhes  serão 
contadas...” Melkor sorria, ouvindo‐o; e o chamaram de Contador de Histórias.  
 
Eles  eram  diferentes,  mas  semelhantes  em  uma  coisa:  todos  eles  consideravam‐se  Homens,  pois, 
mesmo  que  fossem  inicialmente  Elfos,  escolheram  o  caminho  dos  Mortais;  mas  a  vida  deles  era  tão 
longa quanto a dos Primeiros Nascidos, e o cansaço não os tocava – quem teria tempo para se cansar 
quando  há,  ao  redor,  tanto  desconhecido,  novo  e  belo?  E  o  mundo  espera  o  toque  das  suas  mãos,  e 
alegra‐se com você, e o seu coração está aberto a ele... 
 
E o Mestre alegrava‐se vendo como aumenta a sabedoria e o entendimento dos discípulos dele. 
 
E a paz reinava em Arta. Mas ela durou pouco. 

O Livro Negro de Arda  Página 72 
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CÁLICE. ANOS 488­500 DO DESPERTAR DOS ELFOS 

 
Desde  a  partida  de  Artano,  começaram  a  olhá‐lo  de  um  jeito  estranho  em  Valinor,  e  muitos  até  o 
evitavam. Ele atribuía isso ao fato de que Aulë perdeu as boas graças do Rei do Mundo e dos Poderes, 
mas logo ele teve a chance de verificar que não é assim. Ao oferecer, mais uma vez, os serviços dele ao 
Ferreiro, ele ouviu um taciturno “Não”. 
 
‐ Mas por quê, meu senhor?  
 
‐ Quanto você, quanto aquele foram fundidos na mesma forma, ‐ respondeu Aulë, sombrio.  
 
Curumo  não  o  compreendeu,  mas  não  teve  coragem  de  perguntar  mais.  Mas  pensou  e  memorizou  a 
resposta do senhor dele.  
 
Um dia, ele percebeu um olhar hostil de Tulkas: 
 
‐ Do que é que você precisa aqui? 
 
Curumo fez uma elegante reverência: 
 
‐ Eu fui enviado com um encargo do meu senhor Aulë, Poderoso...  
 
‐ Então vá... ‐ resmungou Tulkas. E, pelas costas, o Maia ouviu, ‐ cria do Inimigo... 
 
Curumo era inteligente ‐ e não era difícil adivinhar a verdade.  
 
“Então eu, tal como Aulendil, fui criado por Melkor. E eu sou o mais poderoso e o mais sábio entre os 
Maiar,  como  ele  ‐  entre  os  Valar...  Mas  claro!  E  agora  os  Valar  simplesmente  têm  medo  de  mim.  Até 
Tulkas. Servo de Aulë! Que título. O que me espera aqui? O destino de um serviçal? E lá? Claro, ele me 
receberá, como recebeu Artano...” Curumo fez uma careta de despeito. Artano. Rival.  
 
“Mas não me consideram o mais hábil dos discípulos de Aulë? Obviamente, o poderoso Vala dará devido 
valor  a  isso.  E  então  veremos.  E,  para  que  ele  não  duvide  da  minha  devoção,  eu  lhe  oferecerei  uma 
grande oferenda, digna de um Senhor!”  
 
‐ ...O que faz aqui?  
 
Curumo levantou‐se num salto e curvou‐se ao Ferreiro: 
 
‐ Oh, meu senhor! Eu pensei em fazer um cálice para o Rei do Mundo...  
 
‐ Por quê não me disse? ‐ Aulë estava começando a se irritar.  
 
‐  Ó  Grande!  Você  revelou‐me  um  abismo  de  sabedorias,  e  deu‐me  muitos  conhecimentos.  Mas  eu 
duvidei, seria eu digno de ser servo de um Vala tão sábio... Portanto, se a minha criação for imperfeita, a 
culpa recairá somente sobre mim, um aluno pouco aplicado. E caso a minha oferenda seja digna do Rei 
do  Mundo,  falarão:  quão  grande  é  Aulë,  se  até  o  aprendiz  dele,  um  servo,  pode  criar  algo  assim?  E 
aumentará a sua fama, meu sábio senhor. 
 
‐ Não é que você está certo?.. Bom, estou contente com você, e o seu plano me agrada. Pode continuar, ‐ 
as palavras soavam como se o Ferreiro falasse contra a própria vontade.  
 
Curumo fez uma segunda reverência: 

O Livro Negro de Arda  Página 73 
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‐  Agradeço‐o,  sábio.  As  suas  palavras  plantam  esperança  no  meu  coração.  Sou  insignificante  demais 
para ajudá‐lo nas suas obras; mas se a minha criação servir para a sua fama, não existirá um prêmio 
maior para mim...  
 
Ele saiu de Valinor silenciosamente e sem ser percebido; e só tempos depois Aulë a ausência dele.  
 
E  Gorthaur  encontrou‐o  no  portão  negro  da  fortaleza  de  Melkor.  Ele  não  teve  tempo  de  falar  nada: 
Curumo pulou para abraçá‐lo: 
 
‐ Oh, meu irmão, como estou feliz por estarmos finalmente juntos!  
 
‐ Mas... ‐ Gorthaur estava perplexo.  
 
‐ Leve‐me ao Senhor, rápido!  
 
Curumo seguia o Maia Escuro, que andava na frente: 
 
‐  Quão  destemido  você  é,  meu  irmão!  Eu  reverencio  a  sua  coragem  e  a  sua  resolução;  mesmo 
suportando  todas  as  humilhações  e  o  desprezo  com  quais  eu  fui  cercado  em  Valinor,  eu  demorei  em 
juntar coragem para seguí‐lo...  
 
Eles  entraram  na  sala  do  trono,  e  Curumo,  em  lagrimas,  atirou‐se  no  chão,  abraçando  os  joelhos  de 
Melkor: 
 
‐ Finalmente, meu senhor, finalmente eu vim até você! 
 
Melkor olhava‐o, chocado, e finalmente conseguiu pronunciar: 
 
‐ Levante, o que deu em você? Como é pode humilhar‐se assim?!  
 
‐ Não há perdão para mim, Grande! Eu também estive com eles e servi aqueles que se atrevem a opor‐se 
a você! Mas eu voltei a ver, eu compreendi toda a grandeza dos seus planos. O meu lugar é aqui, ao seu 
lado, meu senhor... Como estou feliz de ter alcançado, finalmente, a verdade!  
 
‐ Levante‐se, por favor...  
 
‐ Não, Grande, eu sou o pó sob os seus pés, eu não mereço... Perdoar‐me‐á? ‐ ele queria beijar a mão de 
Melkor, mas aquele, quase assustado, arrancou a mão, levantou‐se e fez Curumo levantar‐se do chão: 
‐ Está bem, está bem, eu te perdôo, perdôo, se você precisa tanto disso...  
 
‐ Agradeço‐o, Grande... Será que você se rebaixará a ponto de aceitar a minha oferenda? 
 
O  cálice  de  ouro  vermelho,  todo  enfeitado  com  esmeraldas  e  rubis,  enrolado  em  fino  ornamento  de 
diamantes. O pé torcido envolto por uma fita de esmeraldas de quatro faces. Trabalho hábil... mas só de 
olhar ‐ como é pesado... “Como vou levantá‐lo?..” ‐ pôde pensar Melkor. 
 
‐ Somente você ‐ o verdadeiro Senhor do Mundo ‐ é digno de beber de um cálice assim. 
 
‐ Senhor do Mundo?..  
 
‐  Claro  que  sim,  senhor!  É  engraçado  ouvir  como  condecoram  Manwë  com  o  título  de  Rei  de  Arda.  O 
poder dele não se estende para além dos limites de Valinor; realmente, somente você governa o mundo, 
meu senhor...  
 
‐ Por quê me chama de senhor? ‐perguntou Melkor, finalmente vencendo a surpresa. 

O Livro Negro de Arda  Página 74 
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‐  Há  outra  forma?  Tudo  em  Arda  é  obediente  a  sua  vontade;  nos  somos  somente  os  seus  servos, 
incapazes de compreender a profundidade e a grandeza dos seus planos.  
 
‐ Basta, ‐ o Vala Escuro, resoluto, interrompeu o discurso de Curumo.  
 
‐ Eu irritei‐o, Grande? Imploro‐o, perdoe o seu insignificante servo.  
 
Curumo estendeu‐se no chão perante o trono.  
 
‐  Levante! Se  quiser  tornar‐se  meu  discípulo,  não se  atreva  a  humilhar‐se!  Como  pode  me  chamar  de 
senhor? Aqui você não é servo ‐ está livre!..  
 
‐ Eu entendi, Grande, e que seja assim como você deseja. Mas conte‐me – você aceita a minha oferenda? 
Não voltará as costas para mim? 
 
‐ Não... Não... Fale‐me somente, porque fez este cálice?  
 
‐  Estou feliz  em  explicar‐lhe,  Grande...  Perdoe se  eu  falar algo  errado,  pois ainda sei  pouco,  e  não  são 
muitos os conhecimentos que Aulë pôde me transmitir. Ouro é o metal dos senhores, por isso escolhi 
este  material  para  a  minha  criação.  Três  pedras  se  combinam  neste  cálice:  rubi  ‐  pedra  do  poder, 
esmeralda  ‐  que  expulsa  a  tristeza  e  traz  a  alegria,  e  o  diamante  ‐  sinal  dos  vencedores  e  guerreiros 
poderosos, semelhante a sua onipotente vontade, pois é indestrutível... Fale, Grande, será que eu errei?  
 
‐ Não... Mas tudo o que disse é o olhar de um lado somente. Fale com o Artífice ‐ ele explicará...  
 
‐ Só uma coisa ainda me parece incompreensível, Artífice: eu não vi aqui nada feito de ouro. Ate as suas 
jóias são de outros metais. Por exemplo, esse seu anel; ele é belo, mas isso é aço? Pense – será que a 
beleza do anel não aumentaria se ele fosse de ouro?  
 
‐ Eu entendo‐o, Curumo. Mas o Mestre diz que o ouro é um metal pesado e arrogante, poucos possuem 
força  suficiente  para  domá‐lo  e  mudar  a  essência  dele.  Magos  e  aqueles  que  têm  habilidades  de  cura 
preferem a prata, metal da Lua, que não suporta sangue, que dá o poder sobre a essência das coisas e 
sobre si mesmo. Prata é a sabedoria e a calma, e significa ‐ equilíbrio.  
 
‐ Isso eu entendo; mas ‐ aço? Por acaso, ele não significa ‐ o poder da força?  
 
‐ Desculpe‐me, mas novamente você olha só por um lado. Tudo depende daquelas mãos que tocam o 
aço. Aço é vontade e fidelidade; o aço é metal dos defensores e não fica abaixo da prata em nada. Mas, 
acima dos outros metais, nos apreciamos o ferro. 
 
‐ Pode isso acontecer? Ferro é um metal rústico e rotineiro...  
 
‐  E  novamente,  está  certo  somente  em  parte.  Ferro  é  um  metal  antigo  que  guarda  muitos  grandes 
mistérios. Mas eles serão conhecidos somente por verdadeiramente sábios. O artífice deve possuir alta 
sabedoria e grande habilidade para trabalhar com o ferro. Esse metal possui uma vontade própria. Nos 
somente começamos a descobrir os segredos dele, e o Mestre, parece, sabe tudo... sabe, nas mãos dele o 
ferro canta...  
 
‐ E o Gorthaur?  
 
‐ Oh, foram‐lhe reveladas muitas coisas. Ele é o primeiro dos discípulos de Melkor.  
 
Curumo  fez  uma  careta.  A  menção  de  Artano  era  desagradável.  “Ouro  é  metal  inferior?  Como  se  eles 
entendessem muito de metais!” 
 

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‐ E as pedras? ‐ perguntou ele em voz alta. “Pelo menos disso eu certamente sei tudo”.  
 
‐  Você  respondeu  corretamente  ao  Mestre,  mas...  Olhe  para  este  rubi:  ele  parece  o  fogo  e  o  sangue 
ardente, mas ao mesmo tempo é frio como o gelo. A mesma dualidade ‐ nas propriedades dele, e nas 
propriedades  das  outras  pedras.  Rubi  ‐  é  sinal  não  somente  do  poder,  mas  também  da  desgraça, 
diamante ‐ é também a pedra daqueles que curam, e o significado da esmeralda ‐ beleza da natureza e 
amor do Universo. Você não sabia?  
 
‐ Claro que sabia, mas...  
 
Curumo não acabou a frase, mas, aparentemente, Geleon‐Artífice nem esperava a continuação. 
 
“Ele  mesmo  não  quis  explicar.  Não  se  rebaixou.  Mandou  falar  com  este  burro.  Mas  deixa.  Ele  logo 
compreenderá que eu sou digno de algo maior. Eu provarei...” 
 
‐ Geleon!  
 
‐ Sim, Mestre?  
 
‐ Veja; esse cálice lhe agrada?  
 
O Artífice pensou, e depois respondeu, sem muita certeza: 
 
‐  Não  sei,  Mestre...  Eu  não  vejo  defeitos...  Nunca  vi  um  trabalho  tão  fino  em  ouro,  e  as  pedras  foram 
escolhidas com saber e habilidade... todas as proporções estão corretas, mas...  
 
‐ Mas?  
 
‐  Perdoe,  Mestre,  mas  por  alguma  razão  eu  nem  quero  tocá‐lo,  ‐  parecia  que  Geleon  estava  surpreso 
com as próprias palavras. ‐ Quem fez isso?  
 
‐ Meu... discípulo, ‐ Melkor tropeçou nessa palavra. Devagar, levou o cálice até os lábios...  
 
Ou o ouro vermelho é que pregou nele uma peça, ou isso era um eco daquilo que ‐ será, mas por um 
instante pareceu‐lhe – o cálice está cheio de sangue grosso até as bordas. Ilusão? Mas de onde, então, o 
gosto salgado nos lábios?.. 
 
Melkor  atirou  o  pesado  cálice  para  longe,  com  horror  e  repulsa.  Este  tiniu,  rolando  pelo  soalho  de 
pedra. Melkor fechou os olhos com a mão tremula.  
 
‐ O que houve, Mestre?!  
 
‐ Nada... nada... Pareceu‐me que...  
 
“Que  oferenda  é  essa  que  você  me  trouxe,  Curumo?  De  quem  é  o  sangue  neste  cálice,  de  quem  é  o 
sangue  que  você  me  deu  para  beber?  Isso  é  um  sinal;  um  presente  maldito  ‐  ver,  sem  saber,  sem 
entender o que vê...” 
 
O  vinho  derramado  não  lembrava  mais  sangue,  e  ele  compreendia  que  foi  apenas  uma  ilusão...  mas  ‐ 
forte e nítida demais. 

O Livro Negro de Arda  Página 76 
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ABSINTO. ANO 497 DO DESPERTAR DOS ELFOS 

...A escolha do Nome das Estrelas ‐ cennen Gelie ‐ é uma festa para todos. E até no meio do inverno, ela 
sabia, haverá flores. Ainda mais hoje ‐ no Dia da Estrela: festa dubla. Ela escolheu justamente este dia, e 
com  ela  ‐  mais  dois,  ambos  dois  anos  mais  velhos.  Por  uma  noite,  eles  três  estarão  coroados  por 
estrelas, como se fossem iguais ao Mestre: assim é o costume. Mas tudo isso ainda acontecerá... 
 
E por enquanto ‐ os três no meio da sala, e o Mestre está na frente deles. 
 
‐ Eu, Artais da casa dos que Ouvem a Terra, escolhi o meu Caminho, e como sinal do Caminho, em nome 
de Arta e de Ëa, escolho o nome Gellaan, Vale das Estrelas. 
 
‐ Perante as estrelas de Ëa e a esta terra, o seu nome agora será Gellaan. O seu Caminho está escolhido ‐ 
que seja assim. 
 
A  mão  do  Mestre  toca  a  cabeça  curvada  de  cabelos  escuros,  e  a  jovem  levanta,  com  uma  coroa  de 
estrelas, e brilhando com o sorriso largo. 
 
‐ Eu, Tayr, escolho o caminho dos que Observam Estrelas, e como sinal do Caminho, em nome de Arta e 
de Ëa, escolho o nome Gellir, Contador de Estrelas.  
 
‐ Perante as estrelas de Ëa e esta terra...  
 
A última é ela. E o coração para ‐ será somente porque ela é a mais jovem e achou muito cedo o caminho 
dela?  
 
Como é difícil dar um passo para frente...  
 
‐ Eu, Elenhel...  
 
Ela abaixa a cabeça, por alguma razão escondendo os olhos.  
 
‐ ...aceito o Caminho da que Vê e Recorda... e como sinal do Caminho, em nome de Arta e de Ëa, escolho...  
 
Ela levanta a cabeça, bruscamente, a voz ressoa pela sala.  
 
‐ ...aquele nome pelo qual você me chamou, Mestre, pois ele é o sinal do meu caminho por milênios...  
 
Um friozinho familiar no peito: ele não somente fala, ela vê.  
 
‐ ...o nome Elhe, Absinto.  
 
Um  pequeno  relâmpago  de  gelo  espeta  o  coração  como  uma  agulha.  Como  é  estranho  o  seu  rosto, 
Mestre... O que houve com você? Como se tivesse esquecido das palavras que pronunciou dezenas de 
vezes... ou sou eu, fiz algo de errado? Ou ‐ você também ‐ vê? 
 
Ela começou a sentir medo.  
 
‐  Perante  as  estrelas  de  Ëa  e...  Arta...  de  agora...  ‐  ele  olha  nos  olhos  dela,  e  o  olhar  é  amargo  e 
preocupado, ‐ e para a eternidade, pois o Caminho não tem fim... o seu nome será Elhe. Que seja assim. 
Ele a pega pela mão ‐ e isso também não é o costume ‐ e passa os dedos sobre a estreita, confiantemente 
aberta, palma. O fogo acende‐se na mão ‐ gélido e leve, como pétala de uma flor.  
 
“O Coração do Mundo ‐ uma estrela nas suas mãos...”  

O Livro Negro de Arda  Página 77 
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Por alguns instantes, ela olha para a chama azulada, depois aperta a palma contra o peito, à esquerda.  
 
O Mestre vira‐se e com o mesmo rosto límpido e desesperado de repente joga as mãos para cima ‐ uma 
chuva de faíscas estreladas cobre todos, um suspiro maravilhado e feliz voa pela sala, em algum lugar 
acende‐se o riso...  
 
‐ Realmente ‐ Filhos das Estrelas... 
 
Ele fala muito baixo, provavelmente ela é a única a ouvir as palavras.  
 
‐ E você novamente esqueceu de si mesmo.  
 
Ele  olhou  para  Elhe  surpreso.  Aquela,  com  os  olhos  semicerrados,  concentrada,  entrelaça  os  dedos, 
depois abre as palmas ‐ e algo alça vôo em volta da alta figura de negro, como uma tempestade de neve: 
o manto ‐ como céu noturno, e estrelas nos cabelos...  
 
‐ Onde você aprendeu isso? ‐ ele estava alegremente surpreso.  
 
‐ Não sei... em todos os lugares... Eu... simplesmente tive muita vontade, ‐ ela perturbou‐se. Ele ri baixo 
e, com solenidade meio brincalhona, estende‐lhe a mão. Artais‐Gellaan e Tayr‐Gellir formam o segundo 
par.  
 
...A festa prosseguia: o vinho doce e dourado faiscava nas taças, lentamente escorria para os cálices o 
rascante vinho cor de rubi; o riso voava sob o teto de madeira como um bando de pássaros assustados, 
tiniam as cordas cantavam as flautas...  
 
‐ Mestre, ‐ um sussurro.  
 
‐ Sim, Elhe?  
 
‐ Mestre, ‐ ela tocou a mão dele, ‐ e você ‐ você não vai tocar nada?  
 
‐ Não sei, por quê não... ‐ Vala pensou e depois respondeu, resoluto. – Só que quem vai cantar será você.  
 
‐ Ai... ‐ como uma criança.  
 
‐  E  nenhum  “ai”!  ‐  ele  imitou‐a  surpreendentemente  bem  e,  já  levantando,  chamou:  
‐ Gelren! Permita‐me ‐ o alaúde. 
 
Todos se calaram de uma vez: ninguém vai atrapalhar um menestrel, e se o próprio Mestre vai tocar... A 
tarde hoje acabou ficando bastante estranha!  
 
Pouco antes ‐ riso e alegria incontida, mas a melodia voou ‐ transparente, triste, e a voz era como um 
eco  do  tinir  das  cordas  ‐  Vala  cantava,  sem  abrir  a  boca,  simplesmente  dava  o  tom,  e  com  o  tinir  da 
prata,  baixinho,  as  palavras  começaram  a  enlaçar‐se  na  melodia  ‐  entrou  a  segunda  voz,  jovem  e 
límpida: 
 
Andele‐tei cor eme 
Es‐sey o anti‐eme 
Ar ilmari‐ellar 
Ar Ennor Saerey‐allo… 
O llais a letti ah‐ennie 
Andele‐tei kori’m...  

O Livro Negro de Arda  Página 78 
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O Livro Negro de Arda  Página 79 
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As  duas  vozes  teciam  a  renda  da  melodia  encantada,  e  as  estrelas  cintilavam,  e  até  quando  a  música 
acabou, ninguém quebrou o silêncio ‐ o eco dela ainda era sentido sob o teto da sala e no coração...  
 
...até que um cálice pesado voou ao chão com um estrondo.  
 
Aliás,  ninguém  entendeu  logo  de  cara  o  que  está  acontecendo;  o  Mestre  somente  disse,  em  tom  de 
censura: 
 
‐ Eldhenn! 
 
O dragão sorriu envergonhado e fez uma tentativa de cobrir‐se com a asa.  
 
‐ E permita‐me perguntar, por quê é que você veio aqui?  
 
Uma vozinha metálica, ríspida e ao mesmo tempo infantil, respondeu: 
 
‐ Eu queria... como se diz... dar parabéns... e eu também ouvia...  
 
‐ E então? ‐ interessou‐se Vala.  
 
O dragão fechou os olhos, sonhador. 
 
‐ E para que fez cair o cálice?  
 
O dragão apanhou cuidadosamente o cálice amassado com a pata coberta de escamas e, com todas as 
precauções  devidas,  depositou‐o  sobre  a  mesa,  sem  esquecer  de  lamber  algumas  vezes  o  vinho 
derramado com a fina e rósea língua bipartida: 
 
‐ Mas e as assas... e o rabo ainda por cima...  
 
Ele  conseguiu,  finalmente,  sem  mais  incidentes,  chegar  até  o  Vala,  e  agora  o  olhava  de  esguelha, 
apertando‐se contra o chão: então, vai ficar bravo?  
 
‐ Queria ou‐uvir... ‐ até soltou um pouco de fumaça pelo nariz e, pedindo, arranhou a bota do Vala com a 
unha: vai, deixa?  
 
‐ Crianças pequenas, ‐ aquele soltou um suspiro fingido. ‐ Eh!.. o que mais, agora? 
 
Elhe parou de fazer carinho na pele ainda macia sob o estreito maxilar inferior do dragão ‐ o dragão, 
por causa disso, piscava os olhos cor de lua dourada, satisfeito, e só faltava ronronar. 
 
‐ E daí?.. vai, Mestre, ele gosta... veja!  
 
Eldhenn, para comprovar o que foi dito, urrou alguma coisa suavemente.  
 
Gorthaur olhou preocupado para o irmão mais novo: vai ver que fala alguma coisa, mesmo agora, lê‐se 
pela  cara  ‐  acharam,  tipo,  o  que  fazer!  Aquele,  no  entanto,  não  disse  nada,  apesar  de  ter  feito  uma 
carranca de desgosto e entortado os lábios com desprezo. Ótimo.  
 
‐  Elhe,  se  quiser  pegar  ele  para  ser  seu  bichinho  de  estimação  ‐  fale  assim  mesmo!  –  o  Vala  fingiu 
indignação.  
 
Elhe franziu a testa, pensativa.  
 
‐ Isso é uma boa idéia, Mestre! ‐ iluminando‐se, declarou ela instantes depois. 

O Livro Negro de Arda  Página 80 
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Como resposta, soaram risos e gritos “Viva!” Vala também riu, aliviado: ainda uma criança, mas aquele 
olhar – deu até medo. Aquela que Vê e Recorda. Além dela, somente três escolheram o este caminho. 
Doze anos ‐ e Vê. Nunca antes houve algo assim... 
 
Mas uma pontada de preocupação ainda continuava.  
 
‐ ...E a canção, Gorthaur!... Viu como Gelren a olhava?  
 
O Discípulo olhou para o Mestre maliciosamente: 
 
‐ E quando crescer?  
 
‐ Hm... Cuide‐se – vai que te encanta também!  
 
Mas que olhos!.. Como se tivesse a mesma idade do mundo. “Sinal do caminho por milênios”...  
 
...Estava tão frio que os lábios rachavam, e nas pestanas e no capuz de pele, perto do queixo, formava‐se 
uma crosta de neve. Ela já estava pensando se não deveria voltar, e nesse instante os viu. 
 
Redemoinhos de neve alados, reflexos do fogo gelado do céu ‐ é isso mesmo?..  
 
‐ Quem são vocês?  
 
Os lábios não obedeciam. O rumor do gelo e o tinir baixo formaram uma palavra: 
 
‐ Helgeayni...  
 
Ela sorriu, não sentindo nem o rosto congelado, nem o sangue que saia das pequenas rachaduras dos 
lábios.  
 
Ela  não  poderia  explicar  o  que  via.  Música  que  se  tornou  visível,  uma  dança  mágica,  chamas  gélidas 
entrelaçadas,  rodopios  lentos  de  poeira  estrelar...  Ela  ficou,  encantada  com  a  incompreensível  e 
estranha maravilha do mundo do gelo ‐ mundo dos não‐humanos, dos Espíritos do Gelo. 
 
“De onde vocês...” 
 
Ela já não pôde perguntar ‐ somente pensou. Não sabia porque ‐ o tempo parou na feitiçaria gelada, e 
era impossível entender se passaram minutos ou horas. Havia a alegria de ver isso, não visto por mais 
ninguém.  
 
Eles ouviram.  
 
“Tennaeliayno... pergunte‐o...” 
 
Seis cintilantes notas quase inaudíveis ‐ um nome. Ela o repetiu para si, e cada nota se abria numa flor 
de neve: o vento que leva a canção das estrelas em palmas que vêem. Tennaeliayno. Ela olhava, até as 
pálpebras  ficarem  pesadas,  e  a  tempestade  de  estrelas  a  rondava  ‐  isso  é  que  é  morte?..  –  que 
tranqüilidade... E já não sentiu a forte rajada de vento quando enormes asas negras a abraçaram.  
 
‐ Elhe... Acorde...  
 
Como é difícil abrir os olhos... Você... Tennaeliayno... Não há forças nem para sorrir. Que bom...  
 
Ele passou os dedos sobre os cabelos prateados dela: 

O Livro Negro de Arda  Página 81 
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‐ Tudo está bem. Agora durma. Os pássaros avisarão que está me visitando, e ninguém irá se preocupar.  
 
Ela apertou o rosto contra a mão dele e fechou os olhos novamente.  
 
 
‐ Mestre... Você ficou aqui a noite inteira desse jeito?  
 
‐ E mais um dia, e mais uma noite. Como vai?  
 
‐ Eu fui boba. Eu queria tanto vê‐los... Helgeayni. Eles... eles são belos. Eu não sou capaz contar... Mas 
eu... eu teria morrido se não fosse você. Desculpe‐me...  
 
‐ A culpa é toda minha. Eu a conheço ‐ não deveria ter contado. Depois daquela história com o dragão...  
 
O rosto de Elhe ficou levemente rosado.  
 
‐ Você não esqueceu?  
 
‐ Eu lembro tudo sobre cada um de vocês. É óbvio que você quis vê‐los. 
 
Ela baixou a cabeça: 
 
‐ Você não está bravo comigo, Tennaeliayno?  
 
‐ Não muito, ‐ ele virou‐se, escondendo o sorriso. ‐ Espere... como você me chamou? Eles falaram com 
você?  
 
‐ Eu não tenho certeza... Eu pensei que isso tudo foi um sonho. Simplesmente isso soa tão bonito...  
 
‐ Eles raramente falam com palavras... ‐ ele se levantou. ‐Eu vou indo. Está com fome?  
 
‐ Terrível!  
 
Ele riu: 
 
‐ A mesa está posta no quarto contíguo. Depois, se quiser ver o castelo ou ler alguma coisa ‐ pergunte a 
Neere, ele mostrará. 
 
‐ Quem é?  
 
‐ O primeiro dos Espíritos do Fogo. Você não os viu ainda?  
 
Ela inclinou a cabeça para um lado, tirou uma mecha de cabelos da testa: 
 
‐ Não...  
 
‐ Eles, na verdade, não falam muito, mas isso não é nada. Eu voltarei logo. 
 
‐ Neere!..  
 
A porta se abriu, e a enorme figura alada respeitosamente fez uma reverência para a menina. Ela olhou, 
encantada, para os olhos de fogo.  
 
‐ É você que é o Espírito do Fogo?  

O Livro Negro de Arda  Página 82 
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‐ Eu, ‐ a voz de Ahero soou como uma trovoada distante.  
 
Elhe estendeu a mão.  
 
‐ Cuidado. Pode queimar‐se. As mãos são quentes. Erraener nos criou do fogo de Arta... 
 
“Erraener – a alma alado do Fogo...” 
 
‐ ...Eu o compreendo, quando ele fala que ama esses pequenos.  
 
‐ Você sabe, o que é ‐ amar?  
 
Neere ficou calado por muito tempo, escolhendo as palavras.  
 
‐ Eles são... estranhos. Eu faria de tudo por eles, ‐ ele se enrolou nas asas como se fosse uma capa, nos 
olhos de fogo dele surgiram lentas e minúsculas faíscas douradas. ‐ Assim... são como faíscas. Coloridos. 
Rápidos. E indefesos.  
 
Dessa vez, ele se calou de verdade.  
 
‐ Leve‐me para a biblioteca, ‐ pediu Elhe.  
 
Balrog acenou com a cabeça. 
 
Mal vendo aquele que ‐ em vestes negras todas bordadas de ouro ‐ estava perto da mesa, ela sentiu um 
frio desagradável na espinha. Ela não podia entender a razão disso, e por isso sempre se culpava pela 
vaga hostilidade ao Maia Curumo.  
 
Maia  Curumo.  Mas  Gorthaur  é  simplesmente  Gorthaur,  mesmo  sendo  um  Maia  também,  mas  você  se 
lembra  disso,  de  forma  passageira,  somente  quando  vê  que  até  o  metal  derretido  não  causa  nenhum 
mal às mãos dele...  
 
‐ O que está fazendo aqui?  
 
A pergunta, mesmo feita com uma voz suave, quase carinhosa, a fez ficar se sentir mal; ela balbuciou, 
perdida: 
 
‐ Eu?.. Eu estou visitando... o Mestre...  
 
‐ Para que?  
 
Ela se conteve com dificuldade: 
 
‐ Simplesmente... Nada de especial. E o que está lendo?  
 
O Maia sorriu, condescendente: 
 
‐ Ainda é cedo para você ler, menina. Não entenderá nada.  
 
A voz de Elhe tremeu de raiva; nunca e ninguém havia falado com ela assim: 
 
‐ Eu escolhi o Caminho. Já se foram três invernos; você esqueceu?..  
 
Novamente um sorriso condescendente e indiferente: 

O Livro Negro de Arda  Página 83 
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‐ Não posso lembrar de todos.  
 
Ela deu um passo brusco na direção da porta, mas de repente teve medo de ter ofendido o Maia com 
isso.  
 
‐ Eu o ofendi? Eu não quis, verdade... 
 
O Maia ergueu as sobrancelhas, surpreso, e, novamente voltando‐se ao livro, atirou: 
 
‐ Absolutamente não.  
 
Só depois de sair da biblioteca é que ela percebeu que estava tremendo, como de frio. Medo. Não medo 
do perigo, mas  algo  indefinido, abafado  e  grudento, parecido com tentáculos  de  neblina  cinzenta...  de 
onde? Parece que Mestre havia dito algo... ou não?  
 
“Mestre. Milhares de vezes, você pronuncia o nome dele nos pensamentos ‐ esse nome, único, e nunca 
em voz alta. Não se atreve. Milhares de vezes ‐ palavras insanas, e jamais as pronunciará. Melhor não 
pensar  sobre  isso.  E  sobre  qualquer  outra  coisa  também  não.  Queria  que  você  voltasse  logo,  Mestre. 
Mestre”. 
 
Era possível vagar por este castelo por horas. Simplesmente andar e olhar, ouvindo as músicas baixas, 
tentando calar a impaciência da espera. 
 
Ela subiu para o patamar superior de uma das torres, como se alguém a chamasse para lá...  
 
...Ele fechou as asas lentamente, ainda cheio da feliz sensação do vôo, do vento estrelado que bate no 
rosto e da liberdade. E ouviu uma exclamação de surpresa. A menina estendeu a mão e, prendendo a 
respiração,  como  se  tivesse  medo  do  milagre  desaparecer,  tocou  a  asa  negra.  Riu  baixinho  e  feliz, 
levantando os olhos: 
 
‐ Mestre... você tem estrelas nos cabelos, veja! 
 
Ele levantou o braço para tirar a neve, mas mudou de idéia.  
 
‐ Vamos. Assim você nunca ficará boa ‐ sem capa nesse vento...  
 
“Isso  é  como  um  sonho.  Ou  um  conto  de  fadas.  Mas  os  sonhos  e  os  contos  duram  pouco  e  logo  são 
esquecidos... Isso ‐ quando os contos são felizes. E o meu, parece, ‐ mais amargo que absinto. Ou você 
também  sente  isso,  e  por  isso  me  deu  esse  nome...  Tudo  isso  acabará.  Tudo  isso  logo  acabará.  Eu  me 
odeio,  seria  melhor  eu  não  nascer  uma  daquelas  que  Vêem...  E  se  eu  ao  menos  soubesse  o  que  irá 
acontecer... Sentir, mas não saber, não poder prevenir... Eu verei ‐ mas então será tarde”.  
 
‐ Você é hábil na arte de compor as canções, Menestrel; por que não compõe uma balada sobre o nosso 
senhor?  
 
‐ Mas para que, Curumo? Ele nunca disse, que queria isso...  
 
‐ E nunca dirá. Mas é claro que quer! Será que existe alguém que é mais digno de elogios do que ele? Ele 
é o Senhor de Arda, Senhor do Mundo, e tudo o que há de vivo em Arda, tudo que é carne do Mundo o 
obedece... Essa será a sua melhor canção, Menestrel!  
 
‐ Mas o Mestre nunca disse que precisava disso...  
 

O Livro Negro de Arda  Página 84 
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‐  Acredite‐me,  eu  sei.  Pense  ‐  ele  sozinho  contra  todos  os  Valar!  Os  mais  poderosos  e  fortes  também 
precisam de ajuda. Será que não quer alegrar o nosso Senhor? Eu te garanto, ele ficará contente...  
‐ Eu não sei... vou tentar... Talvez esteja certo, Curumo... 
 
‐ ...Como sou fraco, Mestre... Não sei nada ainda...  
 
‐ Do que está falando, Gelren?  
 
‐ Eu quero compor uma canção sobre os seus feitos, e não consegui...  
 
‐ Para que, discípulo?  
 
‐ Eu pensei em agradá‐lo...  
 
‐ Os elogios não me trazem alegria. E você sabe disso. Quem lhe sugeriu essa idéia?  
 
‐ Curumo, Mestre...  
 
‐ Curumo, ‐ repetiu Melkor pensativo; depois levantou os olhos para o discípulo e sorriu. ‐ Agora você 
sabe, que não se pode mandar o coração cantar.  
 
‐ Sim, Mestre... eu entendi...  
 
‐ Vá, discípulo. Se encontrar o Curumo, diga para ele vir aqui. 
 
‐ Por quê achou que eu precisava de algo assim?  
 
‐ Ó Grande! Quem é digno de elogios se não for você? Em Valinor, dia e noite cantam a glória de Manwë 
– não seria você mais digno disso? Sobre os seus feitos devem ser compostas canções... Porque eu sei 
bem ‐ isso lhe dará forças para novos grandes feitos... Toda a Arda o glorificará, Senhor!  
 
‐ Então você mesmo poderia compor uma canção, ‐ falou Melkor, zombeteiro, ‐ você também tem uma 
boa voz!  
 
‐ Mas meu senhor, ‐ respondeu Curumo com dignidade, ‐ as canções são negócio dos menestréis; eles 
são como pássaros: cantam, porque essa é a natureza deles. E o meu destino é outro.  
 
‐  Está  certo.  Seria  difícil  voar  igual  um  pássaro  com  asas  iguais  às  suas,  ‐  sorriu  Vala.  Curumo 
permaneceu imperturbável: 
 
‐  Eu  prefiro  estar  firme  no  chão,  ‐  ele  respondeu,  olhando  com  contentamento  para  as  suas  vestes 
negras, ricamente bordadas com ouro e brilhantes.  
 
‐ Bem, deixemos disso, ‐ Melkor ficou serio. ‐ Me responda, eu pedi a alguém para que quem quer que 
seja compusesse canções em minha honra?  
 
‐  Não,  ó  Grande;  mas  eu  penso  que  não  poderia  pensar  nada  contrário  a  sua  vontade.  Eu  sou  sua 
criação, e todos os meus pensamentos e feitos têm começo em você... 
 
Melkor pensava, gravemente. Curumo esperava uma resposta dele em silêncio.  
 
‐ Vá, ‐ finalmente respondeu Vala, sem levantar os olhos para Curumo.  
 
E Curumo se retirou com uma reverência, cheio de consciência da própria dignidade e verdade.  
 

O Livro Negro de Arda  Página 85 
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“Talvez, no fundo eu aspiro mesmo a glorificações ‐ e simplesmente tenho medo de admitir? Não... Ou 
sim? Ele realmente é a minha criação, e mesmo que eu desejei criar seres diferentes de mim mesmo... 
Talvez  aquilo que  se  oculta em  mim  fez  parte  dele  e  lhe  infundiu  essas  idéias?  Pode  ser...  Então  para 
vencer  isso  em  mim,  eu  tenho  que  lhe  explicar,  ensinar...  Eu  devo  ser  um  péssimo  mestre  se  ele 
continua a pensar assim... Minha culpa”.  
 
‐ Curumo!.. 
 
Ele está sentado numa poltrona negra talhada em madeira: um homem alto e esbelto, vestido de negro; 
a capa foi jogada, negligentemente, sobre o espaldar da poltrona, a camisa está aberta no peito: hoje foi 
um dia quente e trabalhoso na forja, mas o corpo dele desconhece o cansaço. Uma luz cintilante ilumina 
o rosto dele. Surpreendentemente bonito. Tez alta; sobrancelhas voam, com uma leve quebra; na sobra 
das  pestanas  ‐  olhos  claros  e  calmos  como  estrelas;  nariz  fino,  ligeiramente  aquilino,  uma  boca  de 
contorno  bonito  e  severo,  o  queixo  que  demonstra  grande  força  de  vontade...  Ele  sorri,  carinhoso  e 
sonhador: amanha é um novo dia, cheio de alegria de criar e conhecer, como um cálice, até as bordas, ‐ 
de  faiscante  vinho  dourado.  Eles  nem  imaginam  o  quanto  ele,  seu  Mestre,  aprende  com  eles,  e  ele 
mesmo, em essência, é somente um deles, descobridor dos mistérios de Ëa... E à tarde virão as crianças 
e pedirão para contar novamente um conto de fadas... O que ele lhes contará? 
 
Ele  refletiu  por  muito  tempo,  olhando  pela  janela.  O  vento  brinca  com  mechas  dos  longos  cabelos 
escuros.  Depois,  ele  vira‐se  para  a  mesa,  resoluto,  pega  uma  folha  em  branco  e  uma  pena  negra  e 
prateada. Ele tem mãos estreitas e fortes, dedos compridos e finos. Mãos de um criador.  
 
Os  sinais  esvoaçantes  Tai‐an  transparecem  na  folha,  tão  parecidos  com  os  sinais  do  Escuro.  Ele 
novamente sorri, lembrando o rosto feliz do Amigo dos Livros: “Mestre, parece que eu entendi como é 
possível anotar os pensamentos... Veja, você gostou, sim?”  
 
Ele  deixa  a  pena  de  lado  somente  quando  o  céu  já  começa  a  clarear  no  oriente.  Um  Imortal  não 
necessita  de  sono.  Relê  o  escrito,  e  uma  leve  sombra  deita‐se  no  rosto  dele.  O  conto  de  fadas  ficou 
estranho; e é mesmo um conto? 
 
...O Andarilho das Estrelas segue pela terra, e entra nas casas, e conta belas histórias tristes às crianças, 
e canta baladas. Ele vem até as crianças e dá a cada uma um pedacinho de si, deixa para cada um uma 
parcela  do  próprio  coração.  Como  uma  vela,  que  ilumina  ao  queimar‐se  ‐  Andarilho  das  Estrelas.  As 
mãos  dele  ficam  cada  vez  mais  finas,  o  rosto  ‐  cada  vez  mais  transparente,  e  somente  os  olhos  dele 
brilham  com  a  mesma  luz  clara.  Não  se  sabe  como  acabará  o  caminho  dele;  ele  caminha,  acendendo 
pequenas  estrelas  na  terra.  É  breve  e  triste  o  caminho  dele,  e  as  estrelas  brilham  sobre  ele  ‐  ele 
caminha...  
 
Ele levanta‐se, vai até a porta. Amanha é o dia que Gelren chama de dia do segundo nascimento dele: 
muitos anos atrás, nesse mesmo dia ele  compôs a sua primeira canção. Ele preparou um presente ao 
Menestrel:  faltou somente colocar  as cordas  do ferro cantante do  céu  e  afinar alaúde.  Ele  imaginou  o 
rosto iluminado do Menestrel... Mas alguma coisa o perturba. 
 
Esse  discípulo  novo,  Curumo.  Criação  dele,  mas  absolutamente  diferente,  apesar  de  tudo.  Algumas 
vezes  começa  a  parecer  ‐  ele  entendeu  tudo,  e  depois...  Veio  até  o  Menestrel,  pois,  e  o  convenceu  a 
compor  essa  canção.  E  para  que?  Parte  do  coração,  sua  criação,  seu  discípulo...  e  incompreensível. 
Outro.  Ele  gosta  desse  estranho  discípulo,  mas  é  impossível  esquecer  o  cálice  pesado  e  o  gosto  de 
sangue  nos  lábios.  Por  quê?  E  parece  que  é  justamente  por  causa  dele  ele  terá  de  pegar  nas  mãos  a 
espada do Sol em Eclipse. Falta alguma coisa em Curumo; talvez aquela clareza sem a qual é impossível 
imaginar  os  outros?  E  essas  conversas  sobre  a  glória,  sobre  o  poder...  No  início,  ele  realmente 
surpreendia‐se:  para  que?  Depois,  a  preocupação  acordou.  Sem  perceber,  ele  começou  a  ser  mais 
atencioso com Curumo do que até mesmo com Gorthaur. O discípulo mais velho olhava para isso com 
ciúme,  meio  de  brincadeira,  mas  aos  poucos  passou  a  evitar  o  irmão  mais  novo.  E  o  Mestre, 

O Livro Negro de Arda  Página 86 
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dolorosamente, não desejava que o novo discípulo se sentisse um estranho por aqui. Mas como se uma 
muralha se erguesse entre eles. 
 
Sacudiu a cabeça. Basta. Senão o alaúde se recordará desses pensamentos. É preciso ir. Se Arta muda a 
todos (ele não gostava de falar “Arda”, Reino ‐ o nome dado por Ilúvatar), isso deve acontecer também 
em Valinor. Com o tempo, Curumo mudará; Arta cura, e também é difícil não mudar vivendo entre os 
Elfos do Escuro... 
 
‐ Permitir‐me‐á dormir aqui?..  
 
Ele não tinha uma casa própria na vila dos Elleri; normalmente, ele retornava à noite para Helgor, mas 
hoje teve vontade de ficar com os discípulos dele. 
 
Gellor‐Mago iluminou‐se: 
 
‐ Claro, Mestre! Por quê pergunta? Você sempre é bem vindo...  
 
Os convidados já foram embora, e eles ficaram sozinhos. A conversa continuou até tarde. Gellor não era 
contra uma continuação, mas Vala parou‐o com um sorriso: 
 
‐ Basta, tenha piedade! Se eu fosse humano, já teria me torturado bastante: não se apresse, você quer 
saber tudo de uma vez.  
 
O Elfo riu, envergonhado: 
 
‐ Está certo, Mestre.  
 
...A jovem enroscou‐se sobre si mesma na poltrona, as pernas encolhidas: o fogo na lareira já se apagava 
e o quarto estava fresco. O rosto dela estava cheio de uma tristeza calma, e Vala ficou contemplando‐a 
por alguns momentos. Parece que, em beleza, ela não fica atrás de Allua, considerada a mais bela entre 
os  Elleri.  Mas  a  Allua  é  uma  dormideira  de  fogo,  enquanto  essa  menina  ‐  uma  flor  noturna... 
Provavelmente,  ela  queria  perguntar  sobre  algo,  mas  teve  de  esperar  demais.  Vala  cobriu‐a 
cuidadosamente com a capa, foi até a janela. 
 
‐ ...Mestre! 
 
Em poucos instantes, ele estava ao lado dela. A jovem olhava, com horror, para as mãos dele; tocou os 
pulsos com os dedos trêmulos, soltou um breve suspiro e cerrou os olhos. 
 
‐ O que houve? ‐ ele estava preocupado. 
 
‐  Nada...  desculpe,  foi  somente  um  sonho...  Pesadelo...  ‐  ela  tentou  sorrir.  ‐  Eu  arrumei  o  seu  quarto, 
queria trazer vinho quente ‐ você deve estar com frio ‐ e, veja só, acabei dormindo... 
 
Ele passou a mão sobre os cabelos prateados da jovem; ultimamente, eles se esquecem com freqüência 
cada vez maior de que ele não é humano. 
 
‐ Mas não foi por isso que você veio. Você queria falar comigo, sim, Elhe? 
 
‐  Sim...  Não...  Eu  não  queria,  mas  tenho  de  falar...  Mestre,  ‐  ela  começou  a  falar  muito  baixo,  ‐  ele  me 
assusta. Não o deixe perto de você ‐ ou faça‐o outro... Eu não sei, não sei, tenho medo... Mestre, ele traz 
consigo o mal ‐ para todos, para você... Ele só gosta de si mesmo ‐ sábio, grandioso... 
 
‐ De quem está falando, Elhe? ‐ Vala estava perplexo; nunca tinha a visto assim. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 87 
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‐ Sobre esse seu novo... ‐ ela não conseguia pronunciar “discípulo”, ‐ sobre Curumo. Eu, provavelmente, 
não deveria falar assim... 
 
‐ Não... Eu mesmo estive pensando sobre isso também. Não se preocupe, Arta o curará. 
 
‐ Você não acredita nisso, Mestre. 
 
Vala tentou sorrir – o sorriso saiu um tanto triste: 
 
‐ Parece que é impossível esconder algo de você. 
 
Ficaram em silêncio. 
 
‐ Mestre, eu trago o vinho? 
 
Ele acenou com a cabeça, distraído. 
 
‐ E o fogo quase se apagou... Eu já... 
 
‐ Não precisa, Elhe, ‐ ele traçou o sinal Llah no ar e chamas surgiram na lareira. 
 
Ela retornou muito rapidamente; ele sorriu com gratidão ao receber o cálice das mãos dela. 
 
‐ Mestre... 
 
Ele  ergueu  a  cabeça:  Elhe  já  estava  na  soleira  da  porta  ‐  uma  fina  figura  de  negro;  ele  viu, 
extraordinariamente nítidos, os olhos dela. 
 
‐ Mestre, ‐ a mão fina deitou‐se sobre o peito, ‐ cuide de si mesmo. Sei, não sabe, mas mesmo assim... Eu 
temo  por  você.  A  ira  priva  de  razão,  a  sede  de  poder  mata  a  piedade  e  os  grilhões  do  ódio  jamais 
poderão ser rompidos... 
 
Ele queria perguntar sobre o que ela está falando, mas ela já havia desaparecido. 
 
‐ Você disse, Grande, que nenhum dos seus discípulos foi capaz de domar os Orcs? 
 
‐ Sim, Curumo. 
 
‐ Nem mesmo Gorthaur? ‐ o rosto de Curumo expressava a mais absoluta surpresa. 
 
‐ Nem mesmo ele. 
 
"Eis  que  a  ocasião  surgiu.  Eu  lhe  provarei  que  sou  mais  digno  das  graças  dele  do  que  Gorthaur.  Ele 
entenderá  que  é  melhor  ter  negócios  comigo.  Artano  só  sabe  mesmo  ouvir,  contar  estrelas  e  perder 
tempo com esses... Elfos do Escuro. Não, ele não é um rival para mim. E o Senhor verá isso". 
 
‐ Permita‐me, Grande... 
 
‐ O quê? ‐ Melkor estava surpreso. 
 
‐ Permita‐me tentar... 
 
‐ Tudo bem, tente... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 88 
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“Não há dúvida, os Elfos são belos. Mas se começar uma guerra, nenhum deles poderá combater. Se em 
Valinor  soubessem  disso,  Melkor  dificilmente  permaneceria  livre  por  muito  tempo.  Não  consigo 
entendê‐lo!  Ele  poderia  ser  um  verdadeiro  Senhor  do  Mundo,  subjugar  todos  ‐  porque  é  que  ele  não 
pensa sobre isso? Ouve as cantigas deles, os contos de fadas... E mais, ele queria fazer iguais dos Orcs? 
Será que ele não vê ‐ eles estão destinados à guerra! Eles reverenciam a força? ‐ é o que deve ocorrer 
com  guerreiros.  Ele  diz,  o  medo  tornou‐se  a  essência  deles?  ‐  melhor:  temendo  o  poder  dele,  eles 
lutarão até o fim. O Senhor não quer pensar sobre essas coisas – bem, então eu me ocuparei delas. Eu os 
ensinarei a forjar metais e a lutar; eu serei para eles o segundo depois do Senhor: nas mãos em que está 
o exército, está o poder. Os canalhas de Valinor ainda se arrastarão sob os meus pés! Eles, idiotas, se 
entrincheiraram na Terra Abençoada deles e nem pensam sobre a guerra... Fazer o quê, será pior para 
eles!” 
 
‐ Eu cumpri a sua ordem, Grande! 
 
Cinco fortes Orcs em armaduras completas prostraram‐se perante trono de Melkor. 
 
Curumo iluminou‐se ao ver o rosto surpreso do Senhor. Durante todo este tempo, ele trabalhou sozinho 
para que ninguém visse os frutos dos trabalhos dele antes da hora, e agora esperava elogios do Senhor 
dele. 
 
‐ O que é isso? – Melkor finalmente recuperou a fala. 
 
‐  Orcs,  meu  senhor.  Seus  servos  e  guerreiros.  Com  eles,  você  dominará  o  mundo  inteiro  ‐  veja,  quão 
fortes eles são, quão fiéis a você! Que de hoje em diante tema aquele que se atreve a se chamar de Rei 
do Mundo: agora ele saberá quem é o verdadeiro Senhor de Arda! 
 
‐ O que você fez? ‐ perguntou Melkor pesadamente. 
 
Curumo ficou desnorteado: ele não esperava tal recepção. 
 
‐ Grande! Como pode um Senhor não ter um exército? E você não precisa travar as guerras você mesmo 
– encarregue‐me disso, você verá – serei digno da sua confiança. 
 
‐ Eu não quero sangue. Então você ainda não entendeu nada? 
 
‐ Eu o entendo, meu senhor. Suas mãos estarão limpas ‐ eu farei tudo, ‐ Curumo recobrou a confiança, 
ele falava deliciando‐se com o som da própria voz. ‐ E haverá uma grande guerra, e os Valar cairão a 
seus pés ‐ você será o único a reinar em Arda, e eu serei o seu general... 
 
De repente, ele viu o rosto de Melkor, deformado por ira e repulsa. 
 
‐ Fora daqui, ‐ um horrível sussurro sibilante. 
 
‐ O que?.. ‐ Curumo imaginou que ele tinha ouvido errado. 
 
‐ Fora! Leve a sua maldita oferenda ‐ ela está manchada de sangue! 
Curumo recuou, cobrindo o rosto com as mãos. Como se uma máscara de sábia grandeza tivesse caído 
do  rosto  dele:  medo  e  ódio  nos  olhos  escuros,  dentes  furiosamente  arreganhados,  como  de  um  lobo. 
Melkor jogou nele, com toda a força, o cálice de ouro; e, com um agudo grito de pavor, o Maia correu 
para fora da sala. 
 
O Vala continuou de pé, respirando com dificuldade, apertando os punhos de raiva; e então o chefe dos 
Orcs, com uma careta de animal feroz, disse: 
 
‐ Permita‐me, Grande!.. 

O Livro Negro de Arda  Página 89 
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‐ Fora! ‐ urrou Melkor. 
 
...Pareceu‐lhe que ele havia ficado cego. Um manto rubro cobrindo a vista. Mas mais terrível do que esta 
repentina  cegueira  era  a  visão,  impiedosamente  nítida,  inevitável  ‐  como  uma  faca  encostada  no 
pescoço. 
 
Ele  gemeu  através  dos  dentes  cerrados,  e  isso  o  trouxe  de  volta  para  a  realidade.  Alguém  tocou  os 
punhos apertados convulsivamente. Gorthaur. 
 
‐ O que houve? Você estava feito cego, e os olhos... perdoe‐me... eu tive medo... Nunca antes você olhou ‐ 
assim. Você está se sentindo mal? 
 
‐ Não é nada, ‐ respondeu Melkor. ‐ Já acabou. 
 
‐ Não, não. Por favor. Eu quero ajudar, permita‐me isso. 
 
‐ Não precisa. Vá. 
 
‐ Eu o ofendi de alguma maneira? 
 
‐ Não. Perdoe‐me. Eu preciso ficar sozinho. 

O Livro Negro de Arda  Página 90 
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O DISCÍPULO E O MESTRE. ANOS 500­502 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
O Maia esperou alguns segundos, desnorteado, depois fez uma breve reverência e saiu. Sabe‐se lá o que 
passa  pela  cabeça  do  Mestre.  Talvez  seja  mesmo  melhor  ele  ficar  sozinho?  Quem  pode  descobrir  os 
planos  dele?  Por  alguns  momentos  Melkor  via  a  silhueta  alta  e  esguia  na  soleira,  depois  a  porta  se 
fechou. Ele inclinou‐se para frente, apertando as mãos trêmulas. É difícil ocultar a tensão da alma dos 
olhos alheiros. Principalmente desses. A si mesmo, ele parecia agora a corda estendida ao máximo de 
um arco. O arco se partirá? A corda irá arrebentar? A mão vai tremer? Ou a flecha voará apesar de tudo? 
Medo. Medo e perplexidade. Terrível descoberta ‐ Curumo. Uma parte da alma. Parte do seu “eu”. Foi 
ele  mesmo  que  o  criou,  trabalhou  cada  traço  do  rosto,  colocou a  alma  e  o  espírito  dentro  da  criatura 
ainda  imóvel,  deu‐lhe  uma  parte  do  próprio  coração...  “E  isso  ‐  sou  eu?  E  tudo  que  me  é  odioso,  eu 
coloquei nele, tentando livrar‐me de mim mesmo? E agora o expulso? Isso é terrível demais, parecido 
demais... Ou eu sou igual a Eru? Isso sou eu mesmo. Mas eu não sou o que ele pensa, será que isso é o 
outro  lado  de  mim...  Que  peso...  Ou  o  mutilaram  assim?  Mas  Gorthaur  é  absolutamente  diferente, 
mesmo sendo o irmão dele, ele não é assim!” Ele estremeceu, fulminado por um súbito pensamento. “E 
por quê não é assim? Talvez seja exatamente assim, só que mais esperto. Mais fingido. Não, não pode 
ser... Seria tudo isso uma mentira? Não consigo acreditar...” Mas a dúvida já se remexia na sua alma. E 
como uma avalanche, jorraram lembranças, mas agora ele via tudo com outros olhos... 
 
 “Não foi à toa que ele me trouxe uma oferenda. Também ‐ oferenda. Pagamento. Me comprava. E além 
do mais, um punhal. Ele não sabe criar outras coisas. E mais ‐ o que ele fez de bom, aqui? Dizem que ele 
ensina os Elfos a fazer armas e a combater... Para que? Não, não devo permitir isso. Curumo desejou o 
poder  e  montou  um  exército  para  si.  Não!  Eu  não  permitirei  mutilar  as  almas  deles!  Ele  fará  deles 
criaturas, semelhantes aos Orcs... Não, não... Acreditar em quem, para quem rezar? Eu estou só, estou 
absolutamente  só...  E  é  melhor  continuar  assim.  Confiar  em  si  –  do  jeito  que  eu  sou.  Mas  como  o 
expulsarei? Talvez, eu esteja errado? Talvez, ele é aquilo o que parece? Mas o que é que faço agora, me 
diga,  alguém!”  Ele  ficou  sentado  por  muito  tempo,  apertando  as  têmporas  com  os  dedos.  “Não,  não 
posso expulsá‐lo sem mais nem menos. Isso dói. Mas ele também não ficará mais entre os Elfos. Que vá 
ter com os Orcs. Que seja. Que nem o irmãozinho dele”. 
 
E o Maia Gorthaur já esqueceu de quão frio o Mestre foi com ele. O mundo era jovem, e ele mesmo era 
jovem,  e  alegrava‐se  com  tudo.  Ainda  mais,  o  esperavam  ‐  o  Artífice  e  o  Armeiro.  Curumo?  Que  Eru 
esteja com ele, que vá para onde quiser, desde que não apareça novamente com os seus Orcs nojentos. 
Ele corria pelas ruas da cidade de madeira, entre as casas enfeitadas com entalhes preciosos, sorrindo 
para os Elfos, que o conheciam bem e o amavam. E lá, perto do rio, estava a forja, onde ele e o Armeiro 
trabalhavam. Poucos Elfos eram discípulos de Gorthaur; por enquanto, as armas e a arte do combate lhe 
pareciam não mais que uma brincadeira empolgante. E o Maia torcia para que isso continue sendo uma 
brincadeira. Ele nunca falou isso a Melkor, por julgar sem importância, mesmo que não fizesse esforços 
para esconder isso. 
 
Os olhos de Geleon brilhavam ‐ assim acontecia sempre que ele pensava algo novo. Gorthaur não pôde 
falar nada, aquele agarrou o braço dele e começou a contar, excitado: 
 
‐ Sabe, é possível domá‐lo! E eu entendi como! 
 
‐ Do que você... ‐ o Maia mal teve tempo de falar. 
 
‐  Sobre  o  ouro,  o  que  mais!  Eu  não  consigo  esquecer  o  cálice  de  Curumo.  Eu  sofria,  sem  entender  o 
porquê, e depois entendi ‐ eu quero domar o ouro. Achar e descobrir a alma dele. Pois não há metais e 
gemas bons ou maus, é preciso simplesmente saber ouvi‐los! E eu entendi, eu farei! 
O Armeiro estava rindo baixinho no canto, apertando os límpidos olhos azuis. Ele quis falar algo, mas 
não teve tempo ‐ um Elfo entrou e disse: 
 
‐ O Mestre está chamando‐o, Gorthaur. 

O Livro Negro de Arda  Página 91 
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A voz de Melkor era seca e fria como o vento de inverno, que traz do norte os grãos cortantes de gelo. O 
olhar é distante e reflete um pouco de aversão. 
 
‐ Eu soube que você está ensinando os Elfos a forjar armas. Para que? 
 
‐ Perdoe, Mestre, se fiz algo errado, mas eu pensei que eles devem saber se defender. Eu gostaria muito 
de  acreditar  que  Valinor  nos  deixará  em  paz,  mas  infelizmente  ‐  não  consigo.  Alguma  coisa  me 
perturba... 
 
Ele não terminou a frase. 
 
‐ Permita‐me cuidar disso, Artano. 
 
Alguma coisa mexeu‐se dentro do Maia, que havia perdido a fala. Ele involuntariamente levou a mão ao 
peito – onde estava a coisa. Mais uma vez... mais uma vez apertou‐se e ficou quieta... 
 
‐  Não  lhe  parece  que  aquilo  que  você  ensina  aos  Elfos  ‐  matar  ‐  é  mais  próprio  para  os  Orcs?  Ou  os 
louros de Curumo não o deixam em paz? 
 
Maia  olhava  para  o  seu  rosto  com  olhos  bem  abertos  de  um  animal  ferido,  sem  forças  para  dizer  ao 
menos uma palavra. 
 
‐ Eu resolvi dar‐lhe um encargo importante. Vejo eu que não foi à toa que me trouxe um punhal. Você 
não  é  um  criador.  É  um  guerreiro.  Você  entende  de  guerra.  Então  vá  para  Ast  Ahe.  Ali,  Ahere  estão 
cuidando dos Orcs, tentando domesticá‐los. E você é o meu primeiro discípulo, ‐ ele deu um destaque 
especial a essas palavras, ‐ não é assim? E Aulë também apreciava o seu trabalho. Você é inteligente e 
talentoso. É assim? Então vá, Artano ‐ os seus conhecimentos serão‐lhe úteis! 
 
Gorthaur mal ouviu a própria voz: 
 
‐ Sim... senhor... 
 
Tudo o que estava acontecendo com ele agora se unia num único, imenso grito silencioso ‐ “Por quê?” 
Antes, quando ele, por ignorância, cometia erros medonhos, nunca o humilharam... E ele explicou tudo, 
contou tudo honestamente, e então... O claro sol primaveril agora queimava os olhos dele, os sorrisos 
amistosos  lhe  pareciam  caretas  maldosas,  e  o  ar  morno  –  asfixiante,  apertando  o  peito  como  água 
pesada. Ele arrastou‐se com dificuldade até a casa dele e caiu  no chão, sem forças, enrolando‐se para 
fugir da sensação de algo se debatendo no peito, que havia voltado. 
 
Ele não podia supor que o Mestre, que ele – ele mesmo do povo dos criadores ‐ idolatrava, poderia ser 
injusto ou estar errado. Como uma criança na infância acredita que seus pais são impecáveis, assim ele 
acreditava  em  Melkor.  E,  então,  ele  próprio  é  o  culpado  de  tudo.  Mas  em  que?  O  que  ele  fez? 
Compreender isso estava além da capacidade dele. Pedir explicações ‐ não se atrevia. “Talvez a ira dele 
se  acalmará,  e  ele  me  contará?  Ou  talvez  ele  realmente  pode  confiar  isso  somente  a  mim”.  E  Maia 
agarrou‐se a essa idéia, e começou a convencer‐se... 
 
Ele estava perfeitamente calmo ao se despedir do Armeiro e de Geleon de manhã, sorria – só que havia 
uma agulha o espetando por dentro. 
 
Agora,  Gorthaur  e  Melkor  comunicavam‐se  somente  por  meio  de  intermediários.  E  cada  vez  mais 
pesado ficava, para o Maia, ler as ordens frias escritas por uma mão estranha, para o “general Artano”. 
Como se cravassem pregos nele. Então, não perdoou. Não perdoou... E cada vez mais algo se mexia no 
peito. 
 

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Os Orcs o obedeciam como cães ‐ Oromë. E ele os odiava. Eles e as lembranças sobre Curumo estavam 
entre ele e aquele a quem ele não se atrevia mais a chamar de Mestre. E pouco a pouco ele começou a 
duvidar de si mesmo. 
 
...Ele  lia  as  mensagens  de  Ast  Ahe,  escritas  pelo  punho  do  discípulo  dele.  Breves,  nenhuma  palavra 
inútil. “Ao Senhor Melkor do governante de Ast Ahe. Meu senhor...” E o coração tremia dolorosamente 
quando ele notava: aqui a mão de Gorthaur tremeu, aqui a linha escorregou para baixo, aqui se infiltrou 
uma palavra dolorosamente perplexa... 
 
Ele  tentava  convencer‐se,  tentava  convencer  com  argumentos  da  razão  ‐  nada  ajudava,  e  não  se 
acalmava a preocupação, e a amargura enchia o coração; e na calada da noite, medindo com os passos 
os corredores infinitos e salas de tetos altos do castelo de Helgor, ele travava uma discussão sem fim 
consigo mesmo ‐ o mais cruel e terrível interlocutor... 
 
Ele continuava o mesmo com os discípulos dele. Falava com eles, ouvia‐os, sorria, e as garras de gelo 
apertavam cada vez mais o coração. Ele não necessitava de sono, e ele invejava aqueles a quem a noite 
trazia  o  esquecimento  e  libertava  das  tristezas.  Para  ele,  cada  minuto  de  solidão  transformava‐se  em 
tortura, cada noite virava uma cadeia de reflexões cansativas, dolorosas e inúteis. Ele tentava obrigar‐se 
a não pensar sobre isso. E não conseguia. 
 
“Ao Senhor Melkor do governante de Ast Ahe. Meu senhor...” 
 
A carta pode ser rasgada, queimada, destruída ‐ mas não esquecerá as palavras, não lhe foi dado, você 
não sabe esquecer, e as linhas ‐ fogo no negro ‐ surgem perante seus olhos, basta cerrar as pálpebras. E 
como um chicote: “Meu senhor...” 
 
“‐ Luz... de onde? O que é isso? 
 
‐ O Sol. 
 
‐ Foi você que o criou? 
 
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe. 
 
‐ ...O que é isso? 
 
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos...” 
 
“‐ ...Sabe... de vez em quando parece que o mundo é tão frágil...” 
 
 “Não, isso não poderia ser uma mentira, assim não se mente... Ou ‐ poderia? O coração contra a razão... 
E  se...  Que  venha  até  aqui...  falar  com  ele,  explicar...  Mas  não  poderei  expulsá‐lo  pela  segunda  vez.  E 
acreditarei no que quer que ele diga. Não poderei entender onde está a verdade, e onde está a mentira. 
Em verdade, somos cegos com aqueles que amamos... E se ele mentir, o que então? Não, melhor deixar 
tudo como está...” 
 
Mas a alma dele desconhecia o sossego, e o coração rasgava‐se em dois. Ele tentava passar mais tempo 
com os discípulos, e isso os alegrava ‐ mas não conseguia mais viver entre eles. E, na escuridão ainda, 
ele montava o cavalo alado, ou voava como um vento negro em direção à cidade de madeira. A cidade 
dormia, e ele vagava sem rumo pelas ruelas entre casas cor de mel dourado por muito tempo... 
 
As crianças o procuravam como antes. Só que as histórias que ele contava eram cada vez mais tristes. 
...A Flor da Noite, que amou a Lua, assemelhava‐se a uma estrela. Foi‐lhe destinada uma vida breve, e a 
flor sabia que adormecerá no outono, para acordar somente um ano depois. Mas a Lua a amava, e a cada 
noite  a  flor  estendia‐se  no  luar  carinhoso  dela,  e  parecia‐lhe  impossível  separar‐se  do  amor  dela  por 

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longos meses. E assim lhe dizia a Terra: “Durma... O outono já está próximo, e a vida está abandonando‐
a,  minha  criança...  Na  primavera  você  acordará  e  novamente  será  a  estrela  da  terra...”  Nas  a  flor  não 
respondia à mãe dela. E, vendo a sua tristeza, assim disse a Noite: “Se o seu amor é tão forte assim, se 
ele  é  mais  precioso  do  que  a  vida;  saiba,  estrela  da  terra,  você  brilhará  ainda  por  muitas  noites,  mas 
pagará por isso com a própria vida”. 
 
E assim foi. 
 
Passaram‐se muitas noites, e o brilho da flor se transformou em dor, pois ela estava morrendo. E uma 
tristeza  inexplicável  nascia  nos  corações  daqueles,  que  aspiravam  o  aroma  amargo  dela,  mas  essa 
amargura era felicidade, pois a Lua presenteava com o amor dela. 
 
E, ao olhar para a terra uma noite, a Senhora da Noite viu que a estrela da terra havia se apagado. Então 
ela  compreendeu  com  que  a  flor  pagava  pelo  amor.  As  lágrimas  da  Lua  eram  mais  amargas  do  que  a 
água do mar, e imensa era a tristeza da Terra. Mas essa tristeza e essas lágrimas viraram absinto, a erva 
da tristeza, cujas flores guardam a prata do luar e os caules ‐ a amargura das lágrimas da Lua. O absinto 
é  chamada  de  erva  da  tristeza,  e  a  amargura  dela  é  sagrada,  pois  essa  é  a  amargura  do  amor  mais 
precioso do que a vida... 
 
“O que está acontecendo com você, Mestre? Para todos, você é o mesmo de antes, mas eu vejo ‐ você 
mudou... Você sorri, mas os seus olhos estão tristes; você está conosco, mas os seus pensamentos estão 
longe, e quem os conhece? Eu vejo, a tristeza está no seu coração, mas como perguntar? 
 
Como você espera as cartas de Ast Ahe ‐ mas não há alegria no seu rosto quando as lê. Por quê o seu 
Discípulo nos abandonou? A casa dele está vazia, e as ervas cresceram altas do lado dos muros dela... 
Mestre, por quê ele não retorna? 
 
Quem pôde, quem se atreveu a ferir o seu coração, por que você esconde essa dor ‐ nos o amamos, cada 
um de nos daria até a própria vida para ajudá‐lo... E você, como se escondesse atrás de um muro ‐ para 
que? Pois quando dói o coração, isso é visível, e eu nasci Vidente... 
 
Conte, o que há com você, Mestre? O que te tortura, Mestre? Veloz é o vôo do cavalo alado, a luz das 
estrelas lava o rosto do cavalheiro como água de uma fonte ‐ a tristeza está nos seus olhos, e você não 
tem  sossego...  O  que  te  persegue,  o  que  te  tortura?  Conte‐me,  me  responda  ‐  eu  não  me  atrevo  a 
perguntar... Como posso ajudá‐lo, Mestre? Mestre...” 
 
Logo no início do outono, ele recebeu notícias de Geleon. Aquele o chamava para ver o ouro domado. 
Para  a  festa  que  estava  sendo  organizada  por  essa  razão.  Era  Geleon  quem  chamava  ‐  não  Melkor.  E 
Gorthaur tomou coragem. Afinal, ninguém o proibiu de sair de Ast Ahe... 
 
Ele viveu por tanto tempo entre os Elleri Ahe, que se tornou semelhante a eles em muitos aspectos. Ele 
aprendeu entender e valorizar o calor e o frio, a alegria do fogo na lareira num dia gelado, fogueira na 
noite úmida de outono, faíscas das tochas na noite da festa primaveril. Ele aprendeu a amar o frio e o 
gelo negro do céu noturno no inverno, a suave grandeza sonolenta da floresta coberta de neve, o reflexo 
da alvorada nas lagoas congeladas, a queda de neve acumulada nos galhos das árvores no silêncio da 
mata  fechada.  Ele  amou  o  alegre  cansaço  do  bom  trabalho  –  depois  de  um  dia  na  forja,  entre  metal 
fundido e cheiro ardente do ferro, respiração ruidosa do fogo e retinir do martelo, quando ele, exausto e 
encharcado de suor, olhava para o engenhoso trabalho do dia, e uma alegria ingênua e orgulho faziam 
inflar  o  peito.  O  cansaço  deitava  os  dedos,  autoritariamente,  sobre  as  pálpebras,  tornava  pesado  o 
corpo, afundava‐o nas profundezas dos pensamentos e sonhos sobre algo novo que ele fará, certamente 
fará amanhã, as começar o dia. Ele aprendeu a deleitar‐se com o gosto da comida... Ele não necessitava 
de  nada  disso  –  ele  era  um  Maia.  Mas  ele  queria  saber  o  mesmo  que  eles  sabiam.  E  ele  refazia  a  si 
mesmo, transformando‐se quase em um deles. Ele compreendia que isso era mais um jogo do que uma 
transformação, mas jogava‐o com toda a seriedade. Mas mesmo assim ele não conhecia o sono. Ele não 
conhecia a dor. Ele não conhecia muitas coisas, e ainda não poderia conhecer. 

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Ele  foi  o  ultimo  a  chegar  à  Casa  de  Festas,  para,  misturando‐se  com  a  multidão,  não  ser  visto  por 
Melkor.  Gorthaur  queria  desesperadamente  ser  um  dessa  multidão  alegre,  mas  não  podia  ‐  eles 
estavam felizes, e não havia peso nos corações deles. Ele também sorria, mas havia um pedaço de gelo 
dentro dele, e a preocupação congelou nos olhos dele. Ele estava com frio ‐ não assim como no vento do 
inverno, muito mais frio, pois isso estava dentro dele. Ele sentou‐se na canto mais afastado do salão, na 
sombra,  longe  daquela  parte  da  mesa,  onde  Melkor  já  estava  sentado  ao  lado  do  responsável  pela 
comemoração.  Melkor  sorria  e  falava  alguma  coisa  aos  vizinhos,  e  todos  riam,  e  o  próprio  Vala  ria... 
“Que sorriso... Alegre e aberto, como o de uma criança... Absolutamente o mesmo. Mestre, o que é que 
eu fiz para fazer o seu sorriso se apagar? Por quê o seu olhar foi tão pesado quando falava comigo? Qual 
é a minha culpa?” Ele desejou ardentemente que o vissem, chegar perto, conversar... Mas ele imaginou 
como este sorriso se apagará, e todos verão isso, e todos, todos, vão pensar que ele é o culpado... E se ele 
realmente é culpado?.. Gorthaur escondeu‐se ainda mais na sombra. 
 
A  obra  de  Geleon  estava  sobre  uma  simples  travessa  de  madeira  negra,  e  cada  um  pegava  essa 
maravilha  nas  mãos,  e  o  silêncio  pouco  a  pouco  preenchia  a  sala,  e  somente  sussurros  e  suspiros 
maravilhados ouviam‐se entre o cintilar dourado das chamas das velas. Era uma coroa de dois galhos 
flexíveis enlaçados, com folhas e flores abertas. Geleon realmente domou o ouro ‐ ele vivia. O jogo da luz 
quente sobre a superfície ‐ em alguns lugares polida, em outros áspera ou entalhada, fazia as folhas se 
mexerem levemente, como no vento. As cores do ouro eram diferentes, provavelmente o Artífice usou o 
metal  de  purezas  diferentes,  e  as  flores  eram  mais  claras  que  as  folhas,  e  as  folhas  ‐  que  os  caules.  A 
cada  movimento  da  coroa,  os  galhos  vivos  brilhavam,  e  se  alguém  os  olhasse  por  muito  tempo, 
imaginava ouvir uma música baixa. Não era o metal presunçoso e pesado – o ouro domado era suave e 
carinhoso, e o brilho dele transformou‐se em uma luz morna. 
 
A coroa era passada, cuidadosamente, de mãos em mãos, e cada um, a entregando para o vizinho, como 
se deixasse para si uma parte daquela visão estranha que irradiava da coroa. Gorthaur segurava‐a com 
as pontas dos dedos, como se tivesse medo de amassar as trêmulas folhas vivas. Parecia que gotas de 
orvalho escorregam pelas folhas, e mesmo ele sabendo que isso é somente um jogo da luz, criada pela 
mão mágica de Geleon, ele não entendia porque a água não cai sobre as mãos dele. Ele não percebia que 
já  está  em  pé,  que  todos  estão  o  vendo,  vendo  o  rosto  maravilhado  dele,  surpreso  como  o  de  uma 
criança.  As  mãos  dele  tremiam  levemente,  e  as  folhas tremiam como  se  houvesse  uma  brisa  leve.  Ele 
não via e não ouvia nada ao redor dele. Ele olhava. Absorvia esse estranho encanto do metal domado... 
 
‐ Pena, que Gorthaur não esteja vendo, ‐ suspirou Artífice. ‐ Mestre, conte, será que ele não pode deixar 
Ast Ahe nem mesmo por um dia? 
 
Melkor não respondeu. Ele de repente desejou, dolorosamente, que o Maia estivesse aqui: “Que seja eu 
maldito com essa minha resolução! Não quero acreditar que ele está mentindo! Se fosse possível fazer 
com que ele...” 
 
De repente, Vala notou uma figura alta e esbelta que se ergueu no canto mais distante do salão. Como 
uma  queimadura:  “Ele  esta  aqui?!  De  onde?!  Ir  lá,  falar  com  ele...”  Mas  ele  imaginou  como  o  Maia  se 
curvará com medo e respeito perante ele, como ele ouvirá novamente: “Senhor...” Não só ele – todos, 
todos verão e ouvirão isso... “Por que aqui? E nem mesmo veio falar comigo... escondeu‐se no canto...” 
 
Uma terrível confusão de pensamentos e sentimentos. E como se viesse de fora ‐ a própria voz, palavras 
cujo sentido é inalcançável: 
 
‐ Por quê está aqui? Por quê veio em segredo? 
A voz calma mas gelada como a própria indiferença irrompeu, destruiu, destroçou a visão. As mãos de 
Maia estremeceram e a coroa caiu no chão... Um suspiro de pena soou no salão, alguém gritou. Gorthaur 
ficou parado, olhando apavorado para o rosto chocado de Geleon, e para aquilo que minutos antes era 
uma maravilha. E novamente soou aquela mesma voz, agora amarga, cheia de dor oculta: 
 

O Livro Negro de Arda  Página 95 
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‐  Realmente,  você  não  é  capaz  de  criar  ‐  somente  de  destruir.  E  não  há  lugar  para  você  entre  os 
criadores. Volte para os Orcs ‐ eles são mais parecidos com você! 
 
Gorthaur  não  teve  coragem  de  olhar  para  aquele  que  falava  nem  uma  vez.  Ele  se  virou  ‐lentamente, 
como viram os feridos próximos da morte antes de cair, ‐ e correu para a rua. Ele não viu como Geleon 
levantou‐se e, recolhendo a coroa amassada, falou surdamente, olhando para o rosto de Melkor: 
 
‐  Por  quê  você  feriu‐o  assim,  Mestre?  Será  por  causa  de  um  pedaço  de  metal  morto?  Amaldiçôo  este 
metal, então, então! 
 
E Geleon, atirando a coroa no chão, pisou‐a e saiu, sem se virar. 
 
Melkor continuou de pé, olhando para a porta. 
 
‐  Mestre...  ‐  começou  o  Menestrel.  E  calou‐se.  O  Vala  deu  um  passo  para  frente,  afastou  o  elfo  e 
caminhou  lentamente  na  direção  da  porta.  Os  Elfos  afastaram‐se  em  silêncio,  abrindo  o  caminho.  Os 
olhos ‐ escurecidos, terríveis ‐ como duas estrelas doentes na sombra das pestanas retas. 
 
...Vôo veloz ao encontro do vento negro, ao encontro das estrelas claras que cortavam o rosto... Ele fugia 
de todos, agora parecia‐lhe ‐ nos olhares de todos lia‐se recriminação, em todos os rostos ‐ a amargura 
da decepção naquele a quem eles não chamarão mais de Mestre, pois como pode ser Mestre alguém que 
fez algo dessa ordem?..  
 
Com  dificuldade,  ele  foi  ate  o  quarto  dele,  cambaleando  como  um  ferido,  apertando  a  palma  da  mão 
contra  o  peito,  onde  o  coração  se  debatia  em  dor.  A  vista  dele  estava  escurecendo,  e  ele  achava  o 
caminho  tateando  as  paredes.  Abriu  bruscamente  a  janela,  rasgou  o  colarinho  da  camisa  e  ficou 
respirando o vento gelado por alguns instantes. Arrastou‐se até a cama e jogou‐se de bruços sobre ela, 
apertando com as mãos a cabeça que ardia numa dor infernal. 
 
“Gorthaur... O que eu fiz, besta cega e cruel... Meu lugar não é entre eles. Não há perdão para mim. O que 
eu  fiz,  meu  Discípulo...  como  me  atrevo  a  chamar  –  você  ‐  de  meu  discípulo?..  Certo,  certo...  aquele 
adivinhou o que eu sou...” 
 
Ele não sabia quanto tempo passou. 
 
Alguém batendo na porta ‐ baixo, insistente. 
 
‐ Mestre! 
 
Num  primeiro  instante,  ele  não  pensou  que  fosse  com  ele.  Quando  o  fez,  o  rosto  contorceu‐se  num 
sorriso torto. 
 
‐ Mestre, abra, eu preciso falar com você! 
 
Geleon. “Bem, julgue‐me, Artífice”. 
 
‐ Sim. 
 
A voz ‐ irreconhecivelmente rouca, surda e sem vida. 
 
‐ Você... começou o Artífice, irado, quando o Vala surgiu na soleira da porta. 
 
E parou. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 96 
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Que bom que quase todos agora estavam na Casa de Festas, senão ele caminharia sob os olhares, como 
sob açoites. Que bom que era tarde, e a penumbra o escondia. Que bom que a casa dele estava afastada 
do centro da cidade. Faz muito essa casa estava vazia, mas agora ela ficará vazia para sempre. Maia não 
tinha  coragem  para  atravessar  a  soleira.  Não  tinha  direito.  No  escuro,  ele  ouvia  as  vozes  das  poucas 
coisas  que  possuía,  queridas  a  ele  por  serem  presentes  dos  amigos  e  as  criações  dele  próprio.  Mas 
agora, tudo que ele mesmo havia feito lhe parecia monstruoso e mal‐feito. E então ele entrou. 
 
Ele não conseguiu destruir somente um único objeto – aquele punhal que ele havia um dia oferecido de 
presente ao Mestre. Agora também ele lhe parecia horrível, mas ele não podia quebrá‐lo. Não podia. A 
lâmina  cintilava,  guardando  o  toque  das  mãos  de  Melkor,  naquele  tempo  ainda  mãos  amigas,  mãos 
daquele que ele respeitava como tudo o que teve de melhor na própria vida. Ele sentia agora algo novo, 
ao mesmo tempo doloroso e purificante. Esse algo o fazia arfar, ele estava asfixiando, como um peixe 
atirado  para  fora  da  água,  ele  engasgava‐se  com  esse  ar,  pois  não  sabia  respirar;  alguma  coisa  batia 
desordenadamente no peito dele. Alguma coisa acontecia com os olhos – um líquido estranho escorria 
pelo rosto ‐ ele julgava isso uma doença, e não podia entender porque isso acontece justo com ele, ele 
que  não  conseguiu  ser  um  filho  de  Arta.  Com  dificuldade,  ele  acalmou‐se  e,  sentindo  dentro  de  si  o 
silêncio costumeiro, olhou em volta pela última vez... 
 
Quando  Geleon,  finalmente,  tomou  coragem  para  ir  até  a  casa  afastada,  ele  viu  somente  a  porta 
escancarada e uma montanha de destroços no chão. A casa estava deserta.  
 
Ele  encontrou  essa  lagoa  redonda  perdida  na  floresta  há  muito  tempo.  A  primavera  estava  no  auge 
então, e ele caminhava na semi‐escuridão da floresta, onde, sob as arvores, espremiam‐se as estrelinhas 
delicadas  e  frágeis,  como  se  estrelas  brancas  tentassem  se  esconder  aqui  dos  raios  do  sol.  E  toda  a 
floresta  estava  inundada  de  cheiro mágico  de  lírios‐do‐vale  de  cera  semitransparentes.  Foi  então  que 
algo  se  mexeu  no  peito  dele  pela  primeira  vez,  e  ele  engoliu  convulsivamente  um  pouco  do  ar 
primaveril. Pareceu‐lhe que dentro dele dorme algum pássaro, e ele teve medo, inexplicavelmente, de 
que  o  passaro  subitamente  acorde  e  fuja...  E  depois  ele  viu  o  olho  azul  escuro  velado  pelas  pestanas 
agudas das árvores. Um pedaço de céu derreteu formando uma lagoa no meio da floresta. A água era 
morna, com um gostinho estranho e agradável e cheiro de folhas de outono. O fundo era forrado por 
uma camada escura de folhas, e era possível observar, através da água transparente, como as sombras 
das nuvens arrastam‐se pelo fundo. Ele vinha aqui com muito cuidado, tentando não amassar nenhuma 
planta ou folha. Esse era o lago dele, e ele era – do lago. De vez em quando, parecia‐lhe que aqui há mais 
alguém, especialmente quando o lago envolvia‐se na neblina. 
 
Neblina  assim  aparecia  só  aqui.  Ela  estava  cheia  de  menções  e  formas  inacabadas,  como  se  fossem 
pedaços de pensamentos. E todas as vezes, ele levava consigo uma parte da miragem, embrião de plano, 
pergunta que precisava ser respondida... À noite, ele olhava como cintila o musgo, e como as estrelas do 
céu conversam, sem palavras, com as estrelas da água, que florescem com flores nunca antes vistas por 
ele. Um dia ele levou uma dessas flores para o Mestre... então ele ainda conseguia chamá‐lo ‐ assim. Ele 
perguntou ‐ foi você que criou essa estrela viva? Mas o Mestre olhava a flor com uma surpresa alegre e, 
balançando a cabeça, respondeu que foi alguém mais bondoso e carinhoso que ele. Agora essas flores 
estavam em quase todas as lagoas ‐ assim fez o Mestre. 
 
Algumas vezes, ele tomava coragem para entrar na lagoa, e a água abraçava o corpo dele, abrindo‐se em 
pesadas ondas escuras atrás dele, quando ele nadava de uma margem à outra. E ele ficava deitado de 
costas e sorria para o céu. Só ele perturbava o eternamente liso espelho das águas, pois o vento jamais 
conseguiu chegar até aqui. Esse espelho nunca mentia. Ele curvou‐se sobre a água e ficou perguntando 
– quem sou eu? Ele se via e sorria, e bebia o melhor vinho do mundo com gostinho de folhas outonais... 
 
As  poucas  folhas  que  ainda  não  haviam  caído  tremiam,  sangrando  ouro,  como  a  coroa  de  Geleon  nas 
mãos  dele.  Um  dia  transparente,  cristalino,  floresta  transparente  e  sonora...  Frutas  tardias  de 
framboesa,  como  pequenas  pirâmides  de  rubis  cintilantes  sobre  palmas  verde‐escuras.  Chapéus 
coloridos dos cogumelos, as atraentes gotas venenosas dos frutos dos lírios‐do‐vale, olhos negros dos 
olhos‐de‐corvo. O aroma primaveril virou veneno outonal. Ouro e fogo. Ouro e veneno. Ouro e sangue... 

O Livro Negro de Arda  Página 97 
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“E eu nem sangue tenho... Quem sou eu, quem? E o que aconteceu, por quê fui expulso?” Ele se ajoelhou 
e curvou‐se sobre a água... Foi o vento que soprou, ou uma gota caiu do galho, e da água olhou‐o – um 
Orc... 
 
Ele recuou bruscamente, e a terrível suposição caiu sobre ele como uma avalanche, o mundo rodou em 
espiral, e a cada giro veloz, a verdade aparecia cada vez mais nua e terrível. 
 
“...Então, ele viu tudo e entendeu logo de cara... e não aceitou o presente... Ele sabia que eu nunca, nunca 
me tornarei vivo, que a Predeterminação chegou junto comigo. Ele sabia o que eu serei... Oh... Será que 
eu realmente criarei somente o mal... mas eu não quero, eu entendo tudo, eu não farei nada de mal”. E 
da memória, emergiu o rosto de Geleon e Elfos com espadas, e Orcs obedientes de medo. Eis as provas. 
É terrível compreender que você é o mal, sem se sentir o mal... Mas por quê aconteceu assim? Será que 
Melkor soube desde o início que nele, Gorthaur, está o mal? Ou ele mesmo fez algo que o transformou... 
 
“Eru, um dia, teve medo da própria criação, porque Melkor era mais forte do que ele. Ele considerou‐o o 
mal. Assim eu assustei o meu criador. Só que eu realmente sou o mal. Mas por quê ele não me expulsou 
logo, por quê me fez amá‐lo?! Talvez pensou que era possível mudar‐me, tal como ele tinha esperanças 
de curar os Orcs... Mas eu ainda não sou um Orc. Eu terei tempo de partir...” 
 
Cada passo era difícil. Ele literalmente arrastava‐se, fazendo‐se andar à força. Não queria ir embora. 
 
 “E esse punhal ‐ será que eu o entregarei lá, em Valinor? Terão que esperar muito. Não é para eles. A 
quem, então? O lugar dele é aqui, em Arta, pois eu ainda poderia mudar quando o fiz; nele ainda não há 
maldade...”  Ele  lembrou  de  Neere.  Ele  o  viu  pela  primeira  vez  entre  as  geleiras  eternas  do  norte, 
rasgados por um vulcão que nunca se apagava. O balrog estava no fogo até os joelhos e ria, abafando os 
rugidos  da  erupção.  Os  brilhos  do  fogo  refletiam  na  pele  brilhante  e  negra,  como  se  estivesse  polida, 
faíscas corriam pelas asas escuras e os olhos e cabelos dele eram chamas. Provavelmente, a mão dele 
era ardente como a lava, mas Gorthaur não sentia dor. O Armeiro sempre se surpreendia quando ele 
tirava  a  barra  de  metal  em brasas  do  fogo  com  a  mão  desprotegida,  e  na  mão dele  não  ficava  sequer 
uma marca de queimadura... “Neere usará a faca. Ele não se transformará no mal. Não se transformará 
num Orc, como eu...” 
 
Agora, compreendendo a própria condenação, a própria rejeição, ele quase se acalmou. Ele andava para 
o noroeste, e a cada passo se consolava ‐ não é agora, não é logo, ainda poderei ficar aqui, em Arta, não é 
agora ainda... 
 
“Eu  também  fazia  coisas  boas,  apesar de  tudo.  Enquanto  pude.  Tudo bem,  o  meu  tempo  acabou,  e  eu 
não  sou  mais  necessário.  Eu  entendi  tudo  ‐  agora  é  o  tempo  dos  Elfos.  E  se  eu  fiquei  assim,  então  é 
realmente  necessário  partir,  para  não  os  levar  à  ruína...  Geleon,  Armeiro...  Nem  me  atrevo  a  chamar 
vocês de amigos...” 
 
O  mar  estava  sombrio,  misturava‐se  com  o  baixo,  encoberto  de  nuvens  rasgadas  ‐  como  uma  teia 
empoeirada ‐ céu. O grande mar de Arta. Mar vivo, cantante, amado. A água turva cinza‐esverdeada roia 
furiosamente  a  terra.  O  ar  cheirava  a  sal  e  a  algas  ‐  expresso,  pode  até  cortar  em  fatias,  cheiro. 
Chuviscava. O vento misturava a maresia com a poeira de água do céu. Bom e triste. “Haverá mais uma 
noite. E na alvorada, eu partirei. Não, no pôr‐do‐sol, que haja mais um dia, e eu nadarei seguindo o Sol. 
Porque não haverá mais nada. É a soleira da porta... ” Ele caminhou para longe da margem, para longe 
do marulho, para viver as ultimas horas em Arta sem essa lembrança de deverá partir. Atrás das rochas, 
não  se  ouvia  mais  o  mar.  Aqui  começava  a  floresta,  parecida  com  aquela,  perto  da  lagoa...  Musgo, 
miçangas rubras de airela vermelha... Do outro lado não há nem musgo assim, nem frutas assim. 
 
À  noite,  o  tempo  ficou  melhor.  Céu.  Céu  de  Arta,  sem  fundo,  transparente.  Mansões  do  Universo... 
Estrelas... Olhos do Escuro... 
 
“‐ Luz... de onde? O que é isso? 

O Livro Negro de Arda  Página 98 
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‐ O Sol. 
 
‐ Foi você que o criou? 
 
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe. 
 
‐ ...O que é isso? 
 
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos...” 
 
 
 “Lá, não haverá nada disso. Lá, o céu é cego. Mas eu não conseguirei esquecer de nada. Aonde eu irei 
então, porque nem mesmo morrer eu posso...” 
 
Algo  fez  barulho  nos  arbustos.  Gorthaur  levantou‐se  num  pulo.  Olhos  amarelos  do  lobo.  Ele  conhecia 
estes  animais.  Não  sabia  de  onde  eles  surgiram,  mas  eles  eram  amigos  dele  e  de  Melkor.  Eles  não 
sabiam falar, mas Gorthaur conseguia ler os pensamentos deles. E ele compreendeu que o lobo estava o 
procurando. Procurando a pedido de Melkor. E ele temeu que, depois de ver o Vala, ele não poderá mais 
partir. 
 
‐ Por favor, ‐ começou a falar ele rapidamente e se atrapalhando, ‐ não me entregue, não diga aonde eu 
estou. Eu devo, tenho que ir embora, entende! Suplico, não me entregue! 
 
O  lobo  o  olhou  durante  alguns  instantes,  com  os  dentes  arreganhados,  como  se  estivesse  sorrindo. 
Depois se virou e desapareceu tão silenciosamente quanto havia surgido. 
 
O Maia acalmou‐se. Nos pensamentos do lobo, havia compaixão. Não o entregará. 
 
Pela manhã ‐ manhã quente, quase de verão ‐ o vento trouxe uma lembrança do mar. Dava vontade de 
sentir Arta com a pele pela última vez... Quão difícil será no ar pegajoso e doce, sem vento, de Aman... 
Ele tirou o casaco rasgado, como a cobra perde a pele velha, como se arrancasse de si mesmo a carne 
que foi dada por Arta. 
 
‐ Orthenner! ‐ o vento trouxe o chamado. Muito perto. Ele estremeceu, como se o açoite de um Ahero 
tocasse as costas dele. Encontrou‐o. Seguiu e encontrou. Como a um criminoso. Para que, para que... Ele 
mesmo queria que fosse embora... Para que torturar... 
 
‐ Orthenner! Onde está? Não se esconda, onde você está? 
 
Ele  correu  pela  campina,  abraçada  por  uma  ferradura  de  rocha.  Ir  embora,  esconder‐se,  rápido,  para 
não  ter  de  ver...  Novamente,  o  pássaro  inquieto  mexeu‐se  no  peito...  Tudo  bem,  logo  passará...  Ele  se 
atirou para um lado qualquer, esbarrou na rocha, caiu, machucando‐se nas pedras afiadas, ergueu‐se, 
praguejando, e entendeu, que é tarde demais para fugir. 
 
‐ Orthenner, espere! Por quê você foge? Ouça! 
 
‐ Não... Não, vá embora! Vá, por favor! Deixe‐me em paz! 
 
‐ Espere... 
 
‐ Não!.. Não precisa, eu sei de tudo, eu entendi tudo, não diga nada! Você não poderá fazer nada, não 
tenha pena de  mim!  Predeterminação...  Você  não  a  vencerá,  eu  não  poderei  nada,  eu  entendo tudo: o 
meu destino é destruir. Não fale, não precisa de nada! Eu já fiz tudo, tudo o que pude, além ‐ sou o mal. 
Seja piedoso, deixe‐me ir, para que você precisa de mim? 

O Livro Negro de Arda  Página 99 
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‐ E aonde você irá? ‐ com uma voz estranha disse Melkor, e o seu rosto ficou terrivelmente cansado e 
envelhecido. 
 
‐ Não tenha pena, termine de falar. Eu não ficarei aqui, eu não devo trazer o mal, eu sou um estranho em 
Arta! Eu sei, sei, você pensa que eu irei a Valinor e serei contra você, como Curumo. É isso?! Acredite 
pelo menos agora ‐ eu antes arrancarei a própria língua do que falarei uma palavra que seja contra você 
lá! Eu já não poderei esquecer! Lá também sou um estranho, sou um estranho também aqui, mas lá não 
farei mal algum! Deixe‐me, vá embora! 
 
‐ O que você está falando! Ouça! Não te perdoarão, você não vai lamber o chão sob os pés deles como 
Curumo! 
 
‐ “Como o seu irmão” ‐ fale assim mesmo. O que te importa, senhor... E o que eles poderão fazer comigo? 
Ta, Aulë me botará numa corrente, algum dia vai acabar soltando... Mas você não estará lá, ninguém irá 
me  domesticar,  é  mais  fácil,  quando  inimigos...  Não  diga  nada!  (“Pássaro  maldito,  por  quê  bate 
novamente, por quê justo agora!”) Ninguém me domesticará... 
 
Ele riu estranhamente: 
 
‐ Conte, senhor, se você sabia de tudo, por quê domesticou‐me? Por quê me deu esperança? Por quê não 
expulsou? Pois acabei gostando de você... Não, eu não minto, é verdade. Teve compaixão? Cruel é a sua 
compaixão! (“Parede se debater, aquiete‐se!”) Agora será difícil para eu partir... Mas o que te importa, 
sou somente um servo desobediente... Então mande Ahere me  espancarem, se eu uma besta maligna, 
ainda assim será mais fácil! 
 
Ele  recuava  mais  e  mais,  afastando‐se  de  Melkor,  que  caminhava  na  direção  dele,  até  encostar  nas 
rochas. Acabou. Ele se calou, levantou o rosto desesperado, esperando tudo –golpe, maldição, ira... Ele 
andava, apertando as costas contra as pedras ásperas ao longo da ferradura, sem tirar os olhos do rosto 
de  Melkor,  com  todas  as  forcas  tentando  obrigar  o  pássaro  assustador  a  se  calar.  E  o  pássaro  não  se 
aquietava, ele queria pular para fora, e o Maia já não entendia as próprias palavras, porque parou de 
dominar  o  próprio  corpo.  Ele  engolia  o  ar  convulsivamente,  engasgava,  queimando  a  garganta,  e,  já 
depois  de  cair,  tentou  arrastar‐se  para  longe,  esconder‐se.E  depois  ele  somente  berrava  de  dor  e  se 
debatia no chão como um animal ferido, tentando rasgar o peito e soltar o pássaro. E Melkor agarrou as 
mãos dele, porque na mão do Maia havia uma pedra, afiada como uma faca, e ele já havia cortado duas 
vezes o próprio corpo no lugar onde havia o pássaro, e o sangue vivo e quente escorria pelo peito dele. 
Melkor nunca imaginou que o Maia tivesse tantas forças. Ele mal conseguia segurá‐lo. Pensava somente 
sobre uma coisa ‐ o coração acordou em Gorthaur. Não permitir que ele se mate. Ele não poderá viver 
em  Valinor.  Melhor  não  pensar  no  que  poderão  fazer  com  ele,  como  exemplo  para  os  outros.Eles 
perdoarão aquele que traiu, mas aquele que mudou ‐ jamais. Gorthaur continuava gritando, e os olhos 
dele  eram  anormalmente  grandes  e  negros,  e  lágrimas  rolavam  pelo  rosto  sujo  de  terra  e  sangue. 
Melkor nunca antes vira tanto sofrimento nos olhos de um ser vivo. Tanta dor. Gorthaur se afogava no 
ar  de  Arta,  brotava  dolorosamente  nela,  tornando‐se  sua  parte,  transformando‐se  num  ser  vivo.  Ele 
estava renascendo. E a dor era o primeiro sinal e a primeira dádiva da vida nova. Melkor não lembrava 
quanto  tempo  passou  até  que  os  gritos  do  Maia  se  transformassem  num  choramingo  convulsivo,  e  o 
corpo dele amolecesse. O Vala ergueu‐se, respirando com dificuldade. Nunca antes ele havia se cansado 
tanto...  O  Maia  estava  imóvel,  de  olhos  fechados,  como  morto.  O  rosto  dele  estava  extenuado, 
envelhecido,  marcado  pela  dor.  Mas  ele  era  vivo  ‐  realmente  vivo.  Ele  respirava  inexperientemente, 
pesadamente e, mesmo sem ouvir o coração dele, era possível ver onde ele bate. Melkor abaixou‐se do 
lado dele, exausto, colocou a cabeça de Gorthaur sobre os próprios joelhos. Cuidadosamente, limpou o 
sangue e a sujeira do rosto dele. Aos poucos, a respiração do Maia tornou‐se mais baixa e tranqüila, o 
coração passou a bater mais calmamente, o rosto desenrugou‐se e tornou‐se tão desprotegido quanto o 
de um recém‐nascido. Ele dormia – pela primeira e última vez. Mas mesmo o sono dele era incomum: 
ele ouvia a Arta. Ele era uma gota de vapor e subia ao céu junto com o vapor, para se transformar num 
arco‐íris, uma nuvem dourada nos raios do sol nascente e voar sobre toda a Arta, cair com chuva sobre 

O Livro Negro de Arda  Página 100 
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a terra, e unir‐se às correntes e rios subterrâneos, passar pelos fios das raízes das árvores e ouvir a vida 
e os pensamentos da árvore, dissolver‐se nela, abrir‐se numa folha verde... Ele era a águia do céu alto, 
sobre as nuvens, e com a sua visão aguçada, via tudo embaixo... Ele era a grama, ele atravessava a terra 
negra, ele a ouvia, ele ouvia o vento sobre si, ele bebia o vento e o Sol; e o ar de Arta jorrava nele, e a 
chama de Arta batia no coração recém‐nascido dele. Ele brotava em Arta, como Arta brotava nele... 
 
Ele dormia. Passou a noite, e passou o dia. E mais uma noite e mais um dia. E muitas noites e muitos 
dias.  E  Melkor  continuava  sentado,  imóvel,  protegendo  o  Maia  adormecido  do  vento  e  da  chuva, 
segurando a própria capa sobre ele, como um pássaro abre as asas sobre o ninho. Queimou o outono, 
começou o inverno, e a neve o cobriu, e Melkor era como um pinheiro, cujos galhos cobertos de neve 
protegem as ervas. Os Elfos vieram e quiseram carregar o adormecido, mas Melkor balançou a cabeça 
em  silêncio  e  apertou  o  dedo  contra  os  lábios...  E  chegou  a  primavera,  e  acordaram  as  ervas  e  as 
árvores.  Então  o  Vala  fechou  as  asas,  e  os  raios  do  sol  acordaram  o  Maia...  E  Melkor  disse,  baixinho, 
olhando‐o nos olhos: 
 
‐ Feliz aniversário, Gorthaur. 
 
Gorthaur não perguntou nada. Ele tinha entendido tudo. Ele tinha entendido demais no seu longo sono. 
Ele levantou‐se, quase da mesma altura que o Mestre, tomou a mão daquele e a colocou sobre o lugar 
onde batia o coração dele. 
 
‐ Você havia recusado a minha dádiva.Sei, não por querer ofender‐me. Mas e essa, aceitará‐a? 
 
Melkor sorriu. 
 
‐ Sim, e com imensa gratidão. Aceite você também a mesma dádiva, meu Discípulo... 
 
E foi assim ‐ o Armeiro veio até Melkor e, rindo – ele tinha esse jeitinho de falar ‐ disse: 
 
‐ Mestre! Gorthaur pediu‐me para falar com você. 
 
Isso era curioso. Normalmente, Maia sempre vinha pessoalmente. Era incompreensível o que poderia 
tê‐lo impedido agora. 
 
‐ Fale então. Eu sempre estou feliz em ouvir você e ele. 
 
O  Armeiro  riu  novamente.  Ele  era  um  Elfo  calmo  e  confiante,  o  que,  contudo,  nunca  passava  para 
insolência. Não muito alto, ele tinha força descomunal. O trabalho contínuo na forja deu‐lhe largos peito 
e ombros, braços musculosos, semelhantes a raízes de uma árvore milenar. Um dos poucos, ele usava 
barba.  “Para  imponência”,  ‐  dizia  ele  e,  visivelmente,  essa  imponência  o  ajudava.  Poucos  poderiam 
imaginar que esse Elfo calmo e sólido era mais novo do que muitos outros, quase da mesma idade do 
Menestrel. 
 
‐ Então, Mestre, Gorthaur não teve coragem de vir aqui ele mesmo... 
 
‐ Por quê? ‐ perguntou Melkor, quase ofendido, e o coração dele estremeceu por causa da lembrança – 
não  é  à  toa  que  o  Maia  tem  medo  agora  de  qualquer  criação,  de  qualquer  feito,  depois  daquilo  que 
aconteceu entre eles. 
 
‐ Tem um tanto de medo, ‐ sorriu o Armeiro. 
 
‐ Mas do que? Eu ainda nem sei qual é o problema. Será que eu alguma vez impliquei com o trabalho 
dele... desde então? 
 

O Livro Negro de Arda  Página 101 
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Realmente,  agora  Melkor  falava  muito  cuidadosamente  com  o  Discípulo,  com  medo  de  feri‐lo 
novamente. O ardoroso e jovem Maia era querido demais a ele. 
 
‐ Sabe, Mestre, não se trata de uma coisa. Ele criou o vivo, ‐ O Armeiro pronunciou a última palavra por 
sílabas, ‐ e, parece, ele mesmo não sabe o que fazer com as bestas que ele aprontou. 
 
O Armeiro sorriu novamente: 
 
‐ Na verdade, são uns monstros bem divertidos. Mas, juro, não entendo o que Gorthaur queria! 
 
Melkor olhava perplexo para o Armeiro. 
 
‐ Que venha aqui, então. E junto com a arte dele. Parece que ele aprontou algo bem feio dessa vez. 
 
E o Gorthaur sentia‐se terrivelmente culpado. Por um lado, ele tinha as melhores intenções. Ele queria 
que o trabalho pesado nas minas e pedreiras, talvez depois também na construção das casas de pedra, 
fosse realizado por alguém mais forte do que os Elleri. Por outro, havia aqui uma pitada de presunção e 
orgulho.  O  poder  dele  não  seria  suficiente  para  criaturas  superiores,  mas  ele  esperava  criar  algo 
gnomóide, não pior que os de Aulë. Foi assim que ele criou algo vivo. Ele percebeu tarde demais ‐ em 
essência, criou escravos. E ai que ele teve medo. Não poderia escondê‐los dos olhos de Melkor, destruir 
‐ a mão não se levanta, afinal são vivos. Resolveu confessar, antes que seja tarde. 
 
...A  criatura  era  enorme  e  desengonçada.  Ele  poderia  irritar‐se,  mas  poderia  também  rir.  Melkor 
preferiu a segunda opção. E era mesmo impossível não rir, olhando para o corpo que parecia uma pedra 
coberta de musgo. 
 
‐ O que você criou? ‐ divertia‐se Melkor. ‐ Isso é o que? 
 
‐ Mestre, ‐ o Maia respirou aliviado. ‐ Eu mesmo não sei. Queria fazê‐los para ajudarem os Elfos, só que 
tenho  medo  de  que  não  vão  servir  para  muita  coisa.  E,  falando  a  verdade,  não  me  sinto  muito 
confortável.  Eles  ficaram...  como  dizer  melhor...  deficientes.  Até  se  eles  mesmos  não  têm  consciência 
disso ‐ o que importa? A mente diz – destrua, e o braço não se ergue. 
 
‐ Nisso você está certo. Eles são vivos. E tem alguma consciência, por menor que seja. Que vivam. Alias, 
do que é que você os criou? 
 
Maia  ficou  todo  sorridente.  Ele  gostava  de  contar  sobre  como  fazia  isso  ou  aquilo,  se  empolgando, 
descrevendo tudo até os mínimos detalhes. 
 
‐ Sabe, eu os pensei faz muito, mas não conseguia imaginar de jeito nenhum como eles deveriam ser. E 
ai,  à  noite  vi  uma  monte  de  pedras.  Pareciam  algo  com  braços  e  pernas.  E  ai  eu  me  apressei  para 
enfeitiçar  a  figura,  para  não  esquecer,  não  perder.  Parece  que  me  apressei...  E  depois,  eu  o  completei 
com alguns detalhes e coloquei já o feitiço da existência. E apareceu ele, desse jeito... 
 
Gorthaur olhou perplexo, mas com um tanto de simpatia para o gigante. 
 
‐ E por quê ele está coberto de escamas? E tem esses dentes enormes na boca? 
 
‐  Se  eu  soubesse,  Mestre!  Parece  que  ali,  nas  pedras dormia  uma  lagartixa,  e  quando  eu  enfeitiçava  a 
figura, eu a enfeiticei também. E ele ainda não gosta de luz, pois eu o vi de noite. Mestre, o que é que eu 
faço com ele? 
 
‐ O que fazer?.. Nada. Deixe viver. Talvez vão dar em alguma coisa. Eu te entendo; não tenha medo ‐ não 
são Orcs. Eles dificilmente farão mal a alguém, se, claro, não aparecer algum Curumo para eles... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 102 
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‐ Não deixo! ‐ gritou Gorthaur, com petulância. ‐ Não permitirei! E para que ninguém se atreva a usá‐los 
para o mal, eu jogarei mais um feitiço neles. Eles não poderão viver no sol. A noite gerou a forma deles, 
a luz do dia os transformará nas mesmas pedras das quais eles nasceram. 
 
‐ Não se apresse. Sabe, freqüentemente a criatura escapa do poder do seu criador. E, acho, como eles 
são  vivos  e  possuem  inteligência,  que  sejam  livres.  Que  tenham  uma  possibilidade  de  tornarem‐se 
diferentes. Que vivam por conta própria ‐ talvez tenham força e inteligência suficientes para fazeres a si 
mesmos. 
 
Gorthaur sorriu. 
 
‐ Bom. Eu nem tinha esperanças disso. Mas, Mestre, me perdoe ‐ se você mandasse destruí‐los agora, eu 
iria embora com certeza. Só que não se ofenda, está bem? 
 
Melkor riu, olhando estranhamente para o discípulo. 
 
Gorthaur não entendeu e ficou pensativo. Mas enfim, quem conhece os planos do Mestre? 

O Livro Negro de Arda  Página 103 
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O SENHOR E O SERVO. ANO 500 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
Curumo estava com falta de ar por medo e raiva. “Expulsou! Me expulsou! Mas não é nada, você ainda 
me pagará por isso! Todos vocês me pagarão! Mas... o que fazer? Ficar em Endorë? Sem sentido. Não. 
Somente  para  Valinor.  Os  Valar,  eu  os  convencerei.  Você  ainda  saberá  quem  eu  sou!  Gosta  de  ferro, 
canalha?  Terá  ferro.  O  conjunto  completo  ‐  nas  mãos,  no  pescoço  e  na  cabeça.  E  esses...  seus 
discipulozinhos ‐ também receberão o deles!” 
 
Em  Máhanaxar,  no  Conselho  dos  Poderes,  perante  os  tronos  dos  Senhores  de  Arda,  apresentou‐se 
Curumo ‐ rosto sofrido, vestido de trapos ‐ e estendeu‐se no chão perante o trono de Manwë, abraçando 
os joelhos dele e regando de lágrimas os pés dele: 
 
‐ Finalmente, meu senhor! Finalmente eu voltei! 
 
O Rei do Mundo olhou o Maia com desconfiança mal disfarçada: 
 
‐ E de onde é que você voltou? 
 
‐  Não  há  perdão  para  mim, Grande!  Com palavras  enganadoras  e  oferendas traiçoeiras,  o  Inimigo me 
inclinou para o serviço das trevas, e me ameaçava com os mais horrendos castigos se eu atrever‐me a 
desobedecer.  Mas  eu  recuperei  a  visão,  eu  vi  a  luz  verdadeira;  e  então  ele  encarcerou‐me  num 
subterrâneo,  assustando  com  terríveis  tormentos,  tais  que  somente  o  inimigo  do  Mundo  é  capaz  de 
concebê‐los. Mas apesar de eu ter me resignado na aparência, no meu coração vivia a memória da Terra 
Abençoada, e eu esperava uma ocasião propícia para escapar. E então ‐ estou aqui. Sim, eu fui fraco, eu 
estou culpado, Senhor do Mundo e todos os Grandes. Aceitarei com resignação qualquer castigo, eu que 
sou somente poeira desprezível sob os seus pés, qualquer que seja a sua sentença... Oh, quão feliz estou 
em estar aqui! Como eu me alegro por ter, finalmente, conhecido a verdade! Mas como eu pagarei pela 
minha culpa? 
 
‐ Levante‐se, ‐ finalmente respondeu Manwë, com visível satisfação. ‐ Qual será a sua decisão, Poderes 
de Arda? 
 
‐ Deixe‐o falar sobre os feitos de Melkor, ‐ falou Námo. ‐ Tudo o que sabe. 
 
‐  A  língua  se  recusa  a  obedecer‐me,  Grandes,  mal  eu  me  recordo  das  terríveis  maldades  do  Inimigo. 
Tudo o que ele toca torna‐se perverso, repugnante e fonte de mal. As florestas, a maravilhosa criação da 
Senhora  Yavanna,  ele  as  encheu  de  sombras  e  pavor,  e  as  povoou  de  criaturas  horríveis,  sedentas  de 
sangue, como uma zombaria das criações de Oromë, o Grande Caçador dos Valar. Ele não pôde dominar 
as águas da Terra‐Média, mas, envenenadas pelo mal, elas se tornaram amargas como o veneno, e as 
vozes delas se calaram, como é de conhecimento do Senhor das Águas Ulmo. Ele destrói tudo o que está 
ao alcance dele, e a face de Arda torna‐se monstruosa, pois ele zomba de tudo o que você criou, Aulë, 
Grande Ferreiro, o meu misericordioso senhor. E ele inventou visões repugnantes, que anuviam a razão, 
Irmo, Senhor dos Sonhos, e cada um que as vê pode perder a razão. E você, Námo, saiba que o Inimigo 
se nomeia o Senhor dos Destinos de Arda, desobedecendo à vontade do Único. E ele transforma as belas 
Crianças  de  Ilúvatar,  com  torturas  e  feitiços  negros,  em  Orcs  repugnantes,  monstros  sanguinolentos, 
cheios de ódio a todos os seres viventes, os obrigando a servi‐lo, e prepara uma guerra contra vocês, 
Poderes.  Eles  fazem  sacrifícios  sangrentos,  torturando  criaturas  inocentes,  e  organizam  danças 
horrendas durante essas reuniões, bela Nessa; e os pássaros evitam os domínios dele, onde nunca há 
primavera, sempre jovem Vána. 
 
Chore, curadora Estë: terríveis são os sofrimentos de qualquer um que cai nas mãos do Inimigo! Chore, 
ó misericordiosa Nienna: assustadoras são as feridas que ele causa a Arda! 
Mas  nem  mesmo  este  é  o  mais  terrível  feito  do  Inimigo.  Pois  entre  os  servos  dele  há  aqueles  que 
conservaram  a  inigualável  beleza  dos  Elfos,  mas  as  almas  deles  estão  envenenadas  pelo  mal.  Eles 

O Livro Negro de Arda  Página 104 
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chamam a si de Elfos Negros, e são muito mais perigosos do que os Orcs, pois a aparência deles é bela e 
nobre, mas eles são experientes na mentira. E eles distorcem toda a historia da Arda, ó sábia Vairë, e 
maldizem o Único, e adoram ao Inimigo ‐ que esteja ele amaldiçoado para sempre! ‐ como o Criador de 
Tudo o que Existe. E eles levam conversas heréticas sobre a multiplicidade dos mundos, e dizem que 
não foi você, claríssima senhora Varda, que acendeu as estrelas, mas que elas existiam desde antes de 
Arda, e não foi o Único que as criou. E o Senhor deles, Melkor, no orgulho dele declara‐se o Senhor de 
Arda, e senhor de tudo o que há em Arda, e o mais poderoso entre os Valar... 
 
‐ Basta! ‐ urrou Tulkas. ‐ Chegou a hora de acabar com o infame! 
 
‐ Espere, poderoso Tulkas, ‐ disse Manwë. ‐ Grande é o poder do Inimigo... 
 
‐ Perdoe, Grande, por atrever‐me a falar sem a sua permissão... 
 
‐ Fale, ‐ na mesma hora permitiu o Rei do Mundo. 
 
‐  O  poder  dele  não  é  tão  grande  como  ele  pensa.  Ele  não  espera  uma  guerra,  pois  está  certo  de  que 
ninguém se atreverá a atacá‐lo. Os servos dele são fracos e inexperientes nos assuntos militares, e os 
Orcs  ainda  não  são  numerosos.  Convoque  o  exército,  Senhor  do  Mundo,  e  poderoso  Tulkas,  um 
guerreiro invencível, o liderará. E eu conheço as fortalezas do Inimigo e mostrar‐lhes‐ei o caminho. 
 
Então Manwë, o Rei do Mundo, se ergueu do trono, e respondeu: 
 
‐  Que  seja  assim.  E  você,  Curumo,  terá  o  perdão  dos  Poderes,  e  agora  esperamos  que  os  seus  feitos 
sejam a prova das suas palavras. E você terá glória entre o povo dos Valar. 
 
E, caindo de joelhos, o irmão mais novo de Gorthaur beijou a mão de Manwë. E o irmão mais novo de 
Melkor não retirou a mão. 

O Livro Negro de Arda  Página 105 
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A GUERRA DA LUZ. ANO 502 DO DESPERTAR DOS ELFOS. GUERRA DOS PODERES DE ARDA 

 
“Disse  então  Manwë  aos  Valar:  ‘Este  é  o  conselho  de  Ilúvatar  em  meu  coração:  que  devemos 
reconquistar o domínio de Arda, a qualquer custo, e liberar os quendi da ameaça de Melkor’. Com isso 
alegrou‐se Tulkas; mas Aulë se entristeceu, prevendo os danos ao mundo que deveriam resultar desse 
combate...  Longo  e  angustiante  foi  o  cerco  a  Utumno,  e  muitas  batalhas  foram  travadas  diante  dos 
portões da Fortaleza Negra, das quais nada chegou aos ouvidos dos elfos a não ser rumores...” 
 
Assim fala o “Quenta Silmarillion”. 
 
Elenhel. O nome ‐ a luz salgada de uma estrela distante. Na língua dos Novos, Aqueles que Chegaram, 
ele  soaria  como  Elhele,  o  gelo  das  estrelas.  Gelo  transparente  e  esverdeado,  que  cobre  os  picos  das 
montanhas como um manto real, da cor parecida com a dos olhos dela. 
 
Ele disse um dia ‐ Elhe. O nome ‐ a prata amarga do caule de absinto. Chamou assim ‐ e não errou. Ela 
realmente  parece  um  caule  de  absinto  ‐  não  muito  alta,  frágil,  fininha.  E  essa  inacreditável  cor  dos 
cabelos ‐ quase prateados, como uma cachoeira de metal claro. Olhos enormes ‐ transparentes, verdes, 
como os rios das montanhas no inverno... 
 
Ela raramente chorava, mas ria menos freqüentemente ainda. Ela era uma sonhadora, que sabia contar 
histórias maravilhosas, mas de vez em quando o olhar dela ficava amargo e atento ‐ e poucos podiam 
suportá‐lo, pois ela era ‐ Aquela que Vê. 
 
Imprevisível, ela podia conversar por horas com o Amigo dos Livros ou o Mago, interrogar o Andarilho 
sobre as outras terras, e eles esqueciam, na conversa, que ela tem somente dezesseis – as palavras dela, 
tristes e sábias, pareciam não pertencer a uma adolescente; ‐ e depois aprontava alguma coisa arisca. 
Quem,  além  dela,  se  atreveria  a  voar  na  lua  cheia  pelo  céu  noturno,  montado  num  dragão  alado?  As 
crianças extasiavam‐se e invejavam às escondidas, o Mestre teve vontade de dar uma bronca, mas foi 
totalmente  desarmado  pelo  sorriso  envergonhado  e  um  pouco  de  culpa:  “Mas  ele  mesmo  permitiu... 
Sabe, Mestre, ele gostou...” 
 
Ela  ficava sentada,  longamente,  com o  irmão  dela,  Dene,  e  contava‐lhe  sobre  as  estrelas  e  sobre  Arta. 
Falavam para ela: “Ouça, ele ainda não entende nada – ele tem tão poucos anos ainda; espere, deixe‐o 
crescer um pouco...” Mas ela sorria e respondia: “Não, ele entende e irá se recordar...” 
 
Nos  últimos  tempos  acontecia  assim  com  cada  vez  mais  freqüência:  ela  partia  sozinha  para  as 
montanhas,  florestas,  até  o  rio  e  voltava  calada  e  triste.  A  solidão  é  uma  dádiva  sagrada;  ninguém  a 
interrogava, mas a meditação e uma certa “melancolia poética”, como definia com um sorriso o pai dela, 
marcaram  a  aparência  dela,  e  a  feminilidade  suave  que  repentinamente  descobriu‐se  nela,  levavam  a 
crer  que  chegou  a  hora  de  descongelar  o  coração  da  pequena  Rainha  das  Neves.  A  mãe  sorria  com 
malícia  e  carinho,  o  pai  estava  perplexo  –  o  que  é  que  tem  para  esconder?  –  os  rapazes  tentavam 
adivinhar quem era o eleito... 
 
De flores e estrelas 
farei‐te uma coroa, 
meu coração: 
estrelas do céu e estrelas da terra, 
ervas dos encontros e desencontros, 
pérolas da dor 
entrelaçarei na sua coroa, 
Escuridão Alada; 
com o fio fino da minha vida 
prenderei as flores... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 106 
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...A primavera saiu muito louca ‐ nunca antes houve uma dessas. Ele tinha visto todas as primaveras de 
Arda  e  recordava  delas  ‐  os  imortais  não  esquecem  de  nada.  Primavera  louca  –  como  se  o  sangue 
fervesse nas veias, como vinho novo. Deu‐se que ele ficou totalmente só ‐ todos foram levados a algum 
lugar  por  esse  redemoinho  furioso.  De  manhã  ele  esbarrou  em  Gorthaur  ‐  os  olhos  daquele  eram 
enormes  e  maravilhados.  Ele  olhava  para  Melkor,  mas  como  se  não  o  visse,  ou  melhor,  não  pudesse 
compreender quem está na frente dele. 
 
‐ O que há com você? ‐ Vala surpreendeu‐se e assustou‐se um pouco, Gorthaur não respondeu logo. Ele 
falava devagar, como se refletisse sobre cada palavra, e a voz dele baixou quase até um sussurro. 
 
‐ Mas é primavera, ‐ disse ele, meio nada a ver com nada. ‐ Lírios‐do‐vale na floresta... 
 
E depois saiu, como se estivesse enfeitiçado pela Lua. 
 
Melkor  riu.  Nada  de  incompreensível  ‐  primavera,  e  lírios‐do‐vale  na  floresta.  Claro.  O  que  há  mais 
importante do que isso? Primavera. Lírios‐do‐vale. Largue os seus pensamentos, seu mala imortal, vá ‐ 
é primavera, há lírios‐do‐vale na floresta. Vai perder a primavera toda assim! E ele se sentiu tão bem 
por causa dessa simplicidade da resposta ‐ primavera, lírios‐do‐vale ‐ que ele simplesmente, como um 
garoto, chutou a porta e pulou para fora, para o sol morno. Do que mais se precisa? Aqui está ela, essa 
vida, e não procure o significado dela, simplesmente ame e viva. 
 
A floresta estava cheia de loucura primaveril. Ate as poças entre os musgos brilhavam inesperadamente 
no sol, como aquele riso que vinha do rio. Será que estão se banhando? A água ainda está fria... Ele foi na 
direção do riso. Aqui era o ponto mais alto da margem e floresta quase encostava na escarpa. Alguém 
estava sentado sobre uma pedra. Imobilidade absoluta. Cabelos de um dourado pálido. Essa é Onnele 
Cyolla.  Até  mesmo  num  dia  tão  claro.  Ela  tinha  dessas  horas  ‐  sem  notar  nada  ao  redor,  ela  ficava 
imóvel, absorta em pensamentos incompreensíveis, e se conseguiam tirá‐la desse estado, ela falava: “Eu 
estava ouvindo”. E nem ela mesma podia explicar o que ouvia. Um dia ela ficou quase o dia todo assim, 
sob  o  vento  frio  e  neve  molhada  ‐  depois  da  tentativa  dele  de  expressar  visualmente  a  eternidade. 
Naquele dia, foram Elenhel e Dene que a trouxeram para casa, e foi necessário tratá‐la – ela pegou um 
severo resfriado. E agora ele queria, como um moleque, chegar perto dela na ponta dos pés e puxar os 
cabelos dela. Ele riu silenciosamente. 
 
‐ Onnele! 
 
A moca virou lentamente. Ela sorria, e ele viu uma coroa de flores sobre os joelhos dela. 
 
‐ Pensando novamente? Até mesmo hoje? 
 
‐ Os pensamentos não escolhem a hora, Mestre. Vêm, e pronto. 
 
‐ Largue‐os! Agora é primavera. Lírios‐do‐vale na floresta! Alias, aqui está a coroa. Significa que alguém 
te deu? Não é assim? 
 
‐ Sim, ‐ ela riu. ‐ E sabe quem? Gorthaur. 
 
‐ Sim? ‐ as sobrancelhas de Melkor ergueram‐se. 
 
‐  Mestre,  você  está  enganado.  Eu  entendi  o  que  você  pensou.  Sabe,  eu  simplesmente  não  tinha  uma 
coroa ‐ ninguém para dá‐la. E ele disse assim mesmo, que hoje ele é o meu cavaleiro. Simplesmente teve 
pena, deve ser isso. 
 
‐ Ninguém te presenteou com uma coroa de flores? Mas você é tão bonita... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 107 
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‐ Provavelmente, não tão bonita assim. Se bem que, é difícil de me encontrar. Alias, nem mesmo Allua 
tem uma coroa. Mestre, se ela aceitasse todas as coroas, ela se afogaria nelas! Elenhel também recusa 
todos que a cortejam. 
 
‐ Por quê? 
 
‐ Eu não leio os pensamentos delas. Acho que ela espera somente uma coroa, e dará a dela somente a 
um único. 
 
Melkor calou‐se. 
 
‐ Bem, estou feliz por ela. 
 
‐ E ali, olhe ‐ está vendo? Mas olhe! 
 
Ele olhou para lá como se tivesse medo de assustar alguém. Moro e Orien. 
 
‐ Olha, fazem de conta que não se conhecem, que para eles dá tudo na mesma! Sabe, Mestre, hoje é um 
belo dia. Apesar de tudo... 
 
‐ O que foi? ‐ ele sentiu alguma preocupação nas palavras dela quase instintivamente. 
 
‐ Eu ouvia, ‐ ela parou. Depois levantou os olhos verdes bruscamente e perguntou: 
 
‐ O que é morte? Como é ‐ morrer? Por quê? Para que? É ‐ não ser? Quando não há nada? Então, quando 
eu ainda não existia, isso também era a morte? Ou a morte é ‐ quando sabe que isso é morte, que não 
haverá mais nada? 
 
‐ Menina... Num dia desses... 
 
‐ Está bem. Não vamos. 
 
‐ Não. Eu, sabe, posso dizer somente uma coisa: é a escolha. Você também a tem agora, mas você ‐ desde 
o inicio é você. E quando puder escolher... não, é difícil explicar... 
 
‐ Então, a morte é um bem? 
 
‐ Não! Mas também não se deve ter medo dela. Ela não é o fim. Mas a perda de tudo, que é querido para 
você... Eu não sei. Eu não morri antes. Eu sou um Vala... Enfim, é o direito de refazer a si mesmo desde o 
começo,  viver  uma  outra  vida  ‐  mas  somente  depois  de  viver  bem  essa  vida,  fazendo  a  escolha  ainda 
agora. Ouça, e será que eu já vivi antes, só que não me lembro? De onde eu sei tudo o que sei? De onde 
eu tenho o meu poder? Menina, como você sabe perguntar... 
 
‐ Eu não quis, verdade... 
 
‐ Não, você agiu certo. Mas deixemos, hoje não é o dia. E a quem você dará a sua coroa? 
 
‐ Precisarei fazer um agrado a Gorthaur! 
 
A moça calou‐se. Depois olhou, séria, para o rosto de Melkor: 
 
‐ E a quem você dará a sua? 
 
‐ Eu... eu não sei... não pensei sobre isso! 
 

O Livro Negro de Arda  Página 108 
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Ela sorriu, mas nada alegremente. 
 
‐ Eu sei quem espera a sua coroa. Não sou eu, não pense besteira. 
 
‐ Então quem? 
 
‐ Não falarei isso. Desculpe. 
 
Agora, o mundo lhe parecia novo, estranho, inexplorado, tudo lhe causava uma surpresa alegre. Mestre 
estava certo quando chamou aquele dia primaveril de dia do aniversário dele. Ele absorvia gulosamente 
a  beleza  do  mundo,  porque  já  sabia,  sabia  com  certeza  ‐  essa  é  a  ultima  primavera,  e  ela  nunca  se 
repetirá... 
 
Mestre disse ‐ Arta pressente. É, sim... Nunca antes as flores eram tão irremediavelmente belas, as vozes 
dos pássaros ‐ tão límpidas e tristes, nunca antes se ergueram tão alto as ervas azuladas amargas. Ou 
isso é somente a imaginação? Como se Arta se despedisse dos próprios filhos... Talvez somente o olhar 
mudou? Só que nunca antes, nos dias da primavera, o alto céu noturno havia chorado com estrelas... 
 
Gorthaur vagava pela floresta, quando, de repente ‐ ouviu. Ele nem entendeu logo o que é: pareceu ‐ a 
canção de Arta soa dentro dele. E parou, sem ter coragem para chegar mais perto, como se tivesse medo 
de  assustar  um  passarinho  trêmulo.  Uma  pessoa  canta  assim  somente  quando  está  sozinha,  e  não  se 
preocupa com o que os outros pensarão sobre a canção. 
 
Aos poucos, ele começou a distinguir as palavras: 
 
Pedaço de gelo, transparente, verde – tristeza, respiração suave do inverno de asas brancas – 
Você não verá os picos altos, não ouvirá o Vento do Norte, é breve o seu tempo... 
Caule quebrado de absinto, você não será enlaçado numa coroa, 
A Lua não te lavará coma água límpida dos raios prateados; 
Você ficará como a amargura da memória nos lábios... 
Eu também não farei uma coroa de flores e estrelas: 
As  águas  amargas  do  mar ocultam pérolas da tristeza,  não tem  como  chegar até os  vales  claros  onde 
cresce a erva dos encontros... 
Não conseguirei entrelaçar as flores com o fio prateado da vida – 
Mais facilmente que uma teia de aranha, o vento do ocidente a rasgará... 
Somente a erva do desencontro está tão alta... 
 
Maia  ouvia  prendendo  a  respiração.  Ele  estava  dolorosamente  sem  jeito  ‐  como  se  ouvisse  por  acaso 
algum segredo alheiro, ‐ mas ele também não podia fugir: a voz esvoaçante o encantava. 
 
Ele reconheceu a cantora ‐ pelos compridos cabelos prateados. Ele não entendia o que há com ela, o que 
há com ele mesmo, ‐ simplesmente era amargo e claro, como se viesse o conhecimento do inevitável, 
como se ele tivesse achado a resposta para uma pergunta que o torturava há muito. 
 
Ela parou, voltando o rosto para a luz das primeiras estrelas. Era preciso ir embora. Agora ele não tinha 
direito de permanecer. Maia desapareceu silenciosamente na penumbra, que ficava mais densa a cada 
instante. Ele sabia, que nunca mais esquecerá... 
 
...Um pouco mais tarde, Gorthaur decidiu que precisa dar a Elhe algum presente como lembrança desse 
encontro. Não, claro que ele não contará a ela que ‐ ouviu. Simplesmente ‐ deve ser assim. Um presente 
de despedida, como essa canção foi uma despedida. 
 
Estranho e assustador ‐ o dia começou com uma alegre insanidade, e acabou com reflexões alarmantes. 
Maia caminhava devagar para casa. À esquerda, em algum lugar bem distante, ardiam as últimas brasas 
do pôr‐do‐sol. Mas ainda estava bastante claro, e florestrelas cintilavam na penumbra. Gorthaur parou. 

O Livro Negro de Arda  Página 109 
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Por quê ele não reparava nessas flores antes? Claro, o luxuoso lírio‐do‐vale, um cálice de cera com um 
aroma expresso e estonteante, é magnífico; mas quando em todos os lugares estão lírios‐do‐vale, lírios‐
do‐vale, lírios‐do‐vale ‐ você simplesmente se cansa. Ele abaixou‐se para ver melhor as flores. Pequenas 
estrelinhas  brancas,  sem  cheiro,  como  enlaçadas  na  confusão  de  caules  finos  e  quebradiços,  com 
pequeninas  folhas  estreitas.  Agora  o  verde  naturalmente  escuro  das  florestrelas  parecia  quase  preto. 
Ele pegou cuidadosamente três caules ‐ e na mão dele ficou o emaranhado de renda de fios verdes, com 
estrelas  presas  na  teia  escura...  Como  naquela  coroa  que  Geleon  fez  para  Ierne.  Maia  sorriu.  Eis  o 
presente desse dia singular... 
 
As luzes nas casas pareciam tão boas e aconchegantes que Maia sentiu um calor no coração, e a angústia 
vaga e a amargura se acalmaram e se calaram. Ele caminhava lentamente na direção da própria casa, 
segurando as flores ‐ alguma idéia deveria desenhar‐se já‐já na mente dele, mas ele não sabia ainda o 
que seria. 
 
‐ Eh, Gorthaur! E o Mestre estava procurando‐o. Ele está te esperando há tempo, vai logo! 
 
Maia fez um sim, e correu à casa de Geleon ‐ Melkor estava o visitando agora. 
 
Entrou. Percebia‐se no primeiro olhar que o Mestre também está estranhamente oprimido. Ele já quis 
perguntar, mas Vala foi o primeiro a falar: 
 
‐ Não te parece que hoje há algo de preocupante no ar? 
 
‐ Sim. É tudo bem confuso ‐ um dia assim, e está tão pesado... 
 
‐ Sabe, eu queria valar com você. Lembra, eu falei daquelas nove crianças? 
 
Maia acenou com a cabeça. Ele conhecia todos eles muito bem. Não que eles fossem os queridinhos do 
Mestre ‐ ele amava a todos igualmente ‐ mas s sos com Gorthaur, era justamente deles que ele falava 
com mais freqüência. 
 
“‐ ...Cada um deles tem um dom próprio. Ele ainda não está desenvolvido, mas eu sinto neles tal poder 
que algumas vezes tenho um pouco de medo. Simplesmente porque eu não consigo prever a força deles 
e me pareço um tolo... Parece‐me que eles juntos são mais poderosos do que os Valar. Sabe, eu quero 
muito desenvolver os dons deles, como posso. Você imagina o que eles poderão criar então? 
 
‐ Mas os outros são menos talentosos? 
 
‐ Não. Absolutamente não. Possivelmente, isso acordará em outros, ou nascerão novos, mas eles são os 
primeiros. Talvez, nem os mais poderosos. Eu preciso ensiná‐los a compreender uns aos outros, preciso 
desenvolver  os  dons  deles.  Espere,  daqui  a  uns  quinze  anos  Dene  e  Ayoni  crescerão,  e  então...  é  até 
difícil imaginar, o que será então! Gorthaur, eles são mais poderosos que eu, é verdade!” 
 
Agora ele falava sobre eles novamente. 
‐ Sabe, hoje me perguntaram ‐ como é a morte. E eu não pude responder. Onnele Cyola. Ela já agora está 
pensando  sobre  coisas  sobre  quais  eu  jamais  refleti.  Mas  ‐  sobre  a  morte...  Como  uma  profecia. 
Gorthaur, eu não posso esperar. Amanha mesmo falarei com todos eles. É hora de explicar‐lhes tudo. 
 
‐ Sim, isso. Eu também estou preocupado. E não precisa esperar até eles crescerem. Eles já são amigos, 
que se tornem ainda mais próximos agora, Mestre. Que seja assim. 
 
Eles ‐ todos os nove ‐ estavam sentados a sua frente, calados, sérios de repente ‐ crianças adultas. Como 
são belos... Todos – absolutamente diferentes, mas nenhum rosto difícil de se recordar... Começar com 
que? Como explicar? Ele baixou a cabeça, concentrando‐se. As crianças continuaram em silêncio. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 110 
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‐ Eu os escolhi, ‐ as palavras fluíam dolorosamente devagar, com dificuldade, ‐ para que vocês se tornem 
Guardiões e Mestres. Agora começará o seu aprendizado. Mas eu poderei dar‐lhes muito pouco. A sua 
força está dentro de vocês mesmos, e eu posso somente ajudá‐los a despertá‐la e a compreendê‐la. E 
vocês devem compreender uns aos outros, para depois realizar e criar. Cada um de vocês tem o próprio 
grande dom, mas cada um tem parte nos dons dos outros. Por isso juntos ‐ vocês são mais poderosos do 
que eu. É assim. Simplesmente, vocês ainda não se compreenderam até o fim. É nisso que está a parte 
principal do seu aprendizado. E depois... Depois virão os Homens... 
 
‐ Mas e nos, nos por acaso não somos Homens... – esse é Naure. 
 
‐ São. Mas vocês se transformaram em Homens, escolhendo a liberdade. E eles a terão desde o início. Eu 
posso  guiá‐los.  Mas  eles  ‐  não  poderei.  Não  tenho  direito,  e  nem  poder  também.  Eles  também  serão 
mais poderosos do que eu. Pelo menos, no coração. Mas vocês poderão ficar com eles, pois vocês são 
Homens. Vocês os entenderão melhor do que eu. Pois eu é que não sou humano... ‐ ele sorriu, triste e 
desajeitado. 
 
‐ É isso. Chegou a hora de aprender. 

O Livro Negro de Arda  Página 111 
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FESTA DOS ÍRIS. ANO 502 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
A festa dos Íris é na metade do verão. Aqui, no Norte, a primavera começa tarde, e o tempo quente é 
breve. A festa dos Íris cai na época de Noites Brancas: três dias e três noites ‐ reinado da Rainha dos 
Íris... 
 
...A  criança  assustada  fecha  os  olhos,  pensando  que  assim  é  possível  esconder‐se  daquilo  que  causa 
medo; mas ela deixou de ser criança há muito tempo, e como fechar os olhos da alma? Ver e saber ‐ é 
um dom cruel, mas será que é possível renegá‐lo? 
 
Por curtos três dias ‐ esquecer de tudo. É festa, e em todos os rostos está a alegria, e a luz está em todos 
os olhos ‐ esqueça, esqueça, esqueça... O Mestre também sorri ‐ vê? Mas quem será a última Rainha dos 
Íris? 
 
Última... Esqueça, esqueça, esqueça... 
 
...Os olhos brilhantes de Gelren: 
 
‐ Elhe... Nos decidimos, a Rainha será ‐ você! 
 
Ela se obrigou a sorrir, mas pareceu ‐ o coração parou por um instante. 
 
Porque, desde a época em que se começou a festejar o Dia dos Íris, a Rainha deve dizer o nome ‐ do Rei. 
 
Isso ‐ como? ‐ na frente de todos ‐ dizer o nome?.. 
 
Mesmo  que  já  tenha  acontecido  isso  algumas  vezes:  aquela  cujo  coração  está  livre,  nomeava  Rei  o 
Mestre  ou  o  seu  primeiro  Discípulo;  talvez,  ninguém  nem  pensará...  “Não,  não  consigo...  mas  o  que 
fazer?..” 
 
A solução veio no mesmo instante, apesar de ter parecido‐lhe uma eternidade: 
 
‐ Não, esperem! Eu sei! ‐ ela riu baixo, bateu as palmas. ‐ Yolli! 
 
Cachos dourados macios ‐ objeto de orgulho especial da menina; olhos serão, provavelmente, negros ‐ 
um vago pressentimento, mas agora, como os de todos os pequenos ‐ são de um cinza límpido. Yolli ‐ 
caule, e o nome de criança ‐ a ela, magrinha ‐ cai surpreendentemente bem. A incriminação desaparece 
dos olhos do Menestrel: realmente, muito bem pensado! 
 
Yolli  aceita,  com  uma  seriedade  adulta,  como  um  cetro  precioso,  a  flor  rósea  e  dourada  de  íris  do 
amanhecer. Elhe respeitosamente leva a pequena rainha até o trono ‐ madeira talhada enfeitada com 
hera e uvas selvagens; Gelren caminha do outro lado de Yolli, lançando olhares para Elhe. 
 
Os da jovem estão sorrindo, mas a voz é seria e cerimoniosa: 
 
‐ Nossa Senhora Yolli, clara Rainha dos Íris, diga‐nos o nome do seu Rei. 
Yolli franze o nariz, pensativa, depois se ilumina e, levantando o cetro de flor, aponta para... 
 
“Mas claro. E, concorde, você nem esperava outra coisa. Isso?” 
 
‐  Senhora  Rainha,  ‐  pergunta  Elhe  num  sussurro;  os  cabelos  dourados  da  menina  quase  tocam  nos 
lábios dela, ‐ e por quê ele? 
 
Yolli fica envergonhada, olha de lado com uma certa desconfiança para o rosto sorridente da jovem: 

O Livro Negro de Arda  Página 112 
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‐ Não vai contar a ninguém? 
 
Elhe faz um não com a cabeça. 
 
‐ Encoste‐se mais... 
 
Aquela obedece, e a menina sussurra bem no ouvido dela: 
 
‐ Ele não vai ficar tirando sarro. 
 
‐ E como tiram sarro? ‐ também sussurra Elhe. 
 
A menina fica vermelha, quase imperceptivelmente: 
 
‐ Yutti‐yulli... 
 
Elhe mal contém o riso: arminho‐doninha, escolheram um apelido e tanto! Isso deve ter sido o Eino que 
inventou;  aquele  menino  sempre  teve  uma  língua  afiada.  Não,  por  três  dias  ‐  nenhum  “yutti‐yulli”: 
Rainha é Rainha, e é preciso tratá‐la com o devido respeito. 
 
A festa quase prescreve roupas claras, por isso há poucos vestidos de negro costumeiro, das mulheres ‐ 
somente Elhe. E o Menestrel ‐ de verde prateado, cor das folhas de absinto. Como um convite para um 
duelo. 
 
E, claro, o atual Rei dos Íris está de negro: só na cintura ‐ cinto habilmente bordado com um complexo 
desenho de faíscas brilhantes de pedras preciosas. 
 
‐ Senhora Rainha... – uma reverência profunda e respeitosa. 
 
A menina abaixa a cabeça, tentando parecer séria e adulta. 
 
A  Festa  dos  Íris  ‐  metade  do  verão.  Três  dias  e  três  noites  ‐  reinado  da  Rainha  e  do  Rei  dos  Íris.  E 
qualquer desejo da Rainha é lei para todos... 
 
Qual é o seu desejo, Rainha Yolli? 
 
‐ Eu quero... ‐ de repente, o rosto dela fica triste de um jeito adulto, como se a sombra do espectro do 
pressentimento  tivesse  a  tocado  também,  ‐  eu  quero,  que  a  paz  esteja  sempre  aqui.  Que  não  exista  o 
mal. 
 
Ela olha com esperança para o Rei dela; a voz dele soa calma e carinhosa, mas Elhe involuntariamente 
abaixa o olhar: 
 
‐ Nos todos, minha senhora Rainha, temos esperanças de que seja assim. 
Ergue o cálice: 
 
‐ Pela esperança. 
 
O vinho dourado é bebido em silêncio, como se ninguém tivesse mais palavras. E quando o silêncio, que 
ninguém se atreve a quebrar, torna‐se insuportável, o Rei levanta‐se: 
 
‐ Música em honra da Rainha dos Íris! 
 

O Livro Negro de Arda  Página 113 
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...De dia ele fazia espadas, ensinava os Elleri Ahe a arte do combate. À noite, com uma estranha timidez ‐ 
como se estivesse fazendo algo proibido ‐ escolhia as pedras e fundia a prata. 
 
Ele não via Elhe com freqüência, e a cada lição sentia cada vez mais que tem medo por ela. Assim como 
os outros, ela preferia defender os golpes; mas se os outros conseguiam pelo menos arrancar a arma 
das mãos do inimigo, ela não conseguia nem mesmo isso. Num combate, ela estaria condenada. 
 
Por alguma razão, ele lembrava muito bem de quando ela trouxe um cálice com água para o Mestre um 
dia, depois de um longo dia de trabalho na oficina. Como se entrelaçaram os dedos finos sobre o cálice 
de madeira, como ela ficou com a cabeça levemente inclinada para trás – parecia quase uma criança, a 
cabeça  dela,  coroada  de  tranças  prateadas,  não  devia  chegar  nem  no  ombro  do  Mestre...  Olhava 
diretamente nos olhos, com  um  sorriso  calmo  e carinhoso,  tão parecido com  o sorriso  do  Mestre,  e  a 
mesma sombra amarga estava nos cantos da boca. Elhe. Absinto. 
 
E eis o colar, feito de galhinhos quase sem peso de absinto, cobertos de orvalho, nas mãos dele. Mas o 
que falta?.. 
 
‐ Mestre, veja... 
 
Melkor olhou para o colar e depois para o rosto do Maia. Aquele baixou os olhos: 
 
‐ Aqui está faltando algo... Eu entendo, não é hora agora, mas eu gostaria... 
 
‐ Deixe comigo por enquanto. Eu pensarei. 
 
“Não é hora, você disse? Não, exatamente agora. Nove símbolos, nove runas, nove pedras. Vocês serão 
nove, como nove raios da estrela...” 
 
Entre  as  flores  prateadas  cintila  um  pedaço  de  gelo  verde  ‐  uma  fria  pedra  nunca  antes  vista,  que 
finaliza o objeto. 
 
‐ Acho que Elhe irá gostar disso. 
 
Maia ficou vermelho: 
 
‐ De vez em quando, me parece que você realmente vê tudo, Mestre... 
 
‐ Não, ‐ suspirou Vala. 
 
‐ Sabe... eu simplesmente quis agradecer pela canção. Eu estive na floresta e ouvi... ‐ Maia calou‐se, sem 
saber como continuar. 
 
“Caule quebrado de absinto, você ficará como a amargura da memória nos lábios...” 
 
‐ Eu entendi. 
 
‐ E o que é isso? ‐ de repente exclamou Gorthaur. 
 
Um sinal brilhou dentro da pedra, num risco cintilante. 
 
‐  Nien  Ahe.  Runa  do  Escuro,  Tristeza  e  Memória.  A  nona.  Fale  a  Elhe  ‐  é  hora  de  se  preparar  para  a 
viagem. 
 
Acontece as vezes, que o destino, sem qualquer motivo – somente por um capricho imprevisível – dá a 
um tanto que os outros só podem se surpreender e invejar. E depois o destino pouco se importa, quem 

O Livro Negro de Arda  Página 114 
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será o sortudo ‐ serão as suas dádivas utilizadas para o bem das pessoas ou, orgulhoso, o seu escolhido 
será a tristeza de todos. Ele era um dos primeiros em tudo ‐ mesmo que não fosse o primeiro em nada. 
Mas  só  os  talentos  incomuns  dele  o  destacavam  entre  os  outros.  Ele  mesmo  falava  de  si,  por 
brincadeira:  “eqüilátero”.  Semelhante  a  um  cristal  perfeitamente  polido,  no  qual  todas  as  faces  são 
iguais.  Talvez  era  por  isso  que  ele  gostava  de  simetria  e  equilíbrio.  Provavelmente,  ninguém  sabia 
definir tão nitidamente a essência de cada objeto ou fenômeno como ele, se bem que perante conceitos 
como alma, amor, sonho e tudo o mais do gênero capitulava até mesmo a mente nítida dele. Ainda, ele 
era  belo.  Nisso  também  ele  era  o  queridinho  do  destino.  Idealmente  belo,  tão  belo  que  o  olhar 
escorregava pelo rosto dele, sem poder parar em algum traço ‐ tudo era belo, nada se destacava. Assim 
era  a  voz  dele,  assim  eram  os  modos  dele.  Maravilhosamente,  isso  tudo  encantava  e  seduzia.  O 
respeitavam, o admiravam, mas dificilmente alguém o amava. Ele  era ideal e íntegro, e não precisava 
disso, se preservando como um eterno cristal precioso. Mas o respeito e, acima de tudo, a admiração 
eram‐lhe  necessários,  tal  como  um  cristal  precisa  de  luz  ‐  para  que,  refletindo‐a,  ele  possa  brilhar. 
Somente refletindo. Ele não possuía luz própria. 
 
Tudo lhe saia igualmente bem, havia algo que ele preferia a tudo. E isso era a arte da magia e a ciência 
estranha, que hoje não tem mais nome. Ela já nem existe mais – míseros pedaços dela estão espalhados 
por outras ciências, e não há ninguém que os junte numa coisa só. Pois as pessoas são racionais demais. 
Elleri Ahe a chamavam de “visão da alma”. Qualquer que a dominava, poderia submeter a si os outros, 
mas uma grande proibição só permitia usá‐la para o bem dos outros, não para o próprio bem. 
 
Mas ele não era primeiro nem mesmo nisso. Quatro eram mais fortes que ele. Ele se conformava com o 
fato  de  Gorthaur  e  Mestre  o  ultrapassarem,  mas  havia  mais  dois  ‐  Naure  e  Allua,  e  o  pior  de  tudo, 
justamente  Allua.  Os  olhares  desses  quatro  eram  mais  forte  do  que  o  dele.  Sim,  ele  podia  suportar  o 
olhar do dragão – mas muitos se igualavam nisso a ele. Mas fazer o dragão obedecer‐lhe era alem do 
poder dele. E Allua podia fazer isso. Parecia que ela gostava de zombar dele. Allua, semelhante a uma 
chama,  rápida,  arisca,  forte,  ora  explodindo  em  riso,  ora  repentinamente  sombria.  Fogueira  na  noite, 
que dá a todos luz e calor, chama viva. De vez em quando, ele se pegava pensando que quase desmaia ao 
vê‐la.  Mas  a  beleza  dela  não  gerava  inveja  ‐  deixava  os  outros  mais  belos.  De  alguma  forma  ela 
conseguia isso – como uma lâmpada se acendendo a partir da outra. Allua. Ele queria a luz dela. Mas 
essa  luz  deveria  pertencer  somente  a  ele.  No  início,  Allua  realmente  não  o  evitava,  como  se 
compreendesse  que  este  cristal  perfeito  necessita  dela.  Depois,  quando  ele  já  pensava  que  ela  lhe 
pertence,  Allua  de  repente  saiu  do  poderio  dele.  E  como  trazê‐la  de  volta,  se  os  olhos  dela  são  mais 
fortes  do  que  os  do  dragão?  Como  segurá‐la?  Ele  tentou.  Normalmente,  ele  sabia  convencer  o 
interlocutor. Ele sabia falar, voz dele possuía um poder imenso, os olhos dele enfeitiçavam ‐ tudo isso 
junto  fazia  o  outro  lhe  obedecer,  assim  o  rato  vai  sozinho  para  a  boca  da  serpente.  Mas  aqui  ele  era 
impotente. 
 
‐ Compreenda, ‐ ela honestamente tentava explicar‐lhe, ‐ eu não posso assim. Eu não posso pertencer. 
Não, não é isso... Eu poderia me tornar sua esposa, mas você exige a obediência total. Não se tranca o 
fogo em casa. E luz somente é luz quando a vêem. 
 
‐ Mas eu preciso de você! Por quê não quer ir comigo? 
 
‐  Não.  Você  quer,  não  que  eu  vá  com  você,  mas  atrás  de  você,  como  amarrada.  E  os  outros,  eles  não 
precisam de mim? Você não me vê como igual. Você não considera ninguém igual a você mesmo. E não 
quer mudar. E eu não posso... 
 
Por segundos, ele acreditou que poderia enganá‐la. 
 
‐ Allua, eu farei tudo que você quiser! Eu mudarei. É verdade. 
 
Ela balançou a cabeça. 
‐ Não. Os seus olhos te traem. Se o Mestre pudesse te mudar... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 115 
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Mas  ele  não  queria  isso.  Ele  gostava  de  si  assim  como  ele  era,  e  se  considerava  perfeito.  E  o  Mestre 
nunca mexia à força na alma dos outros – Julgava que não tinha o direito. Somente se pedissem. E ele 
não  pediu.  Ele  achou  uma  explicação  simples  e  perfeitamente  satisfatória  para  si  mesmo  ‐  ele  é 
inteligente e bonito demais para que os outros o amem. Simplesmente o invejam. E o Mestre continuava 
a destacá‐lo entre os outros, apesar de não amá‐lo. Se bem que ele nem queria isso. 
 
Quando  o  Mestre  convocou  os  nove  para  alguma  coisa  importante  ‐  pela  primeira  vez  ocultando  isso 
dos  outros  ‐  ele  teve  uma  surpresa  desagradável.  Por  quê  não  ele?  Por  quê  ‐  isso  ele  não  conseguia 
entender de jeito algum ‐ confiavam nessas crianças tolas: Ayoni, Dene, essa idiota vazia Elenhel, mas 
não nele? Mistério, até mesmo para ele? Ele deve saber. No começo, ele tentou perguntar diretamente a 
Melkor. 
 
‐ Mestre, você não confia em mim? 
 
‐ Por quê pensa assim? Os outros não acham que é assim. 
 
‐ Mas por quê então não me contou para que escolheu esses nove? 
 
‐ A você, eu posso falar o porquê. É um segredo perigoso. Para aqueles que sabem. Por isso, é melhor 
não saber. 
 
‐ Mas por quê eu não posso? E por quê não me escolheu? 
 
‐ Porque você é “eqüilátero”. Todos aqueles que eu escolhi, são primeiros em alguma coisa. Apesar de 
serem, por inteiro, mas fracos do que você. E alem disso, você será necessário aqui. 
 
De um lado, isso lhe lisonjeou, mas também o deixou preocupado. Perigo. Aqui há alguma ameaça. Ele 
queria saber. Era inútil se meter com os cinco mais velhos. Onnele Cyola nunca confiou nele. Sobravam 
os três mais jovens. Eles poderiam ser obrigados. E o que? Ele quer algo mal? Ele só quer saber... 
 
Estranho,  Elenhel  revelou  ser  muito  mais  forte  do  que  ele  pensava.  Ele  não  conseguia  quebrar  a 
barreira impenetrável e chegar até os pensamentos dela. Com Ayoni, ele teve mais sorte. A menina nem 
entendeu nada ‐ como se tivesse adormecido por um minuto, e, claro, não lembrava de nada. Agora ele 
sabia. Sem compreender o objetivo do Mestre, na verdade, mas o conhecimento de um segredo como se 
o colocasse acima dos outros. 
 
‐ Nunca pensei, Artífice, que você sairia de casa num tempo desses! Entre, seja bem vindo! 
Artífice tirou a capa encharcada e entrou, seguindo o dono da casa. A casa era grande, de sólida madeira 
de carvalho, toda decorada com entalhos. Na sala maior ardia o fogo da lareira, na mesa estava um livro 
grosso, que o dono enfeitava com complexas iniciais. Do lado, em folhas separadas, já estavam prontas 
as iluminuras coloridas. 
 
‐ Será um livro lindo, ‐ disse o Artífice, estudando o trabalho delicado. ‐ Quer que eu faça a capa e os 
fechos? 
 
‐  Quem  recusaria  o  seu  trabalho,  Artífice  Geleon!  Acho  que  o  Amigo  dos  Livros  ficará  feliz  se  você 
também ajudar ele. E o Narrador também. Se bem que, ‐ Pintor sorriu, ‐ não deve ter sido só por isso 
que você veio, Artífice. 
 
Geleon  ficou  desesperadamente  vermelho.  Sem  saber  aonde  olhar,  ele  tirou  do  bolso  uma  pequena 
caixa de madeira negra entalhada e estendeu‐a ao Pintor. 
 
‐ Aqui. É um presente de casamento. Para Ierne 
Pintor riu. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 116 
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‐  Isso  não  é  novidade  para  mim.  Seria  eu  cego  e  surdo?  Como  deixaria  de  saber  que  vocês  tem  um 
acordo? Mas para qualquer um é lisonjeiro tornar‐se parente do Artífice. E eu estou feliz, mesmo que 
seja difícil eu me separar da filha ‐ não tenho outras crianças. E ela ainda é uma dançarina, poucas se 
comparam a ela. O próprio Mestre gosta de olhar a dança dela no dia do Novo Sol e na festa do Começo 
do  Outono...  Bem,  se  a  filha  concorda  ‐  que  seja  assim.  No  final  do  verão  começaremos  a  preparar  o 
casamento, e no dia do Começo do Outono será a festa. Vamos, beberemos mel pela ocasião! 
 
O presente do Artífice não tinha preço ‐ não era porque o metal e as pedras eram caros, não era isso que 
os Elleri valorizavam. Acontecia um cálice de madeira entalhada ter mais valor que um colar de pedras 
preciosas. E aqui – no entrelaçamento dos finos fios prateados cintilavam, como coágulos de neblina, as 
pedras  da  lua.  Todos  já  viram  o  presente  do  Artífice  e  falavam  que  o  enfeite  precioso  deixará  Ierne 
ainda mais bela quando ela for dançar no casamento. E diziam ainda que será um lindo casal – mesmo 
que o Artífice fosse dos Mais Velhos, mas a inspiração preservou a sua juventude, e somente nos olhos 
notava‐se a sabedoria antiga. E Ierne sempre foi famosa por sua beleza. 
 
No  meio  do  verão  foi  preciso  forjar  armas,  nem  se  pensava  mais  no  casamento.  O  Artífice  não 
trabalhava  mais  com  prata,  não  polia  pedras  – criava somente  espadas  e  escudos,  elmos  e  malhas de 
metal.  Ele  não  os  enfeitava  ‐  não  tinha  tempo.  Só  uma  espada  ‐  leve  e  prática  –  tinha  um  cabo 
lindamente decorado. A espada que ele deu a Ierne. 
 
Os  combates  em  Ast  Ahe  eram  cruéis.  Aqui,  pela  primeira  vez,  os  Imortais  encontraram  os  Ahere, 
Chamas  das  Trevas,  demônios  do  Fogo  Escuro  ‐  Valaraukar.  Maiar  quase  recuaram,  mas  os 
comandantes do Exército da Luz não desistiam facilmente. 
 
E a fortaleza foi tomada. 
 
Gorthaur cavalgava para o norte, para a cidade de madeira dos Elfos das Trevas. E, mais velozes que ele, 
os Espíritos do Fogo voavam num vento ardente em direção a Helgor, e atrás, parecia‐lhe, soavam os 
passos pesados do exército de Valinor. 
 
‐ ...Não, Gorthaur. Eu compreendo a sua preocupação; mas Mestre disse que os Valar vieram a Arta por 
amar o Mundo e pelos Elfos e Homens. Ele disse assim, e eu acredito nele. Eles não farão mal a nos; e 
nos lhes explicaremos, e eles entenderão. Nos não fazemos mal a ninguém, para que nos matar? E como 
é possível ‐ matar? – O Pintor deu de ombros e sorriu. ‐ Não se preocupe, vai dar tudo certo... 
 
‐ ...Aonde é que eu irei, Gorthaur? Veja – as espigas estão maduras, o tempo da colheita está próximo: a 
terra  diz  –  um  ou  dois  dias  a  mais  e  poderemos  recolher  o  trigo...  As  maças  estão  amadurecendo 
também  –  tome,  experimente!  O  gosto  está  diferente  esse  ano,  não  é?  Veja  só  o  que  inventaram: 
guerrear bem na época da colheita! É besteira tudo isso. Não irei a lugar algum: perderemos o trigo, dá 
pena... 
 
Mesmo assim, muitos foram embora. E muitos ‐ ficaram; e obrigá‐los à força a abandonar os lares deles, 
a terra deles ‐ Gorthaur não podia. E também na alma dele ainda vivia a esperança de que realmente os 
deixarão em paz. Talvez ele mesmo tenha se exaltado. Soltou os Balrogs em cima deles, como se tivesse 
esquecido ‐ como ele tinha medo de ir para o estranho e desconhecido Norte – até o Inimigo. Não é nada 
estranho que eles tenham se armado: o próprio Gorthaur então, se acontecesse algo, não pensaria duas 
vezes antes de usar o punhal... 
 
Mas os Balrogs, mesmo que sejam vivos ‐ e tem‐se pena de que muitos morreram ‐ não são Homens... 
Realmente,  os  Grandes  não  devem  fazer  mal  aos  Elfos:  é  como  ferir  uma  criança,  vão  entender!..  A 
mente  dizia  ‐  está  certo.  O  coração  batia  como  um  pássaro  de  asas  quebradas...  “Talvez,  eu  estraguei 
tudo?  Por  quê  o  Mestre  não  me  impediu?  E  porque  ‐  deveria  impedir...  Ele  simplesmente  não  achava 
que eu fosse uma criança estúpida e inábil. Só que eu, pelo que se vê, sou exatamente isso. Depois da 
morte de tantos guerreiros – será que eles vão ouvir o Mestre? Desejarão entender? Acreditarão?..” 
 

O Livro Negro de Arda  Página 117 
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‐ Ouça, Gorthaur, ‐ o Andarilho de olhos dourados, Gellair dizia, alongando um pouco as palavras ‐ eu vi 
muitas terras e muitas tribos... Você diz ‐ guerra; mas não ouvi essa palavra de mais ninguém. Você diz ‐ 
crueldade;  mas  eu  nunca  vi  a  crueldade.  Não,  eu  acredito;  mas  acho  que  se  falar  com  eles,  eles  irão 
compreender. Acredite, eu falei com muitos. 
 
‐ Você falava com Elfos. Eles não são Elfos nem Homens. 
 
O Andarilho sorriu: 
 
‐  Mas  o  Mestre  também  é  um  Vala,  e  você  ‐  Maia...  Vocês  não  se  parecem  conosco?  Não  nos 
compreendem? Querem uma guerra? 
 
‐ Mas nos queríamos se tornar iguais a vocês! 
 
‐ E os outros Valar? Eles não adotaram formas semelhantes às formas dos Elfos e Homens para melhor 
nos  entender?  O  Mestre  disse  isso,  você  não  acredita  nele?  –  o  Andarilho  sorriu  novamente:  haveria 
pelo menos um que não acredite no Mestre? Que piada! 
 
Colocou a mão sobre o ombro de Gorthaur, disse, tranqüilizando‐o: 
 
‐ Não acontecerá nada. Eles vão entender, Gorthaur... 
 
...Quando  a  primeira  casa  pegou  fogo,  e  as  chamas  correram  alegremente  pela  parede  de  madeira 
entalhada, ele ficou parado por alguns instantes, e depois correu na direção deles e exclamou, com dor e 
incompreensão: 
 
‐ Para que?.. Para que vocês estão fazendo isso?.. Parem, ouçam... Nos fizemos‐lhes algum mal? 
 
Por algum tempo, os Maiar o ignoraram; depois alguém disse, fazendo uma careta, ‐ o que esse ai está 
falando... – puxou a espada da bainha. O Andarilho ficou petrificado. 
 
‐ Não... ‐ a voz dele abaixou até um sussurro. ‐ Não... não pode ser... 
 
Ele não teve tempo de falar mais nada. 
 
A cidade de madeira, sem muralhas, queimou. Foi queimada também a casa do Pintor. Ele mesmo foi 
assassinado na soleira, e o incêndio da casa foi a sua pira funerária. Algum Maia estudava, curioso, os 
sinais esquisitos do volume grosso e os desenhos divertidos, mas Tulkas arrancou o livro e atirou‐o no 
fogo, e o Maia ganhou um belo safanão, para não se distrair dos grandes feitos. 
 
...O Mago desmontou com dificuldade e desabou nos braços dos amigos que acorreram. Abriu os olhos 
negros anuviados pelo sofrimento: 
 
‐  Eles...  não  se  apiedam...  de  ninguém...  Você  estava  certo,  Gorthaur...  perdoe  por  não  termos 
acreditado... Mestre... Ali não há... mais... ninguém... vivo... só eu... para chegar a tempo... contar... Gellain, 
Gellain, minha estrela de neve... O que eu fiz, por quê não te mandei ir... Você a defenderia, Mestre, sim?.. 
 
Terrível era esse sentimento de completa impotência. Te consideram onipotente ‐ e você pode confiar 
somente na força dos braços e na espada afiada... E é possível proteger, possível defender ‐ possível, se 
arrancar do corpo de Arda um pedaço de carne... e você não tem forças fazer isso ‐ ela é viva e sentirá 
dor... 
 
Ele  tentou  falar  com  os  irmãos  dele  por  pensamento.  Não  lembrava  direito  o  que  houve  depois:  uma 
onda de ódio desabou de repente sobre o pensamento dele, ódio a ele mesmo e aos discípulos dele... Ele 

O Livro Negro de Arda  Página 118 
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não poderia derrubar essa muralha. E os infinitos dias e noites do cerco eram o adiantamento do fim 
inevitável, que transformava a espera em tormento... 
 
Aqueles que chegaram à fortaleza de Helgor levaram pouco consigo ‐ agora as armas eram o bem mais 
precioso.  Conseguiram  salvar  alguns  poucos  livros.  Daquela,  feliz,  inacreditável  como  delírio,  vida,  o 
Artífice  conservou  somente  o  anel  com  serpentes  –  Anel  do  Discípulo;  Ierne  ‐  uma  grande  conta  que 
lembrava um olho amendoado ‐ agora ela levava no pescoço. Eram todos os tesouros. 
 
O forte de Helgor era agora o último refúgio e fortaleza dos Elfos do Escuro. O cerco não poderia ser 
muito longo – eles não eram bons combatentes, e eram poucos também, e ninguém quis ir embora. No 
dia  anterior  ao  Início  do  Outono,  numa  quieta  noite  de  lua  cheia,  o  Maia  Gorthaur  estava  sobre  uma 
rocha,  olhando  para  o  acampamento  embaixo...  “São  tão  poucos.  Mestre,  você  não  queria  que  eles 
conhecessem o ódio – e eis o pagamento. O que valem as espadas deles, se eles não sabem matar... Você 
pensava  –  eles  irão  à  sua  ordem,  e  veja  –  não  quiseram  te  abandonar...  Parece  que  o  Artífice  Geleon 
deveria ter feito primeiro uma espada e somente depois – um anel...” 
 
...Só agora eles começaram a entender o sentido da palavra “guerra”. Esse conceito, que antes parecia 
uma  história  de  terror,  agora  se  tornou  uma  realidade  mais  terrível  ainda.  Aquilo  que  eles  julgavam 
uma brincadeira, exercício de força e habilidade, revelou‐se indispensável para sobreviver; tudo o que 
eles  sabiam,  além  disso,  tornou‐se  inútil,  pois  não  os  ajudava  a  permanecerem  vivos.  E  o  mais 
necessário de tudo era aquilo que nenhum deles sabia fazer e nem era capaz de fazer: matar. 
 
‐ ...Vão embora. Todos. Agora mesmo. Sem demora. 
 
‐ E você, Mestre? 
 
‐ Eu... irei também. Depois. 
 
Aquele que Vê baixou o olhar: 
 
‐ Você não sabe mentir. Você achou que nos o abandonaremos, fugiremos, salvando a própria vida? Por 
quê nos humilha, Mestre? 
 
‐ Entendam, é necessário! 
 
‐ Eles o matarão, como mataram o Andarilho. 
 
‐ Eu sou imortal, vocês ‐ não. Eu ordeno... 
 
‐ Você não pode, ‐ pela primeira vez, os olhos do Armeiro o encaravam com um desafio sombrio. ‐ Nos ‐ 
somos Homens, e temos o direito de fazer a nossa escolha! 
 
Ele se sentia perdido. Pela primeira vez, teve pena de não ter poder sobre eles, de não poder fazê‐los 
obedecer às suas ordens. O pensamento era terrível, mas cem de vezes pior era saber o que farão com 
eles se eles ficarem em Helgor. Ele se voltou àqueles dois que chegaram as terras do Norte há pouco. 
Assim acontecia as vezes: os Elfos se embrenhavam nas florestas sombrias e encontravam a cidade de 
madeira – e acabavam ficando entre os Elleri Ahe. Dois irmãos, Gelnor e Gelloth, cabelos acinzentados e 
olhos claros, estavam de mãos dadas. Havia algo de criança nos rostos deles; até mesmo a jovem Artais 
dos  que  Ouvem  a  Terra  agora  parecia  mais  velha.  Mas,  respondendo  a  sua  pergunta  silenciosa,  eles 
falaram em uníssono – não. 
 
‐  Mestre,  ‐  adicionou  Gelnor,  tentando  encontrar as  palavras  certas,  ‐  nos  tentamos  ser  dignos  de  ser 
chamados  de  seus  discípulos.  Talvez  não  tenhamos  entendido  tudo  o  que  você  nos  disse,  talvez 
tenhamos  cometido  erros.  Mas  diga,  como  poderíamos  abandonar  os  nossos  amigos  numa  má  hora? 

O Livro Negro de Arda  Página 119 
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Sim, certo, não sabemos ainda combater, não poderemos protegê‐los. Ainda não sabemos muitas coisas, 
mas o Caminho foi eleito. Perdoe, não iremos embora. 
 
‐ Vocês ainda não viram nem morte, nem sangue. Se... 
 
O Menestrel ficou ruborizado: 
 
‐ Se for preciso, nos juraremos! Eu juro... 
 
Ele o interrompeu com um gesto: 
 
‐ Não. Não se apresse a falar por todos. Se esta é a sua decisão ‐ escolher por si mesmos ‐ eu não tenho o 
poder de mudá‐la, ‐ a voz do Mestre soava amarga; ele baixou os olhos. ‐ Mas que cada um reflita e pese 
tudo. Eu não os amarro com um juramento. Eu peço, ‐ ele destacou essa palavra, ‐ somente uma coisa: 
não julguem aqueles que continuarem vivos. 
 
E pouco tempo depois Geleon voltou e disse – baixo: 
 
‐ Nos ficaremos. Você e nos temos somente um caminho. E aquele que abandona o mestre numa hora 
má – seria ele digno de ser chamado de discípulo? 
 
“Somente uns quatro meses ‐ e como ficaram mais adultos. Até os dois mais jovens ‐ os mais pequenos 
mesmo. Crianças. O que mais é que eu posso...” 
 
‐ Chegou a hora. Vocês devem partir. 
 
Silêncio. Depois Naure começou a falar: 
 
‐  Por  quê?  Por  quê  devemos  ir  justo  agora,  quando  aconteceu  algo  assim?  Agora,  cada  espada  é 
preciosa! 
 
‐ Há coisas mais valiosas do que uma espada. Tentem entender. Vocês, provavelmente, acham agora que 
eu  sou  terrivelmente  injusto,  que  sacrifico  todos  os  outros  por  vocês.  Não  é  assim,  acreditem!  Sim, 
vocês sabem o que eu esperava de vocês, mas infelizmente não tive tempo de fazer nada, e quem sabe 
quando  poderei  ajudá‐los  novamente.  Eu  prometo  –  assim  que  a  guerra  acabar,  eu  os  encontrarei.  E 
agora ‐ vão. Eu protegerei os outros, não tenham medo. Eu sou um Vala, e ainda tenho poder sobre os 
elementos. Mas eu quero ter certeza de que... 
 
Ele olhou‐os. “Não acreditam. Quem você está tentando enganar?” 
 
‐ E por isso, vocês farão um juramento. Que irão embora. Farão aquilo, para o que foram eleitos. (“Cruel, 
vil e cruel! Pobres crianças...”) 
 
Eles  beijavam  em  silêncio  a  lâmina  gélida  da  espada,  ajoelhando‐se  e  depois  ‐  uns  em  voz  alta,  uns 
quase sem voz repetiam ‐ em nome de Arta. Acabou. Agora está melhor. 
 
‐ E, aqui, recebam os meus presentes. Cada um deles ajudará vocês a desenvolverem os poderes ainda 
adormecidos. Eu não tive tempo, como vêem. E esperar até nos encontrarmos novamente ‐ quem sabe 
quando  isso  irá  acontecer?  Só  não  desistam.  Esses  símbolos  ajudar‐lhes‐ão  a  ser  uma  única  força, 
sempre ouvir e compreender uns aos outros, ajudar sempre. Encontrar, caso se perderem, lembrar, se 
esquecerem. Isso ‐ é poder. Isso é tudo o que eu posso lhes dar... 
 
‐ Naure ‐ você é o mais velho. Terá de unir... aqui está o seu símbolo... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 120 
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Bracelete, feito de um único cristal de morion, pulsante, como  se dentro dele batesse um coração. No 
centro do circulo vermelho, onde raios quase invisíveis se encontravam, no ar surgiu a runa Erath, runa 
do Fogo, símbolo do Movimento e da Criação. 
 
Moro ‐ olhos azuis‐escuros da noite, amargos. Ele ia sozinho. Orien ficava. 
 
‐ A você ‐ determinar o caminho. 
 
Pesada  estrela  de  aço  enegrecido com  nove  pontas.  Em  cada  raio  ‐  uma  runa.  A  dele  ‐  Cioth,  runa  do 
Caminho e da Iluminação. O mesmo símbolo, em prata, no simples anel de ferro. 
 
Ollo. Um cristal azul‐transparente numa corrente fina, runa Helre riscada com fogo frio: Purificação e 
Clareza  da  mente,  símbolo  do  Gelo.  O  jovem  abaixa  a  cabeça  dourada  ao  receber  o  presente,  e  ao 
levantar já não tira mais os seus olhos estranhos ‐ o céu refletido num rio fundo ‐ do rosto do Mestre. 
 
Allua ‐ chama da vida, a luz que acende as outras almas. Uma lisa pedra oval, cor de vinho ou de sangue, 
dentro se debate uma faísca vermelha. E no medalhão de obsidiana ‐ runa da Vida e do Renascimento, 
signo da Terra, signo de Arta ‐ Erth. A jovem estremeceu e sussurrou: “Sangue...” 
 
Broche‐gota azul, no qual, das profundezas, no cruzamento de duas pétalas ‐ passado e futuro ‐ brilha 
Te‐Esse, Água eterna, correnteza do Tempo. 
 
‐ Isso é seu, Onnele Ciola. 
 
‐ Um gole de água... ‐ sorriso triste. 
 
‐ E isso ‐ para você, Elhe. 
 
Não há mais palavras. Resposta quase inaudível: 
 
‐ Agradeço. 
 
E só. 
 
‐ Aldh... 
 
O jovem deu um passo pra frente. Fez um movimento brusco com a cabeça, como de costume, para tirar 
uma mecha rebelde da testa. Impetuoso como o vento. Assim era também o seu signo ‐ Ol‐aer, runa das 
Asas e do Vento. Runa do Pensamento ‐ e o arisco falcão prateado com olhos de ametista. 
 
‐ Minha esperança, Ayoni... 
 
Uma folha de bordo, um anel verde‐dourado com a mesma pedra ‐ grande demais para os dedos finos 
da menina, ‐ e a runa da Esperança e da Luz, Aeth. 
 
‐ E você, Dene. 
 
Numa outra hora, isso provavelmente teria graça ‐ um menino e a runa da Força, runa do Ferro Tor‐en. 
Fivela  com  a  imagem  de  um  dragão.  O  menino  pegou‐a  –  sério,  tentando  parecer  mais  adulto  ‐  e 
respondeu com voz propositalmente grave: 
 
‐ Eu farei tudo, Mestre. 
 
E só. Como está vazio na alma, como dói... 
 

O Livro Negro de Arda  Página 121 
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‐ Agora, Onnele, você sabe como ela é ‐ a morte. Você viu. 
 
‐ Sim. Qualquer que seja a liberdade lá, além da fronteira, a vida é bela. E não se deve partir antes da 
hora... Eu estou errada? Mas, parece, é impossível partir antes de fazer tudo o que está ao seu alcance 
daquilo  que  te  foi  destinado.  A  alma  será  então  fraca  e  inútil  demais  para  preservar  força,  vontade  e 
forma, e ainda mais para fazer... E a morte é amedrontadora, mesmo quando sabe... 
 
‐ Mestre, ‐ a voz baixa e cortante, como vidro, Elhe, ‐ é possível retornar? Se der o passo para além da 
fronteira do mundo? 
 
‐ Não sei... Mas se há escolha... Se precisar, se deixou algo por fazer, não fez, não finalizou, e não há mais 
ninguém que... Provavelmente pode. Por quê? 
 
‐ Só para saber. 
 
Não conseguiria mais nada. Ele sabia. 
 
‐ Está bem, chegou a hora. Agora, tudo depende de vocês... 
 
Ela parou na frente do espelho e olhou longamente o próprio reflexo. Depois mexeu nos cabelos curtos, 
tirou a comprida, pelos joelhos, malha de aço enegrecido. É pesada demais, prende os movimentos. Mas 
o elmo certamente será útil... 
 
‐ Elhe!... 
 
Allua escancarou a porta do quarto da amiga. O jovem frágil, de costas para ela, estremeceu e virou‐se. 
 
‐ Elhe?.. ‐ ela parou, estranhando. O jovem tirou o elmo, e Allua sorriu: 
 
‐ Fica lhe bem... nem dá pra reconhecê‐la... ‐ ficou séria. ‐ Acha que isso vai ser útil no caminho? 
 
Elhe não respondeu, somente mordeu o lábio. 
 
‐ Você... vai? 
 
‐ Não, ‐ baixo e resolvido. 
 
‐ Por quê?.. Mas... E o Mestre, ele sabe? 
 
Elhe balançou a cabeça, negando. 
 
‐ Mas é preciso contar... ‐ Allua estava completamente perplexa. 
 
Os olhos verdes ficaram frios e duros. 
 
‐ Você não falará para ele. 
 
‐ Elhe! Esse é o nosso dever... 
 
‐ Eu voltarei, ‐ breve como uma punhalada. 
 
‐ Ouça, ‐ Allua encostou a porta e falou, séria e triste, ‐ você entende... É guerra, e a morte não escolhe... 
 
‐ Sei. Eu não partirei. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 122 
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E de repente atirou‐se a Allua, apertou impetuosamente as mãos quentes dela com os dedos gélidos e 
respondeu, rápido e baixo: 
 
‐  Entenda,  acredite  ‐  sei,  sei  tudo,  vejo,  mas  não  posso,  não  posso  ir...  Perdoe  ‐  talvez  ele  também 
perdoará ‐ eu devo ficar. Eu voltarei; não sei como ‐ só sei: será assim. Não pare. Não conte a ninguém. E 
a ele também ‐ não conte. Ele não deve saber. Eu te peço ‐ deve ser assim, acredite... 
 
Allua ficou calada, olhando para a parede. 
 
‐  Você  está  certa.  É  assim...  como  eu  não  percebi  antes...  Não  tenha  medo,  não  falarei  a  ninguém,  a 
ninguém e nunca. E não explicarei nada, se perguntarem... 
 
‐ Sim, sim! Que acusem de traição, que amaldiçoem ‐ eu não posso de outro jeito, não posso! Se eu não 
ficar aqui agora, eu deixarei de ser o que sou, a minha força morrerá, e eu serei um vazio inútil, e que 
utilidade teria eu assim... 
 
‐ Deixe, não fale nada. Eu entendo. Mas nos devemos ser ‐ nove. Dificilmente conseguiremos fazer algo, 
se pelo menos um partir. 
 
‐ Eu voltarei, juro! Allua, você me conhece! Você acredita? Acredita? 
 
‐ Eu sei e acredito. Tudo bem, então. Esperaremos. 
 
‐ Perdoe‐me. E peço... 
 
‐ Não precisa falar. É melhor não dizer nada... 
 
‐ Allua, Allua... Eu tenho tanto medo... 
 
‐ Naure, eu preciso te dizer algo. Elenhel nos alcançará mais tarde. 
 
‐ Por quê ela não vai junto com todo mundo? 
 
‐ Ela está doente. O Mestre pediu para avisar que temos de ir sem ela. Daqui a uns doze dias ela vai nos 
encontrar. 
 
‐ Bem, sendo assim... Então, partiremos de madrugada. 
 
Oito  ‐  foram.  Uma  ‐  ficou.  Quando  ele  lhe  falava  as  palavras  de  despedida,  ela  ficou  de  cabeça  baixa, 
escondia os olhos, já sabendo ao certo, que não poderá obedecer. E não se atrevia contar‐lhe isso. 
 
Dedos finos não segurarão a espada pesada. 
Mas eu não partirei – e não importa o que seguirá. 
A armadura é pesada demais para os ombros de menina, 
Mas ficarei ao seu lado, serei o seu escudo. 
 
Ela sabia que era a sua última canção, que ninguém cantará. “E depois vocês retornarão”, ‐ dizia ele, e 
essa foz suave, essas palavras confiantes poderiam enganar a qualquer um ‐ mas não a ela, que Via. Doía 
tanto,  como  se,  ao  ficar,  ela  o  traísse,  mas  não  havia  outro  jeito  ‐  porque  ela  Via.  Porque  obedecer 
significava matar o próprio coração. Porque ela sabia, o que está para acontecer. 
 
...  Poucos  eram  aqueles  que  sabiam  manejar  uma  espada.  A  pena  é  mais  costumeira  para  as  mãos  do 
escritor,  e  ao  bardo  serve  melhor  o  alaúde.  E  batalha  sangrenta  não  é  lugar  para  as  mulheres.  Mas 
ninguém recuou; e o próprio Melkor entrou no combate a frente dos Elleri Ahe. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 123 
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E então, sobre uma rocha, o Menestrel Gelren gritou: 
 
‐ A última canção é para você, Alado! 
 
Os  seus  olhos  brilhavam  com  inspiração,  e  o  vento  fazia  voar  os  cabelos  cor  de  cinzas,  e  uma  estrela 
alada brilhava em seu peito. Ele começou a cantar. E todos pararam, ouvindo‐o. Ele cantava sobre Arta ‐ 
o  coração  trêmulo  nas  mãos  carinhosas  do  Escuro,  e  sobre  os  outros  mundos,  que  são  a  vida  e  a 
grandeza  do  Universo.  E  cada  um  ouvia  no  canto  dele  algo  próprio,  e  as  mãos  soltavam  as  armas,  e 
surgiam sorrisos nos rostos manchados de sangue, e o Escuro não parecia mais amedrontador e hostil, 
pois só no Escuro há Luz... 
 
Ninguém  jamais  compôs  uma  canção  assim  em  Arta,  e  jamais  comporá,  a  menos  que  as  Muralhas  da 
Noite  sejam  derrubadas  e  os  corações  dos  homens  se  abram  à  Música  dos  Mundos  e  ao  Chamado  de 
Ëa... Mas vala Tulkas, livrando‐se do feitiço, gritou: 
 
‐ Por quê estão ouvindo?! Matem! 
 
E  o  Maia  que  estava  mais  próximo  do  Menestrel,  correu  e  golpeou‐o.  Aquele  não  teve  tempo  de  se 
proteger. Melkor atirou‐se para frente, e a espada negra desceu sobre a cabeça do Maia. 
 
‐ Vá às Mansões de Mandos! 
 
Vala curvou‐se sobre o discípulo. A sua capa negra se transformou em asas, e essas asas esconderam o 
moribundo dos olhos dos Imortais. E como se uma muralha invisível os cercasse: ninguém podia e não 
se atrevia a aproximar‐se, apesar do combate em volta. 
 
A estrela prateada no peito do Menestrel avermelhou‐se. “O sinal da morte súbita... Era isso então que 
você levava sobre o coração, discípulo...” ‐ pensou Melkor. 
 
Gelren sorriu: 
 
‐ Pelo menos o encontrei mais uma vez, Mestre... Agradeço... 
 
‐ Meu discípulo... – a voz do Vala falhava. 
 
‐  Adeus...  me  perdoe...  perdoe  a  todos  nos...  por  aquilo...  que  acontecerá...  Nos  não  conseguimos... 
perdoe... 
 
‐ O que você está dizendo... – Faltava‐lhe ar por causa da dor. 
 
‐  Mestre...  Não  desista;  Arta  está  em  suas  mãos...  não se  culpe  de  nada,  Alado...  Agora  eu  sei,  estrela... 
estou vendo... 
 
A cabeça do Menestrel caiu. Os dedos que apertavam a mão de Melkor soltaram‐se. Morto. 
 
Com cuidado, como se tivesse medo de acordá‐lo, Vala colocou o corpo do discípulo no chão, e passou a 
mão sobre o rosto dele, fechando os seus olhos. O rosto de Melkor ficou imóvel. 
 
‐ Durma, criança... – inaudível. 
 
Ela via só uma coisa: esse rosto pálido, desfigurado pela ira e pela dor. O rosto de um condenado. Ela 
sabia ‐ ele é condenado à vida, como eles – à morte, e a morte pareceu‐lhe misericórdia. Para ele. Para 
ela ‐ covardia, traição. Mas ela não conseguia ser diferente. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 124 
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Depois, tudo foi rápido demais. Era muitos ‐ Maiar em vestes rubras, cujos olhos brilhavam com o fogo 
sombrio da morte ‐ ela não teve tempo de compreender, mas notou mais um, que subitamente avançou 
pela esquerda. E ela se jogou para frente. 
 
Ela não sentia dor quando levou dois golpes pesados no peito. Só teve tempo de perceber que não tem 
mais  nem  espada,  nem  elmo  ‐  ela  os  atirou  para  longe  momentos  antes.  Agora,  não  são  mais 
necessários. E depois uma mão a segurou, e ela se surpreendeu ‐ estou caindo?.. 
O rosto sobre ela – perplexo, preocupado. Ele tirou o elmo da cabeça do pequeno guerreiro. O rosto de 
Elhe  parecia  o  de  uma  menina,  inacreditavelmente  jovem  por  causa  dos  cabelos  cortados.  Ela  tinha 
pensado  ‐  para  que  eles  prestam  agora?  Nem  entram  sob  o  elmo...  E  somente  suspirou  quando  as 
madeixas pesadas caíram no chão numa onda de luar. 
 
Uma  mecha,  mais  comprida,  escorria  pelo  pescoço  como  uma  serpente;  ele  quis  acertar  os  fios  ‐  um 
gesto absurdo, inútil ‐ e só agora percebeu que ainda estava segurando a espada. 
 
“Por quê você... eu pedi, eu mandei ir... por quê...” 
 
Elhe respirou com dificuldade, o rosto empalidecia, gotas de suor brilhavam nas têmporas. 
 
‐ Você... não..foi ferido?.. ‐ expirou ela. 
 
A dor explodiu em duas bolas de fogo – perto do pescoço e no peito, à esquerda. 
 
‐ Mel kori... 
 
Ela  tentou  sorrir‐lhe  ‐  através  da  dor,  através  da  escuridão  sangrenta  que  se  aproximava.  E  depois  a 
Estrela brilhou. O último pensamento desesperado foi sobre o retorno... e o mundo deixou de existir. 
 
Ave, estrela, vento, chuva outonal, 
Eu voltarei, com nova forma e novo nome... 
Meu coração, serei o seu escudo. 
Daqui a milênios – voltarei, eu sei... 
Perdoe. 
 
Ele não lembrava direito daquilo que se seguiu. A sua espada estava coberta de sangue dos inimigos até 
o  cabo:  os  Maiar  também  conhecem  algo  que  se  assemelha  à  morte.  Ele  recuava,  olhando  para  os 
inimigos com olhos cegos de dor e raiva, e esse olhar a muitos  parecia mais terrível do que a espada 
negra  que  jamais  errava  o  golpe.  E  Maia  Gorthaur  lutava  lado‐a‐lado  com  ele.  Por  breves  instantes, 
Ahere conseguiram reter os Imortais. Melkor virou‐se para Gorthaur: 
 
‐ Vamos. Rápido. 
 
Na sala do trono, ele entregou o Livro de Arta ao discípulo. 
 
‐ Vá, Orthenner. 
 
‐ Eu não sou um traidor, Mestre. Eu não te abandonarei. 
 
Melkor olhou para ele. 
‐  Eu  ordeno,  eu  peço...  Será  que  não  entende  o  que  acontecerá  agora?  Mesmo  se  você  ficar,  não 
resistiremos. Vá. Eu voltarei. Daqui a muito tempo. Mas ‐ voltarei. Eu prometo. 
 
‐ Que me julguem! 
 

O Livro Negro de Arda  Página 125 
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‐ Eles precisam é de mim. Você ficará em Endorë. Assim deve ser, Discípulo, ‐ a voz de Melkor era cruel. 
‐ Vá. É a única coisa que pode fazer para me ajudar. E ainda: eles não devem pegar o livro. É a memória 
de Arta, Discípulo. 
 
Por alguns instantes, Gorthaur imaginou ver uma pesada corrente prendendo as mãos de Melkor. 
 
‐ Mestre! 
 
Sumiu. Melkor repetiu, surdamente: 
 
‐ Vá. 
 
Na  porta,  o  Discípulo  virou‐se.  A  ultima  coisa  que  ele  viu  ‐  Melkor,  parado  no  meio  da  sala,  tenso, 
segurando a espada na mão. 
 
Ierne  surpreendia‐se,  como  ela  conseguiu  resistir  por  tanto  tempo?  Talvez  havia  algum  feitiço  na 
espada  de  Geleon?  Ou  a  ira  dava‐lhe  forças?  O  seu  corpo  forte  estava  acostumado  à  dança  e  a 
movimentos  bruscos,  ela  escapava  dos  golpes  facilmente  e  não  sentia  cansaço  por  muito  tempo.  E 
depois,  uma  mulher  surgiu  na  sua  frente,  bela  e  impiedosa,  com  olhos  negros  mortos,  e  Ierne 
compreendeu  que  não  conseguirá  se  defender.  E,  mesmo  assim,  ela  tentava  resistir,  mas  a  espada 
cortou e a armadura de couro, e a roupa, e o corpo. O corte estreito rapidamente encheu‐se de sangue. 
Um  segundo  golpe  a  atirou  no  chão.  A  voou  para  longe.  “O  fim”,  ‐  sem  um  mínimo  medo  pensou  ela, 
vendo a lâmina ensangüentada encostada na sua garganta. Mas esta de repente desviou. Algo novo, vivo 
brilhou nos grandes olhos negros. A mão forte ergueu‐a. 
 
‐ Não tenha medo... Não faremos nada com os prisioneiros, eu prometo... Está doendo, sim? Consegue 
andar? 
 
Ierne fez um sim. A guerreira levou‐a para baixo, aos destroços do portão, onde já havia uma dúzia de 
Elfos do Escuro, cercados de guardas. 
 
Ele combatia como um animal acuado os que vieram da terra abençoada de Aman. Por um milagre eles 
conseguiram resistir por tanto tempo. Os nove saíram à noite ‐ ou melhor, ele achava que foram todos 
os  nove.  Depois  entendeu  que  não...  E  no  combate  a  sua  raiva  aumentava  por  causa  da  amargura  do 
sentimento de que o sacrificaram, como a todos os outros, por esses nove. O Mestre o sacrificou, e ele o 
respeitava tanto... Não foi graças a ele que eles resistiram por tanto tempo? “Mestre você escolheu as 
pessoas erradas... Eu deveria ser o Guardião... Mestre, mas por quê é que não me escolheu?..” 
 
Entre  os  discípulos  de  Tulkas,  eles  eram  os  melhores  ‐  dois  irmãos,  Guerreiros.  Sombriamente  belos, 
corajosos  e  fortes,  no  combate  eles  se  igualavam  ao  próprio  senhor.  Quando  eles  combatiam  juntos, 
ninguém  poderia  subjugá‐lo.  Os  olhos  deles  luziam  com  chamas  escuras  de  batalha  quando  Tulkas 
falava  aos  Maiar  dele  sobre  a  marcha  para  o  norte.  E  o  Guerreiro  soltou  um  sonoro  grito  de  guerra 
quando Tulkas nomeou‐o seu general. 
 
...E o exército do Inimigo foi destruído. Somente os últimos defensores ‐ os Elfos Negros ‐ estavam em 
frente aos portões das mansões escuras, em silêncio, e havia morte nos olhos deles. 
 
Eles  caíam,  defendendo  desesperadamente  ao  seu  senhor,  e  aos  poucos  nos  espíritos  dos  Guerreiros 
surgia à admiração com a coragem dos inimigos, e a Guerreira desviou a mão, e não matou a ferida ‐ 
uma guerreira igual a ela mesma. Assim ela conheceu a piedade. 
E o Guerreiro já havia engajado no combate com o último dos Elfos. Aquele estava ferido, e defendia‐se 
com dificuldade. 
 
‐ Renda‐se! ‐ gritou Maia. ‐ Renda‐se, e eu juro ‐ você viverá! 
 

O Livro Negro de Arda  Página 126 
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Mas  o  Elfo  balançou  a  cabeça.  Então  o  Guerreiro  arrancou  a  espada  das  suas  mãos  enfraquecidas. 
Aquele  caiu.  O  Guerreiro  curvou‐se  para  ajudá‐lo  a  se  erguer,  mas  o  Elfo  inesperadamente  agarrou  a 
lâmina da espada dele, e cortou a própria garganta num movimento brusco. 
 
“Por quê?” ‐ desnorteado, quase ofendido, pensava Guerreiro. “Eu cumpriria a minha palavra... Por quê? 
Será que ele me odiava e me temia tanto?” Mas nos olhos escancarados e mortos não havia nem medo, 
nem ódio ‐ somente dor e compaixão.  
 
Eles  irromperam  na  fortaleza.  E  Tulkas  lutou  corpo‐a‐corpo  com  Melkor,  e  os  Guerreiros,  olhando  o 
combate,  viam  ‐  o  Vala  Escuro  é  bem  mais  hábil.  E  mais  honesto.  As  espadas  quebraram,  mas  eles 
continuaram  a  luta.  Alguns  segundos  ficaram  imóveis,  e  poderia‐se  dizer  que  eram  dois  irmãos 
abraçados.  Mas,  lentamente,  Tulkas,  cada  vez  mais  vermelho,  começou  a  ajoelhar‐se.  Parecia  que  o 
próprio olhar do Inimigo o faz curvar‐se. Guerreiro deu um empurrão no ombro da irmã: 
 
‐ Olha só aquilo! Que poder! 
 
Aquela concordou. Olhava. 
 
‐ Se ele vencer Tulkas, nos teremos que ir ‐ assim é a lei da luta honesta! 
 
Mas não houve luta honesta. Alguém guinchou: “Por quê estão parados, para cima dele!” 
 
E  o  exército  dos  Valar  atirou  se  sobre  Melkor  e  quando  a  multidão  se  abiu,  ele  estava  no  chão  ‐ 
espancado  e  amarrado.  Tulkas  chutou‐o  com  raiva  e  virou‐se  para  os  discípulos,  esperando  elogios 
maravilhados. Mas ouviu em resposta somente um taciturno: 
 
‐ Isso é contra a honra... 
 
O rosto da Ira de Eru alterou‐se, mas ele ficou quieto. Mas não esqueceu. 
 
E  então  foi  trazida  a  corrente  de  ferro,  habilmente  forjada  por  Grande  Aulë.  O  mais  poderoso  dos 
feitiços estava nela, e ela era tão pesada que até Tulkas, o mais poderoso entre os Valar, a erguia com 
dificuldade. E o nome dela era Angainor. 
 
E  Aulë  trouxe  duas  algemas  de  ferro  em  brasa,  e  fechou‐os  para  a  eternidade  nos  pulsos  de  Melkor. 
Aquele se debateu, mal segurando o grito; mas Tulkas e Oromë seguravam‐no bem. Daquela hora em 
diante, a dor não cessava e as queimaduras não se curavam: essa era a maldição do Único e do Manwë. 
 
Valar vedaram os olhos dele. Ele não entendia o porquê; e pensou, não sem fundamentos, ao fato de que 
eles temiam o olhar dele, e também queriam humilhar ainda mais o rebelde. Mas Melkor descobriu a 
verdadeira causa disso somente muito tempo depois. E assim o fizeram ir até os portos, onde os navios 
de Valinor já os aguardavam; e ele ia ereto e pisava firme, apesar da dor e da corrente, que o puxava 
para o chão e parecia tornar‐se mais pesada a cada passo. E em seu espírito Melkor jurou que os Valar 
não ouvirão nem seus gemidos, nem pedidos de clemência, que nenhum sofrimento o fará humilhar‐se 
perante eles e nenhuma ofensa lhe arrancará uma palavra que seja. Mordendo os lábios até sair sangue, 
ele  repetia  este  juramento  rolando  pelo  chão  de  tábuas,  impotente  e  preso.  E  com  grandes  festas  os 
Valar levaram o prisioneiro para a Terra Abençoada dos Imortais. 
 
Gorthaur  não  foi  encontrado.  Diziam  depois  que  ele,  temendo  a  ira  dos  Valar,  escondeu‐se  numa  das 
cavernas  da  Fortaleza  de  Melkor,  e  por  muito  tempo  permaneceu  lá,  tremendo  de  pavor  e  não  se 
atrevendo a abandonar o esconderijo, mesmo depois da partida dos Imortais. Mas foi assim: ele seguiu 
para o castelo de Ahanagger, no oriente, levando consigo o Livro. As linhas sobre a Guerra dos Poderes 
de  Arda  estavam  inscritos  nele  com  letras  de  fogo.  E  lendo  essas  palavras,  Gorthaur  sentia  a  dor  do 
Mestre e entendeu aquilo que foi oculto deles dois até aquela hora. E o maia Negro amaldiçoou a si pela 
impotência e pela cegueira. 

O Livro Negro de Arda  Página 127 
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...Terminada  a  batalha,  Oromë  foi  até  os  Elfos,  e  escolheu  três  dentre  eles:  Ingwë,  Finwë  e  Elwë,  que 
depois  se  tornaram  reis.  E  ele  os  mandou  segui‐lo,  para  que  eles  fossem  os  enviados  do  Quendi  em 
Valinor e vissem a beleza eterna da Terra Abençoada e, ao retornar, contassem isso aos seus povos... 
 
O mar não estava calmo, e o navio balançava. Ouvia‐se pouco do porão, e o desconhecimento era o pior 
de tudo. Ierne reclinou‐se cansadamente sobre o ombro do Artífice. 
 
‐ Eis o casamento, ‐ disse ela tristemente. Artífice abraçou‐a em silêncio. 
 
‐  Talvez,  tudo  ainda  dará  certo?  Ela  disse  ‐  não  farão  nada  aos  prisioneiros...  Talvez,  ficaremos  na 
mesma cela. Não é verdade, tudo dará certo? ‐ Ierne olhou implorando para o Artífice, e aquele forçou 
um sorriso. Alguém aproximou‐se e se sentou no chão ao lado deles. Amigo dos Livros. 
 
‐  Ierne,  não  fique  triste.  O  quer  que  aconteça  ‐  estamos  livres.  Nos  somos  Mortais,  entende?  Nos 
poderemos  escapar  do  circulo  da  predeterminação.  E  eles  não  conseguirão  fazer  nada.  Assim  dizia  o 
Mestre, e eu acredito. E você? 
 
‐ Acredito. Mas eu gostaria de viver um pouco mais. 
 
‐ E eu também... 
 
Um  silêncio  pesado.  Subitamente,  o  Amigo  dos  Livros  levantou‐se  bruscamente.  Os  olhos  dele 
brilhavam. 
 
‐ Mas vocês estavam por casar... Todos, vêm aqui! 
 
Os outros os cercaram, sem entender o que está passando. E então o Amigo dos Livros, levantando as 
mãos, pronunciou: 
 
‐ Perante Arta e Ëa, Sol, Lua e Estrelas, de agora e para sempre eu os declaro marido e mulher! 
 
Eram palavras da tradição. Ele só não pronunciou uma coisa ‐ “na vida e na morte”. 
 
‐ Que seja assim! 
 
E  então,  de  repente,  a  segunda  das  mulheres  presas  ‐  quase  uma  menina  ainda  ‐  começou  a  chorar 
torrencialmente: só agora ela compreendeu que tudo acabou, que ela nunca terá mais nada ‐ nem um 
casamento  destes.  E  o  Amigo  dos  Livros  foi  até  ela  e  afastou  as  mãos  dela  do  rosto  em  lágrimas.  Ele 
disse baixinho: 
 
‐ Por que você chora? Você é mais esbelta que uma árvore jovem, seus olhos são estrelas matutinas, o 
seu sorriso é mais claro que o sol da primavera. Seus cabelos são como linho claro. Você é bela, e eu te 
amo. Por quê chora? O resto é besteira. Eu te amo e me caso com você ‐ perante todos. Não chore. 
 
‐ Está inventando, ‐ choramingou ela. 
 
‐ Eu já menti alguma vez? E agora também falo a verdade. Acredite, por favor. Acredita, sim? 
 
‐ Verdade? 
‐ Claro, ‐ mentiu ele pela primeira vez na vida. “Estou inventando tão bem quanto o Narrador”. Acabou 
aí o meu primeiro e último conto de fadas”. 
 
‐  Agora  vocês  viram  a  Terra  Abençoada,  sua  glória  e  sua  grandeza,  sua  beleza  e  sua  luz.  O  que  dirão 
vocês, filhos do Único? 

O Livro Negro de Arda  Página 128 
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‐ Grande, ‐ finalmente rompeu o silêncio Ingwë, de olhos fechados ‐ não temos palavras, pois não temos 
o poder de expressar aquilo que sentimos nos nossos corações... 
 
‐  Não  me  chame  de  grande,  ‐  sorriu  o  Maia  suavemente,  ‐  pois  eu  não  sou  mais  do  que  o  servo  ou  o 
mensageiro dos Poderes de Arda, somente pó aos pés dos Valar e a sombra da sombra deles. Mas vocês 
foram  escolhidos  não  somente  para  ver  Aman  e  falar  com  os  seus  povos  sobre  ele:  uma  sombra  de 
tristeza anuviou o sossego dos Poderes, e eu devo, pois essa é a vontade deles, falar com vocês sobre o 
Inimigo. 
 
‐ Inimigo? E o que é isso? ‐ perguntou Elwë. 
 
‐  Saibam  que  o  Inimigo  é  um  renegado  e  um  rebelde,  que  ele  deseja  destruir  a  beleza  do  mundo, 
transformar os jardins em cinzas e os vales em desertos, secar os rios e libertar as chamas de Arda, para 
o mundo se afunde no caos, e para que o Escuro eterno devore a Luz... 
 
Elwë estremeceu, recuando um passo. 
 
‐ Mas esse não é o pior dos planos dele. Saibam que ele desejou tirar‐lhes tudo o que lhes foi dado por 
Ilúvatar, dando em troca a morte. 
 
‐ O que é isso ‐ morte? ‐ os lábios de Elwë tremiam, como os de uma criança assustada. 
 
‐ A morte os levará para fora dos limites do mundo, para o nada, para o vazio, e vocês se transformarão 
em  vazio,  e  todos  os  seus  pensamentos  e  sentimentos,  as  suas  criações  e  a  própria  essência  se 
transformarão em pó. 
 
Eles ficaram calados, tentando compreender o que ouviram. Como assim? Tudo isso ‐ flores e arvores, 
estrelas e relvas, e montanhas, e o próprio mundo ‐ existirá, mas eles não. Tudo ficará como está, só não 
haverá mais eles, e nunca mais ouvirão o cantar do rio, não verão o céu límpido polvilhado de estrelas, 
não sentirão o gosto das frutas, não respirarão o cheiro das ervas, não sentirão o vento no rosto... Como 
é isso? Incompreensível e terrível: há tudo, não há somente você mesmo, e isso para sempre? 
 
‐ Para... para que ele precisa disso? ‐ sussurrou Ingwë. 
 
‐ A inveja está no coração dele ‐ inveja a tudo que é límpido e claro, a tudo que é inalcançável para ele. E 
ele quer se elevar por meio da infelicidade de vocês, e transformá‐los em escravos, obedientes a ele ‐ a 
voz  do  Maia  tornou‐se  ameaçadora.  –  O  terrível  é  que  ele  corrompeu  as  almas  de  muitos,  e  eles  se 
tornaram seus servos, mas o medo das cruéis torturas a que ele submete os que o renegam é imenso, e 
o  agora  o  ódio  deles  está  destinado  ao  mundo  inteiro,  principalmente  a  aqueles  que  foram  antes  do 
mesmo povo que eles, mas negaram o caminho do Mal. E aqueles, cujas almas o Inimigo não conseguiu 
escravizar,  nos  calabouços  sombrios  são  submetidos  a  terríveis  tormentos,  que  mutilam  o  corpo  e  a 
alma; e assim o Inimigo cria os Orcs, cuja essência é uma zombaria dos belos Elfos, pois ele mesmo não 
consegue criar nada, pode somente conspurcar e corromper as criações dos outros. 
 
‐ Mensageiro... ‐ Elwë abaixou a cabeça; mechas longas de cabelos acinzentados esconderam o seu rosto 
empalidecido. ‐ Responda, por que nos fala sobre isso aqui, nesta terra inalcançável para o Inimigo? Ou 
o Mal já se infiltrou em Valinor? 
 
Maia  ficou  por  muito  tempo  em  silêncio,  observando  os  três  com  os  olhos  semicerrados.  As  suas 
palavras atingiram o alvo. Finalmente, ele começou a falar, lentamente e com imponência: 
 
‐ Os Poderes de Arda derrotaram o Inimigo numa guerra terrível, e os servos dele foram destruídos ou 
se dissiparam como névoa maligna. Mas os Poderes não devem castigar, e sim fazer justiça; por isso o 
Inimigo e aqueles que o serviram serão agora julgados pelos Valar. E como eles travaram esta guerra 

O Livro Negro de Arda  Página 129 
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não  pelo  próprio  sossego,  mas  pelas  Crianças  de  Ilúvatar,  tal  como  pelas  Crianças  de  Ilúvatar  eles 
vieram há muito para Arda, para preparar‐lhes uma morada, então mais dignos entre os Eldar devem 
falar a sua palavra neste julgamento: esta é a vontade dos Valar. Somente depois disso o Rei do Mundo 
poderá  declarar  a  sua  sentença  aos  renegados.  E  eu  vim  para  dizer‐lhes:  que  os  seus  pensamentos 
agora sejam sobre o bem dos seus povos; fortaleçam os seus corações, expulsem os maus pensamentos 
e sigam‐me, pois vocês deverão apresentar‐se aos Poderes em Máhanaxar.  
 
Ele  notou  com  satisfação,  como  brilharam  os  olhos  de  Finwë,  que  se  mantivera  calado  ante  então. 
Parece que esse, silencioso, entendeu melhor do que os outros as palavras dele. 
 
...O que fará a criança ao ver uma aranha pela primeira vez na vida ‐ monstro asqueroso, peludo, com 
muitos pés? Uma ‐ fugirá apavorada e ficará chorando perto dos mais velhos. Outra ficará petrificada, 
sem poder se mexer de medo ou entender o que vê. Terceira ‐ com a cruel coragem infantil esmagará o 
inseto repugnante, para livrar‐se dele para sempre... 
 
Eles colocaram Melkor perante o trono de Manwë. Com uma compaixão desdenhosa, Manwë encarava o 
seu irmão mais velho, o mais poderoso dos Ainur. As zombarias de Manwë não tingiram o alvo: Melkor 
permaneceu em silêncio. E o Rei de Arda mandou tirarem a faixa dos olhos do rebelde e disse: 
 
‐ Agora você verá o que acontece com aqueles que se atrevem a desobedecer ao Único e aos Poderes de 
Arda, que se atreveram segui‐lo e nos combater! 
 
Do alto da Taniquetil, Melkor olhou pra baixo, para onde apontava a mão de Manwë. O seu rosto ficou 
mortalmente  pálido,  e  ele  estremeceu  de  horror  e  dor,  e  o  sofrimento  era  visível  nos  seu  rosto,  pois 
naquele momento ele entendeu tudo. 
 
Nem  todos  os  Elfos  do  Escuro  morreram  nos  combates.  Aqueles  que  ficaram  sobreviveram  foram 
aprisionados  pelos  Valar:  nem  Melkor,  nem  Gorthaur  sabiam  disso.  Eles  foram  levados  a  Valinor  no 
mesmo  navio  que  Melkor;  e  agora  eles  estavam  lá,  no  sopé  da  Taniquetil,  guardados  por  Maiar, 
esperando  o  destino.  Amarrados,  com  as  roupas  negras  rasgadas,  eles  eram,  ainda,  belos,  e  os  seus 
olhos brilhavam como estrelas. 
 
E o Vala orgulhoso caiu de joelhos e implorou o Rei do Mundo, seu irmão mais novo: 
 
‐ Perdoe‐os! Eu tenho culpa de tudo, eu! Eu os fiz obedecer‐me, eu os guiei: faça o que quiser comigo, 
mas perdoe‐os! Eu te imploro! 
E Manwë sorriu friamente, olhando para o inimigo derrotado, e perguntou: 
 
‐ Arrepende‐se, insignificante, daquilo que fez? 
 
‐ Sim! ‐ Melkor gritou com desespero. “Talvez pagando esse preço poderei salvá‐los?” 
 
‐ Reconhece a sabedoria e a grandeza dos Valar? 
 
‐ Sim. 
 
‐  Reconhece  que  com  torturas  e  feitiços  repugnantes  você  transformava  os  belos  Filhos  do  Único  em 
Orcs asquerosos? 
 
‐ Sim. 
 
‐ Reconhece, impostor, que se nomeou o Senhor de Tudo o que Existe? 
 
‐ Sim 
 

O Livro Negro de Arda  Página 130 
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‐  Reconhece  que  veio  a  Arda  trazendo  raiva  e  inveja  em  seu  coração,  que  queria  dominar  o  mundo 
inteiro, povoando‐o com as suas próprias criações repulsivas? 
 
‐ Sim, sim, ‐ gemia Melkor, ‐ eu admito, eu reconheço tudo ‐ mas perdoe‐os! Tenha piedade ‐ e eu serei 
um servo dos Valar! 
 
E Varda perguntou: 
 
‐  Admite  que  somente  por  inveja  negra  do  Criador  de  Tudo  o  que  Existe  e  desejando  diminuir  a 
grandeza dele falava mentiras sobre os outros mundos? 
 
‐ Admito, ‐ a voz de Melkor soava rouca; ele fechou o rosto com as mãos. “Como eu quero que eles não 
ouçam isso, tomara que não vejam, tomara...” 
 
‐ E queria enganar os Fieis com essas histórias, mesmo sabendo que antes de Arda não havia nada além 
do Único e dos Ainur, e que para lá dos limites de Arda há somente o vazio e escuridão? 
 
‐ Sim... 
 
‐ E você não viu nada no vazio? 
 
‐ Nada, ‐ suspirou Vala roucamente. 
 
‐ Mais alto! 
 
‐ Nada! ‐ gritou Melkor. ‐ Eu confesso, menti! Só os perdoem, perdoem, perdoem! 
 
Depois  ele  não  ouvia  mais  nem  as  perguntas,  nem  as  próprias  respostas.  Ele  só  repetia:  “Sim...”  Sim, 
Ilúvatar é o único Criador; sim, Melkor fazia somente o mal; sim, ele queria deturpar o plano da Criação; 
sim,  ele  sabia  somente destruir,  mas  não  criar;  sim,  ele  odiava  todos  os  viventes;  sim,  as  estrelas  são 
criação de Varda; sim, sim, sim... Ele negava tudo o que viu e o que sabia, ele se confessava culpado de 
todos os crimes possíveis e impossíveis; ele já não entendia o que falava ‐ só um pensamento: agora os 
devem perdoar, ele pagará com ele mesmo por eles, senão eles morrerão ‐ porque eles  escolheram o 
caminho  dos  Mortais...  Melhor,  que  os  Valar  o  condenem  a  tormentos  eternos  ‐  ele  é  imortal  e  não 
conseguirá  morrer,  qualquer  que  seja  a  pena...  Mas  ficarão  aqueles,  que  continuarão  o  que  ele 
começou... Ficarão... 
 
Finalmente, o Rei do Mundo deu‐se por contente e fez um sinal para Tulkas. E melkor foi levado para 
além  dos  portões  dourados  de  Valmar,  capital  de  Valinor.  E  no  Conselho  dos  Grandes,  Máhanaxar,  os 
Poderes de Arda acomodaram‐se nos seus tronos; mas Aulë não estava entre eles, e colocaram Melkor 
no  trono  dele.  E  os  servos  dos  Poderes,  Maiar,  reuniram‐se  a  mando  de  Manwë:  ele  queria  que  eles 
também vissem e ouvissem tudo. 
 
E assim disse Manwë, o Rei do Mundo: 
 
‐ Repita tudo aquilo que nos disse. E que todos te ouçam. 
 
E Melkor repetiu. Surdas e pesadas eram as palavras, ele falava com uma voz morta. E Valar, e Maiar, e 
os três chefes dos Elfos que também estavam ‐ Ingwë, Finwë e Elwë ‐ ouviam e memorizavam. 
Ele  traia  a  si  mesmo,  para  salvar  os  seus  discípulos.  E  quando  ele  acabou,  pensava  somente  em  uma 
coisa: eles não ouviram isso... 
 
Manwë  novamente  fez  um  sinal,  e  os  Elfos  do  Escuro  foram  trazidos  até  o  Círculo  do  Destino,  eram 
vinte e um; e havia entre eles duas guerreiras. E, dirigindo‐se a Melkor, assim disse o seu irmão mais 
novo, Manwë: 

O Livro Negro de Arda  Página 131 
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‐ Os Valar são justos e piedosos. Nos ouvimos as suas palavras e vimos o seu arrependimento. Você será 
perdoado  e  terá  a  liberdade.  Será  novamente  um  de  nos,  e  ocupará  por  direito  um  dos  tronos  de 
Máhanaxar. Os seus conhecimentos servirão aos Poderes, e aos Filhos do Único, aos Primogênitos, você 
os dará, para compensar as suas maldades. Jure!  
 
E Melkor jurou. E Manwë disse: 
 
‐ Veja, agora está num trono como um igual. E assim será. Receberá o perdão dos Poderes, mas antes os 
seus feitos serão um penhor das suas palavras. 
 
E, apontando para os presos, adicionou: 
 
‐ Mate os. Com as próprias mãos. O sangue deles pagará a sua culpa: mate. 
 
O desespero cego abandonou Melkor; dor e ira deformaram o seu rosto, e ele urrou: 
 
‐ Não! 
 
Silêncio. 
 
E no Círculo do Destino, perante o trono de Manwë, estavam os Elfos do Escuro; mas olhavam somente 
para  Melkor,  o  seu  Mestre,  e  ele  também  olhava  para  eles.  E  com  uma  clareza  assustadora  entendia: 
tudo foi em vão. Não haverá perdão nem clemência. 
 
Então o Rei do Mundo falou: 
 
‐ O que deve ser feito com aqueles que renegaram o Único e foram para o lado do Inimigo? O que nos 
faremos  com  aqueles  que  desejaram  a  vossa  morte,  Filhos  do  Único?  ‐  ele  dirigia‐se  aos  três  que 
estavam agora ao lado do trono dele. 
 
Intimidados  pelo  olhar  do  Rei  do  Mundo,  os  três  baixaram  os  olhos.  Mas  de  repente  Finwë  deu  um 
passo pra frente; seus olhos brilhavam, e a voz clara e tensa soava quase inspirada: 
 
‐  Permita‐me  dizer  uma  palavra,  Manwë  Súlimo,  Rei  do  Mundo,  senhor  do  céu!  Eles  merecem  a  mais 
severa punição, e nada será cruel demais para eles. Os Grandes devem esquecer, nesta hora, a piedade 
infinita, e que seja feita a vontade do Único! 
 
Manwë concordou: 
 
‐  Agora  eu  lhes  direi  as  palavras  do  Único,  que  eu  ouvi,  e  quero  eu  que  todos  as  ouçam:  as  ervas 
daninhas devem  ser  arrancadas com  as  raízes.  Imensa é  a  piedade  do  Único, mas é  terrível  a  sua  ira. 
Que os Valar sejam agora uma ferramenta dessa ira! 
 
E  Manwë  pronunciou  a  sentença.  E  quando  ele  começou  a  falar,  Melkor  gritou:  “Não!..”  ‐  e  caiu  de 
joelhos, estendendo as mãos acorrentadas num gesto de desespero. 
 
Então soou a voz clara de Geleon: 
 
‐ Não se humilhe, Mestre: eles não conhecem a piedade e a compaixão. Eles... 
 
Mas Tulkas ergueu‐se num pulo, rosto escurecido de raiva, e ele fez o Elfo se calar com um tapa. 
 
E Melkor, rangendo os dentes, levantou‐se e ficou ao lado dos seus discípulos. Ele ouviu a sentença até o 
fim. E não pronunciou mais nenhuma palavra.  

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O  próprio  Aulë  acorrentava  os  renegados,  e  Finwë  o  ajudava  no  seu  trabalho,  pois  os  outros  dois 
recuaram  atemorizados.  E  grande  foi  a  recompensa  dos  Valar;  e  foram  ele  e  os  seus  descendentes 
eleitos entre os outros Elfos. Mas Melkor o amaldiçoou. 
 
Eles esperaram treze dias. E mais dez. Elenhel não aparecia. E  então Allua disse ‐ ela não virá. Naure 
olhou‐a com raiva: 
 
‐ Então você sabia? 
 
‐ Sim, desde o começo. 
 
‐ E não falou nada? Vocês duas – sim, as duas, são traidoras! 
 
‐ Que seja assim. Mas ela voltará. 
 
‐ Ela está morta, ‐ disse Moro surdamente. Pela primeira vez desde a partida, ele abriu a boca. ‐ Tudo 
acabou. Todos estão mortos. Será que você não entendeu porque o Mestre nos mandou ir? 
 
‐ Eu entendi. Você acha que eu queria ir? Acha que... 
 
‐ Basta! ‐ os interrompeu Allua. ‐ Basta. Todos entendiam. 
 
‐ Mas ela não foi! Ela jurou também! E agora nada dará certo por causa dela! É uma traição! E você, você 
também... Alua, como você podia? Porque ficou em silêncio? 
 
‐ Não precisa, Naure. Você mesmo não acredita nas próprias palavras. Se bem que nos amaldiçoe como 
quiser. Mas ela voltará. 
 
‐ Quando? Então?! 
 
‐ Não sei. Mas voltará. E nos veremos isso, ‐ ela apertou na mão o saquinho de pano pendurado no seu 
pescoço ‐ ali estava a pedra rubra. ‐ É preciso esperar. 
 
‐ E agora ‐ ficar aqui sem fazer nada? 
 
‐ Não. Vamos viver. Conhecer a si e ensinar os outros, para estarmos pronto, quando chagar a hora. 
 
‐ Mas tudo mudou, ‐ disse Alhd. ‐ O que devemos fazer agora? 
 
‐ Vamos resolver nos mesmos, ‐ respondeu Onnele Cyolla. ‐ Acreditavam em nos. Nos temos o Dom e 
temos a Herança. Pensaremos. 
 
O  destino  não  lhes  deu  tempo.  Na  terceira  noite,  os  Orcs  atacaram.  De  manhã,  quando  eles  se 
novamente reuniram, descobriram que eram somente quatro. Dene e Ollo chegaram mais tarde. Ayoni 
desapareceu. Há dias, ela reclamava de estranhas dores de cabeça, que quase lhe tiravam a memória. E 
agora também, ela se atirou em direção à floresta, e por mais que a procurassem depois, não apareceu. 
E  os  Orcs,  eles  mesmos  assustados  com o  combate  inesperado,  logo  se  dispersaram  e  provavelmente 
não a levaram consigo. Onnele Cyolla correu atrás dela, ainda não tinha voltado. Ela nem voltou mais... 
Depois  desapareceu  Dene  –  foi  embora  enquanto  os  outros  dormiam.  Provavelmente,  o  pequeno 
guerreiro resolveu tentar achar Ayoni de qualquer jeito... 
 
E depois já não fazia mais sentido procurar. E então os cinco se separaram ‐ cada um foi para um lado, 
para se encontrar ali mesmo, quando o mais velho ‐ Naure os chamar, e a Herança responder. Talvez, 
poderão encontrar os outros... Só uma coisa os consolava ‐ eles sabiam sentir uns aos outros, e sabiam 

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que  todos  estavam  vivos.  Pena,  eles  ainda  não  eram  fortes  o  suficiente  para  apontar  caminho  por 
pensamento. Pode‐se chamar ‐ mas para onde? Isso eles não podiam indicar. Sabiam que estavam vivos. 
Não sabiam ‐ onde... 
 
Ierne ficava do lado do Artífice, tentando fechar a roupa, cortada pela espada. Isso era extremamente 
incômodo com as mãos acorrentadas. A corrente era curta e atrapalhava qualquer movimento. Artífice 
a  abraçava  ‐  ela  estava  no  círculo  das  mãos  acorrentadas  dele.  Assim  eles  ficaram,  juntos.  Ierne 
compreendeu  há  muito  tempo  que  eles  serão  mortos,  só  não  sabia  quando  e  como.  Aqui,  havia  uma 
sensação pesada e enjoativa ‐ a luz forte de todos os lados, morta, o ar imóvel sem cheiro, nem frio nem 
quente ‐ nenhum. Ele tinha um gosto estranho e cortante, que lembrava em algo o sangue... Ela entendia 
mal o que acontecia, estava tonta. Mesmo se ela não sofresse por causa da ferida, de qualquer jeito a sua 
mente se negaria a entender o que estava se passando. Primeiro ‐ o Mestre de joelhos, depois o Artífice 
a  deixou,  e  dando  um  passo  para  frente,  falou  alguma  coisa,  depois  o  bateram  e  ele  caiu,  cuspindo 
sangue, depois a voz de alguém: 
 
‐ Deixem viver pelo menos as mulheres! 
 
E outra, fria e cerimoniosa. 
 
‐ Aqui não há homens e mulheres. Aqui há somente os malditos renegados! 
 
 “Pelo menos juntos, ‐ pensou ela, tranqüilizada. ‐ pelo menos morreremos juntos”. 
 
E os olhos negros enormes a olhando multidão, cheios de horror e ira... 
 
...Os penduraram pelas mãos acorrentadas nas rochas de Taniquetil. E as águias de Manwë rondavam o 
pico, e, descendo, rasgavam os seus corpos com as garras. E Melkor via isso. Mesmo que ele quisesse 
desviar o olhar, não poderia fazê‐lo: ao lado estava Tulkas, que o observava atentamente. Mas mesmo 
se não houvesse um guardião, ele não fecharia os olhos: ele queria ver, para lembrar sempre. Ele lhes 
deu  todas  as  suas  forças.  Eles  escolheram  a  morte;  mas  a  morte  não  chegava  ‐  nem  mesmo  isso  ele 
podia  lhes  dar.  Ele  podia  somente  ver.  As  correntes  apertavam  o  seu  peito  de  tal  forma  que  mesmo 
respirar causava dor, mas ele não sentia nada; ele apertava os  punhos e sangue escorria debaixo das 
algemas. Ele não podia fazer nada. E então ele abriu a mente para os pensamentos deles, e o coração – 
ao sofrimento deles... 
 
‐  Vocês  pensaram  sobre  tudo?  Não  se  apressem  com  a  resposta;  a  dádiva  da  morte  é  uma  dádiva 
terrível e grandiosa. Quem sabe, talvez me amaldiçoarão depois por essa escolha.  
 
‐ Não. Nos mesmos escolhemos este caminho; agora não há mais outro para nos.  
 
‐ Olhem para dentro de si. Haveria em voz medo ou dúvidas?  
 
‐ Não, Melkor. Nos escolhemos o caminho com olhos abertos, e nenhum de nos jamais dirá que você nos 
atraiu para o seu lado com mentiras. Eu sei com o coração que você diz a verdade. Nos fizemos a nossa 
escolha, Alado. 
 
“Por  quê,  por  quê  assim  ‐ com  eles? Será  que  ninguém  falará:  “basta”?!  Eu  sou  o culpado  de tudo;  eu 
devia,  devia  ter  defendido‐os  ‐  e  agora  não  posso  nem  ao  menos  lhes  dar  uma  morte  rápida...  Sereia 
melhor  se  eu  estivesse  no  lugar deles!”  Ele  odiava  o  Único,  odiava  os  Valar,  mas mais  de  todos  –  a  si 
mesmo.  Ele  se  amaldiçoava.  Ele  olhava,  sem  tirar  os  olhos,  sabendo  que  jamais  poderá  esquecer  e  se 
perdoar. E então, como um suspiro, como um gemido, não as palavras, mas um pensamento: 
 
‐ Não se culpe, Mestre. Você não tem culpa de nada: nos mesmos fizemos a nossa escolha; nos somos 
Homens, e pagamos por isso com nos mesmos. Assim sempre foi. Não se torture, imploramos: dói... Pois 
nos te ouvimos... 

O Livro Negro de Arda  Página 134 
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E, num último esforço, ele fechou deles a sua mente... 
 
Eles podiam se ver mesmo sem virar a cabeça para o lado. Como se fosse para tornar a morte destes 
dois mais dolorosa, os acorrentaram a rochas vizinhas. As águias por enquanto não tocavam Ierne, mas 
as  garras  afiadas  já  rasgaram  duas  vezes  o  corpo  do  Artifice,  desnudando  as  costelas.  Seu  sangue 
gotejava,  manchando  a  areia  brilhante  embaixo.  Mas  ele  não  gritava.  Ele  via  como  o  rosto  dela 
empalidecia de horror e de sofrimento. Mas ela já não gritava. 
 
‐ Não olhe, ‐ rouquejou ele. ‐ Por favor, te peço... 
 
Ierne mordeu o lábio e abaixou a cabeça. As roupas rasgadas mostravam o seio, cortado com um risco 
vermelho. Ver isso era o mais doloroso de tudo, e ele rangia os dentes por não poder fazer nada. 
 
Ele  gritou  somente  quando  uma  águia  enorme  voou,  veloz,  para  baixo,  em  direção  a  Ierne.  Mas  o 
pássaro  não  lhe  deu  atenção  ‐  já  havia  escolhido  a  vitima.  Como  num  pesadelo,  ele  viu  como  o  bico 
curvo  bateu  no  pescoço,  de  lado.  O  sangue  jorrou  num  chafariz,  e  o  pássaro  subiu,  com  gritos  de 
desagrado.  O  corpo  dele  se  contorceu,  como  se  ele  quisesse  se  soltar,  atirar‐se  a  ela...  Ierne  não  se 
mexia,  o  seu  corpo  balançava  como  uma  boneca  de  pano.  Pareceu‐lhe  que  ali,  sob  a  roupa  negra 
rasgada,  está  uma  outra  –  rubra,  terrivelmente  vermelha.  Ele  pensou  ‐  Ierne  já  está  morta,  mas 
subitamente  ela  ergueu  a  cabeça,  e  ele  viu  mais  uma  vez  o  rosto  dela,  coberto  de  sangue.  Os  lábios 
sussurraram  alguma  coisa,  sem  som.  Ele  entendeu  ‐  o  que.  Depois  a  cabeça  dela  caiu  sobre  o  peito. 
Acabou. 
 
“...Eu te esperarei...” 
 
Quando  a  sentença  estava  sendo  cumprida,  Nienna  surgiu  ao  lado  do  trono  de  Manwë.  Lagrimas 
corriam pelo seu rosto, e ela implorava que o rei do Mundo concedesse a morte aos condenados, pois, 
dizia ela, é inadmissível torturar assim os viventes. 
 
‐ Lembre, eles são Crianças de Ilúvatar! 
 
‐ Eles negaram as dádivas do Único, e ele os renegou. Eles estão amaldiçoados. E que seja assim com 
todos aqueles que se atreverem a ir contra os Poderes! 
 
Nienna queria dizer mais alguma coisa, mas Manwë falou friamente: 
 
‐ As ervas daninhas devem ser arrancadas junto com as raízes! 
 
‐ Tenha piedade de Melkor, ele é seu irmão! Ordene, pelo menos, que vedem novamente os olhos dele! 
Que ele não veja isso! 
 
‐ Não. Ele deve ver. 
 
‐ Eu te imploro, tenha piedade... 
 
Manwë ficou pensativo, depois, sorrindo, respondeu: 
 
‐ Está bem. Eu farei a sua vontade. 
E, erguendo o olhar com piedade fingida, suspirou: 
 
‐ Piedade, até para aqueles que não merecem ‐ é o caminho de todos que carregam o fardo de serem 
Guardiões de Arda!.. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 135 
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Por isso, Melkor não viu a morte dos Elfos do Escuro. O levaram antes para as Mansões de Mandos, a 
prisão subterrânea, de onde ninguém pode escapar: nem Vala, nem Maia, nem Elfo, nem Mortal. O pior 
de tudo ‐ a tortura com o desconhecido. E as horas se arrastavam, assemelhando‐se a séculos, e depois 
não  havia  mais  nada,  e  ele  entendeu,  e  sussurrou:  “Eles  morreram...”,  e  caiu,  sem  forças,  no  chão  de 
pedra... 
 
“Isso o quebrará, ‐ pensava o Rei do Mundo. ‐ Ele é orgulhoso demais, poderoso demais, vê demais...” O 
Senhor de Arda não precisava nem de um Melkor livre, nem de um Melkor servo. Ele precisava de um 
escravo, sem vontade própria, ferramenta obediente nas mãos do Único. Mas ele julgava pensando em 
si mesmo, e por isso errou... 
 
Tudo  foi  contra  a  honra.  E  o  castigo  de  Melkor,  e,  mais  ainda,  o  julgamento  dos  Elfos  Escuros.  A 
Guerreira via aquela, que não conseguiu matar. Agora ela se amaldiçoava pela compaixão. “Seria melhor 
se  eu  a  matasse  então...  Ela  morreria  rápido,  sem  sofrimento...”  O  Guerreiro,  olhando  para  os 
condenados, sussurrava surdamente a irmã: 
 
‐ Eu lhes prometi a liberdade e a honra, e agora, quem sou eu? Mentiroso e traidor, um lixo... 
 
A eles era permitido somente combater; não era permitido ter opinião própria. 
 
E quando acabou, Guerreiro dirigiu‐se a Tulkas novamente: 
 
‐ Isso é contra a honra. 
 
Desde  aquele  tempo,  os  Guerreiros  não  apareciam  mais  nas  mansões  de  Tulkas  ‐  nem  para  a  guerra, 
nem para a festa. A sua casa eram agora os jardins de Irmo, e lá a Guerreira conheceu as lágrimas. 
 
Os corpos foram arrastados pra baixo. O cadáver do Artífice era arrastado pelo caminho de diamantes, e 
lascas  grudavam  no  corpo  mutilado,  vestindo‐o  em  escamas  brilhantes,  como  um  peixe.  Eles  ficaram 
deitados, em sudários de diamantes, e um dos Maiar inspecionava os corpos por ordem dos Valar ‐ se 
não sobrou algum talismã. Foi ele que notou o anel no dedo do Artífice. Mal pode decepar o dedo do 
morto, quando alguém lhe deu um tapa forte, jogando ele no chão. 
 
‐ Se retire! ‐ urrou Guerreira, apertando os punhos. Maia sabia que é melhor não se meter com ela, e 
saiu correndo. 
 
Guerreira abaixou‐se ao lado do corpo de Ierne e ficou olhando longamente para o rosto morto, com um 
sentimento  novo  e  ainda  desconhecido.  E  depois  ela  viu  a  pedra.  “Você  me  perdoe.  Levarei  de 
lembrança... não esquecerei, verdade! Não perdoarei. E você ‐ me perdoe...” 
 
Ela saiu rapidamente, sem procurar caminho, sentindo cada vez mais uma dor estranha. Algo apertava 
a  garganta,  doía  nos  olhos...  Ela  já  estava  correndo,  sem  entender  o  que  estava  acontecendo  com  ela, 
apertando a pedra na mão. 
 
Ela caiu sobre a relva verde na penumbra acinzentada e dourada do jardim encantado, e então um som 
estranho sai da sua boca, como o de um animal ferido. Os olhos ficaram úmidos, tudo ficou manchado, e 
não havia como parar isso. Alguém tocou os seus ombros trêmulos. Irmo a olhava suavemente. 
 
‐ O que há comigo... o que é... eu estou morrendo? 
 
‐ Não, são lágrimas. Você está renascendo. Chore, chore. É preciso conhecer isso. Chore, minha filha. É 
necessário. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 136 
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... E sobre a lagoa, os sonhos de Ayo dissolviam‐se como uma neblina, e os quatro Maiar viram tudo o 
que  aconteceu  em  Valinor.  E  o  Caçador  ficou  petrificado,  e  a  Folha  Primaveril  fechou  o  rosto  com  as 
mãos, horrorizada, e o dos Olhos Dourados não conseguia conter as lágrimas. E Ayo não falava nada. 
 
...E no Livro, que o Gorthaur segurava nas mãos, surgiam palavras, traçadas por uma mão invisível. Essa 
narração  estava  escrita  com  sangue  e,  lendo  as  linhas  escuras,  o  Maia  Gorthaur  chorava  num  pranto 
sem lágrimas. Ódio e ira ardiam em seu coração, e ele jurava que os Elfos, os Maiar e os Valar pagarão 
pela dor do Mestre e pela morte dos Elleri Ahe. E naquela hora negra, ele amaldiçoou Finwë e toda a sua 
casa. 
 
“Inicialmente, tal como Melkor, Vala Aulë era um criador. Mas, temendo a ira de Ilúvatar, ele renegou as 
próprias  criações  e  tentou  destruí‐las;  naquele  tempo,  Maia  Gorthaur,  cujo  nome  era  naquele  tempo 
Artano  Aulendil,  o  primeiro  dos  discípulos  de  Aulë,  e  igual  ao  próprio  Ferreiro  em  habilidade,  o 
abandonou, pois era‐lhe repugnante a covardia de Vala. E agora, o medo de desobedecer a Manwë e a 
Eru fez de Aulë um carrasco. E depois que ele forjou Angainor e as correntes para os Elfos do Escuro, 
ele perdeu o dom de criar, e não podia criar mais nada, pois o carrasco não pode ser um criador”. 
 
Assim termina a narração sobre os Elleri Ahe. Ela não é conhecida nem por Elfos, nem por Homens do 
Ocidente: nem os Valar, nem os Maiar contaram isso a eles. Por isso, nada diz sobre os Elfos Escuros o 
“Quenta Silmarillion”, e os sábios não dizem nada. Só entre os  descendentes de Finwë, rei‐carrasco, é 
contada a história sobre o Julgamento de Valinor. E nem os Valar, nem os seus servos, em sua maioria 
não querem nem saber, nem lembrar. 
 
...Não restaram mais nomes. Foi mandado esquecer. 

O Livro Negro de Arda  Página 137 
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TERCEIRA PARTE. A COROA DE FERRO 
 
O SENHOR DO DESTINO E O SENHOR DO ESCURO. ERA DAS ÁRVORES. 
O CATIVEIRO DE MELKOR. ANOS 502­802 DO DESPERTAR DOS ELFOS 

Em Valinor, o tempo passava para poucos. Em primeiro lugar para Námo, Senhor dos Destinos de Arda, 
apelidado de Mandos. Ele sabia, diferentemente dos outros, sentir o tempo. Para ele, existia o Passado e 
o Futuro, e não o eterno Sempre. Talvez, assim era porque nas suas Mansões apareciam e aguardavam a 
partida os Homens, e depois seguiam para o Desconhecido, para não retornar mais; e os seus destinos 
não  estavam sob  o  domínio  do  Senhor do  Destino.  A  sua  memória  continha  tudo  o  que  ele  descobria 
com eles. Seu pensamento e a visão ‐ nisso estava o seu poder, mas a Memória era a fonte deste. 
 
Atando uns aos outros os fios disjuntos dos eventos, ele os uniu numa corda única, que cantava com a 
voz  de  Arda  no  coro  eterno  de  Ëa.  Parecia  que  ele  a  sente  com  a  mão,  estendida,  ecoando  a  cada 
pensamento, a cada sussurro do mundo. E pela frente ‐ novamente fios, fios, e qual deles será a base 
para uma nova corda, e quantos fios se enrolarão num único ‐ quem sabe? Como cantará essa corda, e 
quem a fará cantar? Námo sorriu involuntariamente. Senhor dos Destinos, criador da Corda, que tece... 
Vairë. V – a – i – r – e. Não é ela que é a tecelã dos destinos, é ele – o tecelão. E Vairë vê somente aquilo 
que é, não aquilo que pode ser. Não, não será, mas poderá ser. Milhares de fios, e ele sente todos eles. 
Grande é Eru, se o plano dele é isso, na possibilidade de achar um único fio, mais sonoro, que dá a voz 
para toda a corda. Interessante, quem mais ouve essas canções de Arda? Eru as ouve? Ele se alegra com 
o desenho que surge sobre o tecido que ele criou? Námo baixou a cabeça pesadamente. Ele já notou há 
tempo que nem tudo lhe é compreensível e nem tudo é agradável nos feitos dos Valar. Mas quem é ele 
para julgá‐los? Eru fala somente com Manwë. Ele, Rei do Mundo, sabe tudo, e a canção do coro é bela e 
ordenada  somente  quando  é  regida  por  uma  harmonia  única.  Mas  ‐  o  plano  final  de  Eru?  Significaria 
isso que todos os fios darão no mesmo, e a escolha da canção é somente uma sombra? Se for assim, o 
que  ele,  Námo,  faz  aqui?  Por  que  ele  é  o  Senhor  do  Destino?  Ou  ele  deve  fazer  tudo  dar  no  mesmo, 
fazendo o mundo cantar assim planejou Eru, e não ouvir a música? Quem dirá?.. 
 
...Ele escreveu as primeiras linhas do seu Livro nos tempos imemoriáveis, quando ele mesmo ainda não 
compreendia o porquê. E ‐ teve medo da própria descoberta. Assim como temia a própria visão. Assim 
como temia mais tarde o poder das próprias palavras. Ele escrevia, e esses sinais ‐ que expressavam os 
pensamentos ‐ de onde eles vieram? Eles surgiam sozinhos nas páginas, como se alguém guiasse a mão 
dele. Námo não se considerava um criador, e por isso jamais admitia que foi ele mesmo que os criou. 
Então ele pensou ‐ é uma dádiva de Eru, e glorificou o Único em seu coração. E desde então, ele anotava 
os seus pensamentos, a sua memória, as suas visões no Livro... Quando é que aconteceu assim, que seus 
próprios  pensamentos  o  assustaram?  Ele  voltava  sempre  a  uma  mesma  recordação,  que  feria 
dolorosamente  a  sua  consciência.  Mas  não  queria  livrar‐se  dela,  pois  o  Senhor  dos  Destinos  deve 
lembrar tudo. 
 
Isso  foi  há  muito  tempo,  antes  ainda  dos  Homens  olharem  para  o  rosto  do  Sol.  Námo,  desde  o  início, 
surpreendia‐se e maravilhava‐se com a duplicidade do existir, na qual consistia a essência da vida de 
Arda. Ele a encontrava em tudo, até no mais simples, e lhe trazia alegria buscá‐la em todos os lugares e 
estudar  as  suas  diferentes  faces.  Foi  então  que  ele  pensou  sobre  o  Equilíbrio  pela  primeira  vez,  e 
maravilhou‐se com a profundidade do plano do Único, que criou algo assim, e com o eterno movimento 
do Equilíbrio, que dá vida a Arta. Mas gradativamente ele começou a perceber que Manwë substitui o 
Equilíbrio pela simetria morta. Manwë ‐ Rei do Mundo, eleito de Eru... Então essa é a vontade do Único? 
Então ele, Námo, está errado? Ele ainda acreditava incondicionalmente em Eru ‐ e parou de acreditar 
em si. Mas ‐ não parou de pensar. “Não há nada de mal nos meus pensamentos, se eu os guardar para si. 
Que eles estejam no meu Livro. Ninguém verá, e nenhum mal resultará deles”, ‐ pensava ele. O primeiro 
passo  estava  feito.  Agora,  era  necessário  continuar  andando.  Ou  pensar  e  agir  por  si  mesmo,  ou 
obedecer a Eru. E Námo acreditava em Único e em seu regente Manwë. Por isso ele negou a si mesmo. 
Mas ele não podia negar a Duplicidade. Ela estava a sua frente – sempre e em todos os lugares, e por 

O Livro Negro de Arda  Página 138 
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mais que ele tentasse fugir dela, não a ver, continuava a ver. E, assustado, ele compreendeu que, além 
dele, só um dos Valar consegue ou se atreve a ver a Duplicidade e não esconde isso ‐ Melkor. 
Desde  o  inicio,  Námo se  inclinava  a  ele,  vendo  nele  algo  próximo de  si,  mesmo  que  não  entendesse o 
quê. E ao mesmo tempo tinha medo dele. Ou de si? Ele compreendia, em seu espírito, que Melkor estava 
certo  em  seus  feitos,  mas  Manwë  dizia  que  isso  é  contra  a  vontade  de  Eru.  E  essa  duplicidade  o 
atormentava. Então ele, não suportando mais isto, resolveu escolher um dos lados, e escolheu ‐ a Luz. 
Assim ele pensava então. E tornou‐se hostil a Melkor. Ele escolheu Eru. Por isso ele não disse nenhuma 
palavra  contra  a  sentença  dos  Elfos  do  Escuro.  Ele  sabia  prever,  e  o  terror  dominou‐o  quando  ele 
entendeu o que farão com eles, mesmo que ninguém ainda tinha dito. “Não. Não. Isso não pode ser,  ‐ 
argumentava  ele  consigo  mesmo,  ‐  Eru  é  piedoso.  Isso  são  novamente  os  meus  pensamentos. 
Expulsarei, expulsarei eles. Nada de ruim acontecerá. Eru sempre está certo”. E ao mesmo tempo, o seu 
espírito convulsionou‐se dolorosamente, e os argumentos covardes apagavam‐se na onda crescente do 
terror. E quando Melkor caiu de joelhos, Námo não agüentou. Foi embora. O Rei do Mundo, jubiloso, não 
notou a sua partida. 
 
 “Ele  humilha‐se.  Humilha‐se  por  outros  ‐  ele,  o  Inimigo,  o  Mal,  salva  os  outros...  Por  mais  que  sejam 
malignos os seus feitos, mas este ‐ é mal? Aquele que faz o mal, faz o bem para os seus discípulos... Mas 
ele não pode, ele não é capaz, não deve, ele é o Mal!” A Duplicidade novamente estava perante ele. Não 
há saída. Não se pode não ver. Isso foi um choque. Mas um choque ainda mais terrível o aguardava. Ele 
caminhava,  em  sofrimento  e  confusão,  pelas  suas  mansões  subterrâneas  imensas  e,  sem  saber  como, 
entrou na sala destinada aos Homens. 
 
...Eles  surgiram  como  um  relâmpago.  Em  vestes  negras  ensangüentadas  ‐  assim eram  os  seus corpos, 
abandonados  sem  um  enterro  no  campo  de  batalha.  Assim  eles  apareceram  a  ele  –  nas  Mansões  dos 
Homens. E, falando com dificuldade, ele falou com uma voz que não era dele: 
 
‐ Quem... Por quê aqui... 
 
Os seus lábios tremiam. E ele ouviu a resposta, que soava dentro dele, em sua mente. 
 
‐ Nos somos Mortais. 
 
Ele não pôde pronunciar mais nada. Ele os reconheceu. E o ódio ergueu‐se numa onda ardentemente 
fria ‐ ódio a Melkor, que os levou a esse fim. Ódio a Manwë ‐ aquele que pronunciou a sentença. Ódio 
aos seus coirmãos, que os condenaram a morte. Ódio de si mesmo ‐ por não se atrever a acreditar em si. 
E este foi o segundo passo para longe do caminho de Eru, pois ele se atreveu a ponderar os feitos do Rei 
do Mundo, desde o início correto em todos os seus feitos. 
 
Ele  não  teve  tempo  de  perguntar  mais  nada  –  a  voz  de  Ëonwë  o  convocava  para  a  sala  do  trono.  Ele 
subiu para a superfície. Ali já estavam os quatro ‐ Ëonwë e, entre Tulkas e Aulë ‐ Melkor. Námo olhou 
para todos com pesar e perguntou, sombriamente: 
 
‐ O que o trouxe até aqui, arauto do Rei do Mundo? 
 
E Ëonwë, elevando a voz, pronunciou a mensagem de Manwë. 
 
‐  “Em  sua  piedade  imensa,  Eru,  o  Único,  Pai  de  Tudo  o  que  Existe,  com  pena  de  Arda,  ordena  aplicar 
uma pena exemplar a Melkor, aquele que se negou a seguir o caminho de Eru. Por isso, o Rei do Mundo 
Manwë Súlimo, regente do Único em Arda, ordenou encarcerar o rebelde por três séculos, para livrar 
Arda das suas maldades e dar‐lhe a possibilidade de repensar tudo e se arrepender. Ele ordena levá‐lo, 
acorrentado, para as Mansões de Mandos, onde este permanecerá”. Eu, Ëonwë, boca de Manwë, disse. 
“Mandos,  o  Carcereiro”,  ‐  o  rosto  de  Námo  ficou  rubro,  como  se  fosse  tocado  por  um  ferro  em  brasa. 
“Por causa de Melkor, essa alcunha grudará em mim para sempre”, ‐ pensou ele com raiva. 
 
‐ O meu nome é Námo, ‐ disse ele, e Ëonwë empalideceu sob o seu olhar. 

O Livro Negro de Arda  Página 139 
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Durante  todo  este  tempo,  Melkor  permaneceu  imóvel,  olhando  além  deles.  Dor  e  terror  estavam 
escritos em seu rosto. Suas mãos pendiam. Ele não ouvia nada ‐ ouvia algo além... 
 
‐ Sigam‐me, ‐ resmungou Námo. 
 
Tulkas empurrou Melkor. Aquele obedecia, sem vontade própria. Ele não estava ali. Eles desciam para 
as  profundezas  do  corpo  de  Arda,  para  a  cela  escura,  onde  não  havia  nem  luz,  nem  som.  Tulkas 
segurava a tocha, enquanto Aulë prendia na parede uma argola, para acorrentar o prisioneiro. Melkor 
durante todo este tempo permaneceu imóvel. Estava feito. Aulë e Tulkas já estavam na soleira, e Námo 
pronunciou então as palavras pelas quais se amaldiçoaria depois: 
 
‐ Criou o Escuro, delicie‐se com ele agora! 
 
 “Por quê eu fiz isso? Por quê ferir mais ainda o vencido?” ‐ pensou depois de instantes. Essas palavras 
chamaram a atenção de Melkor. Ele levantou a cabeça, e duas lâminas de fogo gelado acenderam‐se na 
frente de Námo. Pareceu‐lhe que está perdendo a consciência ‐ a sua mente parou de obedecer‐lhe e ele 
mal compreendeu as palavras: 
 
‐ Se não houvesse o Escuro, como você conheceria a Luz? 
 
Námo  recuou  bruscamente.  A  ultima  coisa  que  ele  viu  antes  de  bater  a  porta  era  Melkor,  em  pé,  de 
olhos fechados, apertando os punhos, mãos acorrentadas. 
 
Ele  voltou  para  a  Sala  dos  Homens,  mas  os  Elfos  do  Escuro  não  estavam  mais  lá.  Ele  começou  a 
trabalhar  novamente  com o  Livro  dele  naqueles  tempos.  Pois tudo  o  que  havia  acontecido  estava  em 
desacordo  com  a  predefinição  de  Valinor.  Elfos  do  Escuro  –  Mortais  surgiram  simultaneamente  aos 
Eldar,  e  nem  Eru,  nem  Manwë  souberam  disso.  E  não  puderam  fazer  nada,  além  de  matá‐los  ‐  “para 
retornar  ao  Plano  de  Eru”.  Piedosos.  E  ele  mesmo?  Ele  apoiou  Manwë...  Námo  gemeu  de  raiva  de  si 
mesmo.  Novamente  a  maldita  Duplicidade!  Mas  ele  escolheu!  Escolheu?  Não.  Ele  entendeu  –  ainda 
agora  ele  pode  escolher.  Melkor  o  atormenta?  Há  dois  caminhos  ‐  segui‐lo  ou  destruí‐lo,  para  que  a 
consciência não torture, eternamente lembrando, com a existência daquele, da sua, de Námo, covardia. 
Não, tudo menos isso. Seguir Melkor? Námo compreendeu com horror que é esta a opção que ele deseja 
escolher. E tem medo. E então pensou ‐ por quê não o seu próprio caminho? 
 
 “Duplicidade?  Que  seja”.  Que  ela  esteja  em  mim.  Eu  irei  pelo  limite,  o  limite  fugaz  do  Equilíbrio, 
levando‐o nas mãos, como um cálice precioso com a bebida da vida. Luz? Se isso é Manwë, então não é a 
Luz. Não é o meu caminho. Escuro? Não consigo. Não sei porque, mas não consigo. Limite, onde a Luz e 
o Escuro se dão as mãos, mantendo o Equilíbrio... não sei... Somente aqueles conhecerão a Luz, que já 
conheceram o Escuro... Ele disse assim... E eu os conheço?” Ele quis perguntar, mas a quem? Manwë? 
Não,  nunca.  Eru?  Por  quê  não?  Não  seria  ele  um  Ainu,  Senhor  dos  Destinos?  E  ele  chamou  a  Eru.  Ele 
sabia de alguma forma que o Único o ouvia. Mas não obteve resposta. E então, pela primeira vez, surgiu 
a louca e assustadora idéia de se dirigir a Melkor... 
 
Ele não foi logo até ele. Naqueles anos, teve muito trabalho. Nas suas mansões surgiram os Elfos, e junto 
a eles ‐ Orcs. E novamente surgiu a duplicidade oculta da existência ‐ será que os Orcs são o segundo 
“eu” dos belos Filhos de Ilúvatar? Ou foi mesmo Melkor que os criou? Assim dizia Manwë, mas Námo 
não acreditava mais. Ele lembrava dos Elfos do Escuro. E então ele teve coragem de escrever no Livro a 
história deles. E a história da primeira guerra de Arda... 
 
Naquele tempo ele ainda freqüentava às vezes as festas dos Valar, mas a alegria era‐lhe cada vez mais 
difícil. E por isso ele ficou quase feliz, encontrando Nienna ao retornar de uma festividade. Em Valinor, 
a evitavam – a sua eterna tristeza não combinava nem um pouco com a alegria dos Imortais. Estranha 
era ela ‐ irmã de Námo Mandos e Irmo Lórien. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 140 
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Ela olhou nos olhos do irmão, fazendo este se sentir desconfortável subitamente. 
‐  Você  não  tem  pena  de  Melkor,  irmão?  ‐  perguntou  ela,  baixo,  e  foi  embora  sem  esperar  resposta.  E 
então  Námo  compreendeu  que  está  procurando  algo  para  justificar  consigo  mesmo  a  vontade  de 
conversar com Melkor. E ele a encontrou. 
 
Ele  descia  pelas  escadas  infinitas,  caminhou  por  corredores  infinitos,  passando  por  pesadas  portas 
trancadas,  para  baixo,  cada  vez  mais  próximo  do  coração  de  Arda,  até  a  cela  de  Melkor.  Aqui  não 
penetrava luz. Aqui não havia sons. Aqui o tempo seguia com dolorosa lentidão até para os Imortais, e a 
morte parecia ser a salvação, não o mal. Mas nem isso foi dado a Melkor ‐ por enquanto. 
 
Námo  via  muito  bem  na  escuridão,  mas  aqui  até  ele  andava  com  dificuldade,  tropeçando.  E  pela 
primeira vez ele pensou ‐ e como Melkor se sente lá? Cem anos sozinho consigo mesmo ‐ o mais terrível 
interlocutor...  Esse  pensamento  causou‐lhe  mal‐estar.  Parou  em  frente  a  porta.  Ela  se  abriu 
silenciosamente a um gesto, mas Námo não entrou, intimidado, mas parou na soleira, ouvindo o silêncio 
e tentando em vão ver algo nas trevas. 
 
‐ Melkor, ‐ chamou ele, indeciso, assustando‐se com o som da sua voz. ‐ Melkor, está aqui? 
 
Soou uma curta risada maldosa: 
 
‐ E aonde é que eu posso estar? Estou acorrentado, ‐ mais uma risada. ‐ Aulë deu o melhor de si. 
 
A voz soava um pouco rouca, como se Melkor perdesse o costume de falar durante os anos de solidão. 
Námo não respondia, sem saber como começar a conversa, mas Melkor facilitou a sua tarefa. 
 
‐ Não foi à toa que você veio aqui, Mandos. Pergunte, eu responderei. 
 
A adicionou, com zombaria: 
 
‐ Um visitante educado não deixará as perguntas do anfitrião sem resposta! 
 
Námo  engoliu  a  ofensa  ‐  ele  compreendia  que  Melkor  tem  todo  o  direito  de  falar  assim.  Ele  tomou 
coragem e fez a pergunta que o trouxe até lá. 
 
‐ Melkor, conte‐me, porque você criou os Orcs? 
 
‐ Ah, então já apareceram nos seus domínios... E por quê você acha que eu os criei? 
 
‐ Assim diz Manwë. 
 
Outra risada maldosa. 
 
‐ Claro, o que se pode esperar de bom do vilão Melkor! Ah, pobres Crianças de Ilúvatar! 
 
De  repente  ele  calou‐se,  e  depois  continuou  com  uma  voz  totalmente  diferente  ‐  com  uma  tristeza  e 
amargura oculta: 
 
‐ Eu não sou o seu criador, mesmo que uma parte da culpa seja minha. 
 
‐ Mas quem, então? 
 
‐ Medo. Medo e escuridão. 
 
‐ Mas você não é o criador da escuridão e do medo? 
 

O Livro Negro de Arda  Página 141 
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Depois de um breve silêncio: 
‐ Námo, você tem medo do Escuro? 
 
Námo pensou. 
 
‐ Não, eu acho. Eu estou acostumado a escuridão. 
 
‐  Não  confunda  escuridão  com  o  Escuro.  A  escuridão  vem  do  Escuro,  mas  a  Luz  também  nasce  no 
Escuro. É preciso saber ver, somente... Você vê estrelas? 
 
‐ Sim, mas... 
 
‐ Há muito tempo? 
 
Námo novamente ficou pensativo, e subitamente estremeceu ‐ nesse momento ele percebeu que as via 
sempre, desde antes do nascimento de Arda. Como se uma cortina caísse entre a visão e a percepção. 
Por quê agora? Seria ‐ Melkor? 
 
Melkor compreendeu o silêncio dele. 
 
‐ Então você também pode ver. Mas tem coragem? Conseguirá entender que o Escuro existia antes de 
nos, que não foi criado por mim? Eu posso somente vê‐lo e compreendê‐lo, e ajudar aos outros a verem 
e conhecerem‐no. O Escuro não gera medo naquele que tem força de vontade para não fugir dele, mas 
olhar atentamente e compreender. E as Crianças de Ilúvatar mostraram‐se fracas... em sua maioria. E 
agora quase todos eles vivem sob cuidado dos Valar, não por si mesmos... E os Orcs ‐ fazer o que, são tão 
imortais quanto os Elfos. Eles foram gerados pelo medo e vingam‐se de todos pelo seu medo; medo é a 
sua essência, medo é a sua arma... As criações de Eru são perfeitas em tudo ‐ sábios, belos, corajosos... 
Mas  eles  nunca  entenderão  preço  e  o  valor  da  vida,  pois  não  foi  lhes  dada  a  morte.  E  eles  não 
conhecerão  inteiramente  o  bem  e  o  mal,  pois  em  qualquer  caso  não  haverá  punição  para  eles.  Em 
essência,  eles  são  iguais  aos  Orcs,  por  que  odeiam  assim  uns  aos  outros;  e  esses,  e  aqueles  são  a 
maldição de Arda. 
 
Melkor  pronunciava  essas palavras com uma  amargura  cruel,  e  quando  ele  acabou,  Námo  perguntou, 
temendo a própria pergunta: 
 
‐ Melkor, Elfos do Escuro... eu os encontrei – no Salão dos Mortais. Disseram ‐ somos Mortais... Mas os 
homens devem chagar depois dos Elfos... Não, não é disso... 
 
Ele demorou para responder: falou rispidamente, como se  atirasse as palavras no rosto de Námo: 
 
‐  Eu  não  falarei  sobre  eles  com  você.  Você  veio  saber  dos  Orcs  ‐  soube.  Agora  vá.  Você  pode  ter 
problemas por conversar comigo. 
 
‐ Melkor, se permitir, eu virei de vez em quando para falar com você. 
 
Em resposta – mais uma risada maldosa: 
 
‐  Se  permitir!  O  Grande  Senhor  dos  Mortos  pede  permissão  a  insignificante  Melkor!  Não,  Mandos,  eu 
não quero nem problemas para você, nem a piedade de Manwë. Vá embora. 
 
Námo  não  via  o  rosto  de  Melkor  nas  trevas.  Mas  pareceu‐lhe  que  Melkor  o  via.  Ele  partiu  com  um 
sentimento estranho ‐ inacreditável mistura de dor, esperança, pesar e alivio. “Melkor, ‐ pensava ele. ‐ 
Sim, Manwë escolheu bem o castigo para ele. A ele não há nada pior do que ser privado da capacidade 
de criar. O que quer que saia das suas mãos ‐ seria possível corrigir o espírito com uma punição? Talvez, 
melhor fosse entender... E agora ele está com raiva, e fomos nos que o fizemos assim. Temo agora que 

O Livro Negro de Arda  Página 142 
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seu poder sirva somente ao mal agora. E ele realmente é o mais  poderoso entre nos”. Havia somente 
uma coisa da qual Námo tinha certeza ‐ ele ainda virá aqui muitas vezes. 
 
Algo aconteceu com ele depois do primeiro encontro com Melkor. Ele entendeu, o que, somente depois 
de  ter  saído,  finalmente,  do  portão  das  suas  Mansões.  Ele  quase  ficou  cego.  Luz.  Luz  do  céu  ‐  ele 
compreendeu que justamente isso é Luz ‐ e não aquilo que jorrava das Árvores de Valinor! Námo quase 
gritou de alegria. Aconteceu algo grandioso! Ele desejou compartilhar a sua alegria com todos os outros, 
ele  pensava  ‐  é  uma  dádiva  de  Eru,  e  todos  sabem  disso,  mas  ninguém  o  compreendeu.  Ninguém  viu 
nada. Ele notou o olhar assustado de Manwë e de repente soube ‐ Manwë tem medo dele, Námo! E o 
pensamento  herético  de  que  ele  talvez  seja  mais  poderoso  do  que  o  Rei  do  Mundo,  surgiu  em  seu 
espírito, vagamente. 
 
Os pés o levaram sozinhos até o calabouço. Desta vez, ele carregava um recipiente de cristal com uma 
estrela cadente, e pela primeira vez desde o julgamento viu o rosto de Melkor. O Vala Rebelde estava 
sentado,  encostado  na  parede.  Ele  fechou  os  olhos  ‐  desacostumou‐se  a  luz.  Os  seus  cabelos  estavam 
grisalhos,  e  rugas  marcaram  os  cantos  da  boca.  As  mãos  com  pesadas  correntes  estavam  deitadas 
impotentemente sobre os joelhos. Isso era tão artificial, tão absurdo ‐ mãos destinadas a criar estavam 
presas, para que não consigam criar nada... Námo suspirou. Melkor, notando isso, perguntou‐o: 
 
‐ O que há com você, Senhor dos Destinos, Senhor dos Mortos? 
 
A  sua  voz  era  calma,  não  como  da  outra  vez.  Pareceu  a  Námo,  que  Melkor  o  esperava.  Mesmo  assim 
esperava. 
 
‐ Parece que eu vi a Luz, ‐ ou interrogando, ou talvez já com toda a certeza disse Námo. ‐ Sabe, eu sai ‐ e 
no céu há luz! Ali há algo ígneo, belo, claro! Eu me alegrava, eu falava: “Vejam, ali está a Luz!” E eles... 
 
‐ E eles não vêem nada e se assustam com as suas palavras. Sim? 
 
‐ Sim, sim! E Manwë ‐ ele temeu! O que? Não entendo... 
 
‐ Você. A sua visão. O seu poder, Námo. Você sabe ver. Você se atreve a ver. Você é mais poderoso do 
que  eles,  ‐  na  voz  de  Melkor  soavam  notas  suaves,  e  Námo  notava  na  sua  fala  os  ecos  quase 
imperceptíveis  de  alegria  e  surpresa.  ‐  Você  é  poderoso,  Námo.  Desde  o  início,  você  comanda  os 
Destinos  de  Arda.  E  agora  você  se  atreve  a  ver  e  saber  tudo  que  quer  ‐  não  aquilo  que  Manwë  lhe 
permite. 
 
‐  Mas...  talvez  é  uma  alucinação...  ‐  Námo  não  acabou  de  falar.  “Alucinação  enviada  pelo  Inimigo”,  ‐ 
queria  dizer  ele,  mas  o  Inimigo  –  eis,  aqui,  preso,  impotente.  Námo  tropeçou,  escolhendo  as  palavras 
desesperadamente, mas Melkor, compreendendo a sua confusão, sorriu e respondeu: 
 
‐ Não, não é uma alucinação. E você não é o único. Mas você vê e se atreve a ver, os outros fecham os 
olhos propositalmente. Pois Eru não ordenou, ‐ uma zombaria venenosa soava em sua voz. ‐ Nada. Se 
não Valar, Maiar verão. Como Gorthaur, ‐ abruptamente terminou ele. 
 
‐ E quem dos Valar vê, alem de você? ‐ perguntou Námo. 
 
‐ Você, penso que o seu irmão e a sua irmã. Talvez Estë. Vêem, mas ainda não percebem. E Varda. 
 
A sua voz ficou seca e desagradável quando ele pronunciava o último nome. 
 
‐ Varda? Mas quando eu vim... quando eu disse... 
 
‐ Certo. Ela vê, mas possui o poder de vedar os olhos dos outros. Assim é a vontade de Eru. Mas você é 
mais poderoso. 

O Livro Negro de Arda  Página 143 
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‐ De onde você conhece a vontade de Eru? Ele falou contigo? 
 
Melkor olhou‐o com um pouco de zombaria, e Námo sentiu toda a inutilidade da sua pergunta. 
 
‐ Sim, claro. Senão Eru não teria medo de você. 
 
‐ E de onde você sabe que Eru me teme? 
 
‐ N‐não sei... Sei e pronto... Por quê? ‐ perguntou Námo surpreso. 
 
‐  Mas  assim  deve  ser.  Nos  somos  parte  da  mente  e  dos  planos  de  Eru.  E  qualquer  um  de  nos, 
encontrando  a  si,  pode  igualar‐se  a  Eru  e  ultrapassá‐lo.  Só  que  nem  todos  se  atreverão.  Você  ‐  sim. 
Námo, acredite, você é poderoso, e ninguém pode se igualar a você em Valinor. Então deixe de temer, 
acredite em si!.. 
 
Agora, as conversas com Melkor já se tornaram para Námo uma necessidade, como, parecia, também o 
eram para o prisioneiro. E depois de cada conversa, Námo notava que a sua maneira de ver o mundo 
está  mudando.  Não  por  causa  de  Melkor,  não,  Námo  começava  a  compreender  sozinho,  e  buscava 
somente uma confirmação com o Vala Escuro. Parecia‐lhe que ele segue por um caminho estreito, e dos 
dois lados está o abismo. Ele pisa devagar e com cuidado, mas avança, e Melkor estende‐lhe a mão para 
que ele não caia... Ele aprendeu a compreender a Duplicidade e não negar nenhuma das suas faces e, o 
mais  importante,  ele  descobriu  a  essência  do  Equilíbrio  dos  Mundos  e  via  agora  o  seu  movimento 
eterno e a sua mutabilidade ‐ aquilo que há muito se transformou em imutabilidade em Valinor. Aqui, o 
Equilíbrio foi sacrificado a Predeterminação. Ele agora olhava diferentemente para os Valar e todos os 
seus feitos; cada vez mais nítido era o seu dom de previsão, e ele sabia que é realmente o Senhor do 
Destino, e que a sua palavra pode tornar‐se um feito. Ele entendia, agora, o que planejou Eru, e o que 
tentou fazer Melkor, e olhava as mãos acorrentadas dele com dor. Ele escrevia muito, e o Livro tornava‐
se cada vez mais grosso. 
 
Freqüentemente, ele conversava com Melkor sobre Arda, sobre Endorë. E Melkor sorria ao se recordar 
das Terras Mortais. Parecia que ele via aquilo de que falava. 
 
‐  Lá,  o  tempo  segue.  Lá  ‐  é  a  vida.  E  cada  dia  é  novo,  diferente  do  anterior.  Lá  até  as  estrelas  são 
diferentes. Não, Elfos não viverão lá ‐ eles não sabem o valor da vida, eles não compreendem a doce dor 
do  correr  do  tempo...  Aqueles  que  viverão  lá  serão  os  Homens.  Eles  chegarão.  Eles  verão  o  Sol,  e 
ninguém poderá vedar os seus olhos. Eles irão viver, e não existir. E lhes será dado o direito de escolher 
e decidir, julgar e realizar... 
 
‐ Melkor, mas se você for capaz de fazê‐los assim, você é muito mais poderoso do que Eru... 
Melkor levantou as mãos acorrentadas num gesto abrupto e estendeu a corrente. Seu rosto tornou‐se 
gélido e impenetrável. 
 
‐  Nisso,  Eru  tem  mais  poder.  Imensa  é  a  arte  de  Aulë  ‐  não  é  possível  se  soltar,  ‐  adicionou  ele,  sem 
esperanças, abaixando a cabeça. 
 
E Námo sentiu vergonha e dor. 
 
‐ Perdoe‐me, Melkor. Perdoe, se puder, ‐ falou ele surdamente e saiu da cela. E não viu o olhar abalado 
de Melkor; pois a compaixão é a arma que consegue quebrar a armadura mais resistente. 
 
Quando  ele  veio  novamente,  viu  que  Melkor  o  esperava.  Agora,  os  dois  precisavam  um  do  outro.  De 
agora  em  diante,  falavam  de  igual  para  igual.  Námo  considerava  Melkor  acima  de  si,  e  por  isso  ficou 
surpreso e feliz, quando este lhe disse que ele possuía mãos de criador. Námo olhou para os próprios 
dedos, sem compreender. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 144 
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‐ Sim, você é capaz de criar, Námo. Você ainda não tem consciência disso, mas eu vejo. Você conseguirá. 
E Aulë... ‐ ele olhou para a corrente e continuou com amargura. ‐ Essa é a sua última obra. Quando um 
criador começa a fazer correntes, ele se transforma em carrasco, e jamais criará o que quer que seja. E 
nas suas mãos ‐ eu vejo ‐ está o grande dom de criar... 
 
‐ E as suas mãos estão acorrentadas... Ate o nome lhe foi tirado, aquele que amou Arda. 
 
‐ Tal como o seu, Senhor dos Destinos. Mas para mim você é Námo, e não “Mandos, “Carcereiro”. 
 
Námo balançou a cabeça. 
 
‐ Não. Justamente carcereiro. E sou culpado. 
 
‐ Não você. Você é meu irmão, Námo. E continuará sendo‐o... ‐ Melkor calou‐se subitamente. 
 
‐  Até  mesmo  aqui  eu  vejo  as  estrelas,  ‐  quase  sussurrou  Melkor,  para  o  vazio,  e  um  pressentimento 
terrível e doloroso surgiu no espírito de Námo, e ele compreendeu que Melkor está sentindo o mesmo 
neste instante. Naquela tarde eles não falaram mais ‐ simplesmente ficaram em silêncio, sem se olhar... 
 
Ao sair, Námo quase esbarrou num dos seus Maiar, escondido atrás da porta. Aquele se encolheu contra 
a  parede  e  olhou  para  Námo,  irado,  com  medo  desesperado  e  simultaneamente  com  desafio.  Námo  o 
agarrou pelo ombro e empurrou para frente. 
 
‐ Vamos! 
 
Maia caminhou, obediente. Em cima, numa das salas, Námo fechou todas as portas. 
 
‐  Você  se  atreve!  Você  me  vigiava?  Ouvia?  Ou,  quem  sabe,  delatava?  ‐  urrava  ele,  sacudindo‐o.  ‐ 
Responda! 
 
Maia balançava a cabeça desesperadamente. 
 
‐ Não, não, Senhor! Não! Eu ouvia... e entendia... Mestre! ‐ de repente gritou ele. ‐ Te imploro, me deixe ir 
com ele! Quando o soltarem... Mestre! 
 
Námo o olhou com curiosidade. 
 
‐ Por enquanto, você ainda é o meu Maia, ‐ respondeu ele, sem pressa. 
 
‐ Mesmo se não deixar ‐ irei. Como Artano, ‐ disse Maia com teimosia. 
 
Námo fez uma carranca. O Maia, sem querer, o igualava a Aulë. 
 
‐ E você não acha, ‐ disse ele severamente, ‐ que eu posso agora ordenar prendê‐lo por desobediência? 
 
Maia recuou. O seu rosto ficou vermelho, os olhos se estreitaram de raiva e de desdém. Ele estendeu as 
mãos e atirou, por entre os dentes: 
 
‐ Chame. Que prendam. Irei de qualquer jeito. 
 
Námo riu tristemente. 
 
‐ Você, me parece, está me confundindo com Aulë. Eu o deixarei ir. 
 
‐ Mestre! ‐ Maia caiu de joelhos. 

O Livro Negro de Arda  Página 145 
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‐ Levanta! ‐ berrou Námo. E adicionou baixo: 
 
‐ Mas você voltará. 
 
“Meu Maia, ‐ pensava ele, ‐ encarnação dos meus pensamentos... Ele escolheu... Será que isso é o outro 
lado de mim? Interessante...” Námo sorriu, lembrando a teimosia do seu discípulo. 
 
‐  ...Você  disse,  tenho  mãos  de  criador.  É  difícil  acreditar  nisso.  De  vez  em  quando,  eu  mesmo  não  me 
entendo. Quem sou eu? Para que estou aqui? Qual é o meu papel? 
 
‐ Você está aqui porque amou este mundo, como todos nos. 
 
‐ E daí? Eu não fiz nada aqui. Nada aqui foi criado por mim. Para que estou aqui? 
 
‐ Mas você não planejou nada, quando nos criávamos a Música? Você não teve a sua nota do Canto? 
 
‐ Eu não o lembro. Eu não compreendo. Naquele tempo, nos não sabíamos nada sobre os Elfos e sobre 
os Homens. E agora o destino deles está em minhas mãos. Qual foi a minha parte? Eu não era necessário 
na criação de Arda. Ou eu esqueci? 
 
‐ Eu não posso te ajudar. Não sei como. É verdade. Eu sempre pensei ‐ por quê você, seu irmão e sua 
irmã, chegaram ao mundo naquele momento, quando nele ainda não havia, e nem poderia haver dor, 
mortes, sofrimentos? Por que choraria Nienna? Do que você seria o senhor? Ou você previa algo? 
 
‐ Eu não sei. Esqueci. Eu, o Senhor do Destino que tudo lembra ‐ esqueci. Não consigo lembrar... De vez 
em quando, me parece que me colocaram aqui especialmente para ser o seu carcereiro. 
 
Silêncio. 
‐  Eu  não  sei  o  que  você  viu,  o  que  criou  então,  para  assustar  tanto  o  Único,  a  ponto  de  te  fazerem 
esquecer, te privarem do direito de criar. E a sua vontade foi dominada... E ainda assim o temem... Não 
sei. 
 
‐ Até você não sabe. 
 
‐ Eu não posso saber tudo, Námo. Eu não sou o Único, ‐ sorriu. ‐ E o Único, temo eu, não contará, apesar 
de que ele é quem sabe isso ao certo. Mas não é com ele. Foi um erro fazerem de ti o meu carcereiro!.. 

O Livro Negro de Arda  Página 146 
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SOBRE FINWË E MIRÍEL. O CATIVEIRO DE MELKOR. ANOS 654­655 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
...Um  século  e  meio...  Agora,  ele  já  não  estava  mais tão  terrivelmente  solitário: Námo descia  até  a  sua 
cela freqüentemente. Mas era cada vez mais difícil ficar novamente sozinho. 
 
Dessa vez, a porta pesada não rangeu, mas ele sentiu a presença alheira antes de levantar os olhos. 
 
Uma figura esguia parou na soleira: não escura, mas prateada e cintilante, como o luar, e ele se ergueu 
num pulo antes de se dar conta do erro. 
 
‐ Miríel... O que a bela rainha dos Noldor deseja de um rebelde aprisionado? 
 
A  visão  tremeu,  como  prestes  a  desaparecer,  mas  na  voz  dele  havia  mais  dor  do  que  zombaria,  e  ela 
respondeu: 
 
‐ Não me chame assim. Chame... como antes. 
 
‐ Como? 
 
‐ Tayli. Você não se lembra... Melkor? 
 
‐ Tayli... Eu lembro de tudo. E de todos. Mas como você chegou aqui? 
 
‐ Em Mandos, não há barreiras para um espírito... Melkor. E para a memória... 
 
‐ Você lembra? 
 
‐ Lembro. Você... ‐ a figura prateada balançou, como se quisesse se aproximar. ‐ Os seus cabelos estão 
todos brancos... 
 
Ele ficou em silêncio. E de repente, um terrível pensamento: um vivo não pode penetrar na Mansão dos 
Mortos! Ela ‐ também?!.. 
 
‐ Como você achou o caminho até aqui? 
 
‐  Eles  falam  –  e  eu  dormi...  Eu...  fui;  era  tão  pesado...  O  ar  queima,  e  a  luz...  Mas  abandonar  o  filho... 
Fëanáro, ele é tão parecido... conosco... e Finwë... pois ele me ama; e eu... 
 
Ele estremeceu ao ouvir o nome odiado. Claro, ela é a esposa dele... esposa daquele, que condenou os 
últimos do povo dela!.. que zombaria... Saberia o próprio Finwë a quem havia desposado? 
 
‐  Você  como  se  o  odiasse...  Melkor,  ‐  na  voz‐murmúrio  ‐  uma  sombra  de  triste  surpresa.  ‐  Você  era 
diferente. Você não sabia odiar. 
 
‐ Acha que assim se ensina a amar? ‐ ele levantou as mãos acorrentadas, mas ao ver tristeza no rosto 
translúcido, adicionou suavemente. ‐ Perdoe. 
 
Ela continuou a falar sobre Finwë. 
 
‐  Ele  é  tão  claro,  tão  aberto  ‐  como  uma  criança...  Às  vezes  me  parecia  que  eu  sou  mais  velha;  queria 
ajudar, proteger... Será que é possível odiá‐lo? 
 
“Proteger... Até assim...” 
 

O Livro Negro de Arda  Página 147 
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Ele ficou em silêncio, depois disse, pensativo: 
 
‐ Talvez você esteja certa em algumas coisas. Pode‐se também dizer assim... Uma criança assustada... 
 
Os seus punhos apertaram‐se involuntariamente, os olhos brilharam: 
 
‐ Não posso, Tayli!.. Não posso... 
 
‐ Meu Mestre não sabia odiar, ‐ repetiu ela, e ele compreendeu por que ela pensava por alguns instantes 
antes de pronunciar o seu nome. ‐ Eu entendo... as vezes o rosto dele ficava tão estranho... é a sombra do 
seu ódio. O que ele lhe fez? – ela apertou os braços pálidos contra o peito, olhando‐o quase com súplica. 
‐ O que ele podia ter feito a você? 
 
“Claro, você não sabe, não viu aquilo”. 
 
‐ A mim? ‐ ele não pode conter uma risada seca. – A mim, ele não fez nada. Não encostou nem um dedo 
em mim. 
 
‐ Mas você o odeia... E o filho – o filho dele ‐ você também irá odiá‐lo?! ‐ com desespero gritou ela. 
 
‐ Você veio para pedir por eles? Não, eu não odiarei o seu filho, Tayli, ‐ a voz dele estremeceu, mas logo 
recobrou  a  firmeza,  soou  rispidamente,  quase  cruel.  ‐  Mas  não  me  peça  para  que  eu  perdoe  o  seu 
esposo, rainha Miríel! 
 
A figura cintilante ajoelhou‐se. 
 
‐ Não compreendo, ‐ sussurro, ‐ não compreendo... 
 
‐ Você lembra o que aconteceu com a sua irmã? 
 
‐ Orien... sim... a mataram... e Laytenn também... 
 
‐ E depois? 
 
‐ Eu não lembro... ‐ ela estava confusa, levou a mão translúcida até o rosto. ‐ Não lembro... não sei... Eu 
dormia... Depois, Senhor Irmo me pegou pela mão, e eu o segui... Ele estava triste... Havia luz, e flores ‐ 
muitas flores... bonitas... diferentes. Não como... em casa. Rainha Varda sorriu para mim e disse ‐ como 
você é bela, minha criança... E ele... Eu o vi nos jardins de Irmo. Ele era tão bonito... 
 
“Certo, bonito. Isso eu lembro. Alto, esbelto, olhos acinzentados...” 
 
‐ ...numa coroa de flores... Nos nós olhávamos ‐ como se não houvesse mais ninguém e mais nada em 
volta... Depois nos nós encontrávamos freqüentemente, e um dia eu lhe fiz uma coroa de flores brancas, 
e ele... 
 
‐ Não!.. 
 
Ela estremeceu e recuou. Ele rangeu os dentes: 
 
‐ Não! Menos isso... não é assim... 
 
‐ Que houve? 
 
“Não devo falar... o espírito é tão indefeso... mas como explicar de outra forma? Como dizer ‐ sim, eu não 
devo odiar Finwë, sim, não foi ele o culpado, sim, ele não sabia o que estava fazendo, sim, ele parecia 

O Livro Negro de Arda  Página 148 
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uma  criança  assustada  ‐  mas  eu  não  consigo  perdoá‐lo,  não  consigo  esquecer  aquelas  palavras,  não 
consigo... Eu sou injusto, mas ser justo é acima das minhas forças. Talvez eu não tenha deixado de ser 
um espírito superior, mas não posso permanecer imparcial. Imenso é o seu amor, criança: você não veio 
para saber o que aconteceu com o seu povo, porque mataram a sua irmã, onde está o seu irmão ‐ veio 
pedir por Finwë...” 
 
Ele permaneceu calado. Ela esperou a resposta por muito tempo,  depois deslizou até a porta, mas na 
soleira virou‐se e perguntou, como se pensasse sobre isso pela primeira vez: 
 
‐ Melkor... Por quê você está aqui? Por que te acorrentaram? 
 
Ele levantou os olhos ‐ e de repente soltou uma gargalhada rouca e assustadora. 
 
Ela desapareceu – leve neblina matutina sob um sopro furioso de vento gélido, e ele ainda ria, até que o 
riso não se transformasse num pranto surdo sem lágrimas ‐ e calou‐se. 
 
“Pergunte  ao  meu  irmão,  por  que  estou  aqui.  Pergunte  a  Aulë,  porque  estou  acorrentado.  Pergunte  a 
Tulkas, como morreu o seu pai. Pergunte a Oromë, por que mataram os outros. Pergunte ao seu esposo, 
como morreu Ahtener, seu irmão!” 
 
...Ahtener  ‐  olhos  negros  com  faíscas  douradas,  cabelos  negros  com  brilhos  de  fogo,  atrevido  e 
zombeteiro... Será que o futuro Rei dos Noldor sabia que condenou a morte o irmão daquela que mais 
tarde se tornaria a sua amada esposa?Provavelmente não, e ela também não sabia... 
 
E Manwë, provavelmente, se alegrava com essa união: conseguiu desfazer o mal feito pelo vilão, venceu 
o  combate  pelo  jovem  espírito,  consegui  curá‐la!  E  há  mais  quantas  crianças  assim  em  Valinor?  Não 
mataram as crianças, os Poderes são piedosos: para que matar, se é possível mandar esquecer... 
 
Irmo caminhava lentamente entre sombras e raios de luz, farfalhar e gotas de orvalho. Ali onde passava 
o  Senhor  dos  Sonhos,  os  Jardins  ganhavam  uma  nova  força.  Lentamente,  pensativo,  ele  caminhava, 
como se deslizasse sobre a relva, não deixando a mais leve pegada na terra. Diziam que os jardins são 
parte do próprio Irmo, seu poder e sua mente. Provavelmente, isto era verdade – ele sentia os Jardins 
como  uma  parte  de  si  mesmo.  E  agora  uma  dor  aguda  nas  têmporas  o  levava  para  lá  onde  as  ervas 
morriam por causa do pesar de alguém. 
 
Os galhos quase se fechavam sobre a campina redonda, deixando somente uma janela na cúpula verde, 
através da qual jorrava um feixe de luz. Ali, entre pequenas flores brancas, dormia uma jovem mulher. 
Irmo conhecia tão bem esse recanto dos Jardins, que sentiu uma dor aguda, pois a triste perfeição deste 
lugar  foi  perturbada.  Rápido  sussurro,  soluços  ‐  as  folhas  tremem,  preocupadas...  Uma  figura  escura 
ajoelhada,  ombros  tremem.  Irmo  já  compreendeu  quem  era.  Ele  freqüentemente  vinha  aqui.  Vala 
aproximou‐se  silenciosamente  e  parou  ao  lado  daquele  que  chorava.  Este  levantou  a  cabeça;  o  rosto 
belo, cheio de pesar e desespero, estava úmido de lágrimas. 
 
‐ Senhor, ‐ sussurro entrecortado ‐ por quê... Por quê? Eles disseram ‐ Miríel não acordará nunca mais... 
por  quê,  Senhor?  Porque  ela  não  volta?  Eu  a  amo!  E  ela  também...  Ela  não  poderia  morrer,  verdade? 
Verdade?! 
 
Irmo balançou a cabeça e não respondeu nada. Mas o Rei dos Noldor, aparentemente, não se importava 
com a resposta. Ele falava. Falava mais para si do que para Irmo. 
 
‐ Eu lembro, lembro... Foi aqui, nestes Jardins, que eu a encontrei... Oh, como ela é bela... 
...  Ela  lhe  parecia  o  espírito  de  uma  flor  branca.  Sombra  –  na  sombra  das  árvores,  neblina  prateada, 
caule  delicado...  A  jovem  com cabelos prateados  e  belos  olhos meigos  de  uma gazela assustada.  Quão 
lentamente caiam das suas mãos as flores brancas... Quão lentamente voavam os braços‐asas nas largas 
mangas  brancas...  Ela  mesma  parecia  tão  translúcida...  E  ele  corria,  corria  ao  encontro  dela.  Neste 

O Livro Negro de Arda  Página 149 
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instante ele pensou que sabe agora o que significa – morrer. Parecia‐lhe que ele estava morrendo... Eles 
ficaram em silêncio, abraçados, e parecia‐lhes que tinham um só coração. E somente depois puderam 
olhar‐se nos olhos. Num sussurro, ele perguntou: 
 
‐ Qual é o seu nome... 
 
‐ Miríel... – como o suspiro do vendo. 
 
‐ Ela abandonou os seus Jardins, e eis – voltou, para me abandonar... Por quê, por quê, Senhor? Ou ela 
não é uma Eldë? Ela é uma sombra?.. 
 
‐ Não, ‐ Irmo quebrou o silêncio, ‐ ela é igual a você. 
 
‐ Eu sei... mas então ela não pode morrer! Não pode, enquanto houver Arda! Eldar não morrem! 
 
‐ Não morrem. 
 
‐ E ela, não está morta? Sim? Ela dorme? 
 
‐ Não é bem assim, Finwë... O espírito dela abandonou o corpo, mas não está nas mansões de Mandos. 
 
‐ Mas ela voltará? Me disseram ‐ ela se foi, para sempre... Mas como... Eu não acredito! Ela não poderia 
me abandonar, nos nós amávamos tanto! 
 
Irmo sentou‐se na grama, ao lado de Finwë. Vala olhava para o alto, não desejando olhar nos olhos do 
Elfo – conhecia o poder do próprio olhar, e não queria impor nada a Finwë. 
 
Falou em voz baixa, tentando acalmá‐lo: 
 
‐ É de seu conhecimento que o espírito dela não poderia mais habitar este corpo. Ela entregou todas as 
forças para o filho; pois o seu amor deu‐lhe a vida... 
 
‐ Amor... Então amor mata? Então,  fui eu que a matei? Sim? Então, amar demais – é matar... Eu sou o 
culpado de tudo, eu, eu! 
 
Ele foi novamente tomado pelo desespero; balançava de um lado para o outro, repetindo esse “eu, eu, 
eu”. Irmo tocou o seu ombro. Ele poderia contar muitas coisas sobre a morte, e sobre o amor, e sobre a 
culpa... Mas falou sobre outra coisa: 
 
‐  Não.  Não  foi  o  amor  que  a  matou.  Sabe...  Nem  todos  podem  entregar  assim  as  suas  forças.  Algumas 
vezes, estas não podem ser recuperadas. 
 
‐ Mas aqui é Aman! Será que algo assim pode acontecer nesta terra sagrada?Não estaria aqui a cura de 
todos os males? Senhor, eu não entendo! 
 
‐  Nem  todos  podem  viver  aqui.  Alguns  não  podem  suportar...  a  benção  de  Aman.  Sim,  Finwë,  ela  te 
amava.  Sim,  o  seu  amor  lhe  dava  forças.  Mas  ela  também  se  entregou  inteiramente  a  você.  Era  difícil 
para ela, difícil demais... Juntar todas as forças para viver, te amar, carregar o filho sob o coração... Ela 
era forte, mas... 
 
Finwë o olhava, começando a compreender. 
 
‐ Você diz, que... ‐ começou ele baixo, ‐ que ela não podia suportar? Mas somente... ela era daqueles?! 
 
Irmo não respondeu. Mas Finwë não precisava mais de palavras. 

O Livro Negro de Arda  Página 150 
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‐ Ela sabia? ‐ surdamente. 
 
‐ Não. 
 
Finwë ficou imóvel por muito tempo, de cabeça baixa ‐ e desabou ao lado do corpo de Miríel, com um 
gemido: 
 
‐ Odeio... odeio! Foi ele, ele que a matou! Ele corrompeu, deturpou os espíritos deles! Ate aqueles que 
não  estavam  mais  em  seu  poder,  não  podiam  viver  aqui!  Até  mesmo  aqui  as  garras  negras  dele  os 
alcançaram! Então essa é a vingança... Ele a matou. Ele me matou. Miríel... 
 
‐ Deve concordar que, se foi assim, ele tinha porque se vingar. 
 
Finwë se ergueu abruptamente, com brilho furioso nos olhos: 
 
‐ Sim... Ele se vinga por tudo aquilo que é contra a vontade dele! Sim, eles deviam ser mortos! Estavam 
impregnados  de  maldade,  não  havia  como  curá‐los!  Era  necessário,  para  arrancar‐lhe  pelo  menos  os 
espíritos deles! 
 
“Você mesmo não sabe o que disse, Finwë. A erva daninha é arrancada – e até ela sente dor. E quando se 
arranca uma alma, mesmo que não seja a sua, mas a que se enraizou em você... Agora você sabe, como 
isso acontece”. 
 
‐ Isso tudo foi por causa dele... Se não fosse ele, Arda seria semelhante a Aman, e não haveria esses... E 
Miríel estaria comigo eternamente! Talvez, nos nem mesmo tivéssemos que partir de Endore. Irmo. Eu 
quero que o soltem. Eu o desafiarei para um combate, e matarei! 
 
Irmo permaneceu em silêncio. O Elfo também se calou. Depois olhou para o Senhor dos Sonhos. O rosto 
tornou‐se novamente triste, os traços se suavizaram. 
 
‐ Perdoe‐me, Senhor, fui pouco polido. E ‐ agradeço. Permita‐me ficar sozinho. Eu preciso me despedir 
dela... 
 
Irmo ergueu‐se e recuou para as sombras, se dissolvendo nelas. Na campina, permaneceram os dois – 
Miríel,  adormecida,  e  Finwë,  imóvel  como  uma  estátua  –  de  joelhos;  a  mão  alva  de  Miríel, 
translucidamente  clara,  estava  nas  mão  dele,  como  se  ele  esperasse,  aquecendo‐a,  devolver  a  vida  à 
amada. 
 
“Talvez,  você  a  traria  de  volta,  ‐  pensou  Irmo,  ‐  se  a  chamasse  pelo  nome  verdadeiro.  Mas  você  não 
gostaria de conhecê‐lo. E se quiser ‐ não poderá pronunciar...” 
 
Como uma chama trêmula da vela ‐ a vaga figura na soleira. Delírio? Ou realmente o Escuro gerou algo 
vivo? Mas para isso, precisaria de pensamento. E ele há muito não pensava mais em criar ‐ era terrível 
demais  imaginar  que  isso  novamente  será  assassinado...  E  ele  não  tinha  poder  aqui  ‐  na  Terra‐sem‐
Escuro, Terra‐sem‐Luz. Não, aqui há Luz, mas eles, depois de arrancar dela o Escuro, nunca descobrirão 
nem o seu poder, nem a sua beleza... 
 
E  a  figura  não  desaparecia. Quem  é?  Ele discernia  o  seu  rosto  com  dificuldade,  uma  recordação vaga. 
Somente  quando  as  lembranças  vieram  numa  onda  amarga,  o  rosto  tornou‐se  mais  definido,  e  ele 
compreendeu  quem  era  a  visitante.  O  rosto  infinitamente  triste,  dedos  finos  entrelaçados,  cabelos 
prateados  que  a  envolviam  como  uma  mortalha...  “De  novo  aqui...  Por  quem  você  veio  pedir  agora, 
menina? Que bom que não lembra...” 
 
Uma voz ‐ baixa e amarga: 

O Livro Negro de Arda  Página 151 
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‐ Adeus, Mestre. Eu vou... 
 
A  dor  rasgou  o  coração  com  as  garras.  Por  alguns  minutos,  não  conseguia  ver  nada,  e  quando  pôde, 
havia somente a escuridão, e o eco se dissolvia: 
 
‐ Mestre... Mestre... Mestre... 
 
“Por quê, por quê você lembrou disso? Por quê?!” 
 
‐ Por quê, Tayli!.. 

O Livro Negro de Arda  Página 152 
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ANO 802 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
No livro de Námo, surgiram anotações sobre Homens. Eram seres incompreensíveis. Freqüentemente 
rudes, cruéis e selvagens, apesar disso, eles compreendiam aquilo que não foi dado nem aos Elfos, nem 
aos Valar, pois lhes era conhecida a morte. Por mais que fosse difícil discernir entre o bem e o mal, os 
Homens não só tinham esta capacidade, como também a de corrigir o mal. E com isso o seu tempo era 
tão breve! 
 
Os Elfos, por mais que o tempo passasse, sempre permaneciam os mesmos. A sua sabedoria era 
eternamente a mesma. E os Homens que passavam pelas Mansões eram cada vez mais sábios, e Námo 
notava, surpreso, que muitos deles já estão acima não só dos Elfos, mas também dos Valar em 
sabedoria, e ao conversar com muitos deles, ouvia as mesmas palavras que ouvira de Melkor... E depois 
eles partiam para o desconhecido... Ele desejou dolorosamente conhecer o caminho dos Homens, ainda 
mais porque ele aceitou por vontade própria, pelo costume daqueles que amavam Arda, carregar todos 
os pesares e dores deste mundo, para compreender melhor as Crianças de Ilúvatar. Ele ainda não sabia 
que a maioria dos Valar recusaram esse fardo em segredo, julgando‐o pesado e humilhante demais para 
os Poderes de Arda. Námo desejava a resposta. Ele não falou com Manwë ‐ clamou novamente por Eru. 
Mas aquele não respondeu. Nem Melkor respondeu ‐ somente disse com pesar: “Eu não sou um mortal 
para saber...” 
 
E depois terminaram os prazos do cativeiro de Melkor, e o Rei do Mundo reuniu novamente os Valar, 
para decidir se o Vala rebelde será solto. E Nienna implorou para darem‐lhe a liberdade. E Námo desceu 
ate o subterrâneo, e a alegria iluminava o seu caminho nas trevas. 
 
‐ Melkor! ‐ gritou ele; o eco da sua voz rolou pelos corredores escuros, como uma avalanche. 
 
Ele abriu a porta da cela. Melkor estava sentado no chão, curvado sobre as páginas do Livro de Námo. A 
lâmpada de cristal jogava uma suave luz fria sobre o seu rosto. Ele ergueu a cabeça, visivelmente 
surpreso com a alegria de Námo. 
 
‐ Melkor, você está livre, ‐ disse aquele. Estranho, mas o Vala Escuro não demonstrou alegria, pelo 
menos aparentemente. 
 
‐ Então é assim, ‐ falou ele não muito alto, levantando. ‐ Livre? E o que farão comigo agora? Vão botar 
uma coleira, como nos cães de Oromë? Ou colocarão um vigia para que o vil rebelde não pense que foi 
permitido‐lhe permitido ser ele mesmo? ‐ falou ele com rancor. 
 
Námo estremeceu. Ele esperava outra coisa. As palavras de Melkor o feriram – também ele estava entre 
aqueles que o condenaram. Carcereiro. Mas como esquecer tudo o que aconteceu? Ele abriu o seu 
coração, confiou ‐ e agora feri‐lo assim na alma desprotegida... Parece que é mais uma lição ‐ não confie 
em ninguém. Não se abra com ninguém. 
 
‐ Bondosos são os Valar, ‐ lentamente, com uma careta de nojo, Melkor continuou. ‐ Misericordioso 
Manwë, sábio Tulkas, Aulë de bom coração, hospitaleiro Man... 
 
“Mandos”, ‐ continuou Námo para si, baixando a cabeça. 
 
Melkor parou de repente. 
 
‐ Námo, ‐ disse ele depois de um curto silêncio. – Perdoe‐me... Eu não queria... Eu não pensei em você, 
desculpe! 
 
Námo respondeu com dificuldade: 
 

O Livro Negro de Arda  Página 153 
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‐ Está certo. Por que devo que perdoá‐lo? Está tudo certo. Sou um carcereiro. Eu te julguei. Você está 
certo em tudo, ‐ ele não conseguia se obrigar a olhar nos olhos de Melkor. 
 
‐ Námo, te imploro, perdoe! Será que você quer adicionar mais aos meus pesares? Eu sei ‐ sou culpado, 
minha ira cegou‐me, mas será que por causa de uma palavra descuidada você também me abandonará? 
 
Havia tanta dor nos olhos do Senhor do Destino, que Melkor começou a ajoelhar‐se. 
 
‐ Não, por favor! ‐ gritou Námo, segurando as suas mãos. ‐ Se precisa de palavras ‐ então eu perdôo, 
perdôo, mas não se humilhe! Não se atreva... 
 
Ele se sentia estranhamente desnorteado, quase não percebia aquilo que fazia. E quando, finalmente, 
voltou a ver, a primeira coisa que ele viu foi a corrente Angainor nas próprias mãos. E depois o olhar 
surpreso de Melkor. Aquele olhava para os pulsos, como se não conseguisse acreditar que a corrente 
não existe mais. A arte de Aulë e o feitiço de Varda não resistiram a vontade de Námo. 
 
‐ Como é poderoso, Námo! Eu te agradeço, Senhor do Destino. Estou feliz por ser justo você a fazer isso. 
Das suas mãos eu aceito a liberdade como um presente. Das mãos dos outros, ela seria uma esmola. 
 
E ele fez uma profunda reverência. Então Námo pegou a corrente, abriu um dos elos e o guardou, como 
lembrança. Depois, juntos, eles subiram, assustando Aulë e Tulkas, que seguiam para cumprir a ordem 
de Manwë. 
 
...Melkor estava perante o Rei do Mundo sem baixar a cabeça ‐ somente piscava os olhos, 
desacostumados forte luz morta. Nenhum dos Valar se atreveu a ser o primeiro a falar ‐ somente Varda, 
curvando‐se, sussurrou quase sem som no ouvido do seu esposo aquilo que todos sentiam agora: 
 
‐ Ele não se resignou. 
 
Então Valië Nienna começou a falar; ela pedia liberdade para Melkor, e na sua voz havia uma força 
oculta, a qual nem mesmo o Rei do Mundo poderia resistir. Ele perguntou somente: 
 
‐ Quem mais o defenderá? 
 
‐ Eu, ‐ respondeu Irmo. Este fez um sim com a cabeça, Námo levantou‐se em silêncio e ficou ao lado de 
Melkor, olhando para o Rei do Mundo. Aulë agitou‐se, como se quisesse falar, mas baixou a cabeça e 
calou‐se. 
 
E Manwë pronunciou então que, em sua imensa misericórdia e respondendo a um pedido da Valië 
Nienna, Valar dão liberdade a Melkor. 
 
‐ Mas, ‐ falou ele, ‐ Nos ordenamos que você, Melkor, jamais cruze os limites de Valmar, até que com 
seus feitos tenha merecido o perdão dos Poderes. 
 
‐ Agradeço... meu irmão, ‐ uma curta risada. E, voltando‐se a Nienna, com uma outra voz, suave e triste: 
 
‐ Agradeço por tudo, irmã. 
 
Nienna não respondeu ‐ baixou a cabeça, pela primeira vez escondendo as lágrimas. 
 
E ele não possuía uma morada em Valinor; ele permaneceu nas Mansões de Námo, mas agora era 
considerado um hóspede querido. E freqüentemente, já sem se esconder – o maia de Námo ouvia as 
suas conversas, aquele mesmo, que havia pedido para deixá‐lo partir... 

O Livro Negro de Arda  Página 154 
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JARDINS DE LÓRIEN. ANO 803 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
...Ele  estava  olhando  as  águas  da  lagoa  mágica  Lórellin.  Por  alguma  razão,  aquelas  águas  refletiam  as 
estrelas invisíveis... Irmo se aproximou silenciosamente e parou atrás dele. 
 
‐ Melkor... 
 
‐ Irmo? 
 
‐ Eu devo contar a você, como foi... com eles. 
 
‐ Para que causar mais dor ao seu espírito? 
 
‐  Nenhum  de  nos  sabe  esquecer.  Sei,  não  ficará  mais  fácil,  mas  eu  tenho  culpa.  Eu  não  busco  me 
justificar, somente desejo contar. Você... me ouvirá? 
 
Ele virou e olhou nos olhos do Senhor dos Sonhos. Irmo foi o primeiro a desviar o olhar. 
 
‐ Diga. 
 
...Maiar vestidos de azul, com rostos belos sem expressão, estavam atrás deles num semicírculo. 
 
‐ Senhor dos Sonhos, eis as palavras do Rei do Mundo Manwë Súlimo: você sabe, o que deve ser feito 
com eles, então faça aquilo que é devido. 
 
Irmo não respondeu, estudando os rostos assustados das crianças. 
 
‐ Qual será a sua resposta? 
 
‐ Eu farei, ‐ disse ele com uma voz estranha. 
 
Ele  não  soltou  mais  nenhuma  palavra,  até  os  Maiar  se  retirarem.  As  crianças  também  ficaram  em 
silêncio, compreendendo de alguma forma que é melhor não falar na presença daqueles. 
 
‐ O que aconteceu com o nosso Mestre? ‐ o primeiro a falar foi o mais velho, um garoto de uns quatorze 
anos  com  olhos  alongados,  castanho‐esverdeados,  moreno  e  com  cabelos  cor  de  cobre.  ‐  Por  quê 
mataram Orien e Laytenn? 
 
‐  Você  vai  matar  a  gente?  ‐  quase  ao  mesmo  tempo  perguntou  a  garota  de  olhos  escuros  e  cabelos 
prateados, um pouco mais jovem. Ao seu lado estava uma menininha de uns quatro anos, assustada ‐ a 
mais velha acariciava os seus cabelos dourados despenteados, tentando acalmá‐la. 
 
‐  Não,  ‐  respondeu  Irmo  rapidamente,  alegre  por  ter  a  possibilidade  de  não  responder  às  primeiras 
perguntas,  e  com  vergonha  dessa  alegria  covarde.  ‐  Não,  vocês  só  vão  descansar  aqui  ‐  estão  tão 
cansados, ‐ e depois vão acordar e tudo ficará bem... 
 
‐ Você não sabe mentir, ‐ disse o mais velho. 
 
‐ Não, não, acredite‐me, eu não estou mentindo! 
 
‐ O que pode ficar bem se o meu pai agora está morrendo ali?! ‐ o menino apontou, certeiro, em direção 
a Taniquetil, e Irmo sentiu um frio no peito: “Vidente...” 
 

O Livro Negro de Arda  Página 155 
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‐ Acreditem, eu não lhes farei mal, ‐ com culpa, quase implorando, pediu o Senhor dos Sonhos; ele se 
sentia impotente perante as crianças que viram a morte. ‐ Acreditem... 
 
A pequena dos cabelos dourados olhou para ele debaixo da mão da mais velha: 
 
‐ Ele está falando a verdade, ‐ disse ela baixo. ‐ Ele é bonzinho... 
 
Irmo alegrou‐se com essa defesa inesperada: 
 
‐  Sim,  sim!  Vamos  comigo  –  vamos  descansar,  tirar  uma  soneca...  ‐  ele  simplesmente  não  sabia  o  que 
mais dizer a eles, como tranqüilizá‐los. – Como vocês se chamam? 
 
‐ Linner... Tayli... – apresentaram‐se os mais velhos quase em uníssono. 
 
‐ Yolli... ‐ a sua defensora de cabelos dourados. 
 
‐ Eyno, ‐ também de cabelos dourados, olhos acinzentados, corajoso. 
 
‐ Dael... Oyoli... – provavelmente irmãos, os dos com cabelos cor de cinzas, frágeis e quietos, apertam‐se 
um ao outro como indefesos passarinhos no frio. 
 
‐ Aheír, ‐ cabelos escuros e olhos límpidos. ‐ E essa é Gelli, ‐ pequena, um ano e meio, que ele segura nos 
braços. 
 
‐ Tayo, ‐ cabelos dourados claros, sobrancelhas de alguém persistente e corajoso: pequeno guerreiro. E 
eis a sua dama: cabelos curtos com reflexos ruivos, tenta olhar com desafio, mesmo assustada: 
 
‐ Erelli. 
 
‐ Ellorn... Enneth... ‐ gêmeos, cabelos negros e mãos dadas. 
 
‐ Torn... 
 
‐ Isilhe... ‐ olhos enormes, lábios tremem, está quase chorando. 
 
‐ Tenno... 
 
‐ Alcho... 
 
‐ Ennoro... 
 
‐ Hellir... 
 
‐ Aello... 
 
‐ Tiellinn... ‐ novamente uma menina, a voz fina e límpida. 
 
‐ Anta... ‐ se envergonhou. ‐ Anta‐elli... 
 
A última permanece em silêncio. Tiellinn responde por ela: 
 
‐ Ela é Elgeni. Ela não... Ela não vai falar. Laytenn é a sua irmã. Era. 
 
‐ Levaram os outros a algum lugar, ‐ adiciona Linner. ‐ Nos perguntamos, mas não nos contaram para 
onde. 

O Livro Negro de Arda  Página 156 
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Ele  os  levou  para  a  floresta,  com  a  esperança  secreta  de  que  a  magia  cintilante  daquele  lugar  os 
distrairá pelo menos um pouco; mas as crianças o seguiam em silêncio assustado. Apesar de todos os 
seus argumentos, eles não esperavam nada de bom aqui. 
 
...Eles  adormeciam  rapidamente:  seus  corpos  e  espíritos  estavam  exaustos  demais  para  resistir  aos 
feitiços  do  Senhor  dos  Sonhos.  Ele  falava  com  eles  suavemente,  passava  a  mão  sobre  os  cabelos 
desarrumados, olhava nos olhos tristes. Corpos magros, roupas rasgadas ‐ não tiveram muita cerimônia 
com eles. 
 
Linner era o último. 
 
‐ Você não me respondeu, ‐ ele olhou nos olhos de Irmo. – Se bem que eu já sei. Nos não temos mais 
nada e ninguém; e ele... ‐ o menino calou‐se, por um instante fechando os olhos e apertando os dentes. ‐ 
E você, ‐ rispidamente, ‐ deve nos tirar a memória. O último que temos. Acertei, Irmo? 
 
Vala surpreendeu‐se ‐ de onde Linner conhece o seu nome?.. 
 
‐ Claro. Sabiam a quem pedir. Você é misericordioso. Você não deseja mais sangue aqui, ‐ ele fez uma 
careta.  ‐  Raspar  a  escrita  do  pergaminho.  Afinal,  o  pergaminho  queima  mal.  E  para  que?  ‐  é  possível 
reescrever tudo depois! Mas os vestígios dos outros símbolos, apagados, eles ficarão, Irmo. Nada poderá 
apagá‐los inteiramente. 
 
Ele  falava  com  o  Vala  não  simplesmente  como  adulto,  mas  como  alguém  mais  velho;  mas  isso  já  não 
surpreendia. 
 
‐ E nem todo o sangue se cobrirá de ervas; a marca ficará. Ficara tanto nos seus espíritos quanto nas 
suas  mãos,  e  nem  mesmo  todas  as  água  do  Grande  Mar  o  lavarão...  Por  quê  eu  não  nasci  antes!  Eu 
poderia estar lá, junto com meus irmãos e irmãs, com uma espada em mãos... Mas o que importa. Nos 
não sabíamos matar. Vocês ‐ sabem. 
 
O Senhor dos Sonhos tentava não desviar o olhar. Linner falou sobre outras coisas: 
 
‐ Neste outono, eu deveria eleger o Nome das Estrelas. Eu já o sabia: Gelleyn. Eu sou Vidente, afinal. Mas 
não há Mestre, para que ele diga ‐ “Agora o seu nome é Gelleyn; o seu Caminho está escolhido ‐ que seja 
assim”. E não haverá mais Caminho. Não haverá ‐ aqui. E não haverá forças para voltar. E não tem para 
onde. 
 
Ele se levantou um pouco, apoiado sobre o cotovelo, e olhos os outros. 
 
‐ Quantos deles levantarão a espada contra ele? ‐ baixo e amargo. 
 
Irmo não pode falar nenhuma palavra. 
 
‐ Eu partirei, Senhor dos Sonhos. Eu sei, você não nos deseja mal. Mestre falou sobre você. Perdoe‐me 
por ter falado assim com você; você não tem culpa. 
 
‐ Não, Linner. Eu fiquei calado quando planejavam o ataque. Eu me proibi de acreditar naquilo que via e 
sabia. Eu tinha medo. Medo de que me castigassem como Aulë. E fiquei calado. 
 
‐ Eu lembro. Mestre falou também sobre ele. Nos só não podíamos entender uma coisa: como se pode 
proibir  de  criar.  Para  que  isso  é  necessário.  E  como  matar  pessoas,  ele  também  não  nos  explicou,  ‐ 
sorriso torto. ‐ Mas não tem importância: isso nos vimos por nos mesmos. 
 
‐ ...Então sou simplesmente um covarde, Linner. O meu Maia também foi embora, como Artano de Aulë... 

O Livro Negro de Arda  Página 157 
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‐ Gorthaur, ‐ corrigiu o menino. 
 
‐ Como?.. 
 
‐ Gorthaur. Mestre de vez em quando o chama por um outro nome: Orthenner. Mas na nossa língua ‐ é 
assim. 
 
‐ Sim, claro, ‐ rapidamente concordou Irmo. 
 
Silêncio. 
 
‐ Eu gostaria que você ficasse aqui, ‐ Irmo disse, pensativo. ‐ Mas você não vai querer. Eu, acho, também 
não iria querer... 
 
Linner colocou a sua mão sobre a de Irmo: 
 
‐ Você... não, não é um covarde. Você simplesmente não tem coragem de acreditar em si. 
 
Irmo estremeceu involuntariamente; pereceu‐lhe que essas palavras foram pronunciadas por um outro 
‐ aquele que era levado, agora, acorrentado, às Mansões de Mandos. 
 
‐ Você não tem culpa, Senhor dos Sonhos, ‐ repetiu Linner. 
 
‐  Eu  gostaria  de...  ‐  quase  implorando  continuou  Irmo,  ‐  que  você  fique.  Eu  nem  tenho  com  quem 
conversar...  Mas  você  tornou‐se  mortal,  e  não  o  farei  um  Elfo,  e  muito  menos  poderei  transformá‐lo 
num  maia.  E  não  poderá  viver  aqui...  Me  parece  que  eu  falo  com  ele.  Não  atrevia‐me  enquanto  era 
possível. E depois daquilo que eu fiz, provavelmente não poderei mais... 
 
‐  Você  não  queria  nenhum  mal.  O  que  eu  digo:  ninguém  aqui  queria  mal  algum  a  nos!  Somente 
realizavam cegamente a vontade de alguém. Como crianças ingênuas. 
 
E novamente Irmo imaginou ouviu uma outra voz. 
 
‐  Mas  você,  Senhor  dos  Sonhos...  É  difícil  para  mim  olhar  tão  longe,  mas  você  ainda  será  humano.  E, 
sabe... 
 
O menino sorriu triste e sabiamente: 
 
‐  Sabe...  que  seja  você  a  dizer  aquelas  palavras  que  o  Mestre  não  teve  tempo  de  dizer.  Ele  não  me 
condenaria por essa decisão. 
 
‐  Eu,  Linner,  escolhi  o  Caminho  de  Vidente,  e  como  um  sinal  do  Caminho,  em  nome  de  Arta  e  de  Ea, 
tomo o nome de Gelleyn, o Olho da Estrela. 
 
Irmo, quase sem voz, respondeu: 
 
‐ Perante às estrelas de Ëa... e... Arta... ‐ Pela primeira vez ele pronunciou o nome do mundo assim, ‐ o 
seu nome será... Gelleyn. O seu Caminho está escolhido... Que seja assim. 
 
O menino sorriu: 
 
‐ Agradeço. Adeus. 
 
E fechou os olhos. 

O Livro Negro de Arda  Página 158 
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...Ele foi o único que não acordou do seu sono na hora devida. 
 
‐ ...Parece que ele simplesmente teve pena de mim. Perdoe‐me, se puder, por ter dito as suas palavras 
em seu lugar. 
 
‐ Você não tem culpa alguma. E depois, ele mesmo decidiu assim. 
 
‐ Ele não pode esquecer. Eu entendi que ele é seu discípulo aluno quando vi, que a vontade dele é mais 
forte que a minha. E ele estava certo: a memória não desapareceu, ela dorme em todos ‐ até em Gelli. E 
eu... eu queria matar a memória. Não se pode perdoar isso, eu sei... 
 
‐ Mas eles estão vivos. Agradeço‐o. 
 
‐ Eles não são mais seus filhos... 
 
‐ Isso significa somente que do seu pai adotivo eles retornaram ao verdadeiro pai. 
 
‐ Mas não estavam melhor com o adotivo? 
 
‐ Não sei, talvez com os seus atuais pais adotivos eles serão mais felizes, do que... Onde eles estão agora? 
Tayli Miríel ‐ eu sei. E os outros? 
 
Irmo baixou os olhos: 
 
‐ Yolli e Eyno ‐ com Manwë. Agora os chamam de Amarië e Glorfindel. Tayo ‐ Laurë – é educado na casa 
do rei dos Vanyar Ingwë. Dael, Oyoli, Isilhe e Tiellinn  ‐ em Alqualondë, com Olwë. Tiellinn é sua filha 
adotiva. Ela... 
 
‐ Eu sei. Os outros ‐ com os Noldor? 
 
‐ Sim. 
 
‐ Melhor não nos encontrar. Se lembrarem ‐ não poderão viver aqui. E se... não, isso não acontecerá. 
 
Sorriu maldosamente: 
 
‐ Assim, o meu irmão mais novo também resolveu arranjar uns discípulos. E defendeu bem a casa dos 
seus eleitos!.. 
 
E, repentinamente, baixo e triste: 
 
‐ Como tudo foi simples... 

O Livro Negro de Arda  Página 159 
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LUZ NAS PALMAS. ANOS 803­866 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
Os  Vanyar  valorizam  o  sossego;  eles  estão  contentes  com  o  próprio  destino  ‐  para  que  servem  a  eles 
novos  conhecimentos,  que  perturbam  as  suas  almas?  Teleri  não  se  esforçam  para  voltar  às  Terras 
Mortais. Somente os Noldor se parecem com aqueles... No início, eles o evitavam, olhando com receio 
para  as  pesadas  algemas  de  ferro  que  continuaram  para  eternidade  em  seus  pulsos  ‐  como  estigma, 
como marca, como lembrete: ele desobedeceu ao Único. Depois se acostumaram também a isso... 
 
E um dia ele viu os livros dos Noldor. 
 
Melkor levou um choque. Na escrita dos Elfos da Luz havia um peso, atípico da leve, esvoaçante escrita 
Tay‐an; mas, sem dúvida, essa era a escrita dos Elleri Ahe. 
 
‐ Quem... deu‐lhes esses sinais? 
 
‐ Fëanáro, ‐ respondeu Rumil, um dos mais sábios entre os Noldor. 
 
O coração do Vala Escuro bateu pesado e surdo: 
 
‐ Espere, repita. Essa escrita foi criada por... 
 
‐ Curufinwë Fëanáro, o filho mais velho de Finwë. 
 
Melkor calou‐se. 
 
‐  Ele  é  considerado  por  direito  o  mais  sábio  dos  Noldor,  ‐  Rumil  suspirou.  ‐  Quando  nos  criávamos  a 
escrita,  gastamos  vários  anos.  Mas  os  meus  sinais  não  são  tão  belos,  e  o  sistema  é  mais  complicado. 
Fëanáro  é  talentoso;  o  trabalho  que  levou‐me  anos,  ele  fez  em  um  mês.  Seus  sinais  não  se  parecem 
muito  com  os  meus;  na  verdade,  os  meus  são  mais  fáceis  de  entalhar  em  pedra...  Sim,  ele  me 
ultrapassou; provavelmente, logo se esquecerão sobre mim e os meus sinais... 
 
‐ Não, ‐ surdamente respondeu Melkor. ‐ A pedra ficará por séculos. E os livros... ‐ um breve silêncio, e o 
fim inesperadamente brusco, ‐ os livros queimam. 
 
Rumil olhou‐o surpreso, mas o Vala Escuro levantou‐se e saiu rapidamente. 
 
...Quando Melkor retornou às Mansões de Námo, o seu rosto estava alterado. Morto. Ele sentou‐se em 
silêncio e fitou um ponto na parede. 
 
‐ O que houve? ‐ perguntou Námo, preocupado. 
 
‐ Tengwar, ‐ respondeu Melkor. ‐ Escrita de Fëanáro. Por quê não me disse? 
 
‐  Eu...  ‐  Námo  não  conseguia  escolher  as  palavras  certas.  ‐  Melkor,  eu  não  pôde...  não  quis...  não  tive 
coragem... 
 
Como explicar?.. Ele não anotou isso no Livro. Não sabia o que acontecerá com Melkor, quando ele ler. 
 
‐  Teve  pena  de  mim,  ‐  com  a  mesma  voz  continuou  Melkor,  ‐  decidiu  que  isso  me  quebrará.  Ou  teve 
medo de que eu resolva vingar‐me. 
 
Námo  estremeceu:  Melkor  parecia  ler  seus  pensamentos.  O  Vala  Escuro  voltou‐se  a  ele;  um  sorriso 
torto surgiu no seu rosto: 
 

O Livro Negro de Arda  Página 160 
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‐  Nada.  Pelo  menos  restou  alguma  coisa  deles,  ‐  com  uma  risada  morta  disse  ele,  mas  o  seu  riso 
transformou‐se ou em tosse seca, ou talvez em pranto; o Vala Escuro virou‐se novamente. 
 
‐  Você  sabe...  eles  ficaram  tão  felizes  com  o  poder  de  anotar  os  pensamentos...  Eles...  fizeram  tudo  ‐ 
sozinhos... Eu só... ajudava um pouco... 
 
Ele  parou  novamente.  De  repente,  riu  baixo,  e  Námo  pensou  com  horror  que  Melkor  havia 
enlouquecido. 
 
‐ Sabe... sabe o que um deles um dia me trouxe? Contos de fadas. Sim, isso mesmo. Depois o chamaram 
assim – Contador de Histórias. Sabe, ele conta... ‐ Melkor não disse: “contava”, mas não notou o erro, ‐ 
...sobre flores, árvores, ervas... sobre o mundo, os pássaros, os animais, as estrelas... Para ele, cada folha, 
cada  pedra,  cada  estrela  fala  com  uma  voz  especial  ‐  e  conta  a  sua  história,  a  sua  lenda,  ‐  Melkor  riu 
novamente. ‐ Ele diz: quando as crianças crescerem, lerão isso. Sabe, me parece que as crianças devem 
amar esses contos. Contos sábios. E ele mesmo ‐ uma grande e sábia criança... Estranho, verdade? E ele 
ainda fala sobre outros mundos. E, eu acho, ‐ ele realmente os vê... 
 
Melkor  olhou  para  Námo.  No  rosto  do  Senhor  dos  Destinos,  o  horror  misturava‐se  com  compaixão  e 
perplexidade. O sorriso desapareceu do rosto de Melkor. Ele voltou à realidade. 
 
‐ Via, ‐ corrigiu‐se ele, com aspereza. E depois de uma pausa: 
 
‐ Conte, como foi. 
 
Námo balançou a cabeça. 
 
‐ Conte. Eu tenho o direito de saber. 
 
E Námo contou. 
 
Os  manuscritos  dos  Elfos  do  Escuro  foram  parar  nas  mãos  de  Aulë.  E  quando  Fëanáro  resolveu 
trabalhar  seriamente  com  a  escrita,  o  Ferreiro  entregou‐os  ao  seu  discípulo.  Eles  entenderam  logo. 
Assim Tay‐an se transformou em Tengwar Feanorean. 
 
‐ E... os livros? O que aconteceu com eles? 
 
Foram queimados. Ali mesmo, nas Mansões de Aulë. Ninguém alem de Fëanáro tomou conhecimento. 
Os livros onde estavam escritos os conhecimentos que vinham do Escuro. Lendas dos Elfos do Escuro e 
a sua história. 
 
‐ Não sobrou nada? 
 
‐ Não, Melkor, ‐ a voz do Senhor dos Destinos estremeceu. 
 
‐  Nem  mesmo  memória...  Mas  o  seu  Livro,  Námo...  Fale,  você  escreverá  sobre  isso?  Escreverá,  não  é 
verdade? Pelo menos alguma coisa... 
 
‐ Eu prometo que escreverei, ‐ quase sem som respondeu Námo. E  repetiu, como um juramento. ‐ Eu 
prometo, Melkor. 
 
O Vala Escuro revelou aos Elfos muitas coisas que não eram de conhecimento dos demais Valar; ele era 
um mestre atento e paciente. Ele não tinha pressa, pois a sabedoria do Escuro é como uma lâmina, que 
fere aquele que não toma cuidado, voltando‐se contra ele. 
 
E a muitos deles as palavras de Melkor pareciam estranhas e perigosas, mas os Elfos ficaram calados. 

O Livro Negro de Arda  Página 161 
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E chegou o tempo ‐ o Vala Escuro começou a contar aos Noldor sobre a Terra‐Média. E assim dizia ele: 
 
‐ Vocês são escravos... ou crianças, se assim desejarem; crianças, a quem foi ordenado contentar‐se com 
os brinquedos e não tentar ir longe demais, nem aprender demais. Vocês dizem que estão felizes sob o 
poder dos Valar: talvez; mas atravessem os limites traçados por eles ‐ e conhecerão toda a crueldade 
dos corações deles. Vejam: tanto a sua arte, quanto a sua própria beleza servem somente para enfeitar 
os domínios deles. Não é o amor que os move, mas sede de possuir: verifiquem vocês mesmos! Exijam 
aquilo  que  lhes  foi  dado  por  Ilúvatar,  aquilo,  que  é  seu  por  direito:  todo  esse  mundo,  repleto  de 
mistérios,  que  vocês  deverão  decifrar  e  conhecer.  E  a  carne  desse  mundo  se  transformará  em  suas 
criações, às quais não bastará lugar nesses jardins de brinquedo, separados do mundo por um mar sem 
fim, protegidos por cadeias de montanhas... 
 
Noldor  ouviam  as  suas  palavras,  e  aquilo  que  ele  dizia  ficou  nos  corações  de  muitos.  E,  vendo  isso,  o 
Vala contou‐lhes sobre os Mortais – Atani: 
 
‐  Vocês  se  tornarão  seus  irmãos  mais  velhos  e  mestres,  ‐  dizia  ele,  ‐  e  juntos  farão  as  Terras 
Abandonadas tão, ou talvez mais belas, que Aman. 
 
Os  Elfos  se  maravilhavam  com  as  falas  do  Vala  Escuro,  pois  os  Valar  não  lhe  falaram  nada  sobre  os 
Atani:  naquele  tempo  em  que  Ilúvatar  revelou  aos  Ainur  a  visão  de  Arda,  souberam  também  sobre 
aqueles que deveriam vir ao mundo após os Elfos. Mas os Elfos eram semelhantes aos Ainur, e eram‐lhe 
compreensíveis,  enquanto  os  Homens,  estranhos  e  livres,  Mortais  –  e  que  após  a  morte  partiam  por 
caminhos desconhecidos, eram diferentes, e nos espíritos dos Grandes não havia amor a eles, somente 
um receio vago. Por isso, os Valar decidiram que os Elfos deverão permanecer em Valinor, ao seu lado; 
e não se importavam com os Mortais. 
 
Os Noldor entenderam pouco daquilo que Melkor disse; e aquilo que compreenderam, explicaram a sua 
maneira.  E  acharam  que  Atani  querem  dominar  as  terras  que  foram  destinadas,  desde  o  início,  aos 
Elfos; e Manwë prende os Eldar em Valinor, pois é mais fácil aos Valar dominar um povo fraco e mortal. 
Daquele tempo, nunca houve amizade entre os Elfos e os Homens, e depois os Elfos passaram a falar 
que, mais que aos demais Valar, os Mortais se assemelham a Melkor, Morgoth, Inimigo Negro. Somente 
um parecia entender tudo: Finarato, o filho mais velho de Arafinwë; somente ele perguntou mais sobre 
os Atani ao Vala... 
 
...Naqueles  dias,  uma  nova  idéia  veio  à  cabeça  de  Fëanáro,  filho  mais  velho  de  Finwë.  Ele  recordava 
daquilo  que  leu  nos  livros  dos  Elleri:  um  dos  discípulos  do  Vala  Escuro  pensou  em  criar  pedras  que 
guardam a luz das estrelas. Bela idéia. Se iguala a das pedras de chama daquele Maia, traidor, que fugiu 
de Valinor ‐ disso também contaram os livros. Mas se até eles foram capazes de fazer isso ‐ será que 
Curufinwë Fëanáro, o melhor aluno do próprio Aulë, não poderá fazê‐lo melhor do que eles? 
 
Ele  se  esforçou  para  lembrar  tudo  que  os  livros  diziam  sobre  a  criação  dessas  gemas.  Ele  completou 
aquilo  que  não  entendia  com  aquilo  que  sabia.  Ele  era  sábio,  hábil  e  talentoso;  ele  era  imensamente 
orgulhoso,  por  isso  admitia  que  somente  o  próprio  Aulë  foi  o  seu  mestre,  mesmo  tendo  aprendido 
muito com Mahtan, pai da sua esposa Nerdanel. 
 
Em segredo absoluto, Fëanáro iniciou os seus trabalhos. E trabalhou mais rápido, e com mais paixão do 
que  havia  trabalhado  antes.  Para  criar  as  suas  gemas,  ele  pegou  um  pedaço  daquele  não‐Escuro  que 
irradiavam as Árvores de Valinor, e confinou‐o em cristais. 
 
Assim foram criadas as três gemas élficas, orgulho e maldição dos Noldor; e o seu nome era Silmarils. 
Surpresos  e  maravilhados,  o  povo  de  Aman  olhava  para  a  obra  de  Fëanáro.  E  Varda  as  consagrou,  e 
assim disse: 
 
‐ Que não se atreva a tocá‐las nem aquele cujas mãos estão impuras, nem aquele cujo coração oculta a 
raiva, nem um homem mortal; e elas queimarão o corpo do mortal que as tocar. 

O Livro Negro de Arda  Página 162 
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E foi predito, naquela hora, que os elementos de Arda, terra, água e ar, ficarão ligados ao destino dessas 
jóias. 
 
E  o  coração  de  Fëanáro  apegou‐se  a  obra  das  suas  mãos;  e  a  Rainha  das  Estrelas  concedeu 
benevolentemente a guarda das gemas à casa de Finwë. 
 
‐ Pois, ‐ disse ela, ‐ a casa de Finwë é a casa de eleitos, e a graça dos Valar está com os descendentes 
dele. Grandes foram os feitos de Finwë, Rei dos Noldor, nos dias passados, e grande será a recompensa 
dele, e a dos seus filhos. Que sejam estas jóias, de agora em diante, o símbolo da casa eleita pelos Valar! 
 
E Fëanáro fez uma profunda reverência para Varda, e tomou das mãos dela as Silmarils. Desde então ele 
passou  a  se  considerar  o  senhor  dos  Noldor,  o  mais  sábio,  o  escolhido.  Ele  olhava  com  orgulho  e 
presunção  para  os  demais  Noldor,  e  mesmo  que  a  sabedoria,  talento  e  beleza  dele  os  atraíssem,  os 
outros Elfos não lhe tinham amor; nem todos queriam obedecer‐lhe. 
 
Entre  os  Eldar,  eram  igualmente  honrados  Fëanáro  e  Nolofinwë,  os  filhos  mais  velhos  de  Finwë;  por 
esta razão, Nolofinwë não queria obedecer a Fëanáro. E pareceu a este que o irmão deseja tomar o seu 
lugar no trono em Tirion, e também no coração de Finwë, seu pai. 
 
Então  ele  voltou  a  trabalhar  em  segredo;  mas  desta  vez  ele  forjou  espadas.  Os  outros  Noldor  o 
imitaram, apesar de ninguém usar armas abertamente. 
 
Fëanáro ouviu falar de Endore ‐ do pai, dos outros Elfos, mas com maior freqüência ‐ do seu sobrinho 
Finarato. Justamente devido a palavras do primogênito de Arafinwë o desejo de ver Endore nasceu no 
coração de Fëanáro; daquele cujas palavras Finarato repetia, ele não queria lembrar. E pensou assim: 
“Quem  poderá  ser  rei  das  Terras  Sombrias  além  de  mim?”  Ele  notava  que  o  desejo  dos  Noldor  de 
retornar a Endore não era de agrado dos Valar, e pela primeira vez pensou – e se Melkor estiver certo, e 
Eldar  forem  somente  brinquedos  dos  Poderes,  que  servem  somente  para  embelezar  Valinor?..  Esse 
pensamento feriu cruelmente o seu orgulho; agora, ele chamava abertamente a uma rebelião contra os 
Valar  e  ao  retorno;  proclamou‐se  um  grande  chefe  dos  Noldor,  prometendo  libertar  da  escravidão 
aqueles que o seguirem. 
 
Naquele  tempo,  Nolofinwë  foi  até  o  seu  pai,  e  pediu‐lhe  para  refrear  o  orgulho  de  Fëanáro;  e  assim 
falou: 
 
‐ Meu senhor e pai, refreie o orgulho do nosso irmão Curufinwë Fëanáro ‐ realmente, por direito leva 
ele o nome de fogo, pois o seu espírito furioso é semelhante a chamas que a tudo devoram. Quem deu‐
lhe o direito de falar por todo o nosso povo, como se ele fosse o rei dos Noldor? Não foi você que no 
passado falou para os Quendi, não foi você que os convocou a Aman? Não foi você o líder dos Noldor na 
longa  jornada,  e  nem  foi  você  a  guiá‐los  das  trevas  de  Endore  até  a  abençoada  luz  de  Eldamar?  E  se 
agora não se arrepende destes feitos, você ainda tem dois filhos que o respeitam! 
 
Mas enquanto ele falava, Fëanáro entrou na sala; e ele vestia uma armadura e carregava uma pesada 
espada. Disse palavras iradas a Nolofinwë, acusando o irmão de querer criar inimizade entre ele e o pai. 
Nolofinwë  não  respondeu  e  dirigiu‐se  à  saída,  mas  Fëanáro  alcançou‐o  e,  encostando  a  lâmina  da 
espada no seu peito, disse: 
 
‐ Veja, filho do meu pai, isso é mais afiado do que a sua língua! Tente mais uma vez disputar o meu lugar 
e ficar entre mim e o meu pai e, talvez, isso livrará os Noldor daquele que deseja se tornar senhor dos 
escravos! 
 
Nolofinwë  permaneceu  em  silêncio,  ocultando  a  ira,  e  saiu;  mas  os  Valar  souberam  dos  atos  e  das 
palavras de Fëanáro, e ele foi convocado a Máhanaxar, para dar‐lhes as devidas explicações. Assim foi a 
sentença dos Valar: não é mais permitido a Fëanáro viver em Tirion sobre Tuna. E ele partiu, com os 

O Livro Negro de Arda  Página 163 
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seus  sete  filhos  e  uma  parte  dos  Noldor,  para  o  norte  da  terra  de  Aman,  e  fundaram  ali  a  cidade‐
fortaleza  de  Formenos.  E  Finwë,  rei  dos  Noldor,  seguiu  com  ele  para  o  exílio  por  amor  ao  filho  de 
Miríel... 
 
‐ Mas entre os tesouros de Valimar não há nada que se compare às Silmarils. 
 
‐ Eu já ouvi essa palavra. O que é isso, Rumil? 
 
‐ Ninguém sabe disso, alem de Fëanáro e os Poderes. Fëanáro criou três gemas que contêm a luz das 
Árvores. O cintilar dourado e o prateado se misturam nelas, e essa luz parece o brilho de um diamante ‐ 
e das perolas, e... Melkor, está me ouvindo? 
 
‐ ...Eu queria fazer umas gemas que brilhassem com a luz das estrelas. Gorthaur fez com que a chama 
não se apague nas gotas de sangue de Arta. E eu quero que a Liz das estrelas, preservada nas gemas, 
seja visível também de dia. Eu quase sei como fazer isso, somente... 
 
Os olhos de Geleon escureceram; ele olhava para longe ‐ como se visse através do tempo. 
 
‐ Somente temo que não terei tempo. Eu anotarei isso; talvez, alguém um dia conseguirá... 
 
Ele parecia um andarilho em suas roupas negras e capa empoeirada: só falta um bordão. Ou um alaúde 
nas costas. Se bem que a poeira é clara, brilhante. 
 
Ele  parou,  maravilhando‐se  involuntariamente  com  a  casa:  complexos  ornamentos  traçados  sobre  os 
pilares de pedra, vitrais preciosos emoldurados em prata... Lá ‐ também gostavam disso. Mas a madeira 
queima fácil, e então começam a se fundir as rendas de prata das janelas... 
 
A amargura das lembranças ficou na garganta. Não se deve mexer na ferida eternamente – de qualquer 
jeito nunca se fechará, como não se curarão as queimaduras nos pulsos. 
 
Ele  subiu  lentamente  os  degraus  e  bateu.  A  porta  abriu‐se  quase  no  mesmo  instante  ‐  como  se  o 
esperassem,  e  na  soleira  surgiu  uma  figura  vestida  de  negro  e  vermelho.  Negro?!..  ah,  sim  ‐  Fëanáro 
agora não é mais o queridinho do Rei do Mundo. 
 
‐ O que o trouxe aqui? 
 
‐ Quero perguntá‐lo, Fëanáro. É doce o sossego de Valinor? Os favores dos Poderes agradam‐lhe? 
 
Os olhos do Noldo brilharam ameaçadoramente: 
 
‐ Fale. 
 
‐  Você  é  um  artífice,  Fëanáro,  ‐  com  uma  amargura  incompreensível  disse  Vala.  ‐  Você  deseja 
permanecer  aqui  e  decorar  os  jardins  de  brinquedo  com  pedras  preciosas  ‐  ou  afinal  das  contas  se 
decidirá a conhecer a amargura da liberdade? 
 
‐ Fale. 
 
‐ Eu repito, Fëanáro ‐ a minha força e os meus conhecimentos lhes ajudarão; os Valar não começarão 
uma guerra pela segunda vez ‐ e também vocês poderão se defender. 
 
Com um sorriso de orgulho sombrio, Noldo acariciou o precioso cabo da espada. 
 
‐ E o que você quer como prêmio? 
 

O Livro Negro de Arda  Página 164 
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‐  Somente  uma  coisa:  que  os  Noldor  se  tornem  irmãos  mais  velhos  e  mestres  para  aqueles  que  os 
seguem. 
 
‐ Eu pensarei sobre as suas palavras. 
 
‐ E mais, Fëanáro: permita‐me ver as Silmarils. 
 
“E que o seu  não‐Escuro se transforme em luz do Sol e da Lua... Só não sei se haverá então um lugar 
para eles nessa terra?..” 
 
Noldo lançou um breve olhar para o rosto pensativo do Vala; nos seus olhos ardia a ira. 
 
‐ Eu entendi para que serviam as suas doces falas, escravo dos Valar! 
 
Vala estremeceu, como se tivesse acordado. 
 
‐  Você  desejou  a  luz  das  minhas  criações  somente  para  você  mesmo!  Vejo  que,  por  mais  fortes  que 
sejam estas paredes e por mais valentes que sejam os guardiões, na terra dos Valar isso não basta para 
guardar as Silmarils! Retire‐se, criminoso, retire‐se para a prisão de Mandos ‐ ali é o seu lugar! Longe 
das minhas portas!.. 
 
‐ E Varda consagrou essas gemas, dizendo que não as tocará nem aquele cujas mãos estiverem impuras, 
nem aquele cujo coração oculta a raiva, nem aquele que segue o caminho dos Mortais, e elas queimarão 
a carne mortal que as tocar. E de agora em diante, disse ela, essas gemas serão o símbolo da casa dos 
eleitos... Está me ouvindo, Melkor? 
 
‐ Sim. É o preço pelo sangue. 
 
‐ O que você está falando?!.. 
 
...Ele irrompeu na sala como uma tempestade rubra e dourada. O Vala Escuro, que explicava algo aos 
Elfos, calou‐se e encarou o filho de Finwë. 
 
‐  Por  quê  estão  o  ouvindo!  ‐  urrou  Fëanáro.  ‐  O  que  ele  pode  contar  a  vocês  que  não  seja  do 
conhecimento  dos  outros  Valar?  Ele  só  mesmo  sabe  é  falar  bonito;  mas  o  veneno  das  suas  palavras 
penetra imperceptivelmente nas suas mentes – os seus espíritos foram envenenados pelo Inimigo! 
 
Ele  virou‐se  para  Melkor.  O  rosto  do  Vala  Escuro  estava  calmo,  triste  e  cansado,  e  isso  fez  o  filho  de 
Finwë perder totalmente o controle: 
 
‐ Como você se atreve a olhar para o meu rosto, escravo! Ajoelhe‐se perante o rei dos Noldor! 
 
No silêncio repentino, soou a voz fria de Melkor: 
 
‐ Você não será rei dos Noldor por muito tempo, filho de Finwë, e a sua coroa foi paga com sangue. Sim, 
o ferro ata as minhas mãos, mas eu sou mais livre do que você: o medo dos Valar, temor de desobedecer 
a  ordem deles  e  abandonar  estas terras  faz de  você  um  escravo.  Eu  nunca  fui  inimigo  dos Noldor;  se 
vocês tiverem coragem de escolher a liberdade, eu os ajudarei a partir de Valinor; e eu, um Vala, lhes 
darei auxílio e proteção... 
 
‐ Não o ouçam! Está mentindo! 
 
‐ E a você, Noldo da casa de Finwë, eu digo: cuidado! ‐ disse Melkor, e havia uma ameaça oculta na sua 
voz. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 165 
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Eles se encaravam agora: Fëanáro vestido de vermelho e dourado, com uma preciosa corrente de ouro 
no  peito  ‐  e  Melkor  em  vestes  negras  simples,  calmo  e  perigoso  como  uma  lâmina  negra.  Os  Noldor 
recuaram e os olhavam perplexos, como crianças assustadas. O olhar penetrante de Melkor fez o filho 
de  Finwë  estremecer,  fazer  involuntariamente  o  movimento  de  quem  deseja  desembainhar  uma 
espada. Melkor não se moveu, e Fëanáro foi obrigado a baixar os olhos. No olhar de Melkor havia uma 
sombra de zombaria: 
 
‐ Cuide‐se, Noldo, ‐ repetiu ele devagar. 
 
E vieram para o Conselho dos Poderes também aqueles dos Eldar que se assustaram com a sabedoria 
que Melkor havia compartilhado com eles; e falaram contra ele, e o acusaram perante Manwë. 
 
E o Rei do Mundo, irado, ordenou Tulkas capturar o rebelde e novamente levá‐lo ao julgamento. 
 
 “Tomara que dê tempo...” ‐ pensava Námo febrilmente. 
 
‐ Melkor!.. 
 
O eco correu, batendo nas paredes da sala escura. 
 
Ele surgiu em instantes, o Vala Escuro alado. Námo falou com dificuldade: 
 
‐ Melkor, eu tinha pressa... de avisar a você... eles... 
 
‐ Eu sei, ‐ disse aquele baixo. ‐ Estou partindo. Agradeço‐o, meu irmão. 
 
Algo  estremeceu  na  alma  do  Senhor  do  Destino  quando  ele  ouviu  essa  voz,  triste  e  honesta;  uma  nó 
ficou na garganta. 
 
...Como ele sabia rir ‐ livre, aberto; parecia que o mundo inteiro alegra‐se junto a ele... Como era o seu 
sorriso – claro, confiante, alegre ‐ sorriso surpreendente; e os olhos de estrelas brilhavam... 
 
Námo daria tudo para ver o irmão assim novamente; mas desde a execução dos Elfos do Escuro, Vala 
jamais sorriu: somente um sorriso torto marcava o seu rosto de vez em quando, e nos olhos havia uma 
tristeza negra. E Námo desejou dolorosamente dizer algo ao Vala Escuro, para que a dor o deixe pelo 
menos por um instante. Ele procurava palavras ‐ e não as encontrava. Ele somente repetiu: 
 
‐  Melkor...  ‐  e  baixou  os  olhos.  Somente  agora  Námo  notou  nas  mãos  do  Vala  rebelde  uma  espada. 
Espada estranha: a sua lâmina cintilava como uma estrela negra, e uma fina corrente de faíscas brancas 
azuladas corria pelo seu centro. A sua empunhadura acabava com algo semelhante a asas negras, e o 
Olho do Escuro ‐ pedra‐estrela, semelhante a um olhos ‐ brilhava ali. A empunhadura era coroada pela 
foice de uma lua negra. 
 
‐ O que é isso, Melkor? Para que? 
 
‐ O guardião de Arta não pode permanecer desarmado, Námo. Essa é a Espada‐Vingança; você estava 
certo ‐ eu não consigo perdoar. Não poderei esquecer, meu irmão. 
 
Um curto silêncio. Depois ele adicionou: 
 
‐ Um dia, você também fará uma espada. 
 
‐ As minhas mãos não servem para criar algo assim, ‐ disse o Senhor do Destino ‐ e no mesmo instante 
teve medo de ter ofendido o Vala Escuro. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 166 
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‐ E nem as minhas servem para destruir e matar. 
 
Os dois se calaram. Depois Námo perguntou, como se tentasse se desculpar pela involuntária grosseria: 
 
‐ Conte me, o que... significa esse símbolo? 
 
‐ A Onisciência do Escuro, ‐ resposta breve. 
 
Ele tocou a mão de Námo com os dedos gélidos e repetiu: 
 
‐ Eu estou partindo. Até o próximo encontro, meu irmão. 
 
E  de  repente  Námo  compreendeu  o  que  o  torturava  tanto.  Palavras  estranhas  emergiram  do  nada  ‐ 
sobre espinhos e coroa de ferro em brasa ‐ e ele exclamou: 
 
‐ Não, não precisa! Melhor que não haja esse encontro! 
 
‐ Você mesmo sabe, meu irmão ‐ será assim. 
 
‐ Melkor... Meu irmão... 
 
‐ Adeus. 

O Livro Negro de Arda  Página 167 
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SOBRE O PERECIMENTO DAS ÁRVORES DE VALINOR. ANOS 867­869 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
 “Assim, sem ser visto, ele afinal chegou à sombria região de Avathar. Essa terra estreita ficava ao sul da 
Baía de Eldamar, junto aos sopés orientais das Pelóri, e suas praias tristes e longas se estendiam para o 
sul, escuras e inexploradas. Ali, abaixo das muralhas escarpadas das montanhas e junto ao mar frio e 
negro,  as  sombras  eram  as  mais  profundas  e  densas  do  mundo;  e  ali,  em  Avathar,  em  total  segredo, 
Ungoliant havia feito morada. Os eldar não sabiam de onde ela teria vindo; mas alguns diziam que, em 
épocas  muito  remotas,  ela  descera  da  escuridão  que  cerca  Arda,  quando  Melkor  pela  primeira  vez 
contemplara com inveja o Reino de Manwë, e que no início ela fora um dos seres que ele corrompera 
para seu serviço. Ungoliant, no entanto, renegara o seu Senhor, por desejar ser senhora de seu próprio 
prazer, tomando para si todas as coisas a fim de nutrir seu vazio. E ela fugira para o sul, escapando às 
investidas  dos  Valar  e  aos  caçadores  de  Oromë,  pois  a  vigilância  destes  sempre  fora  dirigida  para  o 
norte, e o sul ficara por muito tempo negligenciado. De lá ela se arrastara na direção da luz do Reino 
Abençoado; pois ansiava pela luz e a odiava...” 
 
...O Nada acinzentado e disforme; gerado pelo Vazio e próprio – o vazio, cercado de não‐Luz... 
 
Melkor estremeceu de nojo e rangeu os dentes. 
 
Ele estava perante a cria do Vazio: o Vala Escuro vestido de Escuridão. Perante o Disforme, ele estava na 
sua forma verdadeira, e nos olhos claros e impiedosos havia uma coragem fria. Ele disse: 
 
‐ Siga‐me. 
 
E  foi,  sem  se  virar,  sabendo  que,  obediente  à  sua  vontade,  acorrentada  por  medo  dele,  como  um  cão 
castigado segue o dono, segue a Besta. Ele agora sentia a sua presença atrás ‐ a fria respiração mortífera 
do Vazio. 
 
No pico Hyarmentir, no extremo sul de Valinor, na terra de Avathar – terra das Sombras – ele parou, 
olhando para baixo, para as terras Abençoadas dos Imortais; ele olhou para o norte, e viu ao longe os 
vales cintilantes e grandiosos palácios de Valimar que brilhavam como. E ele viu as Árvores. 
 
...Quando  as  Lâmpadas  ruíram,  o  pavor  tomou  conta  os  Poderes  de  Arda.  E  era  noite,  mas  eles  não 
viram as estrelas; e era dia, mas eles não viram o Sol, pois pela vontade do Único os seus olhos estavam 
fechados,  e até  a  hora certa  foi  lhes dado  somente olhar,  sem  ver.  E  havia  Escuridão;  e  ela  encheu  os 
seus corações de medo, pois eles desconheciam a sua essência e o seu significado. E eles amaldiçoaram 
o Senhor do Escuro e fugiram apavorados para a terra de Aman, que se tornou a Morada dos Poderes de 
Arda.  E  no  monte  Corollairë,  que  se  chama  também  Ezellohar,  eles  se  reuniram.  E  Yavanna  subiu  no 
monte, e invocou o Único. Naquela hora, os demais Valar lhe emprestaram os próprios poderes, e o seu 
chamado foi ouvido. E com o poder do Único e dos Valar foram criadas as duas Árvores de Valinor. E a 
árvore Prateada foi chamadas de Telperion, e a Dourada ‐ Laurelin. E o Escuro recuou diante do não‐
Escuro das Árvores, que não era a Luz; pois onde não há lugar para o Escuro, não existe também a Luz. 
Não  Arda,  mas  o  Vazio  deu  vida  às  Árvores.  E  de  agora  em  diante,  os  Valar  podiam  buscar  forças  do 
Vazio  criado  pelo  Único,  para  realizar  a  sua  vontade  no  mundo;  mas  eles  permitiram  que  o  Vazio 
penetre no mundo, e este Vazio poderia destruir a própria Arta. E os Valar se alegraram, mas Fëanturi 
permaneceram em silêncio, e Nienna chorava. E Valië Yavanna não pôde criar mais nada, pois aquele 
que tocou o Vazio e o aceitou não pode ser um criador. 
 
Era  o  tempo  de  uma  grande  festividade  em  Valinor,  e  por  ordem  do  Rei  do  Mundo  Manwë,  nas  suas 
mansões no topo de Taniquetil se reuniram os Valar, os Maiar e os Elfos. E Fëanáro, o filho mais velho 
de Finwë, também compareceu; mas deixou as Silmarils, sua grande obra, em Formenos. Nem o seu pai, 
Finwë, nem os Noldor de Formenos vieram. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 168 
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Nessa hora, Melkor desceu do pico de Hyarmentir e subiu na colina verde de Corollairë. E a Besta que o 
seguia envolveu as Árvores em não‐Luz. Ela sorveu a sua vida e as secou; e elas se transformaram em 
esqueletos  escuros  e  quebradiços.  Assim  pereceram  as  Árvores,  a  grande  criação  de  Yavanna 
Kementári, e elas jamais renasceriam; e a Besta absorveu o poder das Árvores. 
 
E Melkor desceu da colina; mas a Besta, cercada de não‐Luz, o seguia. 
 
...E  começou  a  noite.  E  os  Valar  se  reuniram  em  Máhanaxar,  e  ficaram  em  silêncio  por  muito  tempo. 
Valië  Yavanna  subiu  o  monte  e  tocou  as  Árvores;  mas  elas  estavam  negras  e  mortas,  e  os  galhos 
quebravam e caiam no chão ao toque de suas mãos. 
 
 “Muitos então elevaram as suas vozes e choraram; e parecia a estes que eles beberam até o fundo do 
cálice de amarguras que Melkor lhes preparou; mas isto não era verdade...” 
 
E  Yavanna  afirmou  que  poderia  ressuscitar  as  Árvores,  se  tivesse  pelo  menos  uma  gota  da  sua 
abençoada  luz.  E  Manwë  pediu  que  Fëanáro  entregue  as  Silmarils  para  Yavanna;  e  Tulkas  ordenou  o 
filho  de  Finwë  ceder  aos  rogos  de  yavanna.  Mas  Fëanáro  respondeu  que  as  gemas  lhe  são  preciosas 
demais, e ele jamais poderá criar algo semelhante a elas. 
 
‐ Pois, ‐ dizia ele, ‐ se eu as quebrar, quebrarei também o meu coração e morrerei ‐ primeiro dos Elfos 
na terra de Aman. 
 
‐ Não o primeiro, ‐ resmungou Námo surdamente; mas poucos compreenderam as suas palavras. 
 
Fëanáro ficou pensativo; mas ele não desejava obedecer à ordem dos Valar. E exclamou: 
 
‐ Isso eu não farei de livre e espontânea vontade. Porém, se os Valar me forçarem, saberei então com 
certeza que Melkor é da sua estripe! 
 
‐ Você disse, ‐ respondeu Námo. 
 
E Nienna chorava. 
 
Naquela hora vieram mensageiros de Formenos; e traziam notícias funestas. 
 
“Pois contaram como uma Escuridão cega chegara ao norte, e no meio dela viera algum poder para o 
qual  não  havia  nome;  e  a  Escuridão  emanava  desse  poder.  Melkor, porém,  também  estava  lá  e  fora  à 
casa de Fëanáro. Ali ele assassinara Finwë, Rei dos Noldor, diante das portas, e derramara o primeiro 
sangue no Reino Abençoado; pois somente Finwë não havia fugido ao horror das Trevas. E contaram 
que  Melkor  arrombara a  fortaleza  de  Formenos,  tirando  todas as  pedras  preciosas  dos  Noldor que  lá 
estavam guardadas; e as Silmarils havias desaparecido...” 
 
O rosto de Melkor parecia feito de pedra: 
 
‐ Eis que nos encontramos novamente, Finwë, o escolhido dos Valar. 
 
A voz do Vala Escuro era calma, mas uma chama fria de ódio ardia nos seus olhos claros. 
 
‐ Eis que nos encontramos novamente, Melkor, escravo dos Valar! 
 
...Diz‐se  que  as  palavras  abrem  feridas.  E  é  verdade.  Não  foi  a  primeira,  e  nem  a  última    vez  que  o 
chamaram de escravo. Isso era sempre a primeira ofensa que vinha a cabeça dos seus inimigos quando 
eles viam as algemas de ferro nos seus pulsos. E isso sempre causava dor. 
 
‐ O tesouro dos Noldor o perturbam? 

O Livro Negro de Arda  Página 169 
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A voz do Vala continuou fria: 
 
‐  Talvez  eu  tenha  sido  um  escravo,  mas  carrasco  e  assassino  dos  próprios  irmãos  ‐  nunca.  Pegue  a 
espada e lute: eu não mato desarmados. E para que os tesouros? Sim, eu levarei as Silmarils, o preço do 
sangue. Mas a sua vida primeiro. Você morrerá. 
 
O  rosto  do  Rei  dos  Noldor  estava  quase  alegre.  Ele  não  tinha  medo  de  morrer  ‐  e  não  porque 
desconhecesse a morte; nos seus olhos, havia um reflexo de insanidade: 
 
‐ Não será assim tão fácil levar a minha vida! 
 
Vala entendeu, de repente, ‐ Finwë sabe que morrerá. Verdadeiramente, Tayli não amou a um covarde. 
‐ E sobre o preço do sangue... Mentira, como sempre! Mentira, mentira! Não foi você que os criou, e não 
tem  nenhum  direito  de  possuir  estas  gemas!  Você  cobre  a  sua  ganância  com  palavras  belas.  Você  é 
simplesmente um ladrão, diga logo ‐ me dê as gemas, pois eu as desejo, assim será mais honesto! 
 
Finwë riu, apertando os dentes ‐ assim seguram o grito de dor na garganta. Nos seus lábios, um sorriso 
de desafio, e dor em seus olhos. 
 
‐ Eu não pretendo argumentar contigo. Basta que vocês me tiraram o que me era mais precioso. Acha 
que  eu  não  sei  quem  criou  a  escrita?  Não  li  aquilo  que  estava  nos  livros  queimados?  Não  conhecia 
aquele, ‐ a cada palavra, a voz de Melkor ficava mais alta e áspera, ‐ não conhecia aquele que devia criar 
essas gemas e as encher de luz viva? Sim, Fëanáro fez isso, mas o plano não lhe pertence! 
 
‐ Mentira! 
 
‐ Você sabe muito bem que não. E sabe que pagará! O preço do sangue – pelo sangue deles. Sua vida ‐ 
pelas vidas deles. O mais precioso ‐ pelo mais precioso. 
 
‐ Eu estou feliz por ter feito isso! Sim, feliz! Agora você não tem poder sobre eles! 
 
As espadas cruzaram‐se. Vala combatia em silêncio, Finwë golpeava‐o com gritos furiosos e insanos. 
 
‐ Sim! Estou feliz! Um milhar de vezes... eu faria... o mesmo! 
 
Os seus rostos estavam muito próximos ‐ olhos nos olhos ‐ sobre as espadas cruzadas. 
 
‐ Até Miríel? A ela ‐ também?! 
 
‐ Não, ‐ riu Noldo, ‐ foi você que a matou! Você! Você corrompeu os espíritos deles e quebrou o coração 
dela! Por sua culpa ela está morta! Se você não existisse, não haveria estas mortes! 
 
Por um instante, um pensamento insano ‐ falar com ele. Fazer entender. No próximo segundo entendeu 
‐ não adianta. Não é o lugar, nem o tempo, e o espírito – propositalmente surdo. E depois novamente viu 
‐ aqueles... “Até por Tayli. Nem mesmo pelos rogos dela haverá perdão para você. Ela lembrou. Agora 
sabe ‐ porque. Mas não tocarei Fëanáro. É o sangue dela...” 
 
‐ Você morrerá, ‐ disse ele, quase inaudivelmente. Não falou mais nada até o fim do combate. 
 
O  próximo  golpe  de  Melkor  acertou‐o  na  barriga,  Finwë  soltou  a  espada  e  caiu.  Melkor  se  curvou‐se 
sobre ele. 
 
‐ Lembre da dor deles. Pois você viu, como eles morriam. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 170 
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O Elfo gemeu abafadamente. Vala olhava nos seus olhos: 
 
‐ Está certo. É inadmissível permitir que um ser vivo sofra tanto, ‐ com um sorriso amargo disse Melkor. 
O último golpe, rápido ‐ no coração. 
 
A  vida  se  agarrou  ao  corpo  por  alguns  instantes  ainda,  e  os  lábios  se  mexeram  quase 
imperceptivelmente.  Vala  estremece  ao  entendendo  qual  é  o  nome  que  morria  nos  lábios  que 
esfriavam. 
 
“Miríel...” 
 
Ele virou‐se e foi embora. 
 
...Ele voltava a Endorë, e levava consigo as Silmarils, o preço do sangue. E as gemas queimavam a sua 
palma como carvão em brasa ‐ o não‐Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz; mas ele somente 
apartava mais o punho. 
 
A  Besta  continuava  o  seguindo.  Ela  sentia  o  próprio  poder  ‐  poder  dado  a  ela  pelo  não‐Escuro  das 
Árvores. E quando Melkor parou, ela o atacou. 
 
Ele sabia que será assim, estava pronto para isso. Mas a dor tirava forças. Ele sentia o único desejo da 
Besta: fugir, escapar para além dos limites deste mundo. E sabia: isso não deve acontecer. 
 
Agora  eles  eram  iguais  em  poder,  e  para  fortalecer‐se,  a  Besta  precisava  somente  de  uma  coisa: 
Silmarils, a última partícula do não‐Escuro de Valinor. 
 
‐ Você não as terá, ‐ disse Melkor. 
 
Ele pronunciou a Palavra do Fogo, e um círculo de chamas se fechou em volta deles, e a Besta não tinha 
poder para sair dele. 
 
Ele pronunciou a Palavra do Escuro, e o Escuro se transformou em seu escudo, e a Besta recuou para o 
limite do círculo. 
 
Ele  perdia  forcas;  preso  a  Arda  pela  palavra  de  Eru,  ele  não  poderia  buscar  forças  em  Ëa,  fora  dos 
limites deste mundo. Parecia que uma voz servil estivesse sussurrando: pegue as forças de Arda, você 
pode fazer isso, você é o verdadeiro Senhor de Arda. Mas ele expulsava esses pensamentos: fazer isso 
significava destruir, transformar em nada uma parte do mundo. Isso não faria parar o Rei do Mundo; 
mas aquele que amou disse ‐ “não”. E agora ele podia contar somente consigo mesmo. 
 
A  dor  tirava  forças  ‐  mas  também  não  permitia  perder  o  controle  de  si.  Ele  pronunciou  a  Palavra  da 
Forma;  e  uivando  de  desespero  e  raiva,  a  Besta  tomou  a  forma  de  uma  enorme  aranha,  monstro 
cinzento de mil olhos. 
 
Ele pronunciou a Palavra da Terra; e a Besta recebeu um corpo mortal. E, chiando de ódio, ele se atirou 
a  Melkor:  aquele  somente  teve  tempo  de  erguer  o  braço,  defendendo‐se,  e  a  curva  garra  afiada 
escorregou  sobre  o  ferro  da  sua  armadura;  Melkor  notou,  na  ponta  dela,  uma  gota  de  veneno 
esbranquiçado. 
 
Restava somente pronunciar a Palavra da Morte, mas ele já não tinha mais forças. A Besta encolheu‐se 
para  saltar.  E então  Melkor gritou,  e  o  seu  grito  ecoou nas  encostas das  montanhas  negras,  e  parecia 
que a própria terra tremeu, como se Arta sentisse a dor e o sofrimento daquele que amou o mundo. 
 
E as montanhas negras lembram da voz de Melkor e da sua dor. Essa memória transformou‐se em eco; 
e Lammoth, Grande Eco, passou a se chamar o vale desde então 

O Livro Negro de Arda  Página 171 
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E  nas  mansões  subterrâneas  de  Ast  Ahe,  os  Ahere  ouviram  o  chamado  do  Senhor.  Como  uma 
tempestade de fogo, um vento ardente eles voaram sobre a terra; e entraram no circulo de fogo; e com 
seus  açoites  de  fogo  expulsavam  para  longe  a  Besta  do  Vazio  ‐  Ungoliant.  Ali  onde  ela  se  arrastara,  a 
terra por muito tempo permaneceu morta por causa do seu sangue e do seu veneno. Nas Montanhas do 
Terror, Ered Gorgoroth, na caverna mais profunda, ela se escondeu dos açoites de fogo, e desde então 
nunca e ninguém a viu, e não é conhecido como pereceu Ungoliant, filha do não‐Existir. 

O Livro Negro de Arda  Página 172 
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A FUGA DOS NOLDOR. ANOS 870­871 DO DESPERTAR DOS ELFOS 
 
 
As suaves pérolas rosadas rolam, cintilando, no cálice de madrepérola. Teleri gostam de pérolas. Seus 
jovens freqüentemente nadam bem longe ao Mar, erguendo do fundo conchas de inigualável beleza, e 
estranhos  peixes  com  nadadeiras  cintilantes  brincam  com  os  mergulhadores.  Quase  todos  os  Teleri 
usam jóias de pérolas, corais e conchas. E até o próprio palácio de Olwë em Aqualondë se assemelha a 
uma  enorme  e  frágil  concha  branca.  Aqui  sempre  há  uma  suave  penumbra,  e  o  palácio  cintila 
ligeiramente na beira do Mar. As ondas avançam e recuam – são elas que cantam? ou estas são as vozes 
dos Filhos do Mar, Teleri? Até mesmo aquele que ouviu as canções dos Vanyar não pode não cair sobre 
o inquieto encanto destas canções. O canto dos Vanyar é para as grandes festividades, para disputas de 
canções; a música dos Teleri – para reflexões, ligeira tristeza e doce sonho... 
 
Nerwen balançou a cabeça, pensativa: 
 
‐ Que canto... Por quê, senhor, os seus súditos comparecem tão raramente nas festas em Valmar? 
 
‐ Nos não gostamos muito de tudo que é barulhento e berrante. E não estamos muito contentes com o 
sossego. 
 
‐ Nem os Noldor. 
 
‐ Não. Vocês buscam outra coisa. Mais exatamente, não tanto achar, mas refazer e domar. Sem bem que 
não serei eu a os julgar. Não sou Noldo. Desculpe se não compreendo direito o seu povo. 
 
‐ Eu mesma já não compreendo... Mas eu também não sou inteiramente Noldë. Posso chamá‐lo de pai, 
pai da minha mãe? 
 
‐ Claro, minha filha. Mas o que a preocupa? O que aconteceu em Valmar? Qual foi o mal que se abateu 
sobre Tirion? Eu já ouvi sobre o exílio do irmão do seu pai. Lamento a tristeza de Finwë, mas Fëanáro é 
merecedor de uma punição. 
 
‐  Meu  pai,  uma  inquietação  surgiu  nos  espíritos  dos  Noldor.  Talvez,  foram  realmente  as  palavras  de 
Melkor que levantaram o lodo do fundo dos nossos corações... Mas, meu pai, por mais terrível que isso 
seja ‐ parece‐me que ele está certo em muitas coisas! Ou as vezes a verdade e a mentira seguem pelo 
mesmo caminho? Poderá isso acontecer?E como, então, diferenciar uma da outra? Sabe, o meu coração 
agora é como um pássaro cativo. Pesa‐me viver aqui. O que eu posso? Todos dizem ‐ você é a primeira 
das donzelas dos Eldar, é a mais forte, mas sábia, mais bela... Para que tudo isso, se eu não posso nada? 
Nada posso mudar  aqui  tal  como  eu  gostaria...  Provavelmente  é  mal  pensar assim,  pois  nos  disseram 
que assim se iniciou o caminho de Melkor. Será que nos, em nossos corações, nos inclinamos ao Escuro? 
Eu tenho medo de mim, eu não me entendo... Eu quero criar ‐ criar no mundo por nos abandonado. Algo 
me atrai para lá. 
 
‐  Mas  talvez  é  assim  que  deve  ser?  Não  haverá  mal  se  você  abrir  os  seus  pensamentos  aos  Grandes. 
Quem, além deles, saberá sobre nós aquilo que nos mesmos não sabemos? Se esta é uma doença, não 
haveria cura, em Valinor, para qualquer mal? 
 
‐ Não, meu pai. Miríel não retornou. 
 
Olwë suspirou. 
 
‐ Não se entristeça. Vá, fale aos Poderes. Não fique triste, minha filha. 
 
Ele  encheu  os  cálices  de  vinho  dourado  e  esverdeado  de  uma  jarra  feita  de  concha,  e  pérolas 
começaram a girar no fundo dos cálices. 

O Livro Negro de Arda  Página 173 
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‐ Esse vinho foi abençoado por Yavanna. Ele te alegrará. Os espíritos como o seu não devem entristecer! 
Filha da minha filha, não fique triste! Saiba ‐ se os desejos do seu coração forem de agrado dos Grandes, 
e se o seu caminho levá‐la às Terras Esquecidas ‐ não se preocupe sobre o navio. Ele já te espera. Veja! 
 
Olwë  levantou‐se  e  foi  a  janela  de  vitrais,  empurrou‐a  e  o  vidro  se  abriu  para  fora.  As  ondas 
esverdeadas e douradas, como o vinho, balançavam levemente os navios brancos e prateados, e as suas 
velas  sonolentas  pareciam  respirar  ligeiramente  sob  a  brisa  suave.  O  vento  remexia  os  cabelos 
acinzentados de Olwë, as mangas largas das suas vestes brancas lembravam as asas de uma andorinha. 
 
‐ Aquele, ‐ apontou o rei. ‐ É o meu navio. Receba‐o de presente, filha da minha filha! 
 
...E o que houve depois? Eldar não sabem esquecer, não receberam esta misericordiosa dádiva. De vez 
em quando, tem‐se involuntariamente inveja dos Mortais ‐ foi lhes dado o esquecimento. Ou isso é uma 
compensação pela morte? Somente os Grandes sabem... 
 
...E a Luz se extinguiu lentamente, e as estrelas cobriram o céu como milhares de feridas sangrando. A 
Luz se extinguia, e o horror erguia‐se nos corações. A noite infinita caiu sobre Valinor, a noite cheia de 
fumaça das tochas, cheia de ira e de dor. 
 
Provavelmente, em crônicas não será escrito assim. E também os sábios falarão de maneira diferente ‐ 
Eldar  nada  esquecem,  mas  nem  tudo  o  que  houve  pode  ser  lembrado.  E  houve  ‐  os  olhos  abertos 
imóveis de Finwë, que pareciam vidro cinza. Pela primeira vez, Nerwen via a morte, e esta era terrível 
pela sua artificialidade. Tão terrível que ela se surpreendeu com a própria calma ‐ ela simplesmente não 
conseguia sentir esse horror. A luz das tochas dava a tudo em volta a coloração de sangue do aço em 
brasa.  Parecia‐lhe  que  Fëanáro  agora  queimará  todos  um  com  um  único  toque...  E  houve  ‐  a  camisa 
ensangüentada de Finwë nas mãos de Fëanáro, enlouquecido de dor e raiva, e ele a atirou no rosto do 
mensageiro dos Valar, os acusando desse assassinato, pois eles eram da estripe de Morgoth. Foi então 
que  esse  nome  ‐  Morgoth  ‐  soou  pela  primeira  vez,  e  o  filho  do  morto  exigia  daqueles  da  estripe  do 
assassino a recompensa pelo pai. Era terrível olhar para ele ‐ e impossível não olhar. Era terrível ouvi‐lo 
‐ e  impossível não ouvir. Como causa dor a mordida do fogo, assim próprio fogo desfaz a escuridão ‐ 
perigoso  e  belo;  assim  as  falas  e  a  aparência  de  Fëanáro  faziam  todos  obedecerem‐lhe  ‐  não  de  má 
vontade,  mas  com  uma  admiração  furiosa  e  cruel.  Artanis  chamou‐a  o  pai  dela,  mas  ela  era  agora 
verdadeiramente Nerwen. E havia o juramento ‐ aquele juramento que selou o destino deles na fumaça 
e  fogo  das  tochas,  no  brilho  feroz  e  vermelho  das  lâminas  desembainhadas...  E  ‐  quase  mais  terríveis 
que  a  ira  de  Fëanáro  ‐  as  lágrimas  de  Nolofinwë,  rubras  como  sangue  nos  reflexos  do  fogo.  Ele  não 
jurava ‐ mas a sua espada, apontada para o céu, era o seu juramento ‐ juramento de vingar o pai. Isso 
era compreensível sem palavras. 
 
Foi exatamente naquela hora que ela compreendeu que tudo mudou. Agora ela deveria partir, mesmo 
não tendo feito o juramento. A vingança a levava, mas muito mais ‐ o desejo de mudar este mundo para 
não  ver  mais,  de  forma  dolorosamente  inevitável,  os  olhos  parados  de  Finwë,  para,  ao  retornar, 
depositar  aos  pés  dos  Valar  um  mundo  livre  de  dor,  tristeza  e  raiva...  Quem  saberia  que  o  mal  mais 
terrível acontecerá em Valinor, que os próprios Noldor serão o mal, que eles levarão esse mal às Terras 
Abandonadas... Quem saberia... 
 
Ela foi primeira a levar notícias detalhadas do ocorrido aos Teleri. Olwë caminhava nervosamente pela 
sala: 
 
‐ Agora você não poderá navegar. 
 
‐ Não, meu pai! Justamente agora! Não há mal em mim. Deve haver pelo menos uma pessoa com eles 
que  poderá  fazê‐los  voltar  a  si?  Eu  sou  do  sangue  deles.  Acreditarão‐me.  Senão,  eles  chegaram  lá 
tomados de imensa ira e fúria, e perecerão todos! 
 

O Livro Negro de Arda  Página 174 
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‐ Mas... 
 
Olwë  não  teve  tempo  de  responder.  Um  Elfo  em  trajes  prateados da  corte  entrou  na  sala  e  disse  que 
Fëanáro exige um encontro... 
 
Ela  lembrava  desse  combate,  curto  e  terrível.  Então  Nerwen  tornou‐se  verdadeiramente  igual  aos 
homens, e o sangue dos irmãos cobria os seus braços até o cotovelo. Isso era terrível e belo ‐ matar, e o 
horror lutava no coração dela com o êxtase. Lembrava como tudo parou por um instante quando ela de 
repente – olhos nos olhos ‐ encontrou com Fëanáro. Depois o destino os separou. 
 
‐ Não fique no meu caminho, mulher, ‐ urrou ele. 
 
‐  Eu  sempre  ficarei  no  seu  caminho!  ‐  respondeu  ela  no  mesmo  tom.  Alguém  gritou  atrás,  e  Fëanáro 
virou‐se, e Nerwen recuou – para auxiliar Olwë. E se ela o tivesse golpeado então ‐ tudo seria diferente... 
Olwë estava ferido, e ela quase o arrastava até os navios. Noldor já cobrias os convés, como formigas, e 
somente o navio do próprio Olwë era ainda defendido. Um massacre atrás, combate em frente – restava 
somente um caminho – abrir o caminho até o navio. Com uma dúzia de Teleri, eles abriram o caminho. 
O  navio  levantou  âncora,  e  do  convés  eles  assistiram,  tomados  de  fúria  impotente,  o  massacre  e  a 
destruição dos outros navios, sem utilidade para os Noldor. 
 
‐ Vá atrás deles! ‐ chorou Olwë, rangendo os dentes. ‐ Vá! Agora eu te peço. Castigue‐os você, se os Valar 
permitiram isso! Vingue‐se por nos, filha da minha filha, Nerwen! 
 
Ela apertou a mão de Olwë em silêncio. 
 
...Na noite que caiu sobre Valinor, cortada pelas chamas dos incêndios, os Noldor viram a alta e sombria 
figura  do  Senhor  do  Destino.  E  a  voz,  terrível  e  impiedosa,  pronunciou  a  sentença  que  quebrou  a 
predefinição de Eru: 
 
‐ Vocês estão expulsos de Valinor, e não há retorno para vocês. Nem mesmo o eco das suas lamentações 
atravessará as montanhas. Amaldiçôo a casa de Finwë, que derramou o sangue dos próprios irmãos, e a 
maldição se abaterá sobre esta casa e sobre todos aqueles que se dispuserem a acompanhá‐los, desde o 
oeste até o extremo leste de Arda. Vocês jamais possuirão por que fizeram o juramento, pois este é o 
preço do sangue. Todas as coisas que iniciarem se voltarão contra vocês. Vocês traíram os seus irmãos, 
e  os  seus  irmãos  os  trairão.  Vocês  derramaram  sangue  alheiro,  e  se  afogarão  no  próprio.  Vocês 
condenaram  os  outros  a  morte,  e  conhecerão  os  tormentos  da  morte,  pesares  e  dores  dos  mortais. 
Agora sentirão, na própria pele, tudo aquilo que por sua culpa os outros – dor e sofrimento, tormentos 
do  corpo  e  do  espírito,  traição  e  tristeza,  impotência  e  derrota.  E  vocês  retornarão  a  Valinor,  e  seus 
espíritos  virão,  então,  às  minhas  Mansões,  e  não  encontrarão  repouso,  pois  eu  os  julgarei  pelos  seus 
feitos.  E  aqueles  que  resistirem  na  Terra‐Média  e  não  retornarem  a  Valinor  que  sejam  por  ela 
renegados,  e  que  vejam  a  própria  vileza  nos  dias  de  chegada  daqueles  a  quem  a  Terra‐Média  foi 
destinada. Eu, Námo, disse. Que seja! 
 
Nem  todos  compreenderam  as  palavras  de  Námo,  mas  foi  pela  palavra  dele.  E  para  a  eternidade  os 
descendentes de Finwë ficaram aprisionados nos subterrâneos de Mandos, e a vontade de Manwë não 
pôde resgatá‐los, pois os Valar não oferecem por duas vezes... 
 
‐ Eu irei para lá mesmo assim, ‐ sussurrava Nerwen. ‐ Eu entendi. Eu sou o castigo dos Valar. Eu sou a 
espada nas mãos deles... 
 
Na noite infinita, o navio de asas prateadas zarpou. Abençoada era Nerwen aos olhos dos Valar, e antes 
do exército dos Noldor as ondas a trouxeram às Terras Mortais, aos domínios de Círdan. 
 
Como  descrever  essa  viagem  solitária  na  escuridão?  Ela  estava  sozinha  a  bordo.  Ela  e  os  seus 
pensamentos,  seu  medo  que  a  chamava  de  volta  aos  pés  dos  Valar,  para  a  confortável  e  calma 

O Livro Negro de Arda  Página 175 
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segurança. E a sua sede de conhecimentos e viagens, tal que não há nada mais poderoso neste mundo. 
Quão bem ela compreendia o irmão, Finarato... Onde está ele agora? Nolofinwë, se não recuou, deverá 
seguir pelo gelo ‐ não há outro caminho, não sobraram mais navios. E dificilmente Teleri ajudarão aos 
parentes dos assassinos, ainda mais contra vontade dos Valar. Sozinhos, abandonados por todos... O que 
restou a eles, além da coragem e da honra? Ela sabia muito bem ‐ eles não desejarão perder os últimos 
restos... Então, aos que não têm culpa – o caminho mais difícil... 
 
Através das neblinas e da escuridão, fora dos dias e anos, o navio voava, e o vento de Endorë atirava 
água  salgada  em  seu  rosto,  vento  trazia  cheiros  desconhecidos  da  terra,  dolorosamente  atraentes,  da 
terra  estranha...  E  estrelas!  Quantas  eram,  quão  forte  elas  brilhavam  aqui!  E  parecia‐lhe  ‐  a  própria 
Elentári ilumina o seu caminho. Realmente, a boa sorte a acompanhava, e ela se tornou a mensageira 
dos Valar... 

O Livro Negro de Arda  Página 176 
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A TERRA DA ESTRELA. ANOS 516­872 DO ACORDAR DOS ELFOS 
 
 
Chegou o dia em que a Estrela levou os Elliri até as margens mar. O mar frio do norte do breve verão 
nórdico. Tudo parecia grisalho, como se uma camada de sal cobrisse e o céu, e as areias pálidas, e as 
ervas; as águas verde‐acinzentadas arrastavam o olhar para algum lugar distante, para o lugar onde o 
céu se unia ao mar, e parecia aos homens que a tão esperada Terra da Estrela emergirá ali a qualquer 
momento.  Eles  ficaram  em  silêncio  e  ouviam  o  sussurro  incompreensível  das  ervas  e  os  suspiros  da 
areia, a voz baixa das ondas e os gritos distantes das andorinhas brancas, e eles compreendiam ‐ o mar 
e  o  vento  falam  com  eles,  lhes  trazem  novas  sobre  a  terra  longínqua,  mas  ainda  não  sabiam  o  que 
significavam  as  palavras  do  vento  e  do  mar.  E  uma  tristeza  incompreensível  aninhou‐se  em  seus 
corações, e alguém disse ‐ são os Feitiços Marinhos, Tellor ‐ força do Mar. E eles amaram o mar para 
sempre. A força do Mar deu força aos seus barcos, e a força do Amor os guardava na viagem. Os barcos 
iam para o norte sob velas brancas como espuma, e nem as tempestades, nem os gelos fechavam o seu 
caminho, e o vento levava nas suas asas as suas embarcações‐cisnes. Feliz foi a sua jornada. E então ‐ na 
neblina  marinha  da  manhã  eles  viram  as  ilhas,  e  flocos  brancos  de  espuma  se  transformavam  em 
andorinhas  voando  sobre  as  rochas,  dando  boas‐vindas  aos  homens  com  seus  gritos.  E  aqueles  que 
viam melhor do que os outros ‐ aqueles viam a Estrela até de dia, exatamente sobre as ilhas. Ela sempre 
permanecia no mesmo lugar, mesmo que as outras se movessem em torno do próprio eixo. E então os 
homens chamaram esta terra como Neyir a havia chamado um dia ‐ Terra‐sob‐a‐Estrela, Elles. 
 
Ainda  nos  dias  de  juventude  da  Arta,  do  seu  sangue  e  seu  fogo,  Melkor  criou  essa  terra  ‐  como  um 
desafio ao mundo imóvel, ainda sem vida. As chamas se debatiam nos cálices dos oito vulcões ‐ como 
vinho  em  taças  elevadas  ao  céu  numa  eterna  festa.  E  com  o  poder  dele,  a  fúria  do  fogo  agora  foi 
aprisionada,  pois  tanto  o  fogo  quanto  o  frio  estavam  sob  seu  poder.  A  grossa  camada  de  fuligem, 
expelida nos dias de insanidade dos vulcões, aquecida pelo fogo de Arta, recebeu as sementes levadas 
até ali pelo vento. Ali sobraram também sementes daquelas plantas que há muito pereceram na Terra‐
Média, e aquelas que jamais haviam existido no resto do mundo. 
 
A terra morna cultivou densas florestas, e levantaram‐se as ervas nas campinas; aves marinhas fizeram 
os ninhos nas rochas, os bosques estavam cheios de animais, e os rios – de peixes. As sementes trazidas 
de Endorë deram fartos frutos, e os homens disseram ‐ é abençoada esta terra, ficaremos aqui! 
 
Eles sabiam e conheciam muitas coisas. Conheciam a força das ervas e das pedras, feitiços e magias, e 
sabiam curar muitas doenças, das quais os homens de Endorë não conheciam remédios. Eles sabiam ler 
sinais  do  céu  e  do  mar,  ouvir  o  vento  e  a  terra,  e  tudo  o  que  eles  descobriam,  gravavam  em  pedra, 
madeira  e  couro  com  sinais  e  desenhos,  e  lembravam  dessa  sabedoria,  fazendo‐a  tomar  a  forma  de 
versos e canções, passadas de geração em geração. Eles tinham poder sobre a madeira, pois conheciam 
a sua alma – e a madeira em suas mãos se transformava em quentes casas e barcos velozes como aves, 
objetos  entalhados,  belas  estátuas  e  quadros.  Poucos  eram  tão  hábeis  nessa  arte  quanto  eles.  E  a 
madeira ganhava voz, e aquele que ouvia‐a transformava‐se num músico e cantor. E estes homens eram 
não menos respeitados do que chefes e sábios, pois eles criavam música e beleza. 
 
Eles conheciam a alma da pedra, e sabiam encontrar gemas coloridas. E valorizavam acima de tudo a 
obsidiana, pois esta era memória e verbo do fogo da terra, e âmbar, pois este era memória e verbo do 
mar. 
 
Eles  conheciam  a  alma  do  mar,  e  as  suas  embarcações  navegavam  para  o  oriente,  pois  assim  dizia  o 
mar, mas eles não buscavam caminhos para o ocidente, a Avallonë e Valinor, pois os seus corações e a 
força do Mar Tellor diziam: ali espera‐os algo funesto. E eles acreditavam a voz do próprio coração e a 
voz do mar. 
 
Eles  conheciam  a  alma  do  metal,  e  em  suas  mãos  ele  tinia  e  cantava,  se  transformando  em  jóias  e 
preciosos cálices, cordas das liras e flechas para caça – tudo que um homem precisava para seu trabalho 
e sua diversão. Só não faziam armas que não fossem para a caça, pois não guerreavam. A vida humana 

O Livro Negro de Arda  Página 177 
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lhes  era  sagrada,  pois  em  cada  um  existia  um  dom  próprio,  que  o  diferenciava  dos  demais;  eles 
chamavam  isso  de  Ando  Tael.  E  se  acontecia  um  homem  morrer  pelas  mãos  de  um  outro  homem,  o 
assassino,  mesmo  que  a  morte  fosse  somente  um  acidente,  preferia  morrer,  não  suportando  o  crime 
terrível.  Eles  valorizavam  a  vida  e  o  que  estava  ligado  a  ela  acima  de  tudo.  Talvez  por  isso  que  eles 
sabiam amar e rir? Talvez porque o maior prêmio para uma pessoa era ver o sorriso no rosto do outro 
em resposta as próprias palavras? Talvez por isso consideravam sagrados a amizade e o amor, e belas 
canções  e  lendas  eram  compostas  sobre  aqueles  que  amavam  e  estavam  dispostos  a  dar  a  vida  pelo 
amado?.. Nem sempre eram alegres as suas canções, pois não viviam na terra de Aman, mas nas Terras 
Mortais – a dor e os perigos não os evitavam... 
 
Eles respeitavam a morte, e despediam‐se em solene tristeza daqueles que partiram, pois um homem 
que seguiu pela vida sem baixar os olhos e sem procurar o sossego é digno de respeito. E não temiam a 
morte, pois sabiam – o Caminho não tem fim... 
 
Eles  construíam  cidades,  mas  não  possuíam  muralhas.  A  sua  capital  se  chamava  Eldain,  Cidade  da 
Estrela.  O  país  era  governado  pelo  conselho  dos  sábios,  Nastari;  e  os  três  dos  mais  sábios  elegiam  o 
governante,  que  se  chamava  aentar.  E  na  sua  bandeira  havia  um  dragão  dourado sob  a  coroa de  oito 
estrelas, sobre fundo negro. 
 
Assim  eles  viviam,  Elliri,  Homens  da  Estrela,  na  Terra  da  Estrela,  que  fica  entre  Valinor  e  a  costa  de 
Beleriand.  Valar  não  voltavam  os  seus  olhares  às  oito  ilhas,  até  um  certo  dia,  e  as  embarcações  dos 
Teleri não penetravam nessas águas... 
 
A mãe do governante era uma grande mulher – daquelas que sabem ouvir e escutar. O farfalhar da areia 
e  o  retinir  das  conchas  brancas  na  praia,  o  vôo  da  andorinha  e  o  silêncio  do  mar  matutino  –  tudo 
possuía  significado  para  ela,  em  tudo  ela  via  sinais  que  nem  todos  conseguiam  compreender. 
Afirmavam que ela ouve as vozes das estrelas, e que o reflexo da lua canta para ela. Em momentos de 
coração sensível – assim dizia ela, ‐ ela ficava imóvel, como uma estátua morta, e depois, ao voltar a si, 
cantava.  E  o  seu  canto  podia  curar  o  espírito  e  o  corpo,  e  as  suas  palavras  eram  verdade  e  profecia. 
Assim um dia ela foi até um homem que era conhecido como um grande marinheiro, e disse‐lhe: 
‐ Saudações, aquele que possui a força de Tellor, filho do mar! Eu vim para tornar‐me a sua esposa, pois 
sei que de nós nascerá aquele que salvara o nosso povo. 
 
E o marinheiro a tomou por esposa, pois sabia que ela sempre dizia a verdade. E ainda porque era bela. 
E do seu casamento nasceu Eayir, aquele que foi eleito governante. 
 
E foi assim: um dia Eayir‐Vidente chegou para o conselho dos Sábios. E assim falou ele: 
 
‐ Por muitas noites seguidas, uma visão me visitou. Eu vi um homem em vestes de Escuridão, e ele me 
pareceu  ser  Aquele  que  Vinha;  e  os  seus  olhos  eram  claros  como estrelas,  mas  brancos  eram os  seus 
cabelos, e o selo da tristeza estava em seu rosto. E ele me dizia, vá e leve o seu povo, pois a sua terra 
está destinada a desaparecer. 
 
Os sábios tiveram um conselho, e foi decidido dar ouvidos à visão, abandonar Elles. E barcos alvos sob 
velas verdes e prateadas levavam os Viajantes da Estrela – para longe, para longe das ilhas, e os Elliri 
levaram consigo as tristes canções de exilados; não havia em Endorë ninguém que se equiparasse a eles 
na arte de compor canções, nem mesmo os Elfos. 
 
E quando os últimos navios zarparam dos portos da Terra‐sob‐a‐Estrela, chamas rubras subiram ao céu 
noturno:  ali,  atrás,  no  fogo  dos  vulcões,  desaparecia  Elles.  E  pereciam  aqueles  que  não  desejaram 
abandonar a pátria... 
 
Oh Elles, eram brancas as asas das suas embarcações, mas hoje 
A fuligem cinzenta cobriu‐as, e foi o vento frio a causa das lágrimas?.. 
 

O Livro Negro de Arda  Página 178 
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Assim  era  a  vontade  dos  Grandes:  eles  não  se  importavam  com  esta  terra,  nem  com  aqueles  que  ali 
habitavam; e saberiam sobre eles os oniscientes Valar? Naquele tempo, Noldor rebeldes abandonaram 
Valinor. E assim decidiram os Valar: não haverá retorno para os desobedientes. 
 
As costas de Valinor e Avallonë se envolveram em neblina: Valar não perdoam aqueles que os renegam. 
E as ilhas de Elles passaram a se chamar desde então Ilhas Enfeitiçadas, e aqueles que pisavam nelas 
não retornavam. 
 
E sobre o país destruído, sobre a terra morta batia, como um coração ferido, a Estrela Meltor... 
 
Assim o povo dos Elliri ganhou um segundo nome ‐ Vayiri, Exilados. 
 
E,  ao  voltar  a  Terra‐Média,  eles  encontraram  uma  nova  pátria  ‐  Es‐Tellia,  Terra‐ao‐lado‐do‐Mar.  No 
ocidente, oriente e no sul, essa terra estava cercada de florestas sombrias. Vivia ali o povo Aoi, Homens 
das  Sombras da Floresta,  que  os  Elliri  em  sua  língua nomearam Foyolli,  Povo  do  Silêncio.  Estes  eram 
baixos e de ossos delicados, com pele alva e translúcida, cabelos negros retos e olhos esverdeados. Eles 
preservavam  lendas  e  mitos  antigos,  a  sua  memória  era  comprida  como  a  sua  vida.  Eles  sabiam 
compreender os animais silenciosos e os pássaros desta terra; viviam às margens de lagoas da floresta, 
e  seus  cabelos  cheiravam  a  ervas  aquáticas...  Não  havia  e  não  haverá  em  Arta  um  povo  que 
compreendesse melhor a língua das ervas, flores e árvores, pois eles eram filhos da Floresta. 
 
Aoi receberam como irmãos os filhos do Norte que vieram do além‐mar. Elliri povoaram a costa, onde 
havia areia branca e afiadas rochas negras, onde o vento cantava nos pinheiros cor de cobre. 
  
E límpida e triste era a felicidade dessa terra ‐ terra daqueles, que sabiam ouvir a dor de Arta... 

Em breve, mais capítulos da parte 3 do Livro Negro de Arda 
estarão disponíveis. Meus agradecimentos a N. Vassilyeva e N. 
Nekrasova pela criação deste maravilhoso fanfict, e a Tatyana 
‘Moriel’ Zabanova pela sua tradução do russo para o português. 
 
 
 
 
 
 
 
 

O Livro Negro de Arda  Página 179 

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