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O Livro Negro de Arda
The Black Book of Arda
Traduzido por
Tatyana ‘Moriel’ Zabanova
O Livro Negro de Arda Página 1
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SUMÁRIO
Nota da Tradutora .......................................................................................................................................................... Pag. 3
Nota das Autoras ............................................................................................................................................................. Pag. 5
Prólogo ................................................................................................................................................................................ Pag. 9
1 – Primeira Parte: O Coração do Mundo
1.1 – O Nome. Os Dias antes dos Dias .......................................................................................................... Pag. 10
1.2 – Assim está escrito nas crônicas dos Fiéis ....................................................................................... Pag. 22
1.3 – Medo. O início dos Tempos ................................................................................................................... Pag. 23
1.4 – Sobre Aulë e Yavanna. O Início dos Tempos ................................................................................. Pag. 26
1.5 – Criações da solidão. O início dos Tempos ...................................................................................... Pag. 31
1.6 – O ferreiro e o aprendiz. O Início dos Tempos ............................................................................... Pag. 32
1.7 – A Primavera de Arda. As Eras das Lâmpadas ............................................................................... Pag. 36
2 – Segunda Parte: Mandaram Esquecer
2.1 – Aquele que se atreve a ver. As Eras das Trevas ........................................................................... Pag. 41
2.2 – O Punhal. As Eras da Escuridão .......................................................................................................... Pag. 47
2.3 – Os Quatro. As Eras das Árvores da Luz ........................................................................................... Pag. 54
2.4 – Gerados pelo Escuro. Do despertar dos Elfos até o ano 487 .................................................. Pag. 56
2.5 – As sete Estrelas .......................................................................................................................................... Pag. 63
2.6 – Sobre a chegada dos Homens .............................................................................................................. Pag. 64
2.7 – Sobre os cavalos alados. Ano 15 do despertar dos Elfos ......................................................... Pag. 67
2.8 – Cálice. Anos 488‐500 do despertar dos Elfos ............................................................................... Pag. 73
2.9 – Absinto. Ano 497 do despertar dos Elfos ....................................................................................... Pag. 77
2.10 – O discípulo e o mestre. Anos 500‐502 do despertar dos Elfos ........................................... Pag. 91
2.11 – O senhor e o servo. Ano 500 do despertar dos Elfos .............................................................. Pag. 104
2.12 – A guerra da luz. Ano 502 do despertar dos Elfos. A Guerra dos Poderes ...................... Pag. 106
2.13 – Festa dos Íris. Ano 502 do despertar dos Elfos .......................................................................... Pag. 112
3 – Terceira Parte: A Coroa de Ferro
3.1 – O cativeiro de Melkor. Anos 502‐802 do despertar dos Elfos ............................................... Pag. 138
3.2 – Sobre Finwë e Miríel. A prisão de Melkor. Anos 654‐655 do despertar dos Elfos ....... Pag. 147
3.3 – Ano 802 do despertar dos Elfos .......................................................................................................... Pag. 153
3.4 – Jardins de Lórien. Ano 803 do despertar dos Elfos .................................................................... Pag. 155
3.5 – Luz nas palmas. Anos 803‐866 do despertar dos Elfos ............................................................ Pag. 160
3.6 – Sobre a morte das árvores de Valinor. Anos 867‐869 do despertar dos Elfos .............. Pag. 168
3.7 – A fuga dos Noldor. Anos 870‐871 do despertar dos Elfos ...................................................... Pag. 173
3.8 – A Terra da Estrela. Anos 516‐872 do despertar dos Elfos ...................................................... Pag. 177
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NOTA DA TRADUTORA
Conhecido em inglês como The Black Book of Arda, The Black Silmarillion ou Chronicles of Defeated (O
Livro Negro de Arda, O Silmarillion Negro ou Crônicas dos Derrotados, em português) é um romance
publicado na Rússia por N. Vassilyeva e N. Nekrasova por volta de 1992, baseado em O Silmarillion de
J.R.R. Tolkien.
De acordo com o livro de Vassilyeva e Nekrasova, o Vala Melkor não era originalmente o Grande
Inimigo da Terra‐média, mas sim um sábio Professor e um mártir, enquanto que o Criador Eru Ilúvatar
e os Valar são representados como tiranos sem remorso. Melkor tentou atuar em Arda de acordo com
seu próprio pensamento, mas isto era contra a vontade do Criador. O conflito entre Ilúvatar e Melkor
causou a expulsão de Melkor e a batalha deste contra Eru e os Valar.
Os primeiros rascunhos deste livro surgiram na Internet no início dos anos 90. Em 1995 ele foi
publicado pela primeira vez. Depois da publicação, as autoras passaram a trabalhar com a Segunda Era,
criando um conjunto de contos sobre Númenor e Harad. Finalmente, em 2000, foi publicada uma versão
reescrita e amplamente modificada do livro, em dois volumes, cada um escrito por uma das autoras. A
essa altura, em meio a jogos de RPG e fanfictions inspiradas em fanfictions, já estava plenamente
incorporado ao universo dos tolkienados russos.
Não diria que concordo com todas as idéias do livro. Em particular, é mais próximo daquilo que penso o
segundo volume da edição de 2000, escrito por Illet. O enredo é simples: na Quarta Era, um oficial do
exército de Gondor é designado para investigar a veracidade de um estranho livro – na verdade o
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próprio Livro Negro de Arda ‐ e interrogar o seu guardião. “Eu não acredito na verdade dos vencedores.
Eu não acredito na verdade dos vencidos. Tanto estes quanto aqueles mentem.”
Mas a versão publicada em 1995 é considerada canônica, e foi essa edição que decidi traduzir, como a
mais marcante, a mais conhecida e sem dúvida a mais controversa. E, principalmente, é a primeira do
gênero.
Para as citações do Silmarillion, usei o livro da Martins Fontes – na maioria dos casos.
As ilustrações foram retiradas de uma edição mais recente do livro (Editora Memories).
Sobre a transliteração e a pronúncia
No livro, há um bom número palavras ‐ nomes de pessoas e lugares principalmente – que foram
mantidos iguais aos originais. Vou me esforçar ao máximo para adequá‐los ao padrão de Tolkien, mas,
por via das dúvidas, listarei algumas coisas aqui:
• CH, H – Tolkien diferencia os sons CH e H, porém em russo esta diferenciação não existe. Nas
transliterações oficiais das autoras, sempre é usado o H, motivo pelo qual o utilizarei em maior
parte dos casos.
• Y – i curto: um i breve, átono, semelhante ao j de algumas línguas nórdicas, a transliteração
correta é j.
Algumas observações gerais
No início era o Verbo. Na versão russa é “Palavra”, e por motivos óbvios não me apeguei à citação
bíblica exata. O russo tem algumas estruturas pseudo‐arcaicas, às quais quase todos apelam ao tentar
dar um ar mais mitológico ao texto. Uma dessas estruturas é o “e” patológico no início da frase. Outra
particularidade do russo é a perda da conotação religiosa de algumas palavras (afinal os 70 anos de
socialismo afetaram bastante o país) alma, inferno, pecado... Certamente há uma porção dessas palavras
no livro, e serão traduzidas literalmente.
Optei por usar “você” ao invés do “tu” e “vós” por motivos puramente paulistas: o “você” me parece
mais adequado.
É bom termos uma breve introdução aos padrões de beleza russos: existe naquela terra uma adoração
generalizada aos indivíduos de pele clara e cabelos escuros. De modo geral, pele clara (mais clara do
que a média) é considerada um grande trunfo: é um resquício do czarismo – os nobres ficavam em casa
e eram branquinhos, e os servos trabalhavam no campo e ficavam bronzeados. Como todo mundo, os
russos têm um gosto por tudo aquilo que é raro na terra deles (por exemplo o nariz levemente aquilino,
das pessoas e não de Águias de Manwë) ou pelo menos um nariz reto: nariz arrebitado é ordinário
demais.
Outra coisa importante, eu citei os 70 anos de socialismo. Além dessa paixão por pele clara há um
conceito totalmente nobre de mãos bonitas, e um interesse bem maior por essa parte do corpo do que,
digamos, no Brasil. Diferentemente da Europa, o ponto não eram mãos e pés pequenos, mas mãos finas
de dedos longos. Novamente, é algo que os camponeses não tinham.
Gostaria de chamar a atenção também para os pseudônimos que as autoras escolheram. Nekrasova é
Illet e Vassilyeva é Niennah. Elhe Niennah, mais exatamente. Isto é muito importante.
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NOTA DAS AUTORAS
...Deve‐se acreditar em si mesmo? Se deve‐se, até que ponto? Deve ser dito ‐ isso é assim, porque eu
quero que seja assim? Porque eu gosto disso? Deve‐se tomar o conto de fadas por realidade?
No início era a Palavra.
E era Palavra – o nome, aquele que “não se enumera mais entre os nomes dos Valar, e não se pronuncia
mais em Arda”. E eram ‐ duas damas pedantes, humanitária e “técnica”, que não acreditaram naquilo
que este nome significa ‐ “Aquele que se ergue em poder”.
No início era a pergunta.
Seria possível lembrá‐la agora ‐ aquela primeira pergunta, para a qual não se acha resposta na
aparentemente lógica narração. E quando a resposta foi encontrada, ruiu o harmonioso esquema, e o
tecido bordado em ouro do belo conto de fadas começou a se desfazer sob os dedos... e ‐ o que está por
traz dele?
No início era o olhar.
Olhar da pessoa não acostumada a dividir as pessoas em amigos e inimigos, vilões e heróis, Escuros e
Brancos. Não acostumada a acreditar cegamente em ninguém e em nada.
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...Nos mesmos temos vergonha de admitir para si que representamos por toda a vida. Representamos
escondidos de nos mesmos. Asseguramos‐nos de que é somente a nossa imaginação, conto de fadas,
que isso é só nosso... e ‐ maravilhamos‐nos com aqueles que atrevem‐se a revelar o conto de fadas
deles, o jogo deles aos outros, os invejamos dolorosamente: pois isso é tão difícil ‐ abrir‐se, porque vão
bater, e o que é pior – rir – aqueles, que não se atreveram. Aqueles, que tiveram medo de fazer eles
mesmos. Nem todos agirão assim; mas mesmo um só golpe é dor... Mas mesmo assim – o jogo, o sonho,
o conto de fadas estão conosco. Até o fim.
Mas o quanto disso é um conto de fadas? O quanto – é jogo?
Um dia, dizem, John Ronald Reuel Tolkien recebeu um parecer interessante de um dos seus
interlocutores ‐ “Não foi você que escreveu ‘O Senhor dos anéis’”. E ele ficou feliz por pelo menos
alguém mais ter compreendido isso.
Um dia, Balzac dizia que a “Comédia Humana” lhe foi ditada por seu gêmeo fantasma. E o “homem
negro” empurrou Mozart para a criação do “Réquiem”.
O que é isso, então? Possivelmente ‐ imaginação do criador. Possivelmente ‐ outra existência, que nem
todos são capazes de ver...
E se ‐ todos?
E cada um vê da maneira dele: a própria face de um todo ou, como se diz atualmente, a própria reflexão.
Mas a maioria mesmo assim segue o Guia. Ele pode ser um escritor que criou um conto de fadas sobre a
visão dele (mas quem e como desenrolou esta visão à frente dele?) ‐ e como resultado, a exaltação, o
maravilhar com a beleza da narração e com o talento do autor cegam e ordenam ver somente assim...
Dizem, somente aquelas obras são verdadeiramente perfeitas, em que você nada deseja mudar, que não
deseja reescrever ou continuar. Essas são poucas, e os livros de J. R. R. Tolkien não se enumeram entre
elas ‐ afirmação que milhares de leitores, que tratam “O Silmarillion” e “O Senhor dos anéis” como a
Bíblia, tentarão contestar. Mas para aquele que está acostumado a não somente olhar, mas também a
ver, é óbvio que nas obras do professor Tolkien nem tudo foi dito.
Vamos falar sinceramente: aquilo que nos chamamos de Arda – existe. Nos acreditamos nisso, ‐cada um
de seu modo, ‐ mesmo se a razão nos diz que isso é um delírio, que isso não pode ser. Isso ‐ é. E ‐ será. E
a nossa maneira de sentir, nossa fé no mundo chamado Arda muda e cria‐o até mesmo agora. E para
aquilo que vocês verão abrindo esse livro ‐ quase a voz do que grita, desesperado, no deserto ‐ olhem
vocês mesmos. Tentem, pelo menos. Só não sigam a nossa trilha. Procurem a própria. Este livro é só
uma tentativa de chamar a atenção.
Como isso começou e porque? Longa história. Diremos só uma coisa ‐ chegou o tempo de acreditar nos
próprios pensamentos, visões, delírios, sonhos ‐ e lógica. A visão buscava aquilo que não foi dito e
aquilo que era incoerente na narrativa de Tolkien. A lógica preenchia as lacunas. As emoções
verificavam a exatidão da suposição. Visões e sonhos ‐ colocavam de frente para o fato: isso foi assim.
...Ou, talvez, tudo começou de uma forma totalmente diferente?
“Então, meu jovem, ‐ disse um Nazgûl na já na terceira idade, com número 24 e o emblema da guarnição
de Morgul costurado na roupa, girando nos dedos o passaporte do espectro jovem e admirado que se
esticava como um cordão na sua frente, ‐ vejamos, o que é que você tem aí...”
Assim era o início. Piadinhas inofensivas, anedotas “da vida da Universidade de Morgul” ‐ mais nada.
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E ‐ a Guerra da Ira, páginas fechadas do “Silmarillion”: somente um ano depois irá compreender que
não as releu nenhuma vez.
E ‐ um nome, quase nunca pronunciado em voz alta.
No início era – o Nome.
Já não há como lembrar, quem disse pela primeira vez: “Eu vi. Foi assim”. Quando pela primeira vez o
“Silmarillion” foi fechado e deixado de lado (“Ouça, mas isso já não presta para nada! Melhor darmos
uma olhada nos mesmas...”). Quem pela primeira vez entoou com zombaria: “Claro‐claro, já que são os
sábios em Eressëa que dizem...”
Quando atrás das lendas sobre vitórias gloriosas, e belos e valentes heróis, pela primeira vez – nem
todo o sangue infiltrou‐se na terra – começou a brotar uma outra verdade.
Já depois – justificativas confusas: “Mas Gardner em seu ‘Grendel’, essencialmente, fez a mesma coisa...”
Já depois: “Mas não foi uma pessoa que escreveu o ciclo sobre Conan...”
Já depois ‐ olhar estranho para o espaço e o artificialmente calmo: “Eu lembro...”
Tudo isso ainda será. Agora há somente – o Nome, e perguntas que, parece, ninguém se fez durante
todo o tempo que passou desde a publicação de “O Senhor dos anéis” e de “O Silmarillion”. E há duas ‐
com inclinação para filologia e história respectivamente ‐ que tiveram a vontade de terminar de
construir o incompleto retrato do mundo.
O livro que você tem agora nas mãos não é uma critica de Tolkien. É uma tentativa de contar sobre Arda
na língua dos Homens, e não na das lendas e mitos élficos.
Se para você “O Silmarillion” é somente um conto de fadas ou “soma das mitologias” ‐ feche o livro: você
errou na escolha.
Se você procura “mais alguma coisa sobre os Hobbits” ‐ feche o livro: aqui não há nem aventuras
divertidas, nem milagres alegres; aqui ninguém atira pinhas em lobos nem leva conversas astuciosas
com um dragão um tanto burro.
Nos não pretendemos dizer a verdade em última instância: olhem com seus próprios olhos, pois
ninguém pode ser objetivo até o fim.
Não nos esforçamos para arrancar a coroa uns e elevar outros, não substituímos o negro pelo branco:
simplesmente ‐ ninguém, nunca e nada perguntou aos vencidos (e eles foram mesmo vencidos?). A
história é escrita pelos vencedores, e a história dos vencedores é “O Silmarillion”.
Nos não inventávamos viradas inesperadas na narração, não amontoávamos horrores: a guerra é cruel
mesmo sem isso, nos todos simplesmente acostumamos‐nos a pensar sobre essa crueldade...
Vejam então, como é ‐ a primeira guerra do mundo.
Vejam, aqueles que faziam de Arda um jogo, que liam maravilhados sobre vitórias sobre o Inimigo, que
saboreava o final feliz ‐ o preço da vitória é este.
E, pode ser, vocês pensarão sobre isso. Sobre porque os vencidos podem estar acima dos vencedores.
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E alguém, como uma criança ofendida, se atirará a defender o belo conto de fadas com cartas iradas.
E alguém vai bater a mão na testa – pois tudo é tão obvio, meu Deus, onde estavam os meus olhos!..
E alguém simplesmente encolherá os ombros e mostrará a costas.
Já vimos tudo isso.
Mas, talvez, ao menos um – pensará.
Vejam: no mundo não há nem o Mal absoluto nem o Bem absoluto. Vejam: a justiça que desconhece a
piedade transforma‐se em crueldade sem sentido.
Vejam.
Estamos abertas. Não nos escondemos. A escolha foi feita. Se alguém ouviu ‐ tudo bem. Se alguém
seguirá o próprio caminho ‐ tudo bem. Se alguém odiar – que seja.
Os narradores não têm espadas.
Niennah, Illet
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PRÓLOGO
Quem sabe, quem dirá, quando surgiu em Arta o Livro que se tornou a memória do mundo? Aquele que
conhece a língua da Grande Sabedoria em que foi escrito poderia ler nele palavras sobre mistérios de
Ëa, sobre como a luz nasceu das trevas, sobre como foi criado o mundo. Talvez, o Livro seja mais antigo
que a própria Arta, talvez tenha surgido junto com o mundo. Que mãos o tocavam nas eras da juventude
do mundo ‐ foram mesmo somente as mãos de Melkor, ou este Livro foi criado pelo pensamento e pela
memória dele? Quem saberia disso agora? Os Sábios silenciam, e os videntes dizem: “Isso está oculto de
nós”. Talvez, somente o Senhor do Escuro saiba – mas quem dará o passo para além do Limiar para
perguntá‐lo, quem dos viventes poderá retornar e contar?
O Livro foi escrito pelo tempo, é o Livro da verdade cuja língua é compreensível a todos, mas poucos o
viram. Ele guarda os segredos da terra e das estrelas, e até mesmo o Senhor do Destino não sabe de
tudo o que ele esconde em suas páginas.
Quem dirá porque os que vão pelo Caminho do Escuro guardam o Livro da Memória? Talvez porque aos
que seguem sob a bandeira da Dor não foi dado o direito de esquecer. Talvez porque o Escuro gerou a
memória e a dor, a luz e a verdade... dizem que o Livro por si só elege o Guardião, e poucos têm forças
para carregar este pesado fardo. Talvez a palavra e o ato mentirosos possam enganar os sentidos, a
mente e o coração, é possível mentir a si mesmo e acreditar nesta mentira, mas o Livro não mente.
O Livro existe enquanto existe o mundo ‐ ou talvez o mundo exista enquanto existir o Livro, quem sabe?
Mas este laço é indissolúvel tal como aqueles laços que mantêm a unidade de Arta. Ninguém pode
alterar uma palavra que seja no Livro da Verdade, mesmo desejando isso com todo o coração, assim
como é impossível reverter o correr do rio do Tempo. Os feitos dos que seguem os caminhos do Escuro
e da Luz, os feitos de glória e de vergonha, os feitos de justiça e de injustiça, do bem e do mal ‐ sobre
tudo isso fala o Livro. É possível ocultar um feito dos olhos humanos e dos olhos dos Imortais, mas
aquele que lê o Livro lê a verdade.
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PRIMEIRA PARTE. O CORAÇÃO DO MUNDO
O NOME. OS DIAS ANTES DOS DIAS
“Havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele criou primeiro os Ainur, os Sagrados,
gerados por seu pensamento, e eles lhe faziam companhia antes que tudo o mais fosse criado. E ele lhes
falou, propondo‐lhes temas musicais; e eles cantaram em sua presença, e ele se alegrou. Entretanto,
durante muito tempo, eles cantaram cada um sozinho ou apenas alguns juntos, enquanto os outros
escutavam; pois cada um compreendia apenas aquela parte da mente de Ilúvatar da qual havia brotado
e evoluía devagar na compreensão de seus irmãos. Não obstante, de tanto escutar, chegaram a uma
compreensão mais profunda, tornando‐se mais consonantes e harmoniosos...”
Assim diz a lenda élfica “Ainulindalë”.
...Ninguém jamais soube, tampouco sabe agora e dificilmente saberá algum dia de onde ele chegou,
quem ele era e porque desejou criar um mundo obediente à própria vontade, separado dos demais
mundos que brilhavam nas profundidades negras de Ëa entre as estrelas incontáveis.
Assim foi o Plano: o Mundo será novo, diferente dos outros. E este mundo será correto e imutável, pois
assim deseja Eru, pois isso agrada a ele. E tudo no mundo será assim como ele disse e tudo que existirá
no mundo estará glorificando o Único.
Então ele criou em Ëa uma esfera fechada, e dentro dela estava o Vazio, que devia tornar‐se uma
barreira separando o mundo de Ëa. Mas o poder para a criação precisou ser tirado do exterior e, desde
o início, a existência de Ëa penetrou na esfera não‐Ëa. E a esfera era somente uma lacuna no tecido
comum, e existia somente graças à Ëa.
E Eru entrou em não‐Ëa, e ali estavam as suas mansões, em que não havia Escuro, mas também não
havia Luz, pois ali não havia nada. “Aqui, ‐ disse ele ‐ Eu criarei o novo mundo”. Mas para que este
mundo fosse diferente, o próprio Criador precisava transformar‐se num novo ser, que desconhecesse
os outros mundos e Ëa. Mas ele não possuía este poder. Ele somente podia fazer‐se cego, esquecer
sobre tudo o que está fora dos limites das suas mansões. E disse ele: “Que fique este mundo cego, e que
por toda a eternidade não veja o Escuro de Ëa. E que este mundo saiba apenas que Eu sou seu Criador e
Senhor. Que seja assim”.
O Escuro primordial acomodava em si os mundos de Ëa, e as mansões de Eru eram o Nada finito entre
as estrelas incontáveis. O Escuro estava em volta – imenso, a tudo dando vida, cheio de força ilimitada.
Ele parecia rir daquele que tentava não vê‐lo, apesar dele mesmo ter sido gerado pelo Escuro. E então
Eru disse: “Que haja nas minhas mansões o não‐Escuro!” E não havia mais Escuro nas mansões dele,
mas isto também não era a Luz, pois a Luz nasce somente no Escuro. E todas as forças de Eru foram
gastas na criação do Vazio e do não‐Escuro, ele as dissipou na luta com Ëa e com o Escuro, com a
memória e com a visão. Então ele foi novamente obrigado a buscar forças em Ëa, e novamente o Existir
penetrou no Vazio. De Ëa e do Escuro, com a força do próprio pensamento e da vontade, Eru criou o
primeiro daqueles a quem ele chamou de Ainur. Mas, ao olhar para ele, Eru assustou‐se, pois viu nele a
encarnação de tudo aquilo que queria esquecer, daquilo que não desejava ver. O primeiro dos Ainur não
era nem parte do pensamento, nem parte dos planos de Eru.
Então Eru pegou a Luz e misturou‐a com o Escuro, pois a Luz não somente expulsa o Escuro, como
também devora os outros fogos. E assim ele criou os outros Ainur, e em cada um deles havia parte do
Escuro e parte da força de Ëa. Todos eles podiam ver e conhecer o Escuro, mas a não‐Luz de Eru cegava
os seus olhos e eles eram obedientes à vontade daquele que os criou. E, para subjugar o primeiro dos
Ainur, o seu filho mais velho, Eru tirou‐lhe o nome e chamou‐o ‐ Alcar.
...O nome não é somente um entrelaçamento de sons. É você, seu “Eu”. E ele, diferente dos outros, está
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privado até mesmo disso. Alcar, Esplendor. O nome é parte de força dele, da sua essência ‐ e foi‐lhe
tirado. Deram‐lhe um outro. Quem fez isso? Para que? Alcar. Alcar. Estranho, frio. Morto.
Ainur devem sentir o nome como uma parte de si, seu “eu sou”. Ele repete os nomes deles, e os rostos
dos Ainur por um momento tornam‐se definidos. É uma alegria ‐ ouvir como lhe chamam por uma frase
musical que se tornou expressão do seu ser. Fundo acorde violeta e púrpura: Námo. Cordão de prata,
luz perolada um tanto amarga: Nienna. Eco esverdeado, com brilho frio: Irmo. Tinir surdo de cobre e
ouro: Aulë.
Estes estão mais perto, semelhantes em algo e ‐ diferentes. E o nome dele não possui nem cor, nem som
vivo. Alcar. Al‐car. Uma pedra morta que brilha. Insuportável tormento ‐ ouvir, mas não foi lhe dado
lembrar um outro nome. Um estranho. Diferente. Por quê? Quem responderia?
No canto dos Ainur soa o eco de uma outra música, mas de onde ele a conhece? Ele perguntava. Não há
resposta. Talvez isso é o dom dele, especial, que o diferencia dos outros? Não. Por quê? Os outros vêem
a bela face de Eru ‐ ele não percebe os traços numa luz inconstante. Por quê? Ou ele é cego? Ele. Quem ‐
ele? Alcar. O retinir de pedras preciosas caindo sobre um vidro. Alcar, Esplendor. Alcar, aquele que não
possui um nome.
E ali, fora dos limites da morada do Único, está o Vazio e as eternas trevas. Assim disse ele, o Único,
Criador onisciente. E o espírito do Ainu estava vazio. Não seria melhor partir para lá, para o Nada que
compõe a essência dele, para não ter que ver os rostos claros e alegres dos Ainur, para não ouvir este
nome ‐ Alcar... Estranho. Diferente. Ele não conhece a alegria ‐ o primeiro presente da existência para
ele foi a solidão e o isolamento. Melhor – não existir, retornar ao Nada, para sempre deixar as mansões
de Eru...
A escuridão caiu sobre ele em uma macia e ensurdecedora ausência de sons. Então, isso que é o Nada?
Mas porque é tão difícil fazer um passo para frente ‐ como se uma enorme mão encostasse no seu peito,
repudiando‐o... Se ele é parte do Nada, porque o Vazio também não o aceita? Será – novamente um
estranho?..
Então ele atirou‐se para frente com a força do desespero, através da parede elástica, e de repente viu.
“É possível que aqui, no Escuro, seja possível ver? – ele ainda pôde pensar, desnorteado. ‐ E não há sons
no vazio ‐ porque eu ouço? O que é isso?.. Música... palavra... nome... Nome?!”
Melkor.
“Meu nome. Eu. Isso ‐ sou Eu. Eu lembro. Melkor. Eu. Isso é o meu “eu sou”. Existência. Vida. Chama
clara. Vôo. Alegria. Isso ‐ sou eu...”
Mas de qualquer modo, mesmo isso lhe pareceu insignificante perto da capacidade de ver. Ele não sabia
o que era isso, mas as palavras arrancavam‐se dos seus lábios e então ele disse: Ahe, Escuro.
E as faíscas claras na escuridão ‐ o que é isso? Ae, Luz... Gele, Estrela... Luz ‐ somente no Escuro... de
onde é que eu sei disso?.. Eu sempre soube... Ele estendeu os braços às estrelas e ‐ ouviu. Isso são as
estrelas que cantam? Ele conhecia esta música, ele ouvia seus ecos nas melodias dos Ainur... Sim, é
isso... Ele compreendeu isso e riu ‐ baixo, como se tivesse medo de fazer a música calar‐se. Mas ela
soava cada vez mais clara e confiante, e seu “eu” era uma parte da Música. Ele tornou‐se uma canção
dos mundos, ele voava no Escuro entre as estrelas incontáveis, chamando‐as ‐ e elas lhe respondiam...
Então ele disse: “Isto é Ëa, Universo”. “Mas ele dizia ‐ Vazio, Nada... Será que ele não sabe sobre isso?
Não viu? Ele, Eru, que a tudo vê?..”
Eru. Ere. Chama.
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“Esse é o nome dele?.. Sim... mas porque então ‐ Único? Quem disse isto? Ou ele também é aquele que foi
privado do nome? E por quê eu consegui lembrar o meu nome somente agora? Será que Eru, Ere, fez
assim? Para quê? Por quê ‐ comigo? Eu preciso entender... Mas se ele não lembra o nome dele ‐ eu
contarei a ele! Eu trarei de volta o nome dele, eu contarei sobre Ëa ‐ eles precisam ver! Eu voltarei, eu
direi: eu vi, eu ouvi, eu entendi...”
Assim Ainu novamente obteve o nome, e a vontade do Único não mais o acorrentava. E o seu
pensamento e os seus planos não eram partes do pensamento e dos planos do Único.
Assim o Único deixou de ser Único, pois agora eles eram dois.
E Ainu Melkor retornou às mansões de Eru: os irmãos o receberam surpresos e tímidos, pois viram que
o aspecto dele mudou. E ele era, entre outros Ainur, como um jovem audaz na roda das crianças. Agora
ele não trajava mais as vestes de luz irisada, mas as do Escuro, e a noite de Ëa caía dos seus ombros
como um manto. E o rosto. Como se estivesse iluminado por dentro com uma cintilação trêmula,
mudando imperceptivelmente ‐ mas mesmo assim definido. O olhar ‐ límpido e decidido, olhos claros
como estrelas.
Corajoso e calmo ele se apresentou a Ilúvatar e começou a falar:
‐ Agora eu vi estrelas incontáveis ‐ Luz no Escuro ‐ e muitos mundos. Você dizia ‐ fora das suas
luminosas mansões há somente o Vazio e as trevas eternas. Mas eu vi luz, e isso era Luz. Diga, como
devo entender as suas palavras agora? Ou você queria que nos mesmos víssemos, e ouvíssemos o Canto
dos Mundos? Talvez cada um deve, por si próprio, chegar ao entendimento...
‐ Eu falei‐lhes a verdade: somente em Mim é o início e o fim de tudo o que existe e a Chama Imperecível
do Ser.
‐ Sim, eu sei, eu entendi: Ere ‐ Chama!
Ele disse ‐ Ere, e neste mesmo instante o semblante de Ilúvatar tornou‐se nítido e definido. E Ainu foi
dolorosamente surpreendido pela ira que desfigurou a face do Criador. Mas como assim? Não é uma
alegria ‐ lembrar o próprio nome? Ou Ilúvatar queria esquecê‐lo? Mas por quê?
...Trono brilhante, vestes luminosas... Como isso tudo parecia falso e ridículo para aquele que viu a
grandeza de Ëa! Assim a criança, querendo brincar de rei, cobre‐se de penduricalhos de cores
berrantes, pensando ingenuamente que a roupa a colocará acima dos outros. Melkor sorriu tristemente.
‐ Você é grosseiro e desrespeitoso. Você diz palavras de revolta e não se dá conta do que fala. Não há
mais nada além de Mim e dos Ainur, nascidos do Meu pensamento. Enquanto a sua visão é somente a
sombra dos Meus planos, o eco da música ainda não criada...
‐ Não, eu vi, eu ouvi o Canto do Universo... Talvez você nunca tenha abandonado a sua morada? Então,
se assim desejar, eu serei seus olhos. Eu contar‐lhe‐ei sobre os mundos... ‐ Ainu sorriu.
‐ Cale‐se. As suas palavras são insanas. Ou você duvidou da minha onipotência ‐ você, cega ferramenta
em Minhas mãos? Ou se atreve a pensar que consegue compreender toda a profundidade dos meus
planos?
‐ Perdoe, mas...
‐ Eu não desejo mais ouvi‐lo.
Melkor partiu, sem saber o que pensar. Ele tentava entender o que fez para provocar a ira de Eru ‐ e não
encontrava resposta: “Mas eu vi”, ‐ pela centésima vez repetia ele para si mesmo. As mansões brilhantes
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pareciam‐lhe agora opacas e sem cor. Aquilo que antes o impressionava pela grandiosidade, revelou‐se
insignificante, pretensioso e digno de pena, não havia ali espaço suficiente para ele, e ele novamente
abandonou a morada de Ilúvatar. Assim começaram as suas viagens em Ëa, e seus pensamentos cada
vez menos se assemelhavam aos dos outros Ainur.
“A Melkor, entre os Ainur, haviam sido concedidos os maiores dons de poder e conhecimento, e ele
ainda tinha um quinhão de todos os dons de seus irmãos. Muitas vezes, Melkor penetrara sozinho nos
espaços vazios em busca da Chama Imperecível, pois ardia nele o desejo de dar Existência a coisas por
si mesmo; e a seus olhos Ilúvatar não dava atenção ao Vazio, ao passo que Melkor se impacientava com
o Vazio. E no entanto ele não encontrou o Fogo, pois este está com Ilúvatar. Estando sozinho, porém,
começara a conceber pensamentos próprios, diferentes daqueles de seus irmãos...”
E Ainu Melkor teve o plano de criar o seu próprio mundo, e em sua alma nasceu a Música cuja melodia
se entrelaçava ao Canto dos Mundos. Assim foi o plano: o mundo será novo, diferente dos outros. Ele
será criado de fogo e gelo, do Escuro e da Luz, e no equilíbrio deles e no combate deles serão criadas
formas mais belas do que as visões geradas pela música dos Ainur e de Ilúvatar. Na sua dualidade, este
mundo será imprevisível, furiosamente livre, e não conhecerá a imutabilidade da calma sem
pensamentos. E aqueles, que virão a este mundo, serão à imagem e semelhança dele ‐ livres; e a Chama
Eterna arderá nos corações deles...
E este mundo pareceu belo a Melkor, e ele estava feliz, pois compreendeu que é capaz de criar.
Assim Ilúvatar deixou de ser o único Criador.
Então Melkor retornou às mansões de Ilúvatar, e a música permanecia na alma dele, e música eram as
palavras dele quando ele falava a Eru e aos Ainur sobre o plano. E esta música era bela e,
impressionados com a beleza dela, os Ainur começaram a cantar junto com Melkor ‐ no início
timidamente e desunidos, mas depois eles começaram a compreender melhor os pensamentos uns dos
outros, e o seu canto soava cada vez mais coordenado, e nele se enlaçavam os pensamentos mais
ocultos deles.
E o seu coro perturbou Ilúvatar, pois ele ouviu na Música o eco do Canto dos Mundos que desejava
esquecer. E ele interrompeu, irado, o canto e não desejou ouvir Melkor, mas decidiu criar a própria
Música para abafar a Música de Ëa.
E Ilúvatar tentou penetrar nos pensamentos de Melkor, mas compreendeu, surpreso, que não é mais
capaz de fazê‐lo. Os pensamentos dos outros Ainur eram para ele um livro aberto, mas em Melkor ele
via agora algo estranho, incompreensível e, por isso, assustador. Ele entendeu só uma coisa ‐ Melkor é
um Criador; e é preciso apressar‐se, antes que ele descubra o próprio poder...
Naquele tempo, Manwë, aquele que era o irmão mais novo do Ainu rebelde nos planos de Ilúvatar,
chegou ao trono de Eru; assim falava ele:
‐ O mais poderoso entre outros Ainur é aquele que tomou para si o nome Melkor ‐ Aquele que se ergue
em poder. Mas o orgulho o cega e inspira‐lhe pensamentos de revolta, como se ele pudesse se equiparar
ao Grande Criador de tudo o que Existe. Certamente, não é à toa que ele oculta de nos os pensamentos
dele; provavelmente, ele planejou algo maligno...
E Ilúvatar inclinou benevolentemente a cabeça, e disse consigo mesmo: “Vejo Eu que não há
pensamentos rebeldes na alma de Manwë. Por isso, no mundo que Eu criarei, que seja ele o Rei, pois é
obediente a Mim e realizará a Minha vontade no mundo que criarei”.
Os Ainur eram cegos ao Escuro; porém entre eles estavam aqueles que viam no Escuro, mas viam
também os desejos de Ilúvatar. Por isso, Ainië Varda chegou ao trono de Eru e disse:
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‐ Senhor! Eu vejo o mesmo que Melkor vê. Mas, se essa é a Sua vontade, ordene ‐ e eu não verei mais.
E Ilúvatar falou:
‐ Você é livre para ver aquilo que desejar. Mas os outros devem ver somente aquilo que Eu desejo. Que
você faça assim.
E, curvando‐se, assim falou‐lhe Varda:
‐ Poderoso é Ainu Melkor, e os pensamentos dele estão ocultos de nos. Mas eu acho que estes
pensamentos são perigosos para nos, e é por isso que ele os oculta. Não somos nos, fracos, que
poderemos combatê‐lo. Mas Você é onipotente: dome‐o então, para que ele não intimide mais os outros
com suas palavras de revolta e não faça nenhum mal. E assim falarei eu agora: eu renego‐o para a
eternidade, pois não há nada acima dos Seus grandiosos planos para mim. E, se Você julgar o renegado
digno de uma punição, que se realize o Seu julgamento justo. Que seja a Sua vontade.
E Eru inclinou a cabeça benevolentemente; e Varda afastou‐se com uma reverência. Então Ilúvatar
pensou assim: “Eu vejo que Varda compreendeu os Meus pensamentos e que ela é obediente à Minha
vontade. Por isso, no mundo que Eu criarei, que seja ela a Rainha, para expulsar das almas dos outros a
revolta”.
E foi assim: Eru convocou todos os Ainur, e ergueu a mão dele, e soou uma Música ‐ aquela que ele
queria lhes dar. Mas ela era parte da música de Ëa, pois também o Único veio de Ëa e, por mais que ele
se esforçasse, não poderia criar algo absolutamente distinto. Somente uma coisa estava ao alcance dele
‐ alterar a Música de Ëa de acordo com a própria vontade. E aos Ainur pareceu que o Único mostrou a
eles, nessa música, mais do que havia mostrado anteriormente e, maravilhados, eles se curvaram a Eru.
Todos, menos Melkor.
E Eru disse‐lhes:
‐ A partir do tema que lhes indiquei, desejo agora que criem juntos, em harmonia, uma Música. E, como
eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema,
cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu porém me sentarei para
escutar; e me alegrarei, pois, através de vocês, uma grande beleza terá sido despertada em forma de
melodia.
Então Ainur começaram a transformar o tema do Único na Música Magnífica. E, ao ouvi‐la, Melkor
compreendeu que Eru deseja criar um mundo belo, mas vazio e sem rumo. Mas a falta de um rumo
transforma a beleza em nada, e a correção e a impecabilidade da simetria fazem a face do mundo se
parecer com uma máscara morta e fria. Então Melkor decidiu mudar a Música de acordo com o seu
próprio plano, não seguindo o plano de Ilúvatar. E a sua canção dizia: “Eu vi Ëa e outros mundos, e eles
são belos. Eu ouvi o Universo, e ouço o mundo que ainda está por nascer ‐ e que ele seja belo, e que Ëa
se enfeite com ele”. E havia entre os Ainur aqueles que repetiam, mesmo que fossem poucos. E a Música
da Criação fazia surgir, para os Ainur, estranhas e belas formas.
...Profundo acorde de muitas vozes ‐ cálice de pedra, cheio de vinho amargo cor de rubi das notas
vibrantes das cordas...
...espelhos que refletem estrelas...
...escadarias que levam para o alto...
...notas agudas das agulhas apontadas para o céu, harmonia das torres sombrias...
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...Como a vagamente preocupante neblina embriagadora nasce sobre as lagoas...
...Como chora com gotas cintilantes o alto céu noturno...
...e se estendem às tristes estrelas as árvores ‐ braços da terra...
...Estas flores estão vivas? O que elas falam? Sobre o que é o seu levemente amargo, picante e inebriante
murmúrio?..
...o acre do escuro dos espinhos de zimbo, amargura de prata do absinto...
...Coma dos frutos dessa terra ‐ e conhecerá a sabedoria do existir. Lave o rosto com a viva água do
córrego da mata ‐ e poderá ver...
...De quem é esta dança no céu ‐ sinais desconhecidos... prata escura ‐ asas do vento... de onde vem esta
música?
Quem é aquele?
Ainda vagas figuras ilusórias: só ‐ finas mãos esvoaçantes, só ‐ olhos brilhantes... Apareceram ‐ e
sumiram; e uma vaga, sem nitidez, tristeza remexeu‐se na alma...
O que é isso?
Ahe. Escuro.
O que é isso?
Ae. Luz.
O que é isso?
Ore, Noite. Gele, Estrela. Ier ‐ Lua...
O que é isso?
Aente, Dia. Saere, Sol.
De repente ‐ uma estridente, amarelo‐esverdiada nota de flauta faz contrair os músculos do rosto.
Diamantes amarelados das notas rolando ‐ impiedosa luz morta, ossos branqueados pelo sol...
Mas se eleva, com escura grandiosidade, negra, cintilando com faíscas azuis, onda; Aheor, Força da
Escuridão é o nome dela.
E afoga‐se o brilhante Vazio: do Escuro nasce a Luz e, como uma estrela tremula, agita‐se nas mãos do
alado Ainu Escuro.
Qual é o seu nome?
Aeanto.
Aquele que traz a Luz...
Orgulhoso e calmo, o Alado estava perante o trono de Eru, e o seu olhar dizia: eu vi.
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“Você não viu nada e não poderia ter visto!” ‐ respondeu o olhar do Único.
E os Ainur viram que o Único sorriu. E ele ergueu a mão esquerda, e deu um novo tema a eles,
semelhante ao tema anterior e ao mesmo tempo diferente: esta música era alegre e confiante, e ganhou
uma nova beleza e força. O Alado compreendeu então, que a música de Eru cria um mundo onde o
Equilíbrio será sacrificado à Predestinação, e a calma imutável deste mundo matará a sua beleza. E soou
novamente a Música do Alado ‐ em dissonância com o tema de Ilúvatar. E na tempestade de sons,
muitos dos Ainur se confundiram, e silenciaram. E a Música de Melkor soava ‐ um violino diabólico:
uma veloz flecha negra. E o Canto se erguia numa onda amargamente salgada, e faíscas esverdeadas
luziam em seu topo ‐ sobre as verdes e douradas ondas densas da música de Eru, ela voava como um
vento gelado e ardente, e rasgava como um punhal a brilhante, irisada de suaves acordes,
invariabilidade surda. E a música do Único se dissolveu, e somente a impensadamente linda voz doente
de um violino solitário ecoa na morada clara: o Tempo nasce da sua inexistência, e o coração do
desconhecido pulsa com o fogo do Movimento eterno...
“Você vê demais”, ‐ respondeu Eru, mas o Alado não baixou os olhos.
Então Ilúvatar ficou sombrio. Ele ergueu a mão direita, novamente jorrou a música, e aos Ainur pareceu
que nunca antes eles haviam ouvido música mais bela.
Melodia de Eru ‐ refinadamente bela, doce e suave, sombreada por uma leve tristeza, corria perante os
olhos dos Ainur com a sedosa transparência cor de água‐marinha das harpas e fitas pastel dos ecos do
cravo ‐ gotas de pedras preciosas escorrendo lentamente entre os dedos.
Mas a música de Melkor também alcançou a concordância: rebeldes e ameaçadoras vozes inquietas das
trombetas ‐ pesada bronze negra, afiado aço escurecido, a prata amarga das tríades em menores. Uma
pontada de dor ‐ a espiral de gelo e estrelas da voz do violino; mãos unidas em súplica ‐ o cintilar das
ametistas escuras ‐ a calma funda e um pouco amarga do violoncelo; o negrume gótico do órgão ‐
grandeza da dor, a fria sabedoria da Eternidade; montanhas desabando, avalanches caindo no abismo...
Em alguns momentos, a Música parecia lutar consigo mesma ‐ sons opacos, vermelhos e salgados; em
alguns momentos, voava para o alto ‐ e, de algum lugar desconhecido, surgia o triste, transparente
como uma fonte, tema de uma flauta solitária, que transpassava o coração trêmulo como uma agulha de
prata. E o ritmo surdo ‐ batimentos do coração ‐ unia milhares de diferentes e estranhas melodias.
Parecia que as paredes luminosas das mansões se derretem, se dissolvem, desaparecem, e com
milhares de olhos olha o Escuro, e o veloz vento negro rasga o ar parado.
...Olhe: a sua frente está o Caminho ‐ a clara lâmina‐facho de gelo; pise nele ‐ o Portão está aberto, você
está livre ‐ como se tivesse enormes asas nas costas. Isso é o fim ‐ é o começo ‐ é uma dádiva
desconhecida... Isso ‐ é a Eternidade olhando para o seu rosto com olhos de ametista da esfinge...
O que é isso?
Você sabe: isso é o Escuro. Veja como a luz nasce no Escuro, brota do Escuro, como das cintilantes
gotas‐sementes escorrem em brotos finos e ainda fracos as estranhas melodias da vida...
O que é isso?
Você sabe: isso são as estrelas, isso são os mundos, isso é o Existir, isso é Ëa. Veja como o Escuro
estende a mão para a Luz: eles não são inimigos, eles são duas metades, duas partes de um inteiro: aeli
ishani tael.
O que é isso?
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Você sabe: isso é a Chama, isso é o fogo eterno do Movimento, isso é o início da contagem do Tempo,
isso é ‐ a vida...
E os dois temas se entrelaçaram, mas não se misturaram, completando um ao outro, mas não se
fundindo. E a Música de Melkor era mais forte, pois com ela irrompia no Vazio a força de Ëa, aquele
Canto dos Mundos pelo qual foi gerada a Música do Alado, que dá a existência, que expulsa o Nada. E
Eru viu que o Alado vencerá nesta luta e que é imenso o poder dele, e não é no Único que está a fonte
deste poder.
“...No meio dessa contenda, na qual as mansões de Ilúvatar sacudiram, e um tremor se espalhou,
atingindo os silêncios até então impassíveis, Ilúvatar ergueu‐se mais uma vez, e sua expressão era
terrível de ver. Ele então levantou as duas mãos, e num acorde, mais profundo que o Abismo, mais alto
que o Firmamento, penetrante como a luz do olho de Ilúvatar, a música cessou.”
Assim, irado, Eru interrompeu a Música, e seu último acorde dizia: “Aquilo que será daí em diante, você
não verá”. E de novo Melkor não baixou os olhos. Mas também o próprio Ilúvatar não poderia ver o que
acontecerá daí em diante.
E quando ele viu aquilo que a Música criou, compreendeu que a força de Ëa o havia vencido. E odiou
Melkor, e em seu íntimo amaldiçoou‐o. Mas os outros Ainur ainda eram obedientes a ele. Então Ilúvatar
falou assim:
‐ Poderosos são os Ainur, e o mais poderoso dentre eles é Melkor; mas, para que ele saiba, e saibam
todos os Ainur, que eu sou Ilúvatar, essas melodias que vocês entoaram, irei mostrá‐las para que vejam
o que fizeram. E você, Melkor, verá que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais
remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não
ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca
imaginou.
E então os Ainur sentiram medo, e não podiam, ainda, entender as palavras que foram lhes ditas;
somente o Alado olhou em silêncio para Ilúvatar e sorriu. Mas o seu sorriso era triste.
Então Eru abandonou as suas mansões, e Ainur o seguiram. E Eru disse a eles:
‐ Contemplem a sua música!
Os Ainur receberam aquilo que lhes pareceu uma visão, transformando em visível o que antes era
Música; mas ninguém, além de Melkor e Eru, sabia que isso não era uma visão, mas a realidade. E Ainur
viram o mundo nas carinhosas mãos do Escuro, mas, por não conhecer o Escuro, o temiam e não o
compreendiam. E Eru colocou em seus corações cegos: Melkor criou o Escuro; pois Eru já não conseguia
ocultá‐lo, somente proibir que o entendam e aceitem estava ao alcance dele. E os Ainur sentiam medo
de olhar para o Escuro e nada viam nele, e por isso não conheciam e não viam a Luz.
Mas enquanto os Ainur olhavam, estupefatos, para o mundo novo, a sua história começou a desenrolar‐
se para eles. Então novamente falou Ilúvatar:
‐ Contemplem a sua música! Este é seu repertório. Cada um de vocês encontrará aí, em meio a imagem
que lhes apresento, tudo aquilo que pode parecer que ele próprio inventou ou acrescentou. E você,
Melkor, descobrirá todos os pensamentos secretos da sua mente e perceberá que eles são somente uma
parte do todo e subordinados à glória dele.
E Alado viu que Eru desejava envergonhá‐lo com estas palavras; e novamente sorriu ele, e estranho era
este seu sorriso, e nem os irmãos dele, nem Ilúvatar o compreenderam.
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E muitas outras palavras disse Ilúvatar aos Ainur naquele momento. Assim isso é contado em
Ainulindalë:
“...E, em virtude da lembrança das suas palavras e do conhecimento que cada um tinha na música que
ele próprio criara, os Ainur sabem muito do que foi, do que é e do que será, e deixam de ver poucas
coisas. Mas algumas coisas há que eles não conseguem ver, nem sozinhos nem reunidos em conselho;
pois a ninguém a não ser a si mesmo Ilúvatar revelou tudo o que tem guardado; e em cada Era surgem
novidades que não haviam sido previstas, pois não derivam do seu passado...”
E Alado viu que, apesar de ter encarnado no mundo os planos do seu coração, o seu trabalho ainda
estava inacabado. E os Ainur surpreenderam‐se ao verem que chegaram ao mundo novas criaturas, que
não estavam nos seus pensamentos. “...E perceberam que eles próprios, na elaboração da sua música,
estavam ocupados na construção da sua morada, sem saber, no entanto, que ela tinha outro objetivo
além da própria beleza. Pois os Filhos de Ilúvatar foram concebidos somente por ele; eles não estavam
no tema que Ilúvatar propusera no início, e nenhum dos Ainur participou da sua criação...”
Então os Ainur viram a chegada dos Elfos, o Primeiro Povo; e os amaram, pois podiam os compreender.
Por isso pensavam pouco sobre os Sucessores ‐ os Homens.
“Ora, os Filhos de Ilúvatar são Elfos e os Homens, os Primogênitos e os Sucessores. Em meio a todos os
esplendores do Mundo, seus vastos palácios e espaços e seus círculos de fogo, Ilúvatar escolheu um
local para habitarem nas Profundezas do Tempo e no meio das estrelas incontáveis...”
Mas Melkor olhava para os homens e via que eles são a encarnação dos seus planos, estranhos e livres,
diferentes dos Ainur e dos Primogênitos. E eles receberam dádivas incompreensíveis aos Ainur:
liberdade e direito de escolha. Eles poderiam mudar não somente o próprio destino, mas também os
destinos do Mundo, e não obedeceriam nem aos Poderes de Arda, nem mesmo ao Único. E, ao morrer,
eles partiam por caminhos desconhecidos, pra além do limiar de Arda, por isso os chamam de
Visitantes ou Forasteiros.
Nem Ainur, nem Eru conheciam a essência ou sentido dessas dádivas, pois estas eram dádivas de
Melkor. Mas depois os Ainur chamaram a Morte de a Dádiva do Único, pois esta era verdadeiramente
grandiosa e incompreensível a eles...
E os mais poderosos dos Ainur inclinaram seus pensamentos àquele mundo que viam, e Melkor foi o
primeiro deles. Mas assim se dizia depois:
“...Desejava submeter à sua vontade tanto Elfos quanto Homens, por invejar‐lhes os dons que Ilúvatar
prometera conceder‐lhes; e Melkor desejava ter seus próprios súditos e criados, ser chamado de
Senhor e ter comando sobre a vontade dos outros...”
Os Ainur olhavam com surpresa e alegria para o mundo novo; e naquele tempo Ilúvatar o chamou de
Pequeno Reino, Arda. As antigas palavras do Escuro, palavras de Ëa eram a língua de Eru e Ainur, pois
Ilúvatar desconhecia outras palavras. Mas, tal como a não‐Luz ofusca os outros fogos e expulsa o
Escuro, assim Eru tornou obscuro o sentido da língua de Ëa, e o significado das palavras foi perdido e
trocado, esquecido e reinventado. Por isso não são muitos os que sabem e lembram que o nome dado
ao mundo era, na língua de Ëa, Arta, Terra.
Coisas distintas atraíam os espíritos dos Ainur no novo mundo. E a água, que se chama Esse na língua
do Escuro, era mais próxima ao Ainu Ulmo. E, ao ver isso, assim pensava Melkor:
“A água corrente leva a tristeza, o marulho traz visões, a água da fonte cura as feridas da alma... Em
verdade, bela é a água... E a aliança da água e do gelo criará o novo e o belo... Veja, meu irmão, os
castelos de gelo, como se fossem fundidos da luz das estrelas; ouça ‐ e ouvirá os galhos congelados das
árvores tinirem no vento, ouvirá flores gélidas se abrirem – inalcançáveis, como vagos sonhos tristes; e
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o mais leve toque da respiração morna os faz desaparecer. E o manto de estrelas de neve cobrirá a terra
no frio, para aquecer os brotos das ervas e das flores, que deverão desabrochar na primavera... Você vê
tudo isso, meu irmão? Que sejamos aliados nos nossos trabalhos, e que o mundo se embeleze com as
nossas criações!”
Mas Ilúvatar começou a falar, e disse a Ulmo:
‐ Não vê como aqui neste pequeno reino, nas Profundezas do Tempo, Melkor atacou sua província? Ele
ocupou o pensamento com um frio severo e implacável, mas não destruiu a beleza das suas fontes, nem
de seus lagos cristalinos. Contempla a neve, e o belo trabalho da geada!..
E Melkor pensava:
“Maravilhosas coisas novas serão criadas pela união do fogo e da água. E haverá no mundo nuvens,
semelhantes a castelos de ar, sempre mundanas e inalcançáveis; e aqueles que virão ao mundo verão
nelas os ecos dos pensamentos e sonhos deles, e as chamarão de Canto do Céu. Sobre as lagoas
noturnas nascerão neblinas, vagas e movediças como miragens, como sonhos semi‐esquecidos... E as
chuvas lavarão a terra, acordando para a vida os vivos. Que seja sólida a nossa união, que se embeleze o
mundo com as nossas criações, que ele se torne a pérola de Ëa!”
E Alado sorriu.
Mas falou Ilúvatar assim:
‐ Melkor criou calores e fogo sem limites, e não conseguiu secar seu desejo nem sufocar de todo a
música dos mares. Admira então a altura e a glória das nuvens, e das névoas em permanente mutação; e
ouve a chuva a cair sobre a terra! E nessas nuvens, você é levado mais para perto de Manwë, seu amigo,
a quem ama.
E assim pensou Ulmo:
“Quão cruel é Melkor, se desejou matar a música da água! Em verdade, não é ele um criador, mas um
destruidor; e prevejo eu que ele se tornará um inimigo a nos”.
E na mesma hora Ulmo desviou o seu espírito de Melkor. E assim respondeu ao Único:
‐ Na verdade, a Água tornou‐se agora mais bela do que o meu coração imaginava. Meu secreto
pensamento não havia concebido o floco de neve, nem em toda a minha música estava contida a queda
da chuva. Procurarei Manwë para que ele e eu possamos criar melodias eternamente para seu prazer!
E quando o Alado ouviu isso, o seu sorriso tornou‐se triste, pois ele compreendeu os desejos de Ilúvatar
e os pensamentos de Ulmo.
Mas enquanto Ulmo falava, a visão apagou‐se, e assim foi porque Ilúvatar interrompeu a Música.
Então houve inquietação entre os Ainur, mas Ilúvatar os chamou e disse:
‐ Conheço o desejo em suas mentes de que aquilo que viram venha na verdade a ser, não apenas no
pensamento, mas como vocês são e, no entanto, diferente. Logo, eu digo: Ëa! Que as coisas Existam! E
mandarei para o meio do Vazio a Chama Imperecível; e ela estará no coração do Mundo, e o Mundo
Existirá; e aqueles de vocês que quiserem, poderão descer e entrar nele.
Assim, pelo nome do universo ‐ Ëa ‐ foi chamado o mundo, e de agora em diante esta palavra significava
o Mundo que É na língua dos Fiéis.
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E o primeiro daqueles que escolheram o caminho dos Valar, Poderes de Arda, foi Melkor, o mais
poderoso deles. Então assim falou Ilúvatar:
‐ Agora o seu poder será restrito pelos limites de Arda, enquanto esse mundo não ficar finalizado
inteiramente. E que seja assim: de agora em diante vocês serão a vida deste mundo, e ele será a sua
vida.
E diziam depois os Valar: assim é a necessidade do amor deles ao mundo, que eles não poderão
abandonar os seus limites.
Mas, ao olhar para Alado, Ilúvatar pensava assim: “Nunca mais você perturbará a Minha tranqüilidade,
e nunca vencerá ‐ um contra todos neste mundo! Que seja a Minha vontade, e que você esteja para
sempre preso a ele pela Minha ordem”.
E Ilúvatar somente atirou ao Alado, em despedida:
‐ Você vê demais!
Mas o Alado nada lhe respondeu e partiu. E treze Ainur o seguiram.
E depois, vendo que Melkor não se resignou à vontade dele, Ilúvatar enviou a Arda o décimo quinto ‐
Vala Tulkas, chamado de Ira de Eru, para que ele combata ao renegado.
...E ele viu o mundo, e pareceu‐lhe ‐ este é o coração de Ëa; uma onda de carinho e de uma tristeza
incompreensível tomou conta da sua alma. E Alado estava feliz ‐ mas a felicidade misturava‐se à dor; e
ele sorria, mas lágrimas estavam em seus olhos. Então ele estendeu as mãos ‐ e o coração de Ëa deitou
nas suas palmas como uma estrela trêmula, e o seu nome era Kor, o que significa ‐ Mundo. E Alado riu
feliz, alegrando‐se com o jovem, belo e indefeso mundo.
...Parecia que aqui não há nada além das nuvens de vapor escuro e chamas furiosas. Somente
relâmpagos branco‐azulados flagelam o caos de nuvens, acertam o mar de fogo escuro. E é quase
impossível adivinhar como será este jovem mundo em fúria. É por isso que os outros Valar receiam
entrar nele: a fúria dos elementos é diferente demais daquilo que foi revelado para eles na Visão do
Mundo.
Ele alegrava‐se, sentindo o poder do mundo que despertava. E não é isso uma alegria ‐ olhar para o
rostinho do recém‐nascido, adivinhar como ele será? Não é alegria ‐ quando sinais desconhecidos de
fogo ganham para você um significado, juntando‐se em palavras de sabedoria? Não é alegria ‐ sentir a
melodia que nasce do caos de sons? Milhares de melodias, milhares de temas se transformarão em
música, atados somente pelo ritmo comum. Milhares de temas, milhares de caminhos, e não é ele que
decidirá agora como será o caminho do mundo, como será a face dele. Somente ouvir. Só se tornando
uma coisa só com este mundo é possível compreendê‐lo.
Ele era o coração ardente do mundo, ele era as montanhas que se elevavam em direção ao céu em
colunas de fogo, ele era o pesado manto das nuvens e deslumbrantes traços dos relâmpagos, ele era o
veloz vento negro... Ele ouvia o mundo, ele era o mundo, uma nova melodia que se enlaça ao eterno
Canto de Ëa.
Por alguma razão ele não temia perder a si dissolvendo‐se nas chamas do mundo. O coração dele batia
forte e ritmicamente, e de repente ele percebeu ‐ aqui está aquele pilar que ajudará o mundo a
encontrar a si mesmo. Se alguém o visse ele agora, o consideraria um deus ‐ terrível, grandioso e belo.
Lentamente acalma‐se a fúria dos elementos, e ele já está no topo de uma montanha, com vestes de
chamas escuras, com asas de fogo nas costas ‐ como a alma do mundo encarnada: coroa de relâmpagos
está sobre a sua cabeça, e o vento negro são os seus cabelos. Ele ergue os braços ao céu, e de repente
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surge um silêncio ensurdecedor: rasga‐se a densa camada de nuvens, e sobre a cabeça dele acende‐se a
Estrela. E soa a Música, e com uma amargura clara a ela se enlaça a voz da Estrela...
De agora em diante será assim para sempre: para ele não há vida sem o mundo, e não há vida para o
mundo sem ele.
Arda, Reino. Arta, Terra. Kor, Mundo.
“Eu dou a você um nome, coração de fogo. E chamo você ‐ Arta; e enquanto soa o seu canto em Ëa, você
se chamará assim“.
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ASSIM ESTÁ ESCRITO NAS CRÔNICAS DOS FIÉIS
“No início era a palavra; e a palavra pertencia ao Criador...
E disse ele: “Ëa! Que as coisas existam!” E surgiu o mundo. E o Único criou o céu e a terra, mas a terra
estava deserta e vazia, e sombras pairavam sobre o abismo. Então ele enviou para aquela terra os
Ainur, e disse‐lhes: “Preparem esta terra para a vinda dos meus Filhos”. Mas junto a eles, também foi a
Arda o Inimigo do Mundo, Senhor do Escuro, pois ele desejou que Arda se tornasse seu domínio. E ele
travou guerras com os Poderes de Arda, e a terra não conhecia paz.
Ele era, no início, o mais poderoso entre os Ainur, e o seu nome era Melkor, Aquele que se ergue em
Poder. Mas ele perdeu o direito de ser nomeado assim, e o seu nome não é mais pronunciado em Arda.
Ele voltou o seu coração para o mal, e Noldor, os que sofreram mais do que outros com a sua maldade,
chamaram‐no de Morgoth ‐ o Inimigo Escuro.
E ele pensava, insignificante, que o pensamento de Ilúvatar, o Criador de Tudo o que Existe, abandonou
o mundo, e que não haverá retribuição para os feitos malignos dele. Mas não era assim, pois o espírito
do Único pairava sobre o mundo e nada estava oculto dos olhos de Ilúvatar. Por isso, preocupado com o
destino de Arda, Único enviou ao mundo um poderoso Ainu, em auxílio aos outros. O nome dele era
Tulkas, e os Grandes chamaram‐no de Ira de Eru. E pela ordem do Rei do Mundo, Vala Manwë, Tulkas
confrontou o Inimigo e o derrotou, e o Inimigo foi expulso do mundo e permaneceu no Vazio por muito
tempo, não se atrevendo a retornar.
E hoje, em glória ao sábio Manwë, cujo rosto brilha com a luz da benevolência do Único, nos chamamos
o primeiro dia do Mundo de Dia de Manwë, o dia em que o Escuro foi expulso do mundo.
E Ulmo ‐ Senhor das Águas, criou os mares e os oceanos, e domou a selvageria das águas de Arda. É o
nome dele que o segundo dia da Criação leva. Aulë, o Grande Ferreiro, domou o corpo de Arda, e criou
montanhas e vales, e confinou as chamas que queimavam o mundo sob a terra. Aquele era o terceiro
dia, e ele leva o nome de Aulë. Yavanna, esposa de Aulë, plantou as sementes das ervas e das plantas,
para que florestas crescessem em Arda – alegria para os olhos do Criador. E era o dia de Yavanna ‐ o
quarto dia. E Aulë forjou as Lâmpadas dos Valar, e a Varda, Senhora das Estrelas, as preencheu com Luz.
E o quinto dia recebeu o nome de Varda, Aquela que traz a Luz. E árvores se ergueram em Arda, e
acordaram ervas e flores. Então Oromë, o Caçador, levou para o mundo os animais, e eles vagavam
pelos vales e sob as cúpulas das florestas. E o sexto dia da Criação foi chamado de dia de Oromë.
Assim foram feitos a terra e o céu e todo o seu exército.
E os Valar olharam para o mundo e viram que isso era bom.
E até o sétimo dia, eles concluíram todos os trabalhos que eles estavam fazendo; e admiraram a beleza
do mundo, e seus corações se alegraram. E o Único estava bastante contente. E no sétimo dia, então,
Manwë convocou os Valar para um grande festejo na ilha de Almaren, e os Poderes descansaram dos
seus trabalhos”.
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MEDO. O INÍCIO DOS TEMPOS
Naquele tempo, eles não eram inimigos ‐ não existia nem a própria palavra “inimigo”. O mundo era
jovem, e não havia alegria maior para os jovens Valar do que criar o novo.
...Aulë estava de pé, fitando o fogo; perante seus olhos, erguiam‐se visões ainda vagas de um novo plano.
Vala Escuro aproximou‐se silenciosamente e ficou ao seu lado.
‐ A chama está dançando...
‐ Você... está vendo algo nela?
‐ Sim. Olha ‐ a lava rachada lembra escamas, negras e douradas e vermelhas, e as chamas ‐ asas...
‐ Como você adivinhou? ‐ Aulë alegrou‐se. ‐ Ah sim, claro! Sabe, eu só agora entendi até o fim, eu agora
mesmo estava pensando sobre isso! Mas será que o vivo pode viver no fogo?..
‐ Tente...
O mais velho dos Ainur traçava, pensativo, uns símbolos estranhos no ar.
‐ O que é isso? ‐ interessou‐se Aulë.
‐ A dança das chamas. Você também achou que isso lembra escritas ou runas?
‐ Que?..
‐ Sinais, para anotar palavras, pensamentos, formas...
‐ Para quê?
‐ Para, ao mudar, não perder uma parte da sabedoria. Nem todos entre aqueles que ainda chegarão ao
mundo serão iguais aos Ainur. Será útil para eles. Isso será chamado – Cyat‐er. Ou – Cyertar. Mas me
perdoe, irmão, eu vejo surgiu um plano em seu espírito. Eu o deixarei...
...Ele criou do fogo, cobre e ouro enegrecido o flexível corpo escamoso da salamandra, as asas – de
chamas, os grandes olhos alongados ‐ de gotas de obsidiana. A criatura negra‐dourada‐vermelha
escorregou da sua palma para o redemoinho do fogo, e Aulë ficou petrificado de surpresa: a criatura
dançava, e na dança do fogo ele adivinhava os mesmos sinais que Melkor havia traçado. A base da dança
era a runa Llah ‐ o Fogo da Terra, e ele pensou que aquela‐que‐dança‐no‐fogo deveria se chamar assim
mesmo ‐ Llah.
Aulë sorria feliz, olhando para a nova criatura, imaginando como Melkor ficará surpreso e alegre ‐ ele
sabia se alegrar surpreendentemente com as criações dos outros... O sorriso continuou assim mesmo
em seu rosto, abrindo‐se em dentes raivosamente arreganhados, quando algo ardente, semelhante a
um aro de metal em brasa invisível, apertou a sua cabaça. Círculos rubros e negros começaram a dançar
nos seus olhos e, com um gemido, ele desmoronou lentamente, murmurando sem voz ‐ por que, por
que, por que...
“Isso não estava no Plano”.
Ele não ouviu mais nada.
‐ ...Aulë... Meu irmão! O que houve... Acorde... O que houve com você?!
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Olhos cor de cobre escuro com minúsculos pontos negros das pupilas. Que nada reconheciam. Cegos.
Mortos.
Ele ergueu Aulë do chão ‐ o corpo do Ferreiro pendia molemente nos seus braços, ‐ sacudiu‐o, olhou nos
olhos, repetindo como a um feitiço ‐ acorde...
Devagar, muito devagar, o olhar de Aulë começou a adquirir algum sentido, mas agora nos seus olhos
havia uma expressão nova ‐ o medo, o horror insano que a tudo devora.
‐ O que aconteceu com você? Está sentindo alguma dor?
‐ Dor... ‐ por letras, num ritmo sem sentido. ‐ Então, isso é que é dor. Eu não agüento mais assim. Não
agüento.
Ele repetia essas palavras infinitamente ‐ uma firme voz morta, balançando devagar de um lado para o
outro. E Melkor começou a entender o que havia acontecido.
‐ Isso... foi por causa do seu plano?
As mãos de Aulë estremeceram:
‐ Não havia isso no Plano. Isso não deve existir.
‐ Irmão!..
Melkor novamente sacudiu‐o com força pelos ombros. Aparentemente, funcionou; Aulë agitou a cabeça
desesperadamente ‐ e de repente começou a sussurrar de um modo confuso, com ardor:
‐ Não posso ver isso, dói... Não quero matar... Porque isso está vivo ‐ eu imploro, faça alguma coisa,
porque me obrigarão a destruir ‐ isso não deve existir, mas eu não quero, não posso...
‐ Venha comigo. Verá, me bastarão poderes para protegê‐lo.
‐ Não, não adiantará, nada mais adiantará... Eu não quero, que ‐ de novo, que fique assim ‐ com você...
Melkor encolheu os ombros, mas permaneceu calado.
‐ Não, é que você não faz idéia de como isso dói... Acredite‐me... Sei, você é forte, você sabe e pode mais
que todos nos juntos...
Vala Escuro reparou consigo mesmo nesse: “você” e “todos nos”.
‐ ...mas ele é mais forte, ele o vencerá... Eu peço, Melkor, meu irmão ‐ resigne‐se... ‐ a cada palavra, aquilo
ficava mais nítido nos olhos de Aulë – aquele, recente, insuportável horror, ele falava cada vez mais
rápido, afogando‐se nas palavras. ‐ Ou ‐ vá, esconda‐se, proteja‐se ‐ compreenda, todos, todos estarão
contra você, todos, até eu ‐ sim, sim, e eu também, porque eu não suportarei, não conseguirei ‐ contra
todos, mesmo que você amaldiçoe, mesmo que despreze, mas eu tenho medo, eu sei que isso é o medo,
eu sei, sei, eu entendo tudo, mas ‐ ficarei com eles... Sei ‐ você não perdoará, já não importa, não há eu,
compreenda, não, isso é somente uma casca, mas dentro dela ‐ nada, além do medo – não há nada; você
não entenderá, você não sabe o que é isso... E depois, algum dia, as suas forças não serão mais
suficientes, então se apresse para criar, você de qualquer jeito não sabe fazer de outra forma, porque de
qualquer jeito esse castigo o alcançará, você será destruído, mas não importa ‐ enquanto pode...
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Ele parou de repente, um gemido soltou‐se dos lábios esbranquiçados – ele caiu no chão, o corpo
contorcendo‐se, agitou‐se brevemente e ficou imóvel.
Isso era um sentimento novo ‐ como uma onda de fogo negro: a ira. Melkor ergueu‐se, cerrando os
punhos, endireitou‐se e, jogando a cabeça para traz, gritou:
‐ Você... Único! Deixe‐o! É fácil dominar aquele que é mais fraco; mas você tente ‐ comigo!
E ele ouviu palavras vindas do nada, do vazio morto e gelado:
“Você disse”.
Ele esperou um golpe, uma dor ‐ não havia nada. Lançando um breve olhar para o céu, ele ajoelhou‐se
ao lado do corpo estendido no chão, colocou a mão sobre a fronte de Aulë e ficou imóvel...
‐ ...Venha aqui, pequena, ‐ baixo e triste, estendendo a mão através das chamas. – Olha só como tudo se
deu...
A pequena salamandra de fogo voou para a sua palma, dobrou as asas e enrolou‐se – pequeno coágulo
de lava fria, só os olhos escuros olham com tristeza e culpa.
‐ Vai viver comigo, fazer o quê... Só que seria melhor se ele também fosse embora conosco, o que você
acha?
A salamandra mexeu‐se e piscou.
‐ Talvez, ele ainda junte coragem...
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SOBRE AULË E YAVANNA. O COMEÇO DOS TEMPOS
‐ Ouça, será que você nunca teve vontade de criar algo seu, totalmente novo?
As pupilas de Yavanna dilataram‐se:
‐ Para quê? Como pode ser possível criar algo mais belo do que o pensado pelo Único? E não é a
felicidade suprema ‐ realizar a vontade Dele, personificar os planos Dele?
‐ Mas não é interessante criar um animal alado ou uma criatura que poderá viver e na água, e na terra?
‐ Para quê? Pois isso significa ‐ desobedecer ao Plano da Criação.
‐ Mas nos também fomos criados pelo Ilúvatar; e significa que não podemos criar nada contrário à
vontade dele.
Yavanna falava em tom de sermão, como se explicasse algo a um Maia‐aprendiz incapaz de
compreender:
‐ Os animais devem viver na terra, ser quadrúpedes e cobertos por pêlos. No ar, vivem os pássaros, na
água ‐ os peixes, cobertos por escamas. Assim foi o Plano. Poderia isso ser de outra maneira?
‐ Claro! Vamos, eu lhe mostrarei!
“Isso não é bonito?” ‐ perguntava Melkor. Yavanna acenava com a cabeça meio incerta, mas a sua fronte
ficava cada vez mais sombria e, finalmente, ela disse, franzindo a testa:
‐ Isso não deve existir. Nos podemos somente realizar a vontade do Único; mas algo assim a contradiz.
Nos somos uma ferramenta nas mãos Dele, e nenhum de nos pode compreender toda a profundidade
dos planos Dele.
‐ Veja, é você mesma que fala... pode ser que essa parte da Visão não é conhecida por você.
‐ Não. Todos os kelvar e olvar deverão ser minhas criações. A ninguém de nos foi dado intrometer‐se
naquilo que os outros fazem. Você, digamos: foi dado a você o poder sobre o fogo e o gelo. Você não
deve criar o vivo. Fazendo isso, você desobedece à vontade do Único. Caia em si, ‐ disse Yavanna
suavemente. ‐ Compreenda, aquilo que você faz é um pecado. Desista. Não há nada acima da vontade do
Único.
‐ ...Veja.
Aulë encolheu os ombros:
‐ São pedras ordinárias, nada de especial...
‐ Ouça atentamente, ‐ Melkor sorriu.
Depois de um breve silêncio Aulë perguntou, surpreso:
‐ O que é isso? Canto... ou música... não entendo. De onde?
‐ Este é o Canto da Rocha. Você gosta?
O Ferreiro olhou para o Alado de forma um tanto estranha:
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‐ Tal coisa não estava no Plano de Eru.
‐ Agora estará. Você não quer mesmo que seja assim? Isso não é bonito?
Algo incompreensível acontecia com o rosto de Aulë. Estava rígido como uma máscara, mas de tempos
em tempos contorcia‐se levemente, e a voz estava rouca quando ele disse:
‐ Ninguém se atreve a mudar o Plano da Criação!
‐ Mas você sabe que nos mesmos criávamos a Música...
‐ Não! Ela foi gerada pelo pensamento do Único, e ninguém poderá mudá‐la contra a vontade Dele!
‐ Veja o que você mesmo diz. Pois Eru queria que este mundo se tornasse belo ‐ e não foi nos dado
embelezá‐lo de acordo com os nossos pensamentos? E o que há de mau nisso, se nos...
‐ Cale‐se! ‐ gritou Aulë com desespero. ‐ Será que você ainda não entendeu: tudo deve ser de acordo
com a vontade do Único, e não como desejamos nos!..
Ele parou.
‐ O que? ‐ perguntou Melkor, abalado. ‐ O que você disse?
Aulë olhou‐o apavorado.
‐ Nada... ‐ a voz dele tremia. Ele inspirou convulsivamente e adicionou, nítido e rispidamente:
‐ Nada. Eu. Não. Falei. Você ouviu mal.
‐ Repita!
‐ Não tenho o que repetir!
‐ Não tenha medo. Eu entendo. Eu o ajudarei, prometo.
Melkor quis segurá‐lo Aulë, mas aquele recuou rapidamente, protegendo‐se com o braço como de um
golpe:
‐ O que você entende?
‐ Sim, Eru ainda tem forças para castigar aqueles que não o obedecem. Eu sei o que é isso. Vença o
medo. Eu te ajudarei. Acredite, todos juntos nos somos mais poderosos do que ele. Nos somos livres. E
ele verá isso. Ele vai entender ‐ deve entender. Não tenha medo. Acredite em si mesmo. ‐ Melkor falava
suavemente, mas nos olhos escuros de Aulë havia somente horror e desespero.
‐ Vá embora, ‐ respirou ele, por fim.
‐ Venha comigo. Então Eru não poderá atrapalhá‐lo.
O rosto de Aulë alterou‐se dolorosamente:
‐ Vá embora, ‐ pronunciou ele, rouco. ‐ Eu peço. Eu ainda virei, virei, mas vá embora agora.
Melkor meneou a cabeça:
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‐ Você nunca virá. E quando nos encontrarmos‐nos novamente...
Ele voltou‐se para o outro lado e repetiu surdamente:
‐ Quando nos encontrarmos‐nos novamente...
‐ Vá embora! ‐ gritou Aulë.
Agora ele sentava no chão, apertando a cabeça com as mãos, balançando de um lado para o outro.
Depois se ergueu, e Melkor viu seus olhos vazios. A voz do Ferreiro era monótona e sem vida:
‐ Aquilo que contradiz os Planos do Único não deve existir.
Ele ergueu o braço.
‐ Pare! Se você fizer isso, você nunca mais ouvirá a voz de Arta... Ouça‐me, eu imploro!
“Não dá para fazer nada pela força, impossível... O abuso do poder gera o mal. Ele deve entender!..”
‐ Não precisa ter medo, está ouvindo? Acredite‐me, ninguém pode nos proibir de criar. Mas se você
começar a destruir, justificando isso com o “assim mandou Eru”, a fronteira entre o bem e o mal deixará
de existir para você. Sobrará somente a vontade de Eru, e você realmente se transformará numa
ferramenta cega na mão Dele... E você deixará de ser um Criador! ‐ expirou Melkor furiosamente.
‐ Cale‐se... eu não devo escutá‐lo! Vá embora! Está me ouvindo, vá embora!
...O fogo irrompeu das rachaduras da terra, e em alguns minutos no lugar do vale havia somente uma
lagoa de chamas ‐ como uma ferida inflamada. E pareceu a Aulë – ele ouviu ou um suspiro, ou um
gemido da própria terra.
E depois veio o silêncio ensurdecedor.
E o Ferreiro escondeu o rosto nas mãos, sem forças para suportar o olhar de Melkor, porque nos olhos
do Alado não havia nada além de dor e compaixão.
... E mesmo assim, ele existe em algum lugar ‐ o vale da Rocha Cantante. Os homens do Oriente contam
sobre ele, e havia Elfos que o viram e ouviram o Canto da Rocha. Se bem que as lendas dos Elfos não
falam sobre isso. Mas o eco da memória vive no nome do reino élfico de Gondolin ‐ Terra das Rochas
Cantantes...
...Mas mesmo assim, Melkor mais uma vez foi até os Valar. Até a Valië Yavanna. Ela o recebeu receosa.
‐ Ouça‐me, ‐ pediu Melkor. ‐ Vocês querem criar um mundo que desconhece a morte?
‐ Sim. Pela vontade do Único, esse mundo será um jardim em flor, e belos animais vão vagar sob as
cúpulas das arvores... ‐ sorriu Kementári, sonhadora.
‐ Vamos supor. Os animais, sem conhecer a morte, vão proliferar e se multiplicar, e muito em breve,
acredite, os alimentos deixarão de ser suficientes. E então?
Yavanna respirou fundo:
‐ Para isso existe o Grande Caçador Oromë...
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‐ Certo. Caça é a alegria e diversão para ele, ele não conhece o cansaço... Mas mesmo assim ‐ é
improvável que poderá dar um jeito em todos os animais. E depois ‐ ali, está vendo dois veados? Como
você acha, o qual deles Oromë vai matar?
‐ Não sei.
‐ Eu te responderei. Aquele que é mais forte e mais rápido: que alegria há em perseguir um animal fraco
e doente? O fraco deixará descendentes; sobreviverão ‐ os mais fracos dos fracos, e isso é degeneração.
‐ Sim... ‐ pronunciou Yavanna, confusa.
‐ E se tentar de um outro jeito?
‐ Como seria?
A criatura que saiu de traz das arvores por um sinal pouco notável de Melkor movia‐se suavemente e
silenciosamente, flutuava sobre o solo; somente os músculos rolavam sob o pelo macio, cinza prateado
com manchas escuras de mármore. Olhos verdes pareciam luzir com luz própria: leopardo das neves.
‐ Bonito?
‐ Sim... Que maravilha... ‐ suspirou maravilhada a Valië.
Melkor sorriu ironicamente:
‐ Só que não é de graminha que ele se alimenta. Ele necessita de carne para sobreviver. Olha, que
caninos!
‐ Que horror, ‐ Yavanna recuou.
‐ Não mais do que as diversões de Oromë. Só que este não vai matar por diversão. Somente o necessário
para ele mesmo sobreviver. E em primeiro lugar ‐ os fracos e os doentes. Sobreviverá aquele, cujas
pernas são mais fortes, cuja respiração é melhor, cujo coração bate com mais ritmo ‐ para fugir da
perseguição. Sobreviverá aquele que tem uma visão mais aguçada, e o ouvido mais apurado ‐ ele
perceberá o inimigo a tempo. Sobreviverá aquele que tem chifres mais afiados, os cascos mais duros ‐
ele poderá defender‐se. E o predador que não conseguir chegar perto da presa despercebido ou
alcançá‐la, não poderá existir. Equilíbrio.
‐ Mas... Isso é cruel!
‐ Falo novamente: não mais que as diversões de Oromë.
‐ E você quer que esses vivam em todos os lugares?
‐ Não. Esses ‐ nas montanhas; nas florestas e nas planícies ‐ totalmente diferentes.
‐ Você... Você é cruel! Sim, sim, cruel! Você quer trazer a morte ao mundo!
‐ A morte e a vida são os dois lados da existência. Morte chegará ao mundo ela mesma. Alias, já chegou.
E não há nisso nem minha culpa, nem meu mérito. Será que você não vê?
Yavanna ergueu‐se bruscamente:
‐ Cale‐se. Vá embora daqui. Eu não quero ouvi‐lo.
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Melkor também se levantou:
‐ Eu peço, pense. Ouça...
‐ Eu lamento ter lhe dado permissão para falar. Vá embora! É certo o que falam de você: você é o
inimigo, o impiedoso mal cego!
‐ Você mesma verá que eu falei a verdade, ‐ respondeu Melkor surdamente.
‐ Eu não quero ver nada! Vá embora! Vá, está ouvindo?!
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CRIAÇÕES DA SOLIDÃO. O COMEÇO DOS TEMPOS
...Os homens não virão até aqui – até a terra noturna das geleiras eternas, o imortal reinado do frio para
onde ele se retirou, atormentado pela dor de Arta. Mundo vivo e jovem, que os Valar domavam,
refazendo‐o de acordo com a vontade e com os planos de Eru. Simplesmente como uma afiada faca
corta o corpo de uma criança. Ele tentou falar, não o ouviam. Ele tentou mostrar‐lhes ‐ aqui, vejam, pois
mundo existe, ele espera somente o toque das suas mãos, vocês estão despedaçando o vivo... Eles não
viram. Ele falava ‐ vocês estão matando a sua música, porque esta música ‐ é a sua música! Eles não
entendiam. Ele implorava ‐ a quem – a quem ou a que vocês desejam adular? ‐ vocês sacrificam os seus
planos, o mais sagrado do santuário das suas almas?! Eles viraram‐se contra ele. A guerra, na qual não
havia vencedores. E ele quase não tinha mais forças.
Também os Valar não virão até aqui ‐ às montanhas na fronteira do reino da noite eterna de inverno.
Somente a Coroa no céu: sete ‐ fragmentos de gelo, uma ‐ chama clara.
Helgor ‐ Montanhas Geladas. Helgor ‐ gelo amargo. Helgor, tristeza.
Montanhas coroadas por torres talhadas no gelo da noite eterna. Somente mais tarde este primeiro
refúgio do Vala Escuro será chamado de Utumno; agora ninguém sabe sobre este lugar, e ele vaga,
solitário, pelas salas subterrâneas. Novamente ‐ só.
Eles tornaram‐se criações da sua solidão ‐ aqueles a quem os homens do norte mais tarde chamarão de
Espíritos do Gelo. Ele deu‐lhes o corpo de neblina gélida e asas de tempestade de neve, vestes de
chamas de gelo cintilantes e frias estrelas dos olhos, pureza cristalina dos pensamentos e vozes
semelhantes ao sussurro dos pedacinhos delicados de gelo e ao tinir dos galhos congelados. De alguma
maneira, eles pareciam humanos, mesmo que a aparência e a essência deles fossem outros.
Se os Espíritos do Gelo conhecem o amor, eles deviam amavam o criador deles. Eles raramente
apareciam na morada dele ‐ mais freqüentemente ele é que ia até eles, e o estranho mundo cintilante
que eles criavam e do qual faziam parte presenteava‐o com breves minutos de sossego, e a solidão o
atormentava menos.
Eles eram sábios e belos. Mas eles não eram humanos.
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O FERREIRO E O APRENDIZ. O COMEÇO DOS TEMPOS
Grande era o poder dos Valar, mas também os imortais podem cansar‐se dos seus trabalhos. Por isso
assim foi: o Rei do Mundo reuniu os Poderes de Arda e disse a eles:
‐ Tal como o Único criou os Ainur, frutos do pensamento Dele, agora criaremos nos também auxiliares
para si, e eles serão parte do pensamento dos Grandes. E como Ainur ‐ ferramentas na mão do Único,
cuja vocação é realizar a vontade Dele, assim eles se tornarão ferramentas em nossas mãos, e ser‐lhes‐á
dado o nome ‐ Maiar. E eles serão nossos servos e nossos discípulos, povo dos Valar. E que crie cada um
para si Maiar à própria imagem e semelhança. E Eru colocou no meu coração que este feito será de
agrado Dele, e Ele dará vida às nossas criações como antes Ele deu a vida aos Ainur.
E foi de acordo com as palavras dele.
“Vocês serão meus discípulos, mas não meus servos, e serão diferentes de mim ‐ pois para quê criar
algo à própria semelhança, o próprio reflexo, a própria sombra? A noite de Ëa dar‐lhes‐á a sabedoria,
Arta ‐ poder, e eu lhes darei a alma. Que os seus corações se abram para o Canto dos Mundos, que seus
olhos vejam a beleza do Universo. A sua alegria tornar‐se‐á a minha alegria, e sua dor ‐ a minha dor,
meu discípulos: como poderia ser diferente?..”
O Maia mais velho abriu os olhos e, ao ver o rosto daquele que se inclinava sobre ele ‐ belo, sábio e
inspirado ‐ sorriu, estendendo as mãos para o Alado, como uma criança. E Vala, sorrindo também,
colocou as mãos sobre a fronte e o peito do discípulo. Maia fechou os olhos.
“Parte do meu pensamento, parte da minha força, parte do meu coração ‐ meus discípulos...”
...Uma onda atordoante de ódio alheiro desabou sobre ele, derrubou‐o, atirou‐o à cratera uivante do
vazio veloz, tirando a consciência e as forças. Ele deixou de ver e ouvir, ele perdia a si; ele não lembrava
nem do que houve com ele, nem de quanto durou este tormento. Somente quando isso tudo acabou, o
escuro tocou suavemente o rosto febril, e estrelas olharam nos olhos dele...
‐ ...Você sofreu mais do que todos por causa do Inimigo, Grande Ferreiro; que agora as criações do
Inimigo tornem‐se seus servos, para o golpearmos com as armas que ele mesmo forjou. Ou talvez, com
auxílio destas criaturas, nos poderemos penetrar na mente de Melkor, nas profundezas sombrias dos
planos dele, pois essas criaturas são, em essência, parte da mente dele.
‐ Imensa é a sua sabedoria, Manwë, realmente você é o Rei do Mundo, você, o mais poderoso de nos.
Que seja assim como você diz.
...As mãos de alguém deitaram sobre os ombros dele. Não aquelas ‐ fortes e carinhosas, apesar dessas
palmas também irradiarem força. Ele abriu os olhos. E o rosto inclinado sobre ele era outro...
‐ Quem é você?
‐ Eu sou seu criador, senhor e mestre, eu sou Aulë, o Grande Ferreiro, senhor de tudo que é corpo de
Arda.
‐ E onde está ‐ aquele?
‐ Quem? ‐ o olhar dos olhos escuros de Aulë tornou‐se tenso, quase assustado.
‐ Aquele, de olhos límpidos, alado... Quem era ele?
A voz áspera do Ferreiro arranhava os ouvidos:
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‐ Isso foi uma visão sua. Alucinação. Você imaginou. Esqueça.
O Maia respirou baixinho. “Alucinação... que pena...”
‐ E eu? Quem eu sou?
‐ Você é um Maia, criação da minha mente. E dar‐lhe‐ei agora um nome ‐ Aulendil, servo de Aulë. Você
se tornará o meu auxiliar nos meus trabalhos e realizará a vontade o Único e dos Poderes de Arda.
...Irmãos ‐ mas quão diferentes um do outro, em espírito e corpo... O melhor aluno ‐ Artano, o mais
habilidoso ‐ Curumo. Um ‐ zombeteiro, audaz, outro ‐ calado, aplicado e esforçado. Um ‐ mestre, outro ‐
artesão. O mais velho tem os olhos de Melkor, o espírito de Melkor; o mais novo é quieto, bondoso e
submisso, dá até tristeza: mandaria para longe, só que não tem porquê... Mas com Artano, o Ferreiro
freqüentemente era severo e pouco afável: temia as perguntas estranhas, quase heréticas, do Maia, para
as quais não se atrevia a buscar respostas, as dúvidas dele, a impetuosidade dos pensamentos e
decisões... Gerado pelas Chamas, ele próprio também uma chama furiosa e desobediente: Artano
Aulendil, Artano Aikanaro... E era apavorante pressentir que algum dia a memória adormecida no fundo
dos olhos iguais a duas estrelas luminosas acordará. E então ele partirá ‐ e o castigo do Único o
alcançará, tal como alcançou o seu criador...
Um dia, Artano trouxe‐lhe um punhal ‐ o primeiro objeto que fez sozinho; e novamente o medo
despertou na alma do Ferreiro. Seres flexíveis com olhos de fogo se enlaçavam sobre o cabo, lembrando
dolorosamente aquela, alada, que‐dança‐na‐chama. Aulë via a ofensa amarga nos olhos do discípulo: e
ele que pensava que o mestre compartilhará a alegria dele, pois é a primeira criação... E ouviu ‐ palavras
frias e indiferentes. “Será que você compreenderá ‐ não sou eu que falo, é o meu medo, a minha dor...
Você é querido demais para mim, e eu temo por você...” Não compreendeu. Não quis. E a partir daquela
hora, era como se uma muralha de isolamento tivesse se erguido entre eles.
O próprio Aulë há muito se conformou com o destino dele; da vida anterior restou somente a amargura,
saudade abafada. Ele tentava não recordar ‐ e, provavelmente, até conseguiria fazer isso, se não fosse
Artano...
E o Maia ainda não conseguia esquecer daquele, do primeiro que ele viu ao acordar. À toa ele procurava
os traços do Alado nos rostos dos Valar; e então um pensamento estranho brotou em seu espírito ‐
pensamento que lhe pareceu insano. Ele expulsava‐o, mas o pensamento não ia embora; e um dia ele se
atreveu a fazer a pergunta ao Ferreiro:
‐ Eu ouvi muito sobre o Inimigo, mestre, mas até agora eu não sei quem ele é e que nome leva. Como é a
aparência dele? Porque ele é hostil aos Grandes?
O medo piscou nos olhos de Aulë ‐ agora o Maia via isso claramente; as palavras soaram decoradas e
artificiais:
‐ Ele viu, ele, que leva o nome de Melkor ‐ o que se ergue em poder, que Arda está se transformando
num maravilhoso jardim, deleite para os nossos olhos, pois as tempestades dela foram domadas. E ele
viu também que os Poderes de Arda adquiriram aparências belas e nobres, semelhantes às das Crianças
do Único. E a inveja estava no coração dele, e ele também tomou uma forma visível ‐ escura e terrível
como o espírito dele, pois a raiva ardia dentro dele. Assim ele entrou em Arda, ultrapassando em força e
grandeza os outros Valar; mas a destruição é a força dele, o mal ‐ o poder, e na grandeza dele há
somente horror. Ele se assemelhava a uma montanha cujo pico está acima das nuvens, com um manto
de gelo e coroa de chamas, e o olhar dele queimava como fogo e era penetrante como frio. No passado,
grandes dádivas de poder e de sabedoria foram dadas a ele, mas ele se atreveu a se rebelar contra o
Único. Inveja e ódio secaram a alma dele, e agora ele não pode criar mais nada ‐ além de zombarias com
as criações dos outros. Por isso, a alegria dele está na destruição, e é por isso que o nome dele não se
enumera mais entre os nomes dos Valar.
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Artano pensou por muito tempo, e em seguida perguntou novamente:
‐ Mestre, responda, de onde há nele a raiva e o ódio? Você mesmo dizia que todos os Ainur são criações
da mente do Único; e não há nada nos planos deles que não tenha Nele o seu início. Mas isso significa
que o mal também fazia parte da mente de Eru...
Aulë ficou boquiaberto.
‐ ...E conte‐me, o que é que ele invejou ‐ o mais poderoso entre os Ainur, que tinha parte nos dons de
todos os seus irmãos?
O Ferreiro finalmente recuperou a fala:
‐ Como você se atreve a pensar algo assim! Como você se atreve a insultar o Criador de Tudo o que
Existe! Ou você pensou, besta insignificante, servo indigno dos Grandes, que pode compreender toda a
profundidade dos planos do Criador do Mundo?!
Maia recuou um passo involuntariamente ‐ tão inesperado foi este acesso. A voz do Ferreiro soava
irada, mas os olhos imploravam – cale‐se, cale‐se...
‐ Mas, Mestre, eu...
‐ Saia da minha frente!
O Maia se retirou, sem saber o que pensar; tanto essa ira demonstrativa, quanto o medo oculto eram
igualmente incompreensíveis para ele. Ele entendeu: nem todo o pensamento pode ser pronunciado em
voz alta, nem toda pergunta pode ser feita ‐ até para o mestre; e nem para todas as perguntas o mestre
conhece a resposta.
E quando Artano retornou, Aulë perguntou a ele:
‐ Você arrependeu‐se das suas palavras?
E, novamente, o Maia imaginou notar nos olhos do Ferreiro ‐ a súplica; e cedendo à súbita compaixão,
ele respondeu, baixando os olhos:
‐ Sim, ‐ e adicionou, ‐ senhor.
Senhor. Não mais mestre. “Está tudo certo ‐ o que pode ensinar um covarde?” ‐ com tristeza pensou o
Vala, mas falou em voz alta uma outra coisa:
‐ Você expulsou os pensamentos rebeldes do seu espírito?
‐ Sim, senhor, ‐ sem levantar os olhos respondeu o Maia.
E o Ferreiro acreditou. Era apavorante demais ‐ não acreditar.
‐ ...O você está fazendo, Grande Ferreiro? Para que servirão estes cálices enormes?
‐ Assim disseram os Valar: que seja expulso do mundo o Escuro, que reine ali a Luz eterna. Por isso nos
ergueremos as Lâmpadas no norte e no sul.
‐ Porque você não chamou nenhum de nos, seus discípulos, para que nos o auxiliássemos em seus
trabalhos?
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‐ Vocês ainda não compreenderam o suficiente a profundidade dos planos de Eru. Este é um feito para
mim, os seus poderes não bastam.
‐ Senhor, você disse ‐ Luz... O que é isso?
‐ Luz destrói o Escuro ‐ o Mal: Luz é a vida, como o Escuro é a morte. Eru nos ordenou destruir o Escuro,
para dar vida ao mundo. Como aquele que criou o Escuro foi expulso para lá dos limites de Arda, assim
agora expulsaremos também o próprio Escuro, e haverá o dia eterno.
‐ ...Veja quão belas são as Lâmpadas!
‐ Senhor, diga... Isso que é Luz?
‐ Sim, e porque você pergunta?
O próprio Artano não sabia porque duvidou das palavras de Aulë, mas não queria falar sobre as suas
dúvidas. Ele desviou o olhar:
‐ Desculpe, senhor... Mas é que eu nunca vi a Luz...
‐ Sim, isso é a Luz. E agora você verá em toda a grandeza os Planos do Único!
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A PRIMAVERA DE ARDA. AS ERAS DAS LÂMPADAS
Melkor ainda não recobrou as forças depois da luta com o Único e com os Valar. Ele agora permanecia
além dos limites do mundo, e por um tempo os Valar obtiveram o domínio pleno sobre Arda.
E era noite, mas eles não viram nem a Lua nem as estrelas.
E era dia, mas eles não viram o Sol.
Parecia‐lhes que o escuro os rodeia; pois pela vontade do Único seus olhos foram desviados até chegar
a hora.
Foi então que Aulë, o Grande Ferreiro, criou aquilo que Valar chamaram de Colunas da Luz. Cálices de
ouro foram colocados sobre elas, e Varda os encheu de não‐Escuro, e Manwë os abençoou. E os Valar
ergueram estas Lâmpadas: Illuin ‐ no norte e Ormal ‐ no sul. Criadas do Vazio e do não‐Escuro, elas
fecharam na casca do Vazio uma parte de Ëa ‐ Arda.
Naquele tempo, germinaram todas aquelas sementes que Valië Yavanna havia plantado na Terra‐Média,
e plantas incontáveis cresceram, grandes e pequenas: musgos e liquens, e ervas, e samambaias imensas,
e árvores ‐ como montanhas vivas, cujos topos alcançavam as nuvens, cujas bases estavam envoltas em
penumbra verde; e flores coloridas e suculentas com pétalas carnudas saturadas de seiva doce e grossa.
E vieram os animais, e eles passeavam pelos vales cheios de ervas, e povoaram os rios e os lagos, e a
penumbra das florestas.
E não havia em outro lugar uma quantidade tão grande de flores e um florescer tão impetuoso como ali
onde se encontrava e se misturava a luz das Grandes Lâmpadas. E lá, na ilha de Almaren, a que está no
Grande Lago, foi a primeira morada dos Valar ‐ naqueles tempos em que o mundo era jovem, e o verde
jovem ainda era uma alegria para os olhos dos criadores. E por muito tempo, eles estiveram bastante
contentes.
Era alegria para os Valar ver os frutos dos próprios trabalhos; e eles chamaram este tempo de
Primavera de Arda; e para que nada perturbasse o sossego do mundo, sem poder para controlar o fogo
de Arda, eles tentaram o domar, e o encarceraram sob a terra.
Mas Valar abriram o caminho a Arda para as criaturas do Vazio; e aquelas se instalaram nas matas
intransponíveis e nas cavernas profundas. De tempos em tempos, elas abandonavam os seus refúgios, e
os animais apavorados fugiam delas, e as plantas murchavam nos lugares por onde elas passavam ‐
como uma neblina cinzenta se arrastando. Assim o Vazio entrou no mundo.
...Ele não conseguia respirar; cada inspiração lhe causava dor ‐ pequenas e afiadas agulhas quentes
espetavam os pulmões por dentro. O suor formava gotinhas no rosto dele. Parecia‐lhe que ele está
respirando uma neblina ardente, abafada, úmida e adocicada...
O que é isso?
Não havia necessidade de perguntar. Ele sabia: Arta. A vida de Arta era a vida dele, a dor de Arta ‐ a dor
dele.
Ele novamente entrou em Arda. Isso não era fácil: como se uma flexível, elástica muralha invisível o
impedisse de passar; como se uma mão enorme o empurrasse, repelindo‐o, pesada e insistente. Ele
venceu a resistência com dificuldade.
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E o mundo que o recebeu era assustador, pois o mundo morria; mas mesmo em sua agonia cruel, ele era
belo.
O eterno dia imutável acordou para a vida as sementes e os esporos de milhares e milhares de plantas.
Enormes árvores estendiam‐se na direção da cúpula em brasas do céu, e ervas nas colinas tinham a
altura de um homem. Mas nas florestas, as heras e as trepadeiras arrastavam‐se, com lentidão e
persistência, para o alto, cravando‐se na casca áspera e enrugada, e nenhum raio de luz penetrava
através da folhagem pesada. E sob as árvores gigantescas, ervas e brotos asfixiavam uns aos outros,
nasciam e morriam, mal tendo tempo de florescer. No ar quente e abafado, as ervas mortas, as flores
murchas, as folhas caídas logo começavam a apodrecer, e o cheiro purulento misturava‐se ao aroma das
flores que desabrochavam. O pólen ‐ neblina dourada ‐ estava por toda parte; tudo estava coberto por
uma camada macia e quente, e o gosto doce e enjoativo de mel não desaparecia da boca, e os lábios
estavam sempre pegajosos e doces, e o aroma expresso e pesado das flores atordoava. O ar quente e
úmido preenchia os pulmões. Plantas esmagavam e devoravam umas às outras, e agarravam‐se à vida
na agonia da morte; e trepadeiras ferozes sugavam a vida das árvores, e árvores estendiam‐se
insistentemente para o alto, tentando ultrapassar as outras...
Mundo simétrico, onde reina o eterno não‐Escuro.
Mundo simétrico, onde não há montanhas nem depressões.
Aqui os rios não têm para onde correr, e as lagoas se transformam em pântanos, cobertos de lodo e
lentilhas‐d’água, e o florescer destas é exuberante, e estranhas criaturas escorregadias se remexem ali,
e uma pesada neblina verde‐dourada desliza a partir dos pântanos, colada ao chão: cheiro asfixiante da
podridão e o aroma expresso, sentido quase fisicamente, das ervas do pântano...
As plantas se entrelaçam, se movem, se arrastam, espremendo‐se mutuamente num abraço mortal; e na
penumbra das florestas fechadas, musgos escuros corroem os troncos das árvores, como lepra; e
manchas de muco amarelo‐venenoso nas raízes delas são semelhantes a úlceras douradas, e as árvores
apodrecem vivas, tornando‐se alimento para outras, e os animais enlouquecem...
Assim foi a Primavera de Arda.
Assim Melkor viu Arta.
Ele apertou as têmporas com as mãos.
O mundo gritava: o primeiro grito do recém‐nascido transformava‐se num berro furioso ‐ e no chiado
de agonia. Arta gemia surdamente de dor, como uma mulher que não consegue dar à luz; o fogo, a vida
dela, a queimava por dentro.
O grito pulsava no cérebro dele no ritmo dos batimentos do sangue nas têmporas, sem silenciar, sem
silenciar, sem silenciar nem por um minuto.
A dor esmagava o coração dele como uma mão indiferente.
O não‐Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz.
O não‐Escuro reinava no mundo.
Por um instante, pareceu ao Senhor do Escuro – tudo está acabado.
Pareceu‐lhe ‐ é a destruição.
Para Arta.
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Para ele.
E então ele ergueu o braço.
E a terra tremeu sob os pés dos Valar.
E as Lâmpadas ruíram: o Escuro devorou o não‐Escuro.
Nas rachaduras da terra surgiu o fogo ‐ como o sangue ardente nas feridas abertas.
Lava corria pelas encostas dos vulcões, queimando as úlceras deixadas pelo não‐Escuro no corpo de
Arta e colunas de fogo com barulho ensurdecedor erguiam‐se até o céu.
Novas terras erguiam‐se das profundezas do mar, nascidas da água e do fogo, e vapor branco fluía
sobre as suas superfícies ainda quentes.
E era noite.
... E sobre a terra noturna em chamas, ele voava, sustentado pelas asas de vento negro, e ria, livre e feliz.
Com um estrondo, as montanhas ruíram ‐ e cresciam novamente, mais altas que antes. E alguém
sussurrou a Melkor: deixe a sua marca...
Ele desceu e pisou no chão. Ele apertou a palma contra a lava ainda quente, e o fogo de Arta não
queimou a mão dele; ele e o mundo eram uma coisa só.
E ele navegou pelo rio de fogo no barco negro de lava fria, e Arta ria com riso de fogo, libertando‐se das
correntes, e Melkor também ria com um riso feliz e jovem, a cabeça jogada para trás, alegrando‐se com
a própria liberdade e o finalmente descoberto poder.
... E era dia. E nas colunas de vapor, nas nuvens de fuligem negra que se precipitava lentamente sobre a
terra, nasceu o sol, e a luz dele era vermelha, rubra, sangrenta.
E houve um eclipse do Sol.
O Sol transformou‐se num semicírculo de fogo, de brilho insuportável, e depois virou um disco negro ‐
escuridão ardente; e uma coroa de raios o rodeava, e nos batimentos deles, na dança dos lentos flocos
de fuligem ouvia‐se o eco da rebelde e ameaçadora música; nela enlaçava‐se o triste sussurro de gelo e
o leve tinir das estrelas, como uma sôfrega, dolorosamente carinhosa melodia de flauta; e o vento veloz,
escaldante, soava como as vozes baixas dos instrumentos de cordas; e o coro abafado dos picos das
montanhas ‐ o canto do órgão negro...
...Agora ele estava no pico da montanha. Ele estendeu os braços para o disco negro em brasas, e uma
espada escura com cabo negro de obsidiana deitou nas suas palmas, e entrelaçamento de sinais de fogo
escorria pela lâmina num ornamento de serpentes: a Espada do Sol em Eclipse.
Ele caminhava pela terra, ouvindo a respiração ofegante de Arta. Ele falava, e suas palavras eram
música. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que curam e expulsam a dor ‐ então o coração de fogo
de Arta passou a bater com ritmo e confiança, e a respiração dela tornou‐se calma. E o mundo ficou em
silêncio, e o Alado ouviu o baixo murmúrio das plantas que não nasceram, ocultas pelas camadas de
fuligem. E ele pronunciava as Palavras do Poder, que transformam a morte no sono, para acordar, no
mundo novo, na hora certa, as ervas e as árvores. As palavras eram Música, que dá vida, que cria o vivo
do morto.
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Mas enquanto ele falava, a chama do vulcão ergueu‐se até o céu novamente, e abriu‐se, e dela saíram
novos seres desconhecidos, assustadoramente belos. O escuro ardente era a carne deles, e os olhos
deles ‐ como lagoas de fogo. Alado olhou para eles, surpreso; e ele compreendeu que, sem o desejar, ele
mesmo os acordou para a vida, pois elas nasceram do fogo da terra graças às palavras dele. E ele viu
que elas vivem com vida própria, e vieram ao mundo para permanecer nele. Então Alado pensou: “Não
pela minha vontade, mas graças a mim eles surgiram, e eu devo responder por eles e não posso deixá‐
los”. E as novas criaturas transformaram‐se em na corte e no exército dele. Ele deu‐lhes o nome de
Ahere, Chamas do Escuro. Eles eram de natureza diferente dos Maiar; o fogo era a essência deles, e
ninguém poderia nem subjugar, nem domá‐los completamente. Crianças de Ilúvatar, os Primeiros
Nascidos, chamaram‐nos de Valaraukar, e de Balrogs ‐ Demônios da Força. A sua vida poderia
prolongar‐se eternamente, mas se alguém conseguisse matá‐los, eles se transformavam em chamas e
retornavam ao fogo da terra, pois não possuíam um espírito imortal, mas eram a encarnação do
elemento fogo, e fogo era sua essência.
E o nome do primeiro dos Ahere era Neere, Fogo; os Mortais e os Elfos o conheceram sob um outro
nome. Ele tornou‐se o comandante do exército dos Demônios das Chamas Escuras quando chegou o
tempo de guerra, e os Elfos o nomearam Gothmog. Os imortais, nas terras de Aman, não souberam
como chegaram ao mundo esses espíritos do fogo, e os consideraram Maiar. Por isso, assim diz
“Valaquenta”:
“Pois, dos Maiar, muitos foram atraídos por seu esplendor em seus dias de majestade, permanecendo
fieis a ele em seu mergulho nas trevas. E outros ele corrompeu mais tarde, atraindo‐os para si com
mentiras e presentes traiçoeiros. Horrendos entre esses espíritos eram os valaraukar, os flagelos de
fogo que na Terra‐média eram chamados de balrogs, demônios do terror”.
Eles eram poderosos e belos. Mas eles não eram humanos.
...Quando a terra acalmou‐se, e a fuligem a cobriu como uma capa negra, e a pesada penumbra dos
nevoeiros dissipou‐se, Melkor viu um novo mundo.
A simetria das águas e das terras foi destruída, e não havia mais semelhanças com uma máscara
congelada na face de Arta. Cadeias de montanhas ergueram‐se no lugar dos vales, o mar alagou as
colinas, e enseadas agudas cortaram as terras emersas. Furiosos rios indomados espumavam, uivando
nas corredeiras, e levavam as águas até o oceano; e sobre as cachoeiras, nas rendas de gotículas de
água, da água e do Sol nasciam os arco‐íris.
Assim o mundo conheceu a morte; e junto com a Arta, aquele que a amou esteve próximo da morte.
Assim o mundo renasceu; e junto com a Arta, aquele que a amou ganhou poderes.
Melkor respirou fundo, com todo o peito, o ar do mundo renovado. E ele sorria, mas a mão dele estava
sobre o cabo da espada.
A luta ainda não acabou.
E, para combater as criaturas do Vazio, novos seres foram criados por Melkor. Dragões era o nome
deles entre os Homens.
Do fogo e do gelo, pelo poder da Música da Criação, pelo poder dos feitiços do Escuro e da Luz, eles
foram criados. Arta deu poder e força aos corpos deles, Noite os dotou de inteligência e de fala. Grande
era a sabedoria deles e, desde aquele tempo, os homens diziam que aquele que abater um dragão e
experimentar o coração dele, tornar‐se‐á o sábio dos sábios, e os conhecimentos antigos serão
mostrados a ele, e ele compreenderá a fala de todos os outros seres, mesmo que seja a dos animais ou
dos pássaros, e as palavras dos deuses serão compreensíveis para ele.
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E a Lua emprestou os feitiços dela às criações do Senhor do Escuro, por isso o olhar deles encantava.
Os primeiros a chegar ao Mundo foram os Dragões da Terra. Pesado era o passo deles, e a respiração
deles era fogo, e os olhos luziam com ouro furioso, e a ira do Mestre que os criou ardia nos corações
deles. O Sol nascente os vestiu de cobre vermelho, tal que quando eles andavam parecia que chamas
saem de baixo das placas das escamas. E na criação deles, os Demônios do Fogo, Balrogs, auxiliaram o
Senhor. Glaurung, que é também chamado de Pai dos Dragões, era da casa dos Dragões da Terra.
E era meio dia, e o Mestre criou os Dragões do Fogo. O sol vestiu os corpos deles com a armadura
dourada de escamas flexíveis, e douradas eram as asas imensas deles, e seus olhos eram da cor de
safiras pálidas, cor do céu do deserto. O vento gerado pelas batidas das suas asas é ardente, e até
mesmo o metal derrete com o calor da respiração deles. Flexíveis, graciosos, velozes como flechas
aladas, eles são belos ‐ e a beleza deles é mortal. Na criação deles, o Mestre foi auxiliado pelo seu
discípulo Gorthaur, cujo nome significa ‐ “Aquele que possui o Poder das Chamas”. Da casa dos Dragões
do Fogo, se conhece somente o nome de um dos últimos ‐ Smaug, o Dragão Dourado.
No fim da tarde da última lua do outono, quando o sussurro gélido das estrelas só começa a enlaçar‐se
na lenta melodia da neblina, quando o frágil vidro do primeiro gelo reveste a água e os flocos de neve
faiscantes cobrem os galhos finos, vieram ao mundo os Dragões do Ar. A cintilação misteriosa dos fogos
fátuos vivia nos olhos deles; estavam cobertos de aço e prata negra, e as asas deles eram de ardósia, e
garras mais resistentes do que diamante. Silencioso e veloz, mais rápido que o vento, é o vôo deles; e
eles receberam a fria, impiedosa sabedoria dos guerreiros. Poucos receberam a dádiva de ver a lenta
dança encantadora deles no céu noturno, quando as estrelas refletiam nos inúmeros espelhos das
escamas se, e a luz da lua os lavava. E assim dizem os homens: aquele que viu esta dança torna‐se o
servo da Noite, e a luz do dia não lhe traz mais alegria. E dizem ainda que na hora da dança do céu dos
Dragões do Ar, estranhas ervas e flores germinam das sementes que dormiram no solo por dezenas de
anos, e estendem‐se para a Lua pálida. Aquele que as recolher na Noite da Dança dos Dragões,
conhecerá a grande sabedoria e ganhará imensos poderes; ele tornar‐se‐á algo maior do que um
homem, mas nunca mais retornará à própria casa. Mas se a raiva e a sede de poder estiverem no
coração dele, ele morrerá, e o espírito dele se transformará num fogo fátuo; e somente na Noite dos
Dragões ele irá adquirir uma forma espectral, semelhante à humana. Estes eram os Dragões do Ar, e
Melkor criou‐os sozinho. Da casa deles, originou‐se Ancalagon, o Negro, o maior dos dragões.
Os Dragões da Águas eram filhos da Noite. Havia uma lenta beleza nos movimentos deles, e eram
vestidos de bronze negro, e a luz da Lua, de um pálido dourado, vivia nos olhos deles. A sabedoria
antiga do Escuro os atraia mais do que os combates; escura e bela era a música que os criou. Eles
valorizavam acima de tudo o silêncio, companheiro das reflexões; e descobrir os segredos ocultos do
mundo era o prazer supremo para eles. Por isso, eles elegeram como morada as profundezas das lagoas
escuras que refletem as estrelas, e os abismos sem fundo dos mares orientais, desconhecidos e
inalcançáveis a Ulmo. Poucos os viram, por isso nada se diz sobre eles nas lendas dos Elfos; mas as
lendas dos homens do Oriente freqüentemente falam sobre Dragões sábios, Senhores das Águas...
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SEGUNDA. MANDARAM ESQUECER
AQUELE QUE SE ATREVE A VER. AS ERAS DAS TREVAS
...Não restaram mais nomes.
Mandaram esquecer.
Somente pegadas na areia – na areia de diamantes, nos fragmentos pontiagudos e cortantes ‐ pegadas
sangrentas de pés descalços. Mas o mar lavou também as pegadas, e o vento as secou também...
Nada.
Quando as Lâmpadas ruíram, um tremor correu pelo corpo de Arta, como se um toque de ferro em
brasa a acordasse. Crescendo surdamente, um rugido subiu ao céu das profundezas dela; e o sangue de
fogo jorrou em chafarizes; e línguas de fogo dos vulcões lamberam o céu. Quando as Lâmpadas ruíram,
elementos até então adormecidos rasgaram as correntes que os prendiam. Vento raivoso e ardente
arrancava a purulenta coberta de vegetação morta do corpo de Arta, arrancava as montanhas das
profundezas dela, borrava pelo céu nuvens de fuligem e lama.
Quando as Lâmpadas ruíram, relâmpagos rasgaram o céu cego, e a chuva negra, derrubando tudo no
caminho, desabou ao encontro das chamas que se elevavam na direção do céu. As rachaduras da terra
incharam de lava, e rios de fogo arrastaram‐se ao encontro das águas tiradas do lugar, e nuvens escuras
de vapor se elevaram. E chegou a hora do Escuro, e não havia mais céu, e faíscas vermelhas afogaram‐se
nas pesadas nuvens baixas, e relâmpagos branco‐azulados rasgavam os farrapos de fumaça. E não havia
mais sons, pois o gemido de Arta que se contorcia em dores do parto era tal que o ouvido já não o
percebia. E em silêncio caíam e erguiam‐se montanhas, arrancavam‐se placas de terra, e novos rios
batiam contra as rochas quentes. Como se uma mão invisível esmagasse o mundo como argila, e o
modelasse novamente. E, muda, elevou‐se uma onda mais alta do que as montanhas mais altas de Arta,
e correu silenciosamente ‐ onda de água sobre as ondas da terra... E a carne de Arta acalmou‐se, e a
respiração irregular de fogo da terra tornou‐se audível.
Quando as Lâmpadas ruíram, não havia luz, não havia escuro, mas este era o momento do Nascimento
do Tempo. E a vida começou a andar.
Quando as Lâmpadas ruíram, o pavor dominou os Poderes de Arda, e, amedrontados, eles ergueram
muralhas de medo em torno de si. E do fundo do Grande Oceano, do corpo de Arda, eles arrancaram um
pedaço de carne viva e criaram para si um mundo, e deram‐lhe o nome ‐ Aman. De agora em diante,
Endorë significava para eles ‐ horror inimigo, e aqueles que não viraram as costas para ela não eram
honrados pelos Valar...
Quando as Lâmpadas ruíram, a barreira que vedava os olhos com não‐Luz deixou de existir. E ele,
esquecido, perdido no mundo agonizante, viu o escuro. Ele estava assustado. Não havia lugar na terra
que permanecesse firme e imutável, e ele corria, corria, corria, enlouquecendo, e o mundo louco
desprovido de forma e de aparência pulava na frente dele, e os restos de razão e consciência o
abandonavam. E ele caiu ‐ criatura cega e impotente, e o seu fraco pedido de socorro não podia ser
ouvido no rugido das ondas, postas para correr pelo furioso e feliz Ossë.
...E, muda, uma onda levantou‐se, mais alta do que as montanhas mais altas de Arta, e no cume dela,
como sobre um cavalo, gargalhando alegremente, voou Ossë. Por muito tempo, a calma morta do
mundo pesou grandemente sobre os ombros dele, mas ele não se atrevia a desobedecer ao senhor
Ulmo. E agora o coração dele encheu‐se de imensa alegria, ao ver que o mundo ganhou vida. E ele não
se importava mais com as ameaças de Ulmo ‐ ele farejou o próprio poder. A onda ergueu‐o sobre o
mundo, ele viu o Vala Alado no topo de uma montanha alta. Melkor ria ‐ e Ossë ria em resposta,
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sobrevoando Arda montado na onde. E naquele primeiro Dia, Maia Ossë tornou‐se aliado do Vala
Escuro.
A água ergueu o corpo insensível dele, rodou‐o e o atirou sobre o cume de uma colina alta, e recuou
novamente. E muitas vezes a água rolou por cima dele ‐ fria, salgada como sangue, banhando‐o, lavando
a sujeira do corpo dele. O vento corria sobre ele, expulsando do céu a penumbra, lavando a fumaça dos
vulcões, limpando o vidro negro da Noite. E quando ele abriu os olhos, a Noite olhava‐o com milhares
de olhos. Ele não podia compreender ‐ o que é isso, onde, porquê? Isso é o Escuro? Isso é a Luz? E de
repente disse ‐ sim, isso é a Luz, Luz verdadeira, e não aquilo que enredou Arda como uma teia, exalado
pelas Lâmpadas. A eternidade olhava para o rosto dele, ele ouvia o sussurro das estrelas e as chamava
por nome, e elas, cintilando, respondiam‐lhe. O Escuro carregava em si a Luz cuidadosamente, como a
concha ‐ uma pérola. Ele já estava sentado, com a cabeça jogada para trás, e sussurrava palavras
incompreensíveis que vinham de algum lugar desconhecido, e o vento frio da Noite recém‐nascida
remexia os seus compridos cabelos dourado‐escuros. E ele nomeou o Escuro ‐ Ahe, as estrelas ‐ Gele, e
as chamas vermelhas dos vulcões que estendiam as mãos rubras para a Noite ‐ Ere. E parecia‐lhe que
Ere não é simplesmente Chama, mas algo ainda maior, mas o que ‐ ele não conseguia compreender. E
ele amou procurar palavras e dar nomes ao que existe ‐ novos no mundo novo.
E ele pisou no chão pela primeira vez, e viu que ele está sólido, e caminhou em direção ao desconhecido.
Ele viu e a primeira Alvorada, e o Sol, e o Pôr‐do‐Sol, e a Lua; surpreendia‐se e alegrava‐se, dava nomes
e cantava... E ele pensava: “Será que isso é obra do Inimigo? Mas isso é belo! Será que o mal pode ser tão
belo assim? E será que o Inimigo é capaz de criar, ainda mais algo assim? Talvez isso seja um erro,
talvez simplesmente não o compreenderam? Então é preciso contar!” Ele não teve coragem para
procurar Melkor ele mesmo, temendo o poderoso Vala, por isso resolveu retornar e contar sobre o que
viu.
Manwë e Varda o receberam alegremente.
‐ Eu pensei que você havia morrido, que Melkor matou‐o! ‐ falou carinhosamente Varda. ‐ Eu estou feliz
em vê‐lo novamente!
“Estranho. Eu sou um Maia, eu não posso morrer!” ‐ pensou ele, surpreso. Alto, delicado, fino, ele era
semelhante a uma vela, e os cabelos dourado‐escuros eram como chamas. A aquele que o via, por
alguma razão parecia que ele rapidamente se queimará, apesar de ser um Maia e a morte não possuir
poder sobre ele. E quando ele cantava perante o trono do Rei do Mundo, seus enormes olhos dourados
irradiavam luz, como se o pôr‐do‐sol da Terra‐Média se refletisse neles.
Ele cantava sobre aquilo que viu, sobre aquilo que amou, e aqueles que o ouviam começavam, de
repente, a mudar em seus corações, e algo acontecia com a visão deles ‐ através da luz forte e constante
do céu de Valinor eles distinguiam uma outra luz, e essa era ‐ a Luz. E o medo abandonava as almas, e os
corações aspiravam à Terra‐Média, e Melkor já não parecia tão assustador. A canção cintilava, e ela
criava o pensamento. Mas Manwë ergueu‐se, e de repente aquele dos olhos dourados viu rosto
contorcido dele e olhos amedrontadores. O Rei do Mundo agarrou o Maia pelos ombros, e as mãos dele
eram mais duras do que as garras das águias. Ele atirou o Maia no chão e urrou:
‐ Você! Insignificância, besta... Como se atreve... Vendeu‐se ao Inimigo! – provavelmente, Manwë bateria
naquele dos olhos dourados, mas Varda o segurou:
‐ Acalme‐se. Ele é somente um Maia, e seu espírito é fraco. E Melkor é experiente na mentira e em más
visões, ‐ carinhosa era a voz dela, mas o olhar ‐ gelado.
Manwë sentou‐se novamente.
‐ Vá, ‐ ele falou severamente. ‐ Que Irmo, com os sonhos mágicos dele, expulse os feitiços malignos da
sua alma. Vá! E vocês, ‐ ele olhou para todos os outros, ‐ lembrem: traiçoeiro é o Inimigo, as mentiras
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dele corrompem até os mais sábios! Mas aquele, ‐ ele elevou a voz, ‐ que sucumbir à tentação, será
castigado como um traidor! Lembrem‐se disso!
O dos olhos dourados entrou na suave penumbra dos jardins de Irmo. Ele sentia amargura e dor; ele
não podia entender ‐ por quê? Não podia acreditar nas palavras de Manwë: “Tudo isso é uma
alucinação; o Escuro é o mal, e atrás do Escuro há o vazio”. “Mas eu vi, eu vi!” ‐ repetia ele, apertando a
cabeça com as mãos, e as lagrimas de mágoa escorriam pelas suas faces. Alguém tocou levemente no
ombro dele. O dos olhos dourados virou‐se ‐ atrás estava o amigo de longa data dele, discípulo de Irmo.
O chamavam de vários jeitos: Mestre das Alucinações, Sonhador, Inventor, Mago. E tudo isso era
verdade. Ele era assim mesmo, imprevisível e inesperado, todo cintilante. E agora o dos olhos dourados
via‐o vagamente na penumbra dos jardins. Somente os olhos prendiam a atenção, cinza‐claros,
límpidos. Parecia que ele sorria, era impossível capturar esse sorriso no rosto belo, vago na sombra da
nuvem escura dos cabelos. As roupas dele eram suavemente acinzentadas, mas nas dobras elas
brilhavam com ouro pálido e aço escuro. O dos olhos dourados olhou para ele, e na sua mente acendeu‐
se uma palavra nova ‐ Ayo, e essa palavra significava tudo o que era o discípulo de Irmo.
‐ O que houve? ‐ perguntou ele, e a voz dele era suave e profunda.
‐ Não acreditam em mim, ‐ com um suspiro semelhante a um soluço disse o dos olhos dourados.
‐ Conte‐me, ‐ pediu Ayo, e o dos olhos dourados começou a falar ‐ com dor, com mágoa, como se
estivesse se confessando. E quando ele acabou, Ayo colocou as mãos sobre os ombros dele e olhou
atentamente, seriamente nos olhos daquele dos olhos dourados, e o rosto dele nesse instante tornou‐se
definido ‐ extraordinariamente belo e encantador.
‐ Não é uma alucinação, acredite‐me. Isso não é uma alucinação. Eu é que sei o que é alucinação e o que
‐ verdade.
‐ Mas por quê, então?..
‐ Eu não sei. Preciso pensar. Preciso ver eu mesmo...
‐ Mas eu... ‐ ele não acabou de falar. Ayo tocou a tez dele com a mão e disse autoritariamente:
‐ Durma.
E o dos olhos dourados abaixou‐se devagar; as pálpebras dele pareciam saturadas de chumbo, a cabeça
caiu sobre o ombro... Ele dormia.
Yavanna disse, chorando amargamente:
‐ Será que tudo aquilo que eu fazia, está morto? Será que as belas Crianças de Ilúvatar acordarão numa
terra vazia e amedrontadora?
E ergueu‐se discípula dela, cujo nome era Folha Primaveril.
‐ Senhora, permita‐me visitar as Terras Abandonadas. Eu olharei para o que ali restou e contar‐te‐ei.
Yavanna concordou com aquilo, e a Folha Primaveril partiu para a escuridão.
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O solo sob os pés era macio e ainda quente; ele estava coberto por uma grossa camada de fuligem
expelida pelos vulcões. Como se alguém tivesse propositalmente preparado esta terra para que ela,
discípula de Yavanna, tivesse a grande honra de testar aqui, nesse amedrontador e vazio, ainda não
organizado mundo a própria arte. A tentação era imensa. Por um lado, ela deveria, claro, voltar a
Valinor e contar sobre o vazio e abandono de Arda, mas por outro ‐ tinha tanta vontade de fazer algo ela
mesma, enquanto não há ninguém para proibir ou indicar o que fazer... Muita vontade. E ela pensou ‐
não haverá grande mal se eu demorar. Só um porquinho, ninguém vai perceber. Ela não pensava que
agora está seguindo o caminho do Vala Escuro ‐ tentando criar o algo próprio. Ela não sentiu que vê. Vê
aonde não deveria, porque na Terra‐Média está o Escuro, e ela sabia disso, e é impossível ver no escuro.
Mas agora ela não tinha tempo para isso. Ela ouvia a terra. E aquela esperava as sementes. E Folha
Primaveril ouviu e notou as vozes das plantas não nascidas e pensou, feliz ‐ significa que nem tudo foi
destruído quando as Lâmpadas ruíram. Aquilo que era capaz de viver no mundo novo ‐ sobreviveu. Ela
pegou um punhado de terra morna, macia, de grãos soltos, e esta era negra como o Escuro, e como o
Escuro ocultava em si a vida. E Folha Primaveril caminhou pela terra, acordando as sementes. Ela via o
Sol e a lua, as Estrelas ‐ mas não se surpreendia. Por alguma razão, não se surpreendia. Não tinha
tempo. E ela nem podia perceber isso ‐ por enquanto. E tudo crescia, esticava‐se para o alto, e junto com
as árvores e ervas, o olhar dela subia em direção ao céu. E ela esqueceu sobre Valinor, tomada pela
beleza do mundo vivo.
Mas apesar de tudo, ela tinha tédio, sozinha. E por isso apareceram no mundo as árvores que cantam e
flores que falam, flores que viravam as suas cabecinhas para o Sol sempre, mesmo em dias nublados. E
havia flores que se abriam somente de noite, não podendo suportar o Sol, mas cumprimentando a Lua.
Havia flores que floresciam somente num dia eleito, ‐ e nem todos os anos isso acontecia. Na Noite da
Feitiçaria, ela caminhava entre as ameaçadoramente rubras flores cintilantes dos fetos, às quais ela
dotou de uma alma adormecida, capaz de realizar os sonhos. Mas isso ocorria somente na hora eleita.
Do fundo das lagoas emergiam nenúfares prateadas e oscilavam lentamente sobre a água negra, e ela
caminhava vestida com uma coroa de flores aquáticas cintilantes. Ela dava almas às plantas, e elas
falavam com ela. E os espíritos do vivo tomavam formas e voavam pelo céu, balançavam nos galhos e
riam nas lagoas e rios.
E ela criou plantas nas quais queria expressar a duplicidade do mundo. Nas raízes delas, nas folhas e
flores viviam ao mesmo tempo a morte e a vida, pois elas estavam cheias de veneno que, utilizado
sabiamente, poderia trazer a cura. Mas melhor de tudo lhe saiam plantas que eram totalmente inúteis, e
cujo sentido estava somente na beleza delas. Perfume, cor, forma ‐ ela gostava tanto de fazer mágicas
com elas! Ela estava feliz, e pensava horrorizada sobre o retorno. Parecia‐lhe que tudo o que ela criou
será lhe tirado e destruído... Mas ela tentava afugentar esses pensamentos.
Naquele dia ela conversava com as flores do campo.
‐ E então, para que é que vocês servem? O que nos diremos à senhora Yavanna em sua defesa, hein?
Nenhuma utilidade... Só os seus olhinhos que são tão lindos... O que é que nos vamos fazer? Como
justificar a nossa existência para que não nos expulsem?
‐ Talvez, dizer que somos bonitas, que as abelhas beberão o nosso néctar, que aqueles que ainda não
nasceram nos usarão para falar... Cada flor será uma palavra. Não é assim?
Folha Primaveril virou‐se. Alguém estava atrás dela ‐ alto, olhos verdes, cabelos cor de noz madura. A
roupa dele era cor de casca de árvore, a corneta de caçador estava presa ao cinto dele. Os braços fortes
estavam desnudados até o ombro, os cabelos presos com um cordão fino. Folha Primaveril olhou,
surpresa, para o forasteiro.
‐ Quem é você? ‐ perguntou ela. ‐ Porque está aqui?
‐ Eu sou Caçador. E por que... Talvez porque cansei de ver como Oromë torce o nariz para minhas
criaturas.
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‐ Como assim? ‐ riu ela. Palavras engraçadas ‐ “torce o nariz”.
‐ Diz que os meus animais são inúteis. Ele gosta de cavalos, de cães ele gosta ‐ para caçar os animais de
Melkor. Mas existem mesmo esses animais? E em Valinor ele treina os bichanos dele caçando as minhas
criaturas... Eu falei para ele ‐ não seria melhor adestrar os cães em Endorë mesmo, com animais
malignos... E ele mata os meus. Então eu dei‐lhes chifres, dentes e garras ‐ para se defender. E ele ficou
irado e me expulsou. Aí eu fui para a Terra‐Média. E estou aqui ‐ ele deu um sorriso largo. – Pelo menos,
aqui ninguém me impede de criar o inútil ‐ assim é que ele chama os meus animais. E eu acho ‐ aquilo
que é bonito não é inútil mesmo que seja somente por ser bonito. Veja você mesma!
E ela viu os veados, as raposas – de cor vívida, como pequenas chamas; viu os lobos ‐ o Caçador disse
que eles ainda vão dar trabalho aos cães de Valinor. E o pai deles era o Lobo Negro ‐ lobo imortal, lobo
falante. E eles iam pela Terra‐Média: ela ‐ sobre o Tigre Branco, ele ‐ montado no Lobo Negro. E eles não
queriam se separar ‐ eles criavam a Beleza. O Caçador criou pássaros para as florestas dela e insetos
multicolores ‐ para as flores e ervas; animais de campo e de floresta, e víboras que se arrastavam pelo
chão; e peixes para os lagos e rios. Tudo tinha um lugar próprio, todos dependiam uns dos outros, e
cada vez mais fortemente a Beleza Viva ligava o Caçador e a Folha Primaveril. Mas aqui e ali, eles
encontravam estranhos seres, desconhecidos para eles: pássaros‐borboletas semelhantes a pedras
preciosas rodopiavam sobre flores esquisitas, ou um peixe alado de repente subia sobre as águas do
mar, ou um animalzinho orelhudo, semelhante a uma raposa, com grandes olhos inteligentes, espiava
cautelosamente por traz de um monte de areia; e uma vez, tendo subido para o alto das montanhas, eles
acharam ali, entre as rochas frias, uma flor que lembrava uma estrela prateada... Como se alguém
estivesse por perto, e esse “alguém” gostava de surpreendê‐los com dádivas inesperados; e algumas
vezes ele ria‐se bondosamente deles ‐ como quando eles estavam sentados na beira de um córrego
quente e preguiçoso, e de repente um peixinho de olhos arregalados subiu sobre a raiz de uma árvore e
ficou olhando para eles, estranhando. Iti até soltou um grito de surpresa, e depois riu
involuntariamente ‐ a criatura era demasiadamente bizarra, e na rajada repentina de vento ouviu‐se o
riso de mais alguém, mas de quem ‐ eles não sabiam... Entre si eles chamavam este desconhecido de
amigo, e pensavam que, provavelmente, mais alguém vaga pela terra, semelhante a eles, e cria milagres
‐ alegres ou de uma tristeza límpida; só que por alguma razão não quer se mostrar para eles.
E aconteceu assim: na noite, eles viram algo incompreensível, preocupante e belo. Duas flexíveis
sombras aladas flutuavam silenciosamente no céu, rodopiando nos raios do luar. Isso era uma dança ‐
lenta, mágica, e eles ficaram por muito tempo parados, enfeitiçados, não se atrevendo e não desejando
se mexer, e uma estranha música surda soava nos corações deles.
‐ O que é isso? Quem é este? ‐ num sussurro de surpresa, perguntou a Folha Primaveril, olhando com
olhos enormes para o rosto do Caçador.
‐ Não sei... Isso não é meu. Oromë também não é capaz de criar algo assim...
E eles se entreolharam, fulminados pelo pensamento súbito: “Será o Inimigo?” Mas conseguiria ele
criar, ainda mais algo assim? E os Pais dos Animais correram para o nordeste, levando aqueles que os
montavam para os domínios amedrontadores do Inimigo.
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O PUNHAL. AS ERAS DA ESCURIDÃO
Assim dizem: os anões foram feitos por Aulë na escuridão da Terra‐Média. Pois, tão grande era o desejo
dele pela vinda dos Filhos do Único, para ter aprendizes a quem ensinar suas habilidades e seus
conhecimentos, que não se dispôs a aguardar a realização dos desígnios de Ilúvatar. E como as formas
dos Filhos que estavam por vir não estavam nítidas em sua mente, ele criou de acordo com os planos
próprios; ele deu aos Anões uma vida longa, e aos corpos e almas deles ‐ a dureza e a resistência da
rocha. Pois ele os imaginava não somente como discípulos, mas também soldados nas guerras contra
Melkor, Senhor do Escuro.
E o primeiro ajudante dele na realização dos planos foi o mais velho dos discípulos dele ‐ Artano
Aulendil, igual ao próprio Ferreiro em poder e conhecimentos.
Porém os feitos de Aulë não estavam ocultos do Ilúvatar; e, no exato momento em que o trabalho do
Vala se completava e ele começava a ensinar aos Anões tudo aquilo que ele mesmo sabia e conhecia,
Ilúvatar dirigiu‐lhe a palavra. E Aulë ouviu as palavras dele em silêncio.
‐ Por que fez isso? Por que tentou algo que sabe estar fora de seu poder e de sua autoridade? Pois tem
de mim como dom apenas sua própria existência e nada mais. E, portanto, as criaturas de suas mãos e
da sua mente poderão viver apenas através dessa existência, movendo‐se quando você pensar em
movê‐las e ficando ociosas se seu pensamento estiver voltado para outra coisa. É esse seu desejo?
Maia Artano sabia que não era assim; mas, ao ouvir a voz do Único, perturbou‐se e não se atreveu a
dizer nem uma única palavra.
E respondeu Aulë:
‐ Não desejei tamanha ascendência. Desejei seres diferentes de mim, que eu pudesse amar e ensinar
para que também eles percebessem a beleza de Ëa que tu fizeste surgir. Pois me pareceu que há muito
espaço em Arda para vários seres que poderiam nele deleitar‐se; e, no entanto em sua maior parte ela
ainda está vazia e enfadonha. Na minha impaciência cometi essa loucura. Contudo a vontade de fazer
coisas está em meu coração porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento que
graceja com os atos de seu pai pode estar fazendo isso sem nenhuma intenção de zombaria, mas apenas
por ser filho dele. E agora o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um
filho ao pai, ofereço‐te essas criaturas, obra das mãos que criaste. Faze com elas o que quiseres. Mas
não seria melhor eu mesmo destruir o produto de minha presunção?
E, com lagrimas nos olhos, Aulë apanhou o grande martelo para esmagar os Anões. Então Maia Artano
gritou:
‐ O que está fazendo, mestre? Eles são vivos, são suas criações; detenha a sua mão!
‐ Eu desobedeci à vontade do Único, do Criador de Tudo o que Existe, ‐ gemeu Aulë e ergueu o martelo;
mas Artano agarrou a mão dele, tentando impedir o golpe. E os Anões recuaram, amedrontados, e
imploraram por clemência.
Então, vendo a humildade de Aulë e o arrependimento dele, Ilúvatar teve compaixão dele e do plano. E
assim disse:
‐ Eu aceito a sua oferta. Veja agora: essas criaturas têm agora vida própria e falam com suas próprias
vozes...
E Aulë abaixou o martelo e alegrou‐se, e agradeceu a Ilúvatar:
‐ Que abençoe o Único as minhas criações!
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E Ilúvatar respondeu assim: ‐ Como Eu dei existência e carne aos pensamentos dos Ainur no início do
Mundo, assim agora Eu darei um lugar no mundo para as suas criações. E serão eles assim, como você
os pensou; Eu dei vida a eles, e não mudarei mais nada neles. Contudo não tolerarei o seguinte: que
esses seres cheguem antes dos Primogênitos de meus desígnios, nem a sua impaciência será premiada.
Eles dormirão sob as rochas, até que os Elfos, Minhas Crianças na Terra‐Média acordem; e você
esperará. Mas quando chegar a hora, eu os despertarei, e eles serão como filhos seus; e muitas vezes
haverá discórdia entre os Meus filhos e os seus: entre os Meus filhos adotivos e os Meus eleitos.
E Aulë agradeceu Ilúvatar novamente, ajoelhado, e fez segundo a palavra dele; por isso, até o despertar
dos Elfos, os Sete Pais dos Anões dormiram sob as rochas.
Mas a ira estava no coração do Maia, pois ele ouviu a mentira de Ilúvatar e viu a incompreensível
obediência de Aulë. E ele disse assim:
‐ Eu o julguei meu mestre, mas hoje eu o renego. Somente um covarde poderia erguer a mão para as
próprias criações.
‐ Você... ‐ Aulë engasgou de tanta indignação. ‐ Como você se atreve, uma ferramenta cega nas minhas
mãos, servo, escravo, falar assim comigo!
‐ Atrevo‐me. Eu não sou mais seu servo. E eu repito: você é covarde, como também todos aqueles que
fugiram para Valinor!
‐ Você... você... ‐ O Ferreiro não encontrava palavras; e, finalmente, expirou ‐ Vê‐se Melkor te fez a
imagem e semelhança dele!
Aulë tremia violentamente.
‐ A‐ah, quer dizer que não foi você que me criou.
‐ Sim! E se mande daqui, vá até ele! E eu te amaldiçôo! Você ainda voltará, ainda implorará por
clemência! ‐ o desespero transparecia na voz do Ferreiro.
Artano mediu Aulë com um olhar de desprezo.
‐ Covarde.
E, cuspindo sob os pés de Aulë, ele virou‐se e foi embora ‐ para a escuridão. Aulë não teve coragem de ir
atrás dele, não teve coragem nem mesmo para chamar o Maia. Ele retornou a Valinor.
...O Maia andava rapidamente e com confiança, apertando os punhos.
“Covarde, insignificante. Ilúvatar, pelo que se vê, não tolera rivais: amaldiçoou um, amedrontou o outro.
Tudo bem. “Vá até Melkor”, diz? E irei. Ele, pelo menos, não tem medo de nada. Nem da ira do Único...”
Ele parou. Pois falavam: Senhor do Escuro. Inimigo.
“E eu estou indo para lá... O que ele fará comigo?.. Voltar? Reconhecer a culpa, arrastar‐se na poeira? Na
frente daquele covarde?! Não mesmo! Não há caminho de volta para mim. Direi: eu vim, me aceite. Que
faça o que quiser ‐ tudo é melhor do que a humilhação...”
No portão negro de Helgor, ele parou, indeciso. Mas então uma figura surgiu na frente dele, esboço de
chamas rubras na escuridão: Achero. Ele fez um sinal: siga‐me. E Maia obedeceu. O portão negro abriu‐
se.
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... Eles iam pelas longas e muito inclinadas escadarias ‐ como ao coração de Arda, por seqüências
infinitas de salas subterrâneas, e Maia olhava, surpreso, para os lados. Mas a ultima sala o impressionou
mais do que tudo que ele havia visto. Assoalho negro de pedra; mas as paredes e o teto cintilam com
uma luz suave e constante. Como correntes de água petrificadas ‐ colunas; parece ‐ toque‐as, e
responderão com um suave tinir...
O Maia estava perante aquele a quem em Valinor chamavam de Senhor do Escuro; o guia desapareceu
sem ser notado: ele estava sozinho. Ele levantou o olhar e ficou imóvel.
Este rosto ‐ orgulhoso, majestoso e belo ‐ era o primeiro que ele viu ao acordar. E agora via novamente.
“Melkor... Então, Melkor. Aulë disse a verdade”.
‐ Saudações, Vala Melkor.
Melkor olhou fixamente para o Maia; nos olhos dele brilhou uma sobra de zombaria:
‐ Saudações também a você, Maia de Aulë, Artano‐Aulendil.
O Maia estremeceu.
‐ Eu não tenho mais nome. E não sou mais servo de Aulë!
‐ Por quê?
Maia começou a contar, apertando os punhos de raiva. Melkor ouvia em silêncio e por fim disse:
‐ Quer dizer, foi assim que você partiu. Você é corajoso e audaz, Maia. E o que é que você quer de mim?
‐ Eu quero tornar‐se seu discípulo. Eu não tenho nada ‐ alem disso, ‐ Maia tirou da cintura o punhal e
estendeu‐o a Melkor. ‐ Tome. Mas me aceite como seu discípulo!
Melkor, sem olhar, pegou a arma e sorriu torto:
‐ Não se compra aprendizagem com oferendas. Por acaso, você não sabe disso?
Mas, quando olhou para o punhal, o rosto dele mudou. Duas serpentes de aço enlaçavam‐se sobre o
cabo, e os olhos delas brilhavam com um fogo vivo.
‐ De onde você conhece este sinal?
‐ Não sei... Talvez alguém contou, ou talvez eu sempre soube... Pareceu‐me ‐ a Sabedoria da Existência...
‐ Você está certo; somente isso vem do Escuro. E as pedras? Eu nunca vi iguais; o que é?
...O punhal foi o primeiro objeto que ele fez sem o auxílio de Aulë. Mas quando ele trouxe, feliz, a criação
dele ao Ferreiro, aquele olhou de uma maneira estranha para o cabo do punhal e disse, ostentando
indiferença:
‐ O que você pode criar tal que não seja do meu conhecimento? Você é a continuação da minha mente, e
nem nos seus planos, nem nos seus feitos há algo que não tenha o seu começo absoluto em mim.
O Maia estava desnorteado. Aulë finalmente dirigiu o olhar para o próprio Maia:
‐ E que roupas são essas? Por quê preto?
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‐ Eu gosto. Será que você não vê: é bonito?
A resposta era insolente. Aulë franziu a testa resmungou:
‐ Bonito, bonito... Foi dito: os servos dos Valar devem vestir as cores deles. Por quê você se considera
uma exceção? Bonito... Quem é que meteu isso na sua cabeça?
‐ Você mesmo que disse: eu sou a continuação do seu pensamento, e nem nos planos, nem nos meus
feitos há algo que não tenha seu começo absoluto em você!
E, olhando para o Ferreiro com os olhos penetrantemente claros, o Maia sorriu. Aulë soube o que
responder.
...Pela primeira vez, alguém se interessou pelas criações do Maia Artano. Por isso, ele começou a contar,
com alegria de criança, como pensou em fazer uma gema semelhante a uma gota de sangue de Arda;
como pegou uma partícula do fogo de Arda e a aprisionou num cristal; como enfeitou com essas pedras
aquilo que foi criado por ele...
Melkor ouvia atentamente, às vezes fazia perguntas, e depois disse:
‐ Você tem mesmo o dom de criar. Então por que você me procurou – afinal, fala‐se que eu não sou
capaz de nada além de destruir?
O Maia olhou para as mãos de Melkor, deitadas calmamente sobre os braços do trono. Estreitas, fortes.
Dedos finos e longos. Mãos surpreendentemente bonitas.
‐ Você tem mãos de criador, ‐ disse Maia em voz baixa. ‐ Só que eu nunca vi as suas criações...
O Vala sorriu ‐ quase imperceptivelmente, com o canto dos lábios ‐ cerrou os olhos e lentamente passou
a mão sobre a lâmina do punhal. E esta começou a arder com um fogo de palidez gelada sob os dedos
dele.
O Maia olhou para Melkor, aturdido.
‐ Como você fez isso? Nenhum deles sabe...
‐ Eles negaram a Escuridão que é mais antiga do que o mundo; negaram também os seus
conhecimentos. E os feitiços do Escuro são mais fortes que os feitiços da Luz. É simples.
Melkor estendeu o punhal ao Maia:
‐ Tome.
‐ Você... recusa o meu presente?
‐ Isso é seu por direito. E eu já lhe disse: não se pode comprar a aprendizagem com oferendas, ‐ Melkor
sorriu, mas desta vez tristemente. ‐ Tome.
O Maia pegou a faca que cintilava friamente das mãos de Melkor.
“Eu não sirvo, ‐ pensou o Maia com pesar, ‐ e eu não tenho para onde ir. Para que ele precisaria de mim?
Sei muito pouco. Sou capaz de muito pouco. Tudo está acabado”.
Melkor olhou atentamente para o jovem Maia e, levantando‐se do trono, falou brevemente:
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‐ Vamos.
O Maia seguiu‐o lentamente.
“Agora ele dirá ‐ vá embora. E o que eu vou fazer? Não voltarei. De jeito algum voltarei. Pedirei de
joelhos ‐ que deixe aqui. Tudo o que quiser, eu faço. Só ‐ continuar aqui com ele”, ‐ pensava o Maia,
obstinadamente.
Eles estavam agora no cume da montanha. E Melkor falou ao jovem Maia:
‐ Veja.
No começo, aquele não via nada além da escuridão costumeira. E depois algo estourou sobre a cabeça
dele, com uma luz ofuscante ‐ brilhante, fogosa, ardente... O Maia cobriu os olhos com a mão:
‐ Luz... de onde? O que é isso?
‐ O Sol.
‐ Foi você que o criou?
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe.
E o Maia olhava, e via como a bola de fogo, escurecendo ‐ como o metal derretido que esfriava, ‐
desapareceu no horizonte. E veio a escuridão, mas agora ele via nela a luz ‐ faíscas, gotas que cintilavam
com uma luz gelada.
‐ O que é isso?
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos...
‐ Também criados pelo Único? Como Arda?
‐ Não. Eles existiam também antes de Eru; e ele não é o único criador, apesar de tentar a todo custo
esquecer disso. O nome dele ‐ Eru ‐ significava inicialmente “Chama”; mas ele se nomeou Único e tenta
fazer os outros acreditarem nisso.
O jovem Maia provavelmente se assustaria se alguém que não fosse Melkor falasse isso. Mas agora não
havia medo: ele acreditava em Melkor e admirava‐o.
“Ele é realmente destemido. E realmente é o mais poderoso dos Ainur. Não é à toa que os Valar o temem
tanto”.
‐ Mas porque eu não via isso antes? ‐ perguntou o Maia.
‐ Não somente você. Outros também ‐ até chegar a hora. Somente olham, sem ver. Vontade de Eru. Eu
me alegro por eles não terem conseguido fechar os seus olhos.
E, colocando a mão sobre o ombro do Maia, Melkor disse:
‐ Você será meu discípulo. Eu decidi faz muito. Ainda quando vi a sua criação.
Ele suspirou e adicionou, com uma tristeza incompreensível:
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‐ Mas a primeira coisa que você fez foi um punhal...
‐ Mestre...
‐ De hoje em diante, o seu nome será Orthenner, Senhor do Poder do Fogo.
E ele sorriu com um sorriso claro e calmo:
‐ Ainda terei que lhe ensinar muitas coisas, Maia Orthenner...
‐ ...E o que você gostaria de aprender?
‐ Tudo. Tudo aquilo, que Aulë não sabe.
‐ Para quê você quer saber isso?
‐ Como assim ‐ para quê? – o Maia encarou Melkor, atônito. ‐ Para criar o novo. Para saber. Porque você
pergunta?
‐ Eu não quero que você se apresse. Primeiro, compreenda a si mesmo. Tenha certeza de que não
utilizará os conhecimentos para o mal.
‐ Mas o conhecimento pode ser o mal?
‐ Claro. Aqui, veja.
Melkor estendeu a mão, e Orthenner viu um estranho adorno negro‐dourado sobre o pulso dele. Não,
não um adorno ‐ elegante e bela criatura cingia o braço do Mestre.
‐ O que é isso?
‐ Lokie ‐ Serpente.
‐ Eu não sabia que algo assim existe...
‐ O cabo do seu punhal ‐ lembra?
‐ Sim... Mas me pareceu ‐ eu somente inventei, e aqui, vivo...
‐ Estenda a mão.
Orthenner obedeceu, e o frio e escamoso corpo da serpente enrolou‐se em volta do pulso dele.
‐ Que linda... Isso foi você que fez?
‐ Eu... Você diz ‐ linda? Mas ela é extremamente perigosa.
‐ Como algo assim pode ser perigoso?
‐ Pode. O veneno dela contém a morte. Mas em mãos sábias e experientes, esse mesmo veneno pode
trazer a cura. Dualidade. Por isso, em muitos mundos a serpente é o símbolo do saber: porque também
o saber pode trazer tanto a vida, quanto a morte. E também é perigoso em mãos inexperientes, pois
pode transformar‐se em mal. Lembra, eu falei ‐ a sua primeira criação foi um punhal. Por isso perguntei.
‐ Mas você também tem uma espada, Mestre...
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‐ E a espada nem sempre serve à morte.
Eles pararam.
‐ Preste atenção. O que está ouvindo?
‐ O canto do lobo. O rumor das asas de uma coruja.
‐ Ouça.
‐ Eu ouço como o vento canta nos galhos, como farfalha a relva.
‐ Ouça com o coração, Discípulo.
Orthenner ficou em silêncio por muito tempo. Depois disse, como se estivesse surpreso com as próprias
palavras:
‐ Sabe, Mestre... parece‐me: algo está se debatendo ‐ vivo, quer se soltar... e não consegue...
‐ Você sabe ouvir. Veja.
Com a espada, Melkor riscou no ar um sinal estranho, que por um segundo tornou‐se luminoso, mas
quase no mesmo instante se desfez em faíscas azuladas, e tocou a terra com a lâmina. E ao Maia pareceu
‐ a terra tremeu levemente. E no lugar em que a espada negra a tocou, abriu‐se uma fonte. Pondo‐se de
joelhos, o Discípulo colocou a mão na água gélida e levantou os olhos brilhantes para o Mestre:
‐ Como você fez isso?
‐ Saberá, ‐ Melkor sorriu.
‐ ...Sabe... de vez em quando parece que o mundo é tão frágil...
‐ É por isso que eu quero que você seja cuidadoso. Aqueles conhecimentos que eu te transmito são um
imenso poder; um movimento errado, um passo para fora do caminho ‐ e você começará a destruir.
‐ Eu entendi, ‐ o Maia voltou‐se para Melkor ‐ e parou.
“Asas?!”
O Vala olhava para o céu noturno, sorrindo – ou com os próprios pensamentos, ou para algo ainda
inaudível a Orthenner.
Enormes asas negras nas costas.
“Claro... se os Valar podem tomar qualquer forma, quem é que deveria ser alado se não fosse ele?..”
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OS QUATRO. AS ERAS DAS ARVORES DA LUZ.
O dos olhos dourados dormia, mas o sono dele não era bem um sono. Pois lhe parecia que ele está em
Arda ‐ em todos os lugares ao mesmo tempo: em Valinor e nas Terras Abandonadas; e vê e ouve tudo o
que acontece. Ele via tudo ‐ mas nada podia. Não podia gritar que as estrelas – gele – não são criações
de Varda, que isso é a Luz verdadeira... Ele via como partiu Artano; ele até invejou‐o, pois sabia que ele
mesmo não teria coragem de ir até o Inimigo... E o Inimigo, ele já não podia mais chamá‐lo de Inimigo. E
as palavras que vinham do nada caiam como chuva no coração dele, e ele compreendeu o sentido do
nome ‐ Melkor...
E depois ele viu o belo rosto de Ayo que estava curvado sobre ele. Ele sabia que era um sonho. Mas Ayo
podia penetrar em quaisquer sonhos, e agora ele estava tirando do sonho o dos olhos dourados.
‐ Tudo o que você viu é verdade, ‐ disse Ayo em voz baixa. ‐ Também é verdade que o Rei do Mundo e a
Varda não querem que aquilo seja visto. Eu tenho dificuldade de compreender o porquê.
O dos olhos dourados permanecia em silêncio. É sempre difícil perder a fé. Finalmente ele levantou a
cabeça.
‐ Eu não agüento mais, ‐ ele falou, como se sentisse dor. ‐ É preciso partir.
‐ Ir para o lugar onde está o Inimigo?
‐ Não. Simplesmente ir. Não “para onde”, mas “de onde”.
‐ Não o deixarão.
‐ Não importa. Senão seria melhor não acordar...
‐ Está bem. Tentarei ajudar. Mas então também eu terei de ir... Como te deixar partir sozinho, do jeito
que você é ‐ Ayo sorriu tristemente.
Foram aquilo os feitiços de Ayo, ou realmente Manwë e Varda não mais desejavam ver o dos olhos
dourados aqui, mas o deixaram partir. Na verdade, ele ia somente para saber se já vieram ao mundo as
Crianças de Ilúvatar ‐ Valar não desejavam abandonar Aman. Já Ayo não teve dificuldades em obter a
permissão de Irmo, e os amigos partiram juntos.
Eles saíam da lagoa de Cuiviénen ‐ frágeis, impotentes, assustados, completamente nus. E esta terra não
era o paraíso de Valinor. E eles tremiam por causa do vento frio e aconchegavam‐se uns aos outros, com
medo de tudo, com medo desta enorme, monstruosa dádiva de Eru que caiu nas mãos fracas e
despreparadas deles ‐ com medo de Endorë. Na noite do nascimento, a lua não era visível, e na
escuridão se escondia o medo. E somente lá em cima cintilava algo bondoso e belo, e um dos Elfos
estendeu os braços para o céu, como se pedisse ajuda, e chamou:
‐ Ele!
Aquele que foi o primeiro a encontrá‐los, atendendo ao chamado deles, usava vestes negras, e aqueles
que partiram com ele tornaram‐se os Elfos do Escuro, mesmo sendo capazes de sentir e conhecer a
alegria da Luz antes de todos os irmãos deles. Pois eles receberam a dádiva da visão.
Aquele que foi o segundo a encontrá‐los, era enorme, brilhante e de voz sonora, e muitos Elfos fugiram
dele apavorados para as trevas da noite; e aqueles que partiram de Endorë com ele tornaram‐se os
Elfos da Luz, mesmo desconhecendo a Luz verdadeira.
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Aqueles, que foram os terceiros a encontrá‐los, eram muito semelhantes a eles mesmos, mas muito
mais sábios. E os Elfos que ouviram as canções daquele que tinha olhos dourados e que viram as ilusões
de Ayo, apaixonaram‐se por Endorë e aí permaneceram para sempre. Eles se dividiram em diferentes
casas e falavam línguas diferentes, mas em Valinor os chamavam de Avari, os Relutantes.
Assim o dos olhos dourados desobedeceu à ordem do Rei do Mundo, pois permaneceu em Endorë.
Assim Ayo ficou nas Terras Abandonadas. Assim o Caçador não retornou, pois ele desejava criar. Assim
não retornou a Folha Primaveril, pois o Caçador havia permanecido na Terra‐Média. E Ossë nunca havia
abandonado aquela terra.
O dos olhos dourados vagava pela terra, e os Elfos o respeitavam e amavam as canções dele, apesar de
nem tudo compreender. Ele cantava e sobre Valinor, e sobre a Criação, e sobre as Lâmpadas, mas se Rei
do Mundo ouvisse tudo isso, dificilmente o dos olhos dourados poderia cantar mais alguma canção. E
somente os Elfos do Escuro, que viviam no norte, o compreendiam assim como ele se compreendia. Por
isso ele gostava de estar entre eles, mas em segredo ‐ ele temia o poder e a grandeza de Melkor.
...Foi assim que nasceram entre os Elfos da Terra‐Média as lendas sobre os deuses bondosos que viviam
entre eles e ensinavam‐lhes a Beleza...
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GERADOS PELO ESCURO. A ERA DAS ÁRVORES DA LUZ; DO DESPERTAR DOS ELFOS ATÉ O ANO
487
Os Elfos se libertavam lentamente dos grilhões sono. Fracos e impotentes nesse mundo imenso, eles se
mantinham juntos. E neles acordou o desejo de falar uns aos outros, e dar nomes a tudo que os cercava.
De vez em quando, parecia‐lhes que era uma voz inaudível que lhes sugeria as palavras. E eles
chamaram a si de Quendi, Aqueles que Falam...
Chegou a hora em que os Elfos desejaram abandonar o vale da lagoa de Cuiviénen e ver o mundo fora
dos limites dele. Mas alguns dos que partiram para a escuridão não retornaram, e pela primeira vez o
medo acordou nas almas dos Elfos, de agora em diante ligado para eles com o escuro e a escuridão.
Diziam – o Caçador os levou com ele, e eles jamais retornarão.
“O cavalo furioso carrega o terrível cavalheiro das trevas; a corte dele é a matilha de monstros... O trote
do cavalo se assemelha às trovoadas, e a grama murcha aonde ele pisa; fogo infernal é o olhar do
cavalheiro. Aquele que o encontra jamais retorna. Vento de fogo é a respiração dele, horror – a arma na
mão dele, morte – a bandeira dele, as mansões – o inferno... Aquele que o encontrar jamais retornará”.
“Entretanto, pouco se sabe daqueles infelizes que caíram na armadilha de Melkor. Pois, quem, entre os
seres vivos, desceu aos abismos de Utumno, ou percorreu as trevas dos pensamentos de Melkor? É,
porém, considerado verdadeiro pelos sábios de Eressëa que todos aqueles quendi que caíram nas mãos
de Melkor antes da destruição de Utumno foram lá aprisionados, e, por lentas artes de crueldade,
corrompidos e escravizados; e assim Melkor gerou a horrenda raça dos orcs, por inveja dos elfos e em
imitação a eles, de quem eles mais tarde se tornaram os piores inimigos. Pois os orcs tinham vida e se
multiplicavam da mesma forma que os Filhos de Ilúvatar; e nada que tivesse vida própria, nem
aparência de vida, Melkor jamais poderia criar desde a sua rebelião em Ainulindalë antes do Início.
Assim dizem os sábios. E, no fundo de seus corações negros, os orcs odiavam o Senhor a quem serviam
por medo, criador apenas da sua desgraça. Esse pode ter sido o ato mais abjeto de Melkor, e o mais
odioso aos olhos de Ilúvatar”.
Assim diz o “Quenta Silmarillion”
Mas foi assim: aqueles que tiveram medo do Escuro dissiparam‐se pelas florestas, se transformaram
nos Elfos do Medo. O terror do desconhecido tomou conta dos espíritos deles; de agora em diante tanto
a Luz, quanto o Escuro os assustavam igualmente. O medo deturpou não somente o exterior dele, mas
também as almas, pois eles eram fracos. O medo os impelia para as florestas e para as montanhas, para
longe dos Domínios do Vala Escuro, cujo poder e grandeza eles sentiam e por isso o temiam; para longe
daqueles que eram do mesmo sangue que eles. Deste medo nasceu o ódio a todos os viventes. A beleza
dos Elfos, Filhos do Único, vivia inicialmente também nos Elfos do Medo; mas a beleza perfeita é
semelhante à monstruosidade perfeita. Assim aconteceu aos Elfos do Medo. Tudo no aspecto deles
parecia exagerado: enormes olhos alongados com pupilas pequeninas; uma boca pequena e de cor forte
demais, que ocultava dentes quase animalescos – pequenos e afiados – e pequenas presas, dedos
tenazes longos demais, parecidos com as patas de uma aranha... Ao olhar para eles, nascia no coração
um vago e invencível horror, e eles agora fugiam não somente dos outros, mas de si mesmos... E os
chamaram de Orcs, o que significa ‐ Monstros.
As andanças dos Orcs pelas florestas também mudavam o aspecto deles. A vida selvagem os fez fortes e
furiosos e os ensinou a caçar em bandos, semelhantes aos dos animais ferozes. Acostumados à eterna
penumbra das cavernas e das florestas, eles odiaram a luz e passaram a temer o fogo; até o cintilar das
estrelas distantes era insuportável para os olhos deles. Aqueles que recebiam ferimentos graves
durante a caça eram mortos ou abandonados na floresta; algumas vezes ‐ quando tinham fome ‐ eram
devorados: Orcs não conheciam a compaixão. Os mais fortes e impiedosos tornavam‐se seus líderes:
eles admiravam somente a força. A piedade parecia‐lhes uma fraqueza, compaixão ‐ um sentimento
estranho e desconhecido, e eles encontravam o maior divertimento nos tormentos dos seres vivos.
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Os Orcs tinham também uma língua própria, na qual ‐ distorcidos e irreconhecíveis – viviam os ecos da
Língua do Escuro. Eles não possuíam nem cantos, nem lendas; as vozes deles se tornaram rudes, e um
uivo rouco era o grito de guerra deles.
Eles não tinham necessidade de aperfeiçoar a mente, mas neles desenvolviam‐se sentidos próprios de
caçadores noturnos: audição e olfato apurados, a capacidade de ver na escuridão, infatigabilidade na
caça e a sede de sangue. E não havia salvação deles, crias da escuridão e do medo...
E foi assim: os mais velhos dos Elfos, tomados pela alegria surpresa perante a visão do novo e jovem
mundo e pela sede de conhecê‐lo, partiram para muito longe dos limites do Vale dos Elfos e vagavam
sob a luz das estrelas ‐ pois ainda não eram capazes de ver o Sol e a Lua ‐ pelas florestas sombrias. E um
dia encontraram um cavaleiro montado num cavalo negro. Os Elfos se surpreenderam, pois não sabiam
que havia no mundo outras criaturas vivam semelhantes a eles. Mas não havia nada de ameaçador no
cavaleiro, o rosto pálido dele era belo e sábio: Elfos não tiveram medo dele.
O cavaleiro desceu do cavalo. A altura dele não era imensa: simplesmente muito alto, mais alto que
qualquer um dos Elfos. As roupas dele pareciam tecidas da escuridão, e a capa voava atrás dele como
asas negras, e os olhos dele eram estrelas.
Os Elfos o estudavam com surpresa, e ele sorriu com o canto da boca, involuntariamente imaginando‐os
em Valinor. Assim como eles eram agora: com roupas de peles, nas mãos ‐ lanças com pontas de pedra;
somente alguns poucos calçavam sandálias com solas de madeira, com um trançado de tiras de couro
até os joelhos...
E para eles, tudo era estranho no desconhecido: e todo o aspecto dele, e as roupas (“Quão enorme deve
ser um animal para que dê para fazer da pele dele uma capa dessas!”), e o cinto de placas de aço que
cingia a cintura dele ‐ os Elfos não conheciam os metais; e a montaria dele ‐ os Elfos nunca viram um
cavalo...
O desconhecido estendeu a mão para um dos Elfos com a palma aberta para cima ‐ em sinal de paz. O
Elfo repetiu o gesto dele e sorriu:
‐ Quem é você? Como se chama?
‐ O meu nome é Melkor, ‐ respondeu o desconhecido.
‐ Melkor... Amor ao mundo? Um belo nome... Chamam‐me de Geleon.
‐ Você também tem um belo nome: Filho das Estrelas.
‐ Você é dos Elleri Quenno?
Melkor notou para si que a língua deles se difere da língua dos outros Elfos: naquela língua o nome do
povo soaria como Eldar Quendi.
‐ Não, eu não pertenço ao seu povo.
‐ Mas você parece‐se conosco, mesmo sendo diferente...
‐ Eu sou dos Criadores do Mundo. Nos escolhemos um aspecto semelhante ao seu.
‐ Então você é capaz de mudar de aspecto?
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‐ Sim, mas com que finalidade? ‐ Melkor sorriu, mas no mesmo instante ocorreu algo estranho: enormes
asas negras cobertas de pó de estrelas abriram‐se, uma estrela acendeu‐se na tez dele, e parecia que
estrelas estavam presas nos longos cabelos negros.
‐ Então todos os Criadores do Mundo são tão... tão...
Neste momento, um garotinho de uns cinco anos apareceu de trás do pai, que estava um pouco mais
afastado: os olhos brilham, a boca está semi‐aberta de surpresa:
‐ Que bicho é esse que você tem aí?
‐ Um cavalo.
‐ Posso passar a mão?.. Que bonito... Ele não morde?
Melkor riu:
‐ Não... Quer montar nele?
O pequeno acenou que sim, maravilhado. Melkor pegou‐o nos braços e colocou na sela; o menino
passou a mão, com cuidado, pela crina comprida e densa do cavalo, levantou a cabeça:
‐ Pai! Olhe!..
Melkor notou uma menina, que se agarrava na saia da mãe:
‐ E você, pequena? Vem cá.
A menina envolveu com os braços os joelhos da mãe, olhando de esguelha para o Alado. A mãe fechou o
rosto com as mãos.
‐ Ela não fala, Melkor, ‐ falou Geleon depois de um breve silêncio. ‐ Ela perdeu a voz. Sabe, nos
estávamos sentados em volta da fogueira, ela passeava por perto, e de repente ‐ um grito... Vimos ela
correndo até a fogueira, e atrás dela... Uma criatura assim toda horrível saltou para a campina ‐
vestindo trapos, com costas encurvadas, patas compridas... e não patas ‐ braços, os dedos entortados,
dentes arreganhados, e os olhos ‐ avermelhados, brilham, sem pupilas... O pior é que não era um animal.
Aquilo era mais parecido conosco. Desde então...
Melkor ficou sério:
‐ Entendo. Qual é o nome dela?
‐ Aeni.
‐ Vaga‐lume... Não tenha medo de mim, pequena. Venha.
A menina demorou alguns momentos, depois caminhou para frente com um certo receio. Parou,
olhando para o Vala de baixo para cima. Aquele se sentou na grama:
‐ Dê‐me a mão, Aeni.
A mãozinha da menina deitou confiantemente na palma de Melkor. Vala olhou atentamente nos olhos
dela, passou a mão sobre os cabelos claros e macios.
‐ Eu posso curá‐la.
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Mãe de Aeni iluminou‐se:
‐ Isso... é verdade?
‐ Sim, só... só que para isso preciso levá‐la comigo. Se você deixá‐la ir, bela senhora. Acredite, eu não
farei mal algum a ela.
A mulher refletiu, depois respondeu:
‐ Eu acredito em você. Mas é difícil para mim separar‐me dela. Ela é a minha única... Isso vai demorar?
‐ Alguns dias.
‐ Desculpe... como você disse? Dia... o que é?
‐ Ah, sim... Como eu sou tonto! Vocês não vêem... Vê ‐ aquela estrela? Quando ela passar sobre as suas
cabeças pela sétima vez, a menina voltará. E eu prometo: a sua filha estará curada.
‐ Agradeço‐o, Alado.
‐ Vai comigo, pequena?
A menina voltou‐se para a mãe, como se pedisse permissão, depois fez um sim com a cabeça.
‐ Mamãe! Mamãezinha!
A mulher tomou Aeni nos braços:
‐ Você... fala, minha menina? Ele te curou?
‐ Mamãe, olha só o que ele me deu! ‐ Aeni abriu o pequeno punho.
‐ Vamos até a fogueira, pequena, eu vou olhar...
‐ Para que? ‐ surpreendeu‐se a menina. ‐ Está tão claro...
‐ Claro?... Vamos até a fogueira.
Na palma da menina havia uma pequena folhinha de bordo, toda cheia de veias douradas, com uma
brilhante gota de orvalho. A mãe a pegou com cuidado, com medo de que gota caia da folha...
Ela era de pedra.
‐ Que maravilha... ‐ falou Geleon baixinho. ‐ Como eu gostaria de criar coisas assim...
‐ Aprenderá, ‐ respondeu Melkor, que havia se aproximado silenciosamente.
‐ E porque Aeni diz que está claro?
‐ Quem sabe, logo vocês entenderão...
‐ Será que você não vê, mamãe? Bem ali, em cima, um fogo, muito brilhante, maior que a fogueira... Vê?
Ele diz ‐ isso é o Sol, Saere, ‐ a menina pronunciou a última palavra com bastante cuidado.
‐ Saere?
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‐ Sim, sim! Ele diz ‐ é uma estrela, só que muito perto, por isso brilha tanto...
A menina cantarolava alegremente, contando o que tinha lá onde ela tinha ido. Faltavam‐lhe palavras e
ela fazia uma careta preocupada ao tentar explicar como é isso ‐ um palácio de pedra, paredes
cintilantes das cavernas, altas montanhas negras... Que animal estranho que tinha lá ‐ peludo, negro,
com olhos ‐ como folhas verdes brilhantes, carinhoso... Depois, cansada, enrolou‐se ao lado do fogo e
adormeceu, segurando com força a folha de bordo. Pelo rosto do menino, que não saia de perto,
percebia‐se que ele invejava ardentemente a Aeni; mas ele se conteve e, sentando do lado, começou a
ouvir avidamente a conversa dos adultos.
‐ Você disse ‐ um dos Criadores do Mundo... Quem são eles? Como o mundo foi criado? ‐ interrogava
Geleon. Melkor encostou‐se no tronco de uma arvore, cruzou os braços no peito e começou:
‐ Havia Eru, que se chamou de Único, a quem passaram a chamar de Ilúvatar em Arta, Pai de Tudo o que
Existe...
Quando a história acabou, todos ficaram em silêncio por um tempo. Depois, Geleon começou a falar
novamente:
‐ Então nos somos Filhos do Único?
‐ Sim, é isso...
‐ Conte, e onde estão outros Imortais? Por quê nos nunca os vimos? Você disse: vocês vieram a Arta
para preparar este mundo para a chegada dos Elfos e dos Homens: porque então somente você nos
procurou? Ou os outros não sabem aquilo que você sabe?
‐ Sabem. Mas eles abandonaram esta terra e agora permanecem na Terra dos Imortais, Valinor. Aqui, eu
estou sozinho.
‐ E por quê você não está entre eles?
‐ O meu caminho difere do deles. Sem conhecer o Escuro, eles desde o início o negaram e podem viver
somente na Luz. Agora o Escuro e a escuridão igualmente os assustam.
‐ Os Imortais conhecem o medo?
Melkor permaneceu em silêncio.
‐ Você conhece os destinos do mundo. Diga, qual é o destino dos Elfos?
‐ A vocês, foi pré‐determinada a imortalidade ‐ assim é a dádiva do Único. O seu destino é partir para a
terra dos Imortais.
‐ Mas nos não queremos partir! ‐ exclamou com ardor aquele que mais tarde viria a ser o Pintor.
‐ E eu gostaria de dar uma espiada em Valinor, ‐ comentou alguém, pensativo. ‐ Ver e voltar...
‐ Vocês não poderão voltar. Essa é a vontade do Único.
‐ Mas se o nosso destino é partir, por quê fala conosco? ‐ perguntou Geleon.
‐ Vocês não tiveram medo do Escuro, o que significa que conseguem compreendê‐lo, e então a essência
do Equilíbrio dos Mundos se revelará a vocês. Vocês poderão libertar‐se dos grilhões da
Predeterminação, e então receberão o direito de escolher.
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‐ Você dizia que esta escolha foi dada somente aos Homens... Então, nos passaremos a ser humanos?..
Imortalidade... E o que é a morte?
‐ Somente os Mortais podem sair desse mundo, achar o próprio caminho a Ëa.
‐ Essa também é uma dádiva de Ilúvatar?
‐ Não. É uma dádiva minha para aqueles que romperem o circulo fechado da Predeterminação.
‐ Eu ainda não compreendo tudo nas suas palavras. Precisamos pensar. Você ficara conosco?
‐ Terei de deixá‐los por um tempo. Mas eu voltarei.
‐ Nos o esperaremos, Alado.
...Quando o Cavaleiro Negro desapareceu na penumbra da floresta, Geleon falou baixo, seguindo‐o com
o olhar:
‐ Parece que o compreendi... Se não houvesse o Escuro, nos jamais veríamos as estrelas...
Ele retornou, o Vala Alado. E mais uma vez falou com eles, explicava, respondia... As crianças se
apegaram a ele, e ele lhes contava belas histórias sobre ervas e estrelas, sobre animais e gemas... As
primeiras crianças neste mundo jovem, eles eram seres surpreendentes – confiantes, abertos,
maravilhados, meigos como flores frágeis. Maravilhosas criaturas ingênuas, era impossível não amá‐los.
E Melkor achava ‐ tudo o que ele cria agora, ele cria para eles. Assim surgiram no mundo seres
surpreendentes: enormes borboletas negras com asas que brilham com verde e ouro; peixes voadores;
moluscos que construíam para si belas casas de conchas; unicórnios e golfinhos; libélulas com olhos
enormes, parecidos com jóias; as aranhas aquáticas prateadas e serpentes marinhas... E não havia para
ele uma alegria maior do que ver os olhos surpresos das crianças e ouvir: “O que é isso? Que
maravilha...” E agora, ao olhar para o Mestre, Orthenner mal conseguia conter um sorriso. Como a
pequena visitante de Helgor mudou tudo! E realmente ‐ que criaturas maravilhosas...
Os elfos amaram o Alado. E uma vez Geleon disse a ele:
‐ Quanto mais eu converso com você, Melkor, mais claramente eu entendo o quanto nos não sabemos...
Mas eu penso assim: basta de andanças sem rumo pela terra. Se permitir, nos iremos junto com você.
‐ Sigam. Eu mostrarei o caminho.
...Eles se surpreendiam como crianças com tudo aquilo que viam ao redor ‐ e, em essência, eles eram
mesmo crianças. Eles gostavam de dar nomes ao novo: eles viam o Sol e a Lua, mas amavam mais a
noite e as estrelas ‐ a Luz‐no‐Escuro. Sem o notar, eles já seguiam pelo caminho dos Homens, e Melkor
não se surpreendeu quando Geleon perguntou:
‐ Nos compreendemos a escolha que você nos oferece. E aceitamos o seu caminho.
‐ Vocês pensaram sobre tudo? Não se apressem com a resposta; a dádiva da morte é uma dádiva
terrível e grandiosa. Quem sabe, talvez me amaldiçoarão depois por essa escolha.
‐ Não. Nos mesmos escolhemos este caminho; agora não há mais outro para nos.
‐ Olhem para dentro de si. Haveria em voz medo ou dúvidas?
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‐ Não, Melkor. Nos escolhemos o caminho com olhos abertos, e nenhum de nos jamais dirá que você nos
atraiu para o seu lado com mentiras. Eu sei com o coração que você diz a verdade. Nos fizemos a nossa
escolha, Alado.
Ele os chamou de Elfos do Escuro, Elleri Ahe, e de discípulos. Para eles, ele era Mestre, e Aeanto, ‐
aquele que traz a Luz... No norte, no vale de Gellome ‐ ali onde estava a morada de Melkor, ‐ eles
construíram a cidade de madeira deles, e Melkor freqüentemente abandonava o castelo negro e vivia
entre eles. Para o Maia Orthenner, eles se tornaram amigos e irmãos; ele se alegrava em se sentir um
deles. Na língua deles, eles pronunciavam o nome dele como Gorthaur, e logo ele mesmo passou a
considerar que este era o nome dele. O Mestre também passou a chamá‐lo de Gorthaur; somente de vez
em quando, quando estava pensativo, ele chamava o Discípulo do jeito antigo ‐ Orthenner.
E chegou a hora em que Melkor reuniu os Orcs, que tremiam de pavor do desconhecido, cegos para o
Escuro e para a Luz, nos domínios dele. Ele esperava, com ajuda dos discípulos dele, devolver‐lhes
aquilo que eles perderam ao render‐se ao medo. Mas a escuridão prendia as mentes deles, e o medo
expulsava qualquer outro sentimento das suas almas. Melkor não podia mudar nada. Aos Elfos do
Medo, restou somente a dádiva do Único ‐ a imortalidade.
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AS SETE ESTRELAS
"... e alto no Norte como um desafio a Melkor ela pôs a coroa das sete poderosas estrelas para girar,
Valacirca, a Foice dos Valar e o sinal do destino ..."
Numa meia‐noite negra e gelada, naquela hora em que morrem os sons terrenos, sobre as eternas cãs
das montanhas do norte ergueram‐se as sete estrelas. Sete ‐ e Uma. Aqueles cujo destino foi vê‐las
naquele inalcançável instante em que o limiar entre o mundo e o universo quase desaparece,
repentinamente começavam a ouvir uma música silenciosa, eternamente viva. Aquele que a ouviu,
jamais poderia esquecê‐la, ela soava para ele em todos os lugares e sempre: de dia ‐ no murmúrio do
vento, no estrondo de uma avalanche, no rugido da tempestade, no ranger baixo da pena sobre o
pergaminho, nas voltas silenciosas do falcão no forte azul do céu das montanhas; de noite ‐ no uivo do
lobo, nas faíscas da fogueira, no canto da lua refletida na água parada... Palavras, cujo sentido é sentido
com toda a alma ‐ mas é impossível decifrá‐las. Está na soleira da porta, mas não se atreve a entrar.
Quem, que grande artífice criou esta maravilhosa coroa, quem coroou com ela as Terras Mortais? Sete
estrelas cintilavam, tremulas ‐ assim estremece o mundo nos olhos cheios de lagrimas. Uma ‐ ardia,
calma. E somente prestando mais atenção, podia‐se notar que ela pulsa ‐ como bate um coração. Cada
um dos que viram estas estrelas tentava entender ‐ o que significa esta coroa na noite. E nasciam lendas
‐ belas e grosseiras, tristes e grandíloquas...
“Oito Aratar reinam em Arda. O líder deles é Manwë. Como uma coroa sobre a cabeça do governante ‐
sinal ameaçador aos escravos e aos maus, assim a Coroa da Terra‐Média ‐ ameaça e advertência sobre
aquele castigo que inevitavelmente recairá sobre o Inimigo. Que seja ele amaldiçoado para todo o
sempre, aquele que se atreve a desobedecer a Eru!
...Como uma estrela na Coroa da meia‐noite ‐ assim é Manwë entre os Aratar. Os nomes dos Sete, que a
toda Arda governam na grandeza ‐ a criadora das estrelas Varda e Ulmo, senhor das profundezas das
águas, mãe de tudo o que vive Yavanna e Aulë, o ferreiro, senhor dos destinos de Arda, senhor dos
mortos Námo, mãe dos que sofrem Nienna e Oromë, senhor dos cavalos. E, um sinal da glória deles,
Varda criou a Coroa da Terra‐Média, e a mais brilhante é a estrela do senhor Manwë. E o Inimigo foi
expulso do círculo dos Grandes, e que suma ele da face de Arda! Que a Coroa da Terra‐Média seja para
ele um eterno desafio!..”
“...Vê ‐ ali em cima, sobre as montanhas ‐ a Coroa? Vê ‐ a Estrela? Dizem, ela não é o sol de um mundo
distante, como aquelas Sete. Dizem, o Mestre acendeu‐a com a força do amor e a magia do saber há
muito tempo, antes ainda do nosso acordar nas águas escuras da Lagoa. Isso é um sinal para aqueles
que eternamente seguem pelo caminho da busca e dos feitos, do saber, do amor e do sacrifício. Para
aqueles que seguem e para aqueles que ainda não nasceram no mundo, mas que pisarão sobre este
caminho. Dizem, é um desafio dos Valar. E dizem ainda ‐ se olhar com atenção e ouvir, notará como bate
o coração da estrela. Mas isso tudo são somente boatos ‐ o Mestre somente sorri quando você o
pergunta sobre isso. E, mesmo assim, eu acho que é verdade. Porque... Não sei. É belo, e eu acredito
nisso, e por alguma razão o coração diz que é assim mesmo... E porque ‐ Sete e Uma? Eu não sei. Sete ‐ é
um número mágico, nos somente compreendemos o significado dele há pouco tempo ‐ é o numero da
verdade e da harmonia, e significa ‐ multiplicidade dos mundos. Pois é certo ‐ Sete Sois e Arta! Talvez,
por isso? Verdade que alguns dizem que as Sete estrelas se reuniram assim por acaso, mas... é uma
coincidência boa demais. Provavelmente não. Em Ëa, essas Sete significam algo justamente para Arta.
Mas por enquanto eu não sei. É preciso pensar e procurar...”
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SOBRE A CHEGADA DOS HOMENS
...Quem sabe, quem contará sobre quando surgiram em Arta os Homens? Os sábios dizem ‐ quando o Sol
se levantou pela primeira vez sobre o mundo. Mas o Sol é mais antigo do que Arta, e o nascer dele foi
visto muitas vezes por aqueles que tinham o dom de vê‐lo, e isso foi muito antes dos Homens. Os Elfos
sabem somente sobre aqueles Homens que chegaram ao Ocidente nos dias de Finrod Felagund, sobre
aqueles que depois seriam chamados de as Três Hostes ou de Atani. Sobre os outros homens, que
escolheram caminhos diferentes do caminho para o Ocidente, os Elfos nada sabiam. Também não
sabiam que, desde o início, os Homens eram capazes de ver o Sol e a Lua, ‐ muito antes de os Elfos
verem a Face do Dia e a Face da Noite. Os Homens receberam dádivas estranhas, e muitas delas eram
estranhas e incompreensíveis para os Elfos. E elas não foram dados de uma vez, como aos Elfos, mas
acordavam gradativamente, e, ao descobrir em si um novo dom, o humano não o perdia depois, mas o
polia, passando‐o de geração em geração. Se, claro, ele mesmo não se assustasse com o próprio dom...
Sobre o Despertar dos Homens contam as lendas que hoje são guardadas por poucos. Naquele vale que
os Eldar chamam de Hildórien, acordaram primeiro aqueles que são chamados de Nascidos‐na‐Noite,
apesar de eles terem chegado na hora anterior a alvorada, quando o céu no Oriente já começa a clarear,
mas as estrelas da noite ainda são brilhantes. As lendas nomeiam quatro povos: Ahhi, Noturnos, e Aoi,
Homens das Sombras da Floresta; Ilhennir, Filhos da Lua, e Ohor’tenn’ayri, Aqueles‐que‐Vêem‐e‐
Preservam.
Naquela hora em que no céu que clareia as estrelas ardem, como gotas de orvalho prontas para
despencar, e sobre a terra escorre, num lento rio sonolento, uma cintilante neblina mágica, chegaram
ao mundo os Elliri, Filhos da Estrela, o primeiro dos Povos do Amanhecer. Relva orvalhada e a neblina
da manhã se dissolvendo ‐ povo Ennir ert’Sin, e os primeiros raios do Sol dourado ‐ homens de Eturu...
São chamadas de Filhos do Sol as Três Hostes dos Edain; e irmãos deles ‐ o povo Asener, os homens de
Hanatta e Nghatta, e tribos nômades que voam sobre a terra como o vento do meio‐dia. E a sombra do
meio‐dia deu vida àqueles que se chamaram ‐ Ullayr Ghellah, o Povo das Estrelas da Meia‐Noite.
E no pôr‐do‐sol, entraram no mundo os povos de Ana e Daon. Os últimos raios claros ‐ oferenda do Sol
para o povo Daho, e na hora do nascimento das estrelas chegaram as hostes daquela terra que foi
chamada de Angellemar, Vale onde Nascem as Estrelas. E quando o céu ainda não teve tempo de
escurecer no Ocidente, nasceram os que foram nomeados Irmãos dos Lobos.
Nem todos os nomes foram ditos, e muitos povos não se recordam mais da Hora do Acordar. A
sabedoria perdida dos Ohor’tenn’ayri guardava os nomes de todos os povos, mas hoje não há ninguém
para contar sobre isso, pois esta hoste sumiu da face de Arta; misturou‐se o sangue dos povos e dialetos
deles, as lendas que eram transmitidas de boca em boca por muitas gerações tornaram‐se vagas. E
apesar de tudo, muitos lembram Daquele Que Vinha. Assim conta sobre ele o mito do Povo da Estrela:
“E entre nos surgiu alguém, semelhante a nos, mas mais belo e mais sábio que nos. E ele veio na noite, e
ele vestia as vestes do Escuro, e asas negras estavam nas costas dele. E os cabelos dele eram como a
noite, e estrelas estavam enlaçadas neles, mas mais brilhantes que as estrelas eram os olhos dele. E ele
falou conosco, e a fala se assemelhava à nossa, mas era diferente, e as palavras dele eram música,
semelhantes a llien tayre omm ellar ‐ canção que voa entre as estrelas; e tudo era compreensível para
nos.
E ele disse: Eu vim até vocês, pois desejava vê‐los.
E ele disse: eu não vim para levá‐los pelos caminhos batidos; eu lhes apontarei os caminhos, mas vocês
escolherão o seu pela própria vontade, e sozinhos seguirão por ele. Se desejarem, eu lhes darei os
inícios dos conhecimentos que lhes ajudarão no caminho, mas vocês mesmos chegarão à sabedoria. E
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quando for assim, vocês serão iguais a mim, e acima de mim, pois vocês são livres e podem mudar os
destinos do mundo...
E ele nos ensinava muitas coisas, e conversava conosco sobre tudo o que existe no mundo, e sobre tudo
que é o corpo do mundo, e sobre a alma dele; e sobre estrelas incontáveis que brilham na escuridão... E
ele nos falava sobre a criação do mundo, sobre a Grande Música e sobre os outros mundos que cintilam
como pérolas entre as estrelas de Ëa. E ele contava como foram criadas as plantas e os animais, o Povo
Mais Velho e os Homens, e ensinava a conversar com os espíritos das florestas, montanhas e águas, com
animais e pássaros, ouvir as vozes da terra, das arvores e das ervas, canções das estrelas e canções do
vento.
Ele apareceu mais de uma vez, e nos o esperávamos, pois tínhamos sede de novos conhecimentos e nos
alegrávamos ao descobrir o novo; e também porque o amávamos. Mas ele não nos revelou o nome dele,
e nos o chamávamos de Aquele que Amou e de Mestre. E nos entristecemos‐nos quando, um dia, ele
partiu e não voltou...”
Os homens não sabiam o nome Daquele Que Vinha, como não sabiam também quem era ele; e muitos o
chamavam de Deus da Noite, e davam‐lhe muitos nomes. E os Elliri o chamaram de Elgo Thore, o que
significa ‐ Aquele que Ouve o Mundo, Que Veio na Noite.
Do vale do Acordar, os caminhos dos Homens se separaram, e cada povo achou uma terra que se tornou
o lar dele. Somente os Elliri eram Andarilhos desde o início. Eles passaram, vagando, longos anos, e
viram muitas terras, mas de nenhuma delas falaram – eis o nosso lar. E eles estavam felizes com a
viagem, descobrindo para si o jovem mundo, os segredos e maravilhas dele. E no caminho, a Noite do
Grande Feitiço os encontrou...
...E alguém exclamou de repente:
‐ Olhem!...
Abrindo as asas imensas, um Dragão voava silenciosamente no céu noturno. As escamas cor de mel e de
cobre brilhavam com o ouro opaco no luar; ele dançava, expondo o corpo elegante para a luz mágica, e
os homens ouviram o surdo ritmo do feitiço da dança. Eles olhavam, sem desviar os olhos, cedendo aos
feitiços da Dança da Lua, e nos corações deles nascia a Música. A noite cantava, e estranhas flores
pálidas e cintilantes se abriam, um aroma levemente amargo e triste flutuava no ar, e soava uma
melodia baixa de flauta, e nela enlaçavam‐se, com brilhos de fogos escuros com tons de ouro vermelho,
as notas cálidas das flores de feto. A noite soava com acordes surdos de órgão ‐ cantavam as árvores
milenares, e os espíritos das florestas dançavam sem se ocultar dos olhares dos homens, e as canções
deles eram indistinguíveis das canções das ervas e flores, e, sobre o veludo roxo e negro do céu de
outono, as estrelas traçavam runas estranhas, e em uma dança encantada rodopiava o Dragão...
Innire, Aquela que Dança sob a Lua, enlaçou nos cabelos dela as brancas florestrelas, e saiu, e seguiu a
dança; e os espíritos da floresta dançavam com ela. E naquela noite, os homens falavam nas línguas de
ervas e flores, pois não queriam quebrar o silêncio com o som da voz: as flores e ervas eram as palavras
deles, e as estrelas os coroavam...
Desde então, o dragão que dança no céu noturno sob a coroa da Sete estrelas, coroado com Uma, a mais
brilhante, tornou‐se para os Elliri o sinal de alta sabedoria e da magia.
Assim eles andavam pela terra ‐ Andarilhos da Estrela. E chegou a hora em que, nas suas viagens, eles
viram no silêncio da meia‐noite a Coroa que baixou sobre as montanhas brancas do norte e, como a
gema mais preciosa na Coroa do Mundo, brilhava a Estrela. E assim acabaram as andanças obscuras
deles pela a face de Arta, pois a Estrela apontou‐lhes o caminho, e agora eles sabiam para onde ir.
As lendas preservaram os nomes antigos. Havia um com o nome de Neyir, Aquele que Aponta o
Caminho. Dizem que quando ele olhava para a Estrela, ele dizia ‐ ela sofre e ama. E uma vez, depois de
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passar a noite sob o céu aberto, sem sono, em uma tristeza clara e estranha, ele veio até os chefes e
disse:
‐ Eu sei ‐ existe a Terra‐sob‐a‐Estrela, e o meu coração me chama para lá. Eu quero, eu devo encontrá‐la,
por mais longo que seja o caminho. Quem irá comigo?
E os homens acreditaram nele, pois sabiam que Neyir vê mais longe do que os outros com o coração. E o
seguiram, pois nos corações deles também batia o chamado da Estrela.
Por muitos dias e noites, por muitos anos eles seguiram a Estrela. Canções sobre a Grande Viagem são
belas e tristes, cheias de saudade e esperança, pressentimento e fé, e nas canções soa o nome da Estrela
‐ Meltor. Ninguém sabia porque a chamaram de Força do Amor, mas também ninguém perguntava, pois
eles não poderiam imaginar um outro nome para a Estrela: eles sentiam mais do que podiam perceber
então.
E as Canções da Grande Viagem guardam o conto sobre os homens vestidos de negro, cujos olhos
brilhavam como estrelas ‐ sobre os sábios andarilhos que vinham para falar com os homens, que lhes
traziam as próprias canções, sabedoria e conhecimentos. E o nome do povo deles era parecido com
aquele que se deram os Andarilhos da Estrela: Elleri Ahe.
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SOBRE OS CAVALOS ALADOS. ANO 15 DO DESPERTAR DOS ELFOS
A noite de outono estava viva. Ouvindo cuidadosamente os passos do tempo ‐ o som das gotas de
orvalho caindo ritmicamente dos galhos, ‐ ela estava imóvel na esperança de algo que só ela conhecia. A
Noite ouvia o Tempo. E dois ouviam a noite. Lentamente, a eterna neblina do vale de Gellome escorria
em tiras prateadas. Na primavera, no verão e no outono, as ervas aqui pareciam de prata, como se
estivessem cobertas de geada; só na primavera aqui floresciam as florestrelas que cintilam como feitiço
primaveril nas coroas do Dia da Prata... O Maia sorriu. Agora, as estrelas floresciam no céu, apesar do
luar, era possível ver os traçados familiares das constelações, e, de tempos em tempos, relâmpagos
brancos das estrelas cadentes riscavam o céu. “Provavelmente, elas também agora se transformarão em
flores...” O Maia olhava para o céu, sentindo como o encanto mágico da noite toma conta dele. Parecia
que a noite foi e será eterna, e ele continuará assim dentro dela ‐ eternamente olhando para o céu
estrelado. Lá em cima voava o vento, escorregavam as leves nuvens semitransparentes, de vez em
quando ocultando com o véu escuro os fios preciosos das constelações.
Um vento repentino jogou para trás, num redemoinho, os cabelos do Maia ‐ prateados no luar.
‐ Sobre o que você está pensando? ‐ perguntou Melkor em voz baixa, tocando o ombro dele. Gorthaur
estremeceu, como se acordasse de um sonho:
‐ Eu vi... Ou me pareceu? – ele falou quase num sussurro. ‐ Essas nuvens... provavelmente elas me
enganaram... Sabe, me pareceu de repente que ali, no céu, está um cavalo. Uma nuvem, coagulo da noite
de lua cheia do outono – o corpo dele, as asas ‐ o vento do céu, a crina de neblina e riscos das estrelas
cadentes, olhos ‐ o reflexo da lua numa lagoa noturna... Eu ouvi o vôo dele, a respiração dele é como o
vento de outono... Mestre, como eu gostaria que isso não fosse somente uma visão...
‐ Isso não é mais uma visão. Veja!
Melkor apontou para algum lugar na neblina – e então, deslizando silenciosamente sobre a terra, surgiu
o cavalo alado, aproximou‐se, pisando inaudivelmente, e parou perto deles, olhando torto com o olho de
estrela. O Maia sorriu:
‐ Foi você que fez isso? Novamente um presente?
‐ Não, ‐ Melkor estava sério. ‐ Foi você mesmo. Simplesmente – teve muita vontade...
Gorthaur já estava entrando, mas Neere o impediu.
‐ O Senhor pediu para não perturbar, ‐ estrondeou Balrog.
‐ E o que houve?
‐ Disse ‐ ele precisa pensar. Você me desculpe, Gor...
Maia acomodou‐se num canto com um suspiro:
‐ Vou esperar. Preciso pedir uns conselhos ao Mestre...
Ficaram calados.
‐ Não entendo o que está acontecendo com ele, ‐ reclamou Gorthaur. – Não duvido, estes pequenos são
uma verdadeira maravilha... Mas mesmo assim: sempre estão o rodeando. E, parece, ele está feliz. Logo,
vejo, não poderemos nos esconder deles nem no castelo!
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‐ Pois é, ‐ falou o Balrog com uma voz de baixo. ‐ Ontem mesmo apareceu aqui uma pequenina. O que
você, pergunto, quer? E ela me responde assim seriamente: tenho, tipo, um negócio importante com o
Mestre. E ‐ passa correndo por mim! Nem deu para abrir a boca... Vai, penso, se o negócio é importante,
talvez precisem de mim também. Vou entrando direto para a oficina: ele fazia lá essa coisa esquisita de
madeira... sabe, um deles ainda toca numa igual...
‐ Alaúde, ‐ ajudou Gorthaur.
‐ Certinho ‐ alaúde. Trabalho fino, é claro. Só o Senhor, mal viu essa pequenina, começou a sorrir, botou
tudo de lado na mesma hora... Negocio importante! Ela lhe trouxe umas frutas!
O Balrog calou‐se depois da fala descomunalmente longa.
‐ Vi, ‐ respondeu Gorthaur, ‐ os morangos. Eu entro ‐ eles estão lá na oficina, sentados, e eu nem
acreditei nos meus ouvidos ‐ o Mestre está cantando algo para ela. Bem baixinho... ‐ Maia sorriu
involuntariamente para a lembrança: a voz de Melkor era muito bonita. ‐ E ele que não recusa quase
nada às crianças. Estou certo: se amanhã alguém quiser voar de dragão, o Mestre vai permitir.
‐ E o dragão? ‐ o Balrog riu.
‐ Não, eu vou falar tudo para ele. Basta, ‐ o Maia levantou‐se resoluto, mas nesse momento Melkor
finalmente apareceu na porta. O rosto absolutamente feliz, os olhos brilham:
‐ Sabe, Discípulo, eu entendi qual é o conto de fadas que eu contarei a eles.
‐ Oh, Mestre... ‐ Gorthaur sorriu.
Encontrar um quadro semelhante era o que Gorthaur menos esperava. Ele sabia que Melkor é
imprevisível; mas aquilo que ele viu agora não correspondia até tal ponto à figura do calmo e sábio
Mestre, que Maia ficou perplexo. Eles... brincavam de batalha de neve! Parece que Melkor levou mais do
que os outros: os cabelos dele estavam cobertos de neve, e havia neve grudada em toda a capa. “Uma
maneira peculiar de expressar o amor pelo Mestre!” Se bem que aquilo que estava acontecendo parecia
agradar ao próprio Vala. Ele ria ‐ abertamente e com alegria, como somente crianças sabem rir; atirou
uma bola de neve para o ar, e ela se desfez em estrelas cintilantes, iluminando com uma luz suave os
rostos rosados pela brincadeira dos Elleri.
‐ Mestre! ‐ o chamou Gorthaur.
Aquele se virou e foi em direção ao Discípulo, tirando, ao andar, a neve que grudou na roupa.
‐ O que você está fazendo? Para que?
Melkor, desviando –por um triz ‐ de uma bola de neve certeira atirada pelo Artífice, respondeu:
‐ Para compreender os homens, é preciso dividir tudo com eles: e dor, e alegria, e trabalho, e diversão.
Não é assim, Discípulo?
‐ Sim, Mestre, mas mesmo assim... eles são simplesmente crianças, e você...
Melkor riu com um riso jovem, feliz:
‐ E por que não? Fale honestamente: você mesmo não quer tentar?
Gorthaur se perturbou:
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‐ Mas você é o Mestre... Como eles... Como eu...
A bola de neve que o acertou no ombro, impediu o Maia de terminar a frase.
Gorthaur abaixou‐se, pegou um punhado de neve na mão; uma segunda bola acertou a testa dele.
‐ Se cuidem então! Vou mostrar!.. ‐ urrou ele com uma raiva fingida. ‐ Eu estou aqui a negócios, e é com
isso aí que vocês me recebem!
O Artífice não conseguiu desviar.
‐ E isso é de mim! ‐ gritou Melkor, e a bola de neve, ao tocar o peito do Contador de Histórias, virou um
pássaro branco.
Gorthaur, virando o rosto coberto de neve para Melkor ‐ o Artífice Geleon não ficou devendo ‐ sugeriu,
com um sorriso largo:
‐ E então, Mestre, vamos mostrar a eles de que nos somos capazes?
Melkor fez um sim com a cabeça, fazendo uma pirueta para desviar de mais uma porção de neve.
Nas mãos do Menestrel, a bola de neve de repente se transformou num pequeno arminho. O
animalzinho parou como uma estatua na palma do elfo, brilhando com contas negras dos olhos,
espirrou quando flocos de neve caíram em cima dele e se escondeu dentro casaco de pele do Menestrel.
‐ Está se divertindo, Mestre? ‐ riu Gorthaur.
...À noite, todos se reuniram na casa do Mago ‐ aquecer‐se em frente ao fogo e secar as roupas
molhadas. Ouviam o Menestrel, bebiam vinho quente com especiarias. Melkor, estudando o cálice de
ônix chapeado com prata ‐ presente do Artífice ‐ falava com Gorthaur a meia voz:
‐ Claro, um simples feitiço é suficiente para expulsar o frio, secar a roupa; os Imortais podem
simplesmente não sentir frio. Mas não é mais agradável aquecer‐se perto do fogo na roda dos amigos,
beber um bom vinho ‐ mesmo que, em essência, você nem tenha necessidade disso ‐ simplesmente
ouvir as canções e puxar conversa?
‐ Você está certo, Mestre, ‐ respondeu o Maia, pensativo. ‐ E eu não consigo compreender: por quê em
Valimar o chamam de Inimigo? Por quê dizem que você desconhece o bem, que não é capaz de criar?
Perdoe se as minhas palavras te ofenderam... Mas não é mais fácil viver se você compreende os outros,
diferentes de você mesmo? Se não tem medo?
‐ Eu entendi o que você quis dizer. O mal está no fato deles não quererem entender. Claro que não lhe
contaram que eu lhes ofereci uma aliança?
‐ Não...
‐ Não é de admirar, ‐ Melkor riu tristemente. ‐ O que o Inimigo pode fazer de bom? Valar temem
desobedecer a vontade de Eru. E a aliança comigo significa exatamente isso. E, para que ninguém não
possa nem mesmo conceber algo assim, me nomearam inimigo e apóstata. Significa que não pode haver
nada de bom nem nos meus pensamentos, nem nos meus feitos.
‐ Mas isso não é assim!
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‐ E você, pode considerar um inimigo aquele que sabe amar, como você o sabe; que quer ver o mundo
belo, como você o quer; que pode sentir e pensar, como você o faz; que se alegra igualmente com o dom
de criar? Aquele que, em essência, deseja o mesmo que você?
‐ Que inimigo seria ele, então?
‐ Nisso é que está o problema, ‐ Melkor tomou um gole de vinho.
‐ Sabe, ‐ Gorthaur disse baixo depois de um breve silêncio, ‐ eu estou tentando imaginar Aulë brincando
de batalha de neve com os seus discípulos.
‐ E então? ‐ interessou‐se Vala.
‐ Não dá, ‐ suspirou o Maia. ‐ Ele não se rebaixaria. Provavelmente, nunca viria na cabeça dele
transformar uma bola de neve num pássaro. Porque isso não tem nenhuma utilidade. É simplesmente
bonito, interessante, divertido... E ele é o Grande Ferreiro, e por isso deve criar somente o grande e o
útil. Para maior glória do Único. E disso ‐ que glória? Somente... Aquece o coração, será? Não sei, como
dizer...
Melkor suspirou:
‐ Um dia eu te contarei, o que fez Aulë ficar assim...
‐ Andarilho!
O jovem virou‐se.
‐ Ouça, Andarilho, o que aconteceu com seus olhos?
Aquele ficou perplexo: aparentemente, nada de especial... O Pintor riu baixo:
‐ Os seus olhos estão dourados...
‐ O que? ‐ não entendeu Andarilho.
‐ Dourados como mel, como o sol nascente. Veja você mesmo!
O Andarilho sorriu:
‐ E não há nada de engraçado. E não há nada para se surpreender. Olha os seus ‐ são azuis, os do Mago –
verdes, como folhas no sol...
‐ Verdade? ‐ subitamente, o Pintor ficou sério. ‐ Ouça, e por quê?
‐ Mas não era sempre assim?
‐ Não... Eram ‐ cinzas, os meus, os seus, os dele... Não consigo entender. Talvez, o Mestre responderá?
‐ Antes não tínhamos tempo para reparar nisso...
‐ Nos só agora percebemos...
‐ Talvez, você sabe? Os estão se tornando diferentes, e os cabelos... Porque?
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O Vala sorriu. Quão diferentes eles ficaram... Mechas desobedientes de cabelos ondulados dourados
escuros caíam em desordem sobre os ombros do Andarilho, ele é todo assim claro, límpido e fino, como
um raio de luz. O olhar do Pintor é tenaz e aguçado, mas os olhos ‐ azuis, aveludados, como safira
escura, e os cabelos negros estão presos por uma tira fina de couro. Ele aparenta ser mais velho: o
Andarilho, comparado com ele, é quase um menino, mesmo que os dois sejam dos Primeiros. Mas todos
sabem que faz tempo que o Artífice Orein de olhos azuis perde e a coragem, e a confiança, e a
severidade, basta aparecer por perto a pequenina e delicada Halie – hábil bordadeira e tecelã.
‐ Por quê, Mestre?
‐ Simplesmente ‐ vocês são Homens. E os homens são todos diferentes, não se parecem um com o outro,
como folhas de uma arvore, como estrelas...
“Vocês são Homens. Assim como eu os via, quando ouvia o Canto de Ëa. Só que pela vontade de Eru eles
serão tão pouco duradouros como faíscas, e serei eu capaz de devolver‐lhes aquilo que ele tomou? Ou a
dádiva da liberdade se tornará para eles um castigo e um mal? Será que nisso Eru será o mais forte?”
Foi uma conversa inesperada.
‐ Conte, Gorthaur, e os outros Criadores do Mundo, aqueles que vivem em Valinor, eles são bonitos?
Ele ficou pensando por muito tempo, pela primeira vez descobrindo, surpreso, que agora os rostos
perfeitos dos Valar não lhe parecem nada belos. Nenhum traço errado, como se alguém tivesse como
meta a criação de uma beleza perfeita, e conseguiu‐o, mas na corrida atrás da clareza e exatidão das
linhas desapareceu algo principal, tão importante como impossível de capturar, e nestes rostos não
havia vida. Todos os Valar eram diferentes e ‐ semelhantes, mesmo se distinguindo pelos traços dos
rostos e alturas, cor dos olhos e dos cabelos. Alias, quase todos...
Não, aqueles que ele via ao redor de si agora eram infinitamente mais belos. E o sonhador moreno de
olhos dourados, o Andarilho, e o Armeiro, zombeteiro, de ombros largos, Gellor‐Mago, sempre
pensativo e concentrado, e a impetuosa Allua, e quase majestosa Onnele Cyolla...
‐ E as Valier?
Pensando bem, era possível chamar de belas somente duas: Nienna e Estë. Justamente porque os rostos
delas foram marcados por algum sentimento. Mas a obra prima de acabamento, a perfeita Rainha do
Mundo ‐ qual dos Homens a chamará de bela?
‐ E o Rei... o irmão mais novo do Mestre?
Manwë. Estranho: enormes olhos brilhantes e pestanas compridas não estragam em nada o irmão mais
velho, e os traços do mais novo são quase efeminados ‐ por quê? Novamente algo impossível de
capturar...
‐ Ouça, Gorthaur... eu pensei só agora... ‐ O Andarilho parecia envergonhado. ‐ Qual é a cor dos olhos do
Mestre?
E verdade ‐ qual? Cinza‐claros? Verdes? Azuis? Seria possível definir a cor das estrelas?.. Vinham‐lhe na
cabeça somente comparações: céu, mar, estrelas... Mas o céu também não é sempre azul, as águas do
mar nem sempre parecem verdes... Relâmpago?.. Gelo?.. Aço?..
‐ Não sei. Eu não sei.
Eles eram diferentes, os Discípulos de Melkor, Elleri Ahe. Havia aqueles em cujas mãos o metal
começava a cantar e as gemas ganhavam vida. Havia aqueles que compreendiam a língua dos animais e
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dos pássaros, das arvores e das ervas, e aqueles que sabiam ler o Livro da Noite... E aquele que sabia
compor canções melhor que todos, chamava‐se ‐ Menestrel Escuro. O sinal dele era a estrela alada de
nove pontas: aperfeiçoamento da alma, o caminho do coração alado. As baladas dele pareciam e não
pareciam aquelas que o Maia dos olhos dourados cantava; talvez porque nelas vivia uma tristeza
desconhecida. E os olhos daqueles que o ouviam se enevoavam. E aquele que via os sinais do Escuro
encontrou um meio de anotar os pensamentos. Ele criou os sinais tay‐an, que poderiam ser escritos no
pergaminho com pena e com pincel, e aqueles que poderiam ser gravados nas pedras e talhadas na
madeira. E entre os Elfos do Escuro, ele levava o nome de Amigo dos Livros.
E aquele que ouvia os cantos da terra, as contava em forma de contos de fadas ‐ estranhos e sábios,
alegres e tristes. Assim dizia ele: “Nossos filhos amarão estes contos; quando se começa a descobrir o
mundo, ele parece cheio de maravilhas e enigmas ‐ que seja assim naquelas histórias que lhes serão
contadas...” Melkor sorria, ouvindo‐o; e o chamaram de Contador de Histórias.
Eles eram diferentes, mas semelhantes em uma coisa: todos eles consideravam‐se Homens, pois,
mesmo que fossem inicialmente Elfos, escolheram o caminho dos Mortais; mas a vida deles era tão
longa quanto a dos Primeiros Nascidos, e o cansaço não os tocava – quem teria tempo para se cansar
quando há, ao redor, tanto desconhecido, novo e belo? E o mundo espera o toque das suas mãos, e
alegra‐se com você, e o seu coração está aberto a ele...
E o Mestre alegrava‐se vendo como aumenta a sabedoria e o entendimento dos discípulos dele.
E a paz reinava em Arta. Mas ela durou pouco.
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CÁLICE. ANOS 488500 DO DESPERTAR DOS ELFOS
Desde a partida de Artano, começaram a olhá‐lo de um jeito estranho em Valinor, e muitos até o
evitavam. Ele atribuía isso ao fato de que Aulë perdeu as boas graças do Rei do Mundo e dos Poderes,
mas logo ele teve a chance de verificar que não é assim. Ao oferecer, mais uma vez, os serviços dele ao
Ferreiro, ele ouviu um taciturno “Não”.
‐ Mas por quê, meu senhor?
‐ Quanto você, quanto aquele foram fundidos na mesma forma, ‐ respondeu Aulë, sombrio.
Curumo não o compreendeu, mas não teve coragem de perguntar mais. Mas pensou e memorizou a
resposta do senhor dele.
Um dia, ele percebeu um olhar hostil de Tulkas:
‐ Do que é que você precisa aqui?
Curumo fez uma elegante reverência:
‐ Eu fui enviado com um encargo do meu senhor Aulë, Poderoso...
‐ Então vá... ‐ resmungou Tulkas. E, pelas costas, o Maia ouviu, ‐ cria do Inimigo...
Curumo era inteligente ‐ e não era difícil adivinhar a verdade.
“Então eu, tal como Aulendil, fui criado por Melkor. E eu sou o mais poderoso e o mais sábio entre os
Maiar, como ele ‐ entre os Valar... Mas claro! E agora os Valar simplesmente têm medo de mim. Até
Tulkas. Servo de Aulë! Que título. O que me espera aqui? O destino de um serviçal? E lá? Claro, ele me
receberá, como recebeu Artano...” Curumo fez uma careta de despeito. Artano. Rival.
“Mas não me consideram o mais hábil dos discípulos de Aulë? Obviamente, o poderoso Vala dará devido
valor a isso. E então veremos. E, para que ele não duvide da minha devoção, eu lhe oferecerei uma
grande oferenda, digna de um Senhor!”
‐ ...O que faz aqui?
Curumo levantou‐se num salto e curvou‐se ao Ferreiro:
‐ Oh, meu senhor! Eu pensei em fazer um cálice para o Rei do Mundo...
‐ Por quê não me disse? ‐ Aulë estava começando a se irritar.
‐ Ó Grande! Você revelou‐me um abismo de sabedorias, e deu‐me muitos conhecimentos. Mas eu
duvidei, seria eu digno de ser servo de um Vala tão sábio... Portanto, se a minha criação for imperfeita, a
culpa recairá somente sobre mim, um aluno pouco aplicado. E caso a minha oferenda seja digna do Rei
do Mundo, falarão: quão grande é Aulë, se até o aprendiz dele, um servo, pode criar algo assim? E
aumentará a sua fama, meu sábio senhor.
‐ Não é que você está certo?.. Bom, estou contente com você, e o seu plano me agrada. Pode continuar, ‐
as palavras soavam como se o Ferreiro falasse contra a própria vontade.
Curumo fez uma segunda reverência:
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‐ Agradeço‐o, sábio. As suas palavras plantam esperança no meu coração. Sou insignificante demais
para ajudá‐lo nas suas obras; mas se a minha criação servir para a sua fama, não existirá um prêmio
maior para mim...
Ele saiu de Valinor silenciosamente e sem ser percebido; e só tempos depois Aulë a ausência dele.
E Gorthaur encontrou‐o no portão negro da fortaleza de Melkor. Ele não teve tempo de falar nada:
Curumo pulou para abraçá‐lo:
‐ Oh, meu irmão, como estou feliz por estarmos finalmente juntos!
‐ Mas... ‐ Gorthaur estava perplexo.
‐ Leve‐me ao Senhor, rápido!
Curumo seguia o Maia Escuro, que andava na frente:
‐ Quão destemido você é, meu irmão! Eu reverencio a sua coragem e a sua resolução; mesmo
suportando todas as humilhações e o desprezo com quais eu fui cercado em Valinor, eu demorei em
juntar coragem para seguí‐lo...
Eles entraram na sala do trono, e Curumo, em lagrimas, atirou‐se no chão, abraçando os joelhos de
Melkor:
‐ Finalmente, meu senhor, finalmente eu vim até você!
Melkor olhava‐o, chocado, e finalmente conseguiu pronunciar:
‐ Levante, o que deu em você? Como é pode humilhar‐se assim?!
‐ Não há perdão para mim, Grande! Eu também estive com eles e servi aqueles que se atrevem a opor‐se
a você! Mas eu voltei a ver, eu compreendi toda a grandeza dos seus planos. O meu lugar é aqui, ao seu
lado, meu senhor... Como estou feliz de ter alcançado, finalmente, a verdade!
‐ Levante‐se, por favor...
‐ Não, Grande, eu sou o pó sob os seus pés, eu não mereço... Perdoar‐me‐á? ‐ ele queria beijar a mão de
Melkor, mas aquele, quase assustado, arrancou a mão, levantou‐se e fez Curumo levantar‐se do chão:
‐ Está bem, está bem, eu te perdôo, perdôo, se você precisa tanto disso...
‐ Agradeço‐o, Grande... Será que você se rebaixará a ponto de aceitar a minha oferenda?
O cálice de ouro vermelho, todo enfeitado com esmeraldas e rubis, enrolado em fino ornamento de
diamantes. O pé torcido envolto por uma fita de esmeraldas de quatro faces. Trabalho hábil... mas só de
olhar ‐ como é pesado... “Como vou levantá‐lo?..” ‐ pôde pensar Melkor.
‐ Somente você ‐ o verdadeiro Senhor do Mundo ‐ é digno de beber de um cálice assim.
‐ Senhor do Mundo?..
‐ Claro que sim, senhor! É engraçado ouvir como condecoram Manwë com o título de Rei de Arda. O
poder dele não se estende para além dos limites de Valinor; realmente, somente você governa o mundo,
meu senhor...
‐ Por quê me chama de senhor? ‐perguntou Melkor, finalmente vencendo a surpresa.
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‐ Há outra forma? Tudo em Arda é obediente a sua vontade; nos somos somente os seus servos,
incapazes de compreender a profundidade e a grandeza dos seus planos.
‐ Basta, ‐ o Vala Escuro, resoluto, interrompeu o discurso de Curumo.
‐ Eu irritei‐o, Grande? Imploro‐o, perdoe o seu insignificante servo.
Curumo estendeu‐se no chão perante o trono.
‐ Levante! Se quiser tornar‐se meu discípulo, não se atreva a humilhar‐se! Como pode me chamar de
senhor? Aqui você não é servo ‐ está livre!..
‐ Eu entendi, Grande, e que seja assim como você deseja. Mas conte‐me – você aceita a minha oferenda?
Não voltará as costas para mim?
‐ Não... Não... Fale‐me somente, porque fez este cálice?
‐ Estou feliz em explicar‐lhe, Grande... Perdoe se eu falar algo errado, pois ainda sei pouco, e não são
muitos os conhecimentos que Aulë pôde me transmitir. Ouro é o metal dos senhores, por isso escolhi
este material para a minha criação. Três pedras se combinam neste cálice: rubi ‐ pedra do poder,
esmeralda ‐ que expulsa a tristeza e traz a alegria, e o diamante ‐ sinal dos vencedores e guerreiros
poderosos, semelhante a sua onipotente vontade, pois é indestrutível... Fale, Grande, será que eu errei?
‐ Não... Mas tudo o que disse é o olhar de um lado somente. Fale com o Artífice ‐ ele explicará...
‐ Só uma coisa ainda me parece incompreensível, Artífice: eu não vi aqui nada feito de ouro. Ate as suas
jóias são de outros metais. Por exemplo, esse seu anel; ele é belo, mas isso é aço? Pense – será que a
beleza do anel não aumentaria se ele fosse de ouro?
‐ Eu entendo‐o, Curumo. Mas o Mestre diz que o ouro é um metal pesado e arrogante, poucos possuem
força suficiente para domá‐lo e mudar a essência dele. Magos e aqueles que têm habilidades de cura
preferem a prata, metal da Lua, que não suporta sangue, que dá o poder sobre a essência das coisas e
sobre si mesmo. Prata é a sabedoria e a calma, e significa ‐ equilíbrio.
‐ Isso eu entendo; mas ‐ aço? Por acaso, ele não significa ‐ o poder da força?
‐ Desculpe‐me, mas novamente você olha só por um lado. Tudo depende daquelas mãos que tocam o
aço. Aço é vontade e fidelidade; o aço é metal dos defensores e não fica abaixo da prata em nada. Mas,
acima dos outros metais, nos apreciamos o ferro.
‐ Pode isso acontecer? Ferro é um metal rústico e rotineiro...
‐ E novamente, está certo somente em parte. Ferro é um metal antigo que guarda muitos grandes
mistérios. Mas eles serão conhecidos somente por verdadeiramente sábios. O artífice deve possuir alta
sabedoria e grande habilidade para trabalhar com o ferro. Esse metal possui uma vontade própria. Nos
somente começamos a descobrir os segredos dele, e o Mestre, parece, sabe tudo... sabe, nas mãos dele o
ferro canta...
‐ E o Gorthaur?
‐ Oh, foram‐lhe reveladas muitas coisas. Ele é o primeiro dos discípulos de Melkor.
Curumo fez uma careta. A menção de Artano era desagradável. “Ouro é metal inferior? Como se eles
entendessem muito de metais!”
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‐ E as pedras? ‐ perguntou ele em voz alta. “Pelo menos disso eu certamente sei tudo”.
‐ Você respondeu corretamente ao Mestre, mas... Olhe para este rubi: ele parece o fogo e o sangue
ardente, mas ao mesmo tempo é frio como o gelo. A mesma dualidade ‐ nas propriedades dele, e nas
propriedades das outras pedras. Rubi ‐ é sinal não somente do poder, mas também da desgraça,
diamante ‐ é também a pedra daqueles que curam, e o significado da esmeralda ‐ beleza da natureza e
amor do Universo. Você não sabia?
‐ Claro que sabia, mas...
Curumo não acabou a frase, mas, aparentemente, Geleon‐Artífice nem esperava a continuação.
“Ele mesmo não quis explicar. Não se rebaixou. Mandou falar com este burro. Mas deixa. Ele logo
compreenderá que eu sou digno de algo maior. Eu provarei...”
‐ Geleon!
‐ Sim, Mestre?
‐ Veja; esse cálice lhe agrada?
O Artífice pensou, e depois respondeu, sem muita certeza:
‐ Não sei, Mestre... Eu não vejo defeitos... Nunca vi um trabalho tão fino em ouro, e as pedras foram
escolhidas com saber e habilidade... todas as proporções estão corretas, mas...
‐ Mas?
‐ Perdoe, Mestre, mas por alguma razão eu nem quero tocá‐lo, ‐ parecia que Geleon estava surpreso
com as próprias palavras. ‐ Quem fez isso?
‐ Meu... discípulo, ‐ Melkor tropeçou nessa palavra. Devagar, levou o cálice até os lábios...
Ou o ouro vermelho é que pregou nele uma peça, ou isso era um eco daquilo que ‐ será, mas por um
instante pareceu‐lhe – o cálice está cheio de sangue grosso até as bordas. Ilusão? Mas de onde, então, o
gosto salgado nos lábios?..
Melkor atirou o pesado cálice para longe, com horror e repulsa. Este tiniu, rolando pelo soalho de
pedra. Melkor fechou os olhos com a mão tremula.
‐ O que houve, Mestre?!
‐ Nada... nada... Pareceu‐me que...
“Que oferenda é essa que você me trouxe, Curumo? De quem é o sangue neste cálice, de quem é o
sangue que você me deu para beber? Isso é um sinal; um presente maldito ‐ ver, sem saber, sem
entender o que vê...”
O vinho derramado não lembrava mais sangue, e ele compreendia que foi apenas uma ilusão... mas ‐
forte e nítida demais.
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ABSINTO. ANO 497 DO DESPERTAR DOS ELFOS
...A escolha do Nome das Estrelas ‐ cennen Gelie ‐ é uma festa para todos. E até no meio do inverno, ela
sabia, haverá flores. Ainda mais hoje ‐ no Dia da Estrela: festa dubla. Ela escolheu justamente este dia, e
com ela ‐ mais dois, ambos dois anos mais velhos. Por uma noite, eles três estarão coroados por
estrelas, como se fossem iguais ao Mestre: assim é o costume. Mas tudo isso ainda acontecerá...
E por enquanto ‐ os três no meio da sala, e o Mestre está na frente deles.
‐ Eu, Artais da casa dos que Ouvem a Terra, escolhi o meu Caminho, e como sinal do Caminho, em nome
de Arta e de Ëa, escolho o nome Gellaan, Vale das Estrelas.
‐ Perante as estrelas de Ëa e a esta terra, o seu nome agora será Gellaan. O seu Caminho está escolhido ‐
que seja assim.
A mão do Mestre toca a cabeça curvada de cabelos escuros, e a jovem levanta, com uma coroa de
estrelas, e brilhando com o sorriso largo.
‐ Eu, Tayr, escolho o caminho dos que Observam Estrelas, e como sinal do Caminho, em nome de Arta e
de Ëa, escolho o nome Gellir, Contador de Estrelas.
‐ Perante as estrelas de Ëa e esta terra...
A última é ela. E o coração para ‐ será somente porque ela é a mais jovem e achou muito cedo o caminho
dela?
Como é difícil dar um passo para frente...
‐ Eu, Elenhel...
Ela abaixa a cabeça, por alguma razão escondendo os olhos.
‐ ...aceito o Caminho da que Vê e Recorda... e como sinal do Caminho, em nome de Arta e de Ëa, escolho...
Ela levanta a cabeça, bruscamente, a voz ressoa pela sala.
‐ ...aquele nome pelo qual você me chamou, Mestre, pois ele é o sinal do meu caminho por milênios...
Um friozinho familiar no peito: ele não somente fala, ela vê.
‐ ...o nome Elhe, Absinto.
Um pequeno relâmpago de gelo espeta o coração como uma agulha. Como é estranho o seu rosto,
Mestre... O que houve com você? Como se tivesse esquecido das palavras que pronunciou dezenas de
vezes... ou sou eu, fiz algo de errado? Ou ‐ você também ‐ vê?
Ela começou a sentir medo.
‐ Perante as estrelas de Ëa e... Arta... de agora... ‐ ele olha nos olhos dela, e o olhar é amargo e
preocupado, ‐ e para a eternidade, pois o Caminho não tem fim... o seu nome será Elhe. Que seja assim.
Ele a pega pela mão ‐ e isso também não é o costume ‐ e passa os dedos sobre a estreita, confiantemente
aberta, palma. O fogo acende‐se na mão ‐ gélido e leve, como pétala de uma flor.
“O Coração do Mundo ‐ uma estrela nas suas mãos...”
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Por alguns instantes, ela olha para a chama azulada, depois aperta a palma contra o peito, à esquerda.
O Mestre vira‐se e com o mesmo rosto límpido e desesperado de repente joga as mãos para cima ‐ uma
chuva de faíscas estreladas cobre todos, um suspiro maravilhado e feliz voa pela sala, em algum lugar
acende‐se o riso...
‐ Realmente ‐ Filhos das Estrelas...
Ele fala muito baixo, provavelmente ela é a única a ouvir as palavras.
‐ E você novamente esqueceu de si mesmo.
Ele olhou para Elhe surpreso. Aquela, com os olhos semicerrados, concentrada, entrelaça os dedos,
depois abre as palmas ‐ e algo alça vôo em volta da alta figura de negro, como uma tempestade de neve:
o manto ‐ como céu noturno, e estrelas nos cabelos...
‐ Onde você aprendeu isso? ‐ ele estava alegremente surpreso.
‐ Não sei... em todos os lugares... Eu... simplesmente tive muita vontade, ‐ ela perturbou‐se. Ele ri baixo
e, com solenidade meio brincalhona, estende‐lhe a mão. Artais‐Gellaan e Tayr‐Gellir formam o segundo
par.
...A festa prosseguia: o vinho doce e dourado faiscava nas taças, lentamente escorria para os cálices o
rascante vinho cor de rubi; o riso voava sob o teto de madeira como um bando de pássaros assustados,
tiniam as cordas cantavam as flautas...
‐ Mestre, ‐ um sussurro.
‐ Sim, Elhe?
‐ Mestre, ‐ ela tocou a mão dele, ‐ e você ‐ você não vai tocar nada?
‐ Não sei, por quê não... ‐ Vala pensou e depois respondeu, resoluto. – Só que quem vai cantar será você.
‐ Ai... ‐ como uma criança.
‐ E nenhum “ai”! ‐ ele imitou‐a surpreendentemente bem e, já levantando, chamou:
‐ Gelren! Permita‐me ‐ o alaúde.
Todos se calaram de uma vez: ninguém vai atrapalhar um menestrel, e se o próprio Mestre vai tocar... A
tarde hoje acabou ficando bastante estranha!
Pouco antes ‐ riso e alegria incontida, mas a melodia voou ‐ transparente, triste, e a voz era como um
eco do tinir das cordas ‐ Vala cantava, sem abrir a boca, simplesmente dava o tom, e com o tinir da
prata, baixinho, as palavras começaram a enlaçar‐se na melodia ‐ entrou a segunda voz, jovem e
límpida:
Andele‐tei cor eme
Es‐sey o anti‐eme
Ar ilmari‐ellar
Ar Ennor Saerey‐allo…
O llais a letti ah‐ennie
Andele‐tei kori’m...
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As duas vozes teciam a renda da melodia encantada, e as estrelas cintilavam, e até quando a música
acabou, ninguém quebrou o silêncio ‐ o eco dela ainda era sentido sob o teto da sala e no coração...
...até que um cálice pesado voou ao chão com um estrondo.
Aliás, ninguém entendeu logo de cara o que está acontecendo; o Mestre somente disse, em tom de
censura:
‐ Eldhenn!
O dragão sorriu envergonhado e fez uma tentativa de cobrir‐se com a asa.
‐ E permita‐me perguntar, por quê é que você veio aqui?
Uma vozinha metálica, ríspida e ao mesmo tempo infantil, respondeu:
‐ Eu queria... como se diz... dar parabéns... e eu também ouvia...
‐ E então? ‐ interessou‐se Vala.
O dragão fechou os olhos, sonhador.
‐ E para que fez cair o cálice?
O dragão apanhou cuidadosamente o cálice amassado com a pata coberta de escamas e, com todas as
precauções devidas, depositou‐o sobre a mesa, sem esquecer de lamber algumas vezes o vinho
derramado com a fina e rósea língua bipartida:
‐ Mas e as assas... e o rabo ainda por cima...
Ele conseguiu, finalmente, sem mais incidentes, chegar até o Vala, e agora o olhava de esguelha,
apertando‐se contra o chão: então, vai ficar bravo?
‐ Queria ou‐uvir... ‐ até soltou um pouco de fumaça pelo nariz e, pedindo, arranhou a bota do Vala com a
unha: vai, deixa?
‐ Crianças pequenas, ‐ aquele soltou um suspiro fingido. ‐ Eh!.. o que mais, agora?
Elhe parou de fazer carinho na pele ainda macia sob o estreito maxilar inferior do dragão ‐ o dragão,
por causa disso, piscava os olhos cor de lua dourada, satisfeito, e só faltava ronronar.
‐ E daí?.. vai, Mestre, ele gosta... veja!
Eldhenn, para comprovar o que foi dito, urrou alguma coisa suavemente.
Gorthaur olhou preocupado para o irmão mais novo: vai ver que fala alguma coisa, mesmo agora, lê‐se
pela cara ‐ acharam, tipo, o que fazer! Aquele, no entanto, não disse nada, apesar de ter feito uma
carranca de desgosto e entortado os lábios com desprezo. Ótimo.
‐ Elhe, se quiser pegar ele para ser seu bichinho de estimação ‐ fale assim mesmo! – o Vala fingiu
indignação.
Elhe franziu a testa, pensativa.
‐ Isso é uma boa idéia, Mestre! ‐ iluminando‐se, declarou ela instantes depois.
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Como resposta, soaram risos e gritos “Viva!” Vala também riu, aliviado: ainda uma criança, mas aquele
olhar – deu até medo. Aquela que Vê e Recorda. Além dela, somente três escolheram o este caminho.
Doze anos ‐ e Vê. Nunca antes houve algo assim...
Mas uma pontada de preocupação ainda continuava.
‐ ...E a canção, Gorthaur!... Viu como Gelren a olhava?
O Discípulo olhou para o Mestre maliciosamente:
‐ E quando crescer?
‐ Hm... Cuide‐se – vai que te encanta também!
Mas que olhos!.. Como se tivesse a mesma idade do mundo. “Sinal do caminho por milênios”...
...Estava tão frio que os lábios rachavam, e nas pestanas e no capuz de pele, perto do queixo, formava‐se
uma crosta de neve. Ela já estava pensando se não deveria voltar, e nesse instante os viu.
Redemoinhos de neve alados, reflexos do fogo gelado do céu ‐ é isso mesmo?..
‐ Quem são vocês?
Os lábios não obedeciam. O rumor do gelo e o tinir baixo formaram uma palavra:
‐ Helgeayni...
Ela sorriu, não sentindo nem o rosto congelado, nem o sangue que saia das pequenas rachaduras dos
lábios.
Ela não poderia explicar o que via. Música que se tornou visível, uma dança mágica, chamas gélidas
entrelaçadas, rodopios lentos de poeira estrelar... Ela ficou, encantada com a incompreensível e
estranha maravilha do mundo do gelo ‐ mundo dos não‐humanos, dos Espíritos do Gelo.
“De onde vocês...”
Ela já não pôde perguntar ‐ somente pensou. Não sabia porque ‐ o tempo parou na feitiçaria gelada, e
era impossível entender se passaram minutos ou horas. Havia a alegria de ver isso, não visto por mais
ninguém.
Eles ouviram.
“Tennaeliayno... pergunte‐o...”
Seis cintilantes notas quase inaudíveis ‐ um nome. Ela o repetiu para si, e cada nota se abria numa flor
de neve: o vento que leva a canção das estrelas em palmas que vêem. Tennaeliayno. Ela olhava, até as
pálpebras ficarem pesadas, e a tempestade de estrelas a rondava ‐ isso é que é morte?.. – que
tranqüilidade... E já não sentiu a forte rajada de vento quando enormes asas negras a abraçaram.
‐ Elhe... Acorde...
Como é difícil abrir os olhos... Você... Tennaeliayno... Não há forças nem para sorrir. Que bom...
Ele passou os dedos sobre os cabelos prateados dela:
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‐ Tudo está bem. Agora durma. Os pássaros avisarão que está me visitando, e ninguém irá se preocupar.
Ela apertou o rosto contra a mão dele e fechou os olhos novamente.
‐ Mestre... Você ficou aqui a noite inteira desse jeito?
‐ E mais um dia, e mais uma noite. Como vai?
‐ Eu fui boba. Eu queria tanto vê‐los... Helgeayni. Eles... eles são belos. Eu não sou capaz contar... Mas
eu... eu teria morrido se não fosse você. Desculpe‐me...
‐ A culpa é toda minha. Eu a conheço ‐ não deveria ter contado. Depois daquela história com o dragão...
O rosto de Elhe ficou levemente rosado.
‐ Você não esqueceu?
‐ Eu lembro tudo sobre cada um de vocês. É óbvio que você quis vê‐los.
Ela baixou a cabeça:
‐ Você não está bravo comigo, Tennaeliayno?
‐ Não muito, ‐ ele virou‐se, escondendo o sorriso. ‐ Espere... como você me chamou? Eles falaram com
você?
‐ Eu não tenho certeza... Eu pensei que isso tudo foi um sonho. Simplesmente isso soa tão bonito...
‐ Eles raramente falam com palavras... ‐ ele se levantou. ‐Eu vou indo. Está com fome?
‐ Terrível!
Ele riu:
‐ A mesa está posta no quarto contíguo. Depois, se quiser ver o castelo ou ler alguma coisa ‐ pergunte a
Neere, ele mostrará.
‐ Quem é?
‐ O primeiro dos Espíritos do Fogo. Você não os viu ainda?
Ela inclinou a cabeça para um lado, tirou uma mecha de cabelos da testa:
‐ Não...
‐ Eles, na verdade, não falam muito, mas isso não é nada. Eu voltarei logo.
‐ Neere!..
A porta se abriu, e a enorme figura alada respeitosamente fez uma reverência para a menina. Ela olhou,
encantada, para os olhos de fogo.
‐ É você que é o Espírito do Fogo?
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‐ Eu, ‐ a voz de Ahero soou como uma trovoada distante.
Elhe estendeu a mão.
‐ Cuidado. Pode queimar‐se. As mãos são quentes. Erraener nos criou do fogo de Arta...
“Erraener – a alma alado do Fogo...”
‐ ...Eu o compreendo, quando ele fala que ama esses pequenos.
‐ Você sabe, o que é ‐ amar?
Neere ficou calado por muito tempo, escolhendo as palavras.
‐ Eles são... estranhos. Eu faria de tudo por eles, ‐ ele se enrolou nas asas como se fosse uma capa, nos
olhos de fogo dele surgiram lentas e minúsculas faíscas douradas. ‐ Assim... são como faíscas. Coloridos.
Rápidos. E indefesos.
Dessa vez, ele se calou de verdade.
‐ Leve‐me para a biblioteca, ‐ pediu Elhe.
Balrog acenou com a cabeça.
Mal vendo aquele que ‐ em vestes negras todas bordadas de ouro ‐ estava perto da mesa, ela sentiu um
frio desagradável na espinha. Ela não podia entender a razão disso, e por isso sempre se culpava pela
vaga hostilidade ao Maia Curumo.
Maia Curumo. Mas Gorthaur é simplesmente Gorthaur, mesmo sendo um Maia também, mas você se
lembra disso, de forma passageira, somente quando vê que até o metal derretido não causa nenhum
mal às mãos dele...
‐ O que está fazendo aqui?
A pergunta, mesmo feita com uma voz suave, quase carinhosa, a fez ficar se sentir mal; ela balbuciou,
perdida:
‐ Eu?.. Eu estou visitando... o Mestre...
‐ Para que?
Ela se conteve com dificuldade:
‐ Simplesmente... Nada de especial. E o que está lendo?
O Maia sorriu, condescendente:
‐ Ainda é cedo para você ler, menina. Não entenderá nada.
A voz de Elhe tremeu de raiva; nunca e ninguém havia falado com ela assim:
‐ Eu escolhi o Caminho. Já se foram três invernos; você esqueceu?..
Novamente um sorriso condescendente e indiferente:
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‐ Não posso lembrar de todos.
Ela deu um passo brusco na direção da porta, mas de repente teve medo de ter ofendido o Maia com
isso.
‐ Eu o ofendi? Eu não quis, verdade...
O Maia ergueu as sobrancelhas, surpreso, e, novamente voltando‐se ao livro, atirou:
‐ Absolutamente não.
Só depois de sair da biblioteca é que ela percebeu que estava tremendo, como de frio. Medo. Não medo
do perigo, mas algo indefinido, abafado e grudento, parecido com tentáculos de neblina cinzenta... de
onde? Parece que Mestre havia dito algo... ou não?
“Mestre. Milhares de vezes, você pronuncia o nome dele nos pensamentos ‐ esse nome, único, e nunca
em voz alta. Não se atreve. Milhares de vezes ‐ palavras insanas, e jamais as pronunciará. Melhor não
pensar sobre isso. E sobre qualquer outra coisa também não. Queria que você voltasse logo, Mestre.
Mestre”.
Era possível vagar por este castelo por horas. Simplesmente andar e olhar, ouvindo as músicas baixas,
tentando calar a impaciência da espera.
Ela subiu para o patamar superior de uma das torres, como se alguém a chamasse para lá...
...Ele fechou as asas lentamente, ainda cheio da feliz sensação do vôo, do vento estrelado que bate no
rosto e da liberdade. E ouviu uma exclamação de surpresa. A menina estendeu a mão e, prendendo a
respiração, como se tivesse medo do milagre desaparecer, tocou a asa negra. Riu baixinho e feliz,
levantando os olhos:
‐ Mestre... você tem estrelas nos cabelos, veja!
Ele levantou o braço para tirar a neve, mas mudou de idéia.
‐ Vamos. Assim você nunca ficará boa ‐ sem capa nesse vento...
“Isso é como um sonho. Ou um conto de fadas. Mas os sonhos e os contos duram pouco e logo são
esquecidos... Isso ‐ quando os contos são felizes. E o meu, parece, ‐ mais amargo que absinto. Ou você
também sente isso, e por isso me deu esse nome... Tudo isso acabará. Tudo isso logo acabará. Eu me
odeio, seria melhor eu não nascer uma daquelas que Vêem... E se eu ao menos soubesse o que irá
acontecer... Sentir, mas não saber, não poder prevenir... Eu verei ‐ mas então será tarde”.
‐ Você é hábil na arte de compor as canções, Menestrel; por que não compõe uma balada sobre o nosso
senhor?
‐ Mas para que, Curumo? Ele nunca disse, que queria isso...
‐ E nunca dirá. Mas é claro que quer! Será que existe alguém que é mais digno de elogios do que ele? Ele
é o Senhor de Arda, Senhor do Mundo, e tudo o que há de vivo em Arda, tudo que é carne do Mundo o
obedece... Essa será a sua melhor canção, Menestrel!
‐ Mas o Mestre nunca disse que precisava disso...
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‐ Acredite‐me, eu sei. Pense ‐ ele sozinho contra todos os Valar! Os mais poderosos e fortes também
precisam de ajuda. Será que não quer alegrar o nosso Senhor? Eu te garanto, ele ficará contente...
‐ Eu não sei... vou tentar... Talvez esteja certo, Curumo...
‐ ...Como sou fraco, Mestre... Não sei nada ainda...
‐ Do que está falando, Gelren?
‐ Eu quero compor uma canção sobre os seus feitos, e não consegui...
‐ Para que, discípulo?
‐ Eu pensei em agradá‐lo...
‐ Os elogios não me trazem alegria. E você sabe disso. Quem lhe sugeriu essa idéia?
‐ Curumo, Mestre...
‐ Curumo, ‐ repetiu Melkor pensativo; depois levantou os olhos para o discípulo e sorriu. ‐ Agora você
sabe, que não se pode mandar o coração cantar.
‐ Sim, Mestre... eu entendi...
‐ Vá, discípulo. Se encontrar o Curumo, diga para ele vir aqui.
‐ Por quê achou que eu precisava de algo assim?
‐ Ó Grande! Quem é digno de elogios se não for você? Em Valinor, dia e noite cantam a glória de Manwë
– não seria você mais digno disso? Sobre os seus feitos devem ser compostas canções... Porque eu sei
bem ‐ isso lhe dará forças para novos grandes feitos... Toda a Arda o glorificará, Senhor!
‐ Então você mesmo poderia compor uma canção, ‐ falou Melkor, zombeteiro, ‐ você também tem uma
boa voz!
‐ Mas meu senhor, ‐ respondeu Curumo com dignidade, ‐ as canções são negócio dos menestréis; eles
são como pássaros: cantam, porque essa é a natureza deles. E o meu destino é outro.
‐ Está certo. Seria difícil voar igual um pássaro com asas iguais às suas, ‐ sorriu Vala. Curumo
permaneceu imperturbável:
‐ Eu prefiro estar firme no chão, ‐ ele respondeu, olhando com contentamento para as suas vestes
negras, ricamente bordadas com ouro e brilhantes.
‐ Bem, deixemos disso, ‐ Melkor ficou serio. ‐ Me responda, eu pedi a alguém para que quem quer que
seja compusesse canções em minha honra?
‐ Não, ó Grande; mas eu penso que não poderia pensar nada contrário a sua vontade. Eu sou sua
criação, e todos os meus pensamentos e feitos têm começo em você...
Melkor pensava, gravemente. Curumo esperava uma resposta dele em silêncio.
‐ Vá, ‐ finalmente respondeu Vala, sem levantar os olhos para Curumo.
E Curumo se retirou com uma reverência, cheio de consciência da própria dignidade e verdade.
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“Talvez, no fundo eu aspiro mesmo a glorificações ‐ e simplesmente tenho medo de admitir? Não... Ou
sim? Ele realmente é a minha criação, e mesmo que eu desejei criar seres diferentes de mim mesmo...
Talvez aquilo que se oculta em mim fez parte dele e lhe infundiu essas idéias? Pode ser... Então para
vencer isso em mim, eu tenho que lhe explicar, ensinar... Eu devo ser um péssimo mestre se ele
continua a pensar assim... Minha culpa”.
‐ Curumo!..
Ele está sentado numa poltrona negra talhada em madeira: um homem alto e esbelto, vestido de negro;
a capa foi jogada, negligentemente, sobre o espaldar da poltrona, a camisa está aberta no peito: hoje foi
um dia quente e trabalhoso na forja, mas o corpo dele desconhece o cansaço. Uma luz cintilante ilumina
o rosto dele. Surpreendentemente bonito. Tez alta; sobrancelhas voam, com uma leve quebra; na sobra
das pestanas ‐ olhos claros e calmos como estrelas; nariz fino, ligeiramente aquilino, uma boca de
contorno bonito e severo, o queixo que demonstra grande força de vontade... Ele sorri, carinhoso e
sonhador: amanha é um novo dia, cheio de alegria de criar e conhecer, como um cálice, até as bordas, ‐
de faiscante vinho dourado. Eles nem imaginam o quanto ele, seu Mestre, aprende com eles, e ele
mesmo, em essência, é somente um deles, descobridor dos mistérios de Ëa... E à tarde virão as crianças
e pedirão para contar novamente um conto de fadas... O que ele lhes contará?
Ele refletiu por muito tempo, olhando pela janela. O vento brinca com mechas dos longos cabelos
escuros. Depois, ele vira‐se para a mesa, resoluto, pega uma folha em branco e uma pena negra e
prateada. Ele tem mãos estreitas e fortes, dedos compridos e finos. Mãos de um criador.
Os sinais esvoaçantes Tai‐an transparecem na folha, tão parecidos com os sinais do Escuro. Ele
novamente sorri, lembrando o rosto feliz do Amigo dos Livros: “Mestre, parece que eu entendi como é
possível anotar os pensamentos... Veja, você gostou, sim?”
Ele deixa a pena de lado somente quando o céu já começa a clarear no oriente. Um Imortal não
necessita de sono. Relê o escrito, e uma leve sombra deita‐se no rosto dele. O conto de fadas ficou
estranho; e é mesmo um conto?
...O Andarilho das Estrelas segue pela terra, e entra nas casas, e conta belas histórias tristes às crianças,
e canta baladas. Ele vem até as crianças e dá a cada uma um pedacinho de si, deixa para cada um uma
parcela do próprio coração. Como uma vela, que ilumina ao queimar‐se ‐ Andarilho das Estrelas. As
mãos dele ficam cada vez mais finas, o rosto ‐ cada vez mais transparente, e somente os olhos dele
brilham com a mesma luz clara. Não se sabe como acabará o caminho dele; ele caminha, acendendo
pequenas estrelas na terra. É breve e triste o caminho dele, e as estrelas brilham sobre ele ‐ ele
caminha...
Ele levanta‐se, vai até a porta. Amanha é o dia que Gelren chama de dia do segundo nascimento dele:
muitos anos atrás, nesse mesmo dia ele compôs a sua primeira canção. Ele preparou um presente ao
Menestrel: faltou somente colocar as cordas do ferro cantante do céu e afinar alaúde. Ele imaginou o
rosto iluminado do Menestrel... Mas alguma coisa o perturba.
Esse discípulo novo, Curumo. Criação dele, mas absolutamente diferente, apesar de tudo. Algumas
vezes começa a parecer ‐ ele entendeu tudo, e depois... Veio até o Menestrel, pois, e o convenceu a
compor essa canção. E para que? Parte do coração, sua criação, seu discípulo... e incompreensível.
Outro. Ele gosta desse estranho discípulo, mas é impossível esquecer o cálice pesado e o gosto de
sangue nos lábios. Por quê? E parece que é justamente por causa dele ele terá de pegar nas mãos a
espada do Sol em Eclipse. Falta alguma coisa em Curumo; talvez aquela clareza sem a qual é impossível
imaginar os outros? E essas conversas sobre a glória, sobre o poder... No início, ele realmente
surpreendia‐se: para que? Depois, a preocupação acordou. Sem perceber, ele começou a ser mais
atencioso com Curumo do que até mesmo com Gorthaur. O discípulo mais velho olhava para isso com
ciúme, meio de brincadeira, mas aos poucos passou a evitar o irmão mais novo. E o Mestre,
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dolorosamente, não desejava que o novo discípulo se sentisse um estranho por aqui. Mas como se uma
muralha se erguesse entre eles.
Sacudiu a cabeça. Basta. Senão o alaúde se recordará desses pensamentos. É preciso ir. Se Arta muda a
todos (ele não gostava de falar “Arda”, Reino ‐ o nome dado por Ilúvatar), isso deve acontecer também
em Valinor. Com o tempo, Curumo mudará; Arta cura, e também é difícil não mudar vivendo entre os
Elfos do Escuro...
‐ Permitir‐me‐á dormir aqui?..
Ele não tinha uma casa própria na vila dos Elleri; normalmente, ele retornava à noite para Helgor, mas
hoje teve vontade de ficar com os discípulos dele.
Gellor‐Mago iluminou‐se:
‐ Claro, Mestre! Por quê pergunta? Você sempre é bem vindo...
Os convidados já foram embora, e eles ficaram sozinhos. A conversa continuou até tarde. Gellor não era
contra uma continuação, mas Vala parou‐o com um sorriso:
‐ Basta, tenha piedade! Se eu fosse humano, já teria me torturado bastante: não se apresse, você quer
saber tudo de uma vez.
O Elfo riu, envergonhado:
‐ Está certo, Mestre.
...A jovem enroscou‐se sobre si mesma na poltrona, as pernas encolhidas: o fogo na lareira já se apagava
e o quarto estava fresco. O rosto dela estava cheio de uma tristeza calma, e Vala ficou contemplando‐a
por alguns momentos. Parece que, em beleza, ela não fica atrás de Allua, considerada a mais bela entre
os Elleri. Mas a Allua é uma dormideira de fogo, enquanto essa menina ‐ uma flor noturna...
Provavelmente, ela queria perguntar sobre algo, mas teve de esperar demais. Vala cobriu‐a
cuidadosamente com a capa, foi até a janela.
‐ ...Mestre!
Em poucos instantes, ele estava ao lado dela. A jovem olhava, com horror, para as mãos dele; tocou os
pulsos com os dedos trêmulos, soltou um breve suspiro e cerrou os olhos.
‐ O que houve? ‐ ele estava preocupado.
‐ Nada... desculpe, foi somente um sonho... Pesadelo... ‐ ela tentou sorrir. ‐ Eu arrumei o seu quarto,
queria trazer vinho quente ‐ você deve estar com frio ‐ e, veja só, acabei dormindo...
Ele passou a mão sobre os cabelos prateados da jovem; ultimamente, eles se esquecem com freqüência
cada vez maior de que ele não é humano.
‐ Mas não foi por isso que você veio. Você queria falar comigo, sim, Elhe?
‐ Sim... Não... Eu não queria, mas tenho de falar... Mestre, ‐ ela começou a falar muito baixo, ‐ ele me
assusta. Não o deixe perto de você ‐ ou faça‐o outro... Eu não sei, não sei, tenho medo... Mestre, ele traz
consigo o mal ‐ para todos, para você... Ele só gosta de si mesmo ‐ sábio, grandioso...
‐ De quem está falando, Elhe? ‐ Vala estava perplexo; nunca tinha a visto assim.
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‐ Sobre esse seu novo... ‐ ela não conseguia pronunciar “discípulo”, ‐ sobre Curumo. Eu, provavelmente,
não deveria falar assim...
‐ Não... Eu mesmo estive pensando sobre isso também. Não se preocupe, Arta o curará.
‐ Você não acredita nisso, Mestre.
Vala tentou sorrir – o sorriso saiu um tanto triste:
‐ Parece que é impossível esconder algo de você.
Ficaram em silêncio.
‐ Mestre, eu trago o vinho?
Ele acenou com a cabeça, distraído.
‐ E o fogo quase se apagou... Eu já...
‐ Não precisa, Elhe, ‐ ele traçou o sinal Llah no ar e chamas surgiram na lareira.
Ela retornou muito rapidamente; ele sorriu com gratidão ao receber o cálice das mãos dela.
‐ Mestre...
Ele ergueu a cabeça: Elhe já estava na soleira da porta ‐ uma fina figura de negro; ele viu,
extraordinariamente nítidos, os olhos dela.
‐ Mestre, ‐ a mão fina deitou‐se sobre o peito, ‐ cuide de si mesmo. Sei, não sabe, mas mesmo assim... Eu
temo por você. A ira priva de razão, a sede de poder mata a piedade e os grilhões do ódio jamais
poderão ser rompidos...
Ele queria perguntar sobre o que ela está falando, mas ela já havia desaparecido.
‐ Você disse, Grande, que nenhum dos seus discípulos foi capaz de domar os Orcs?
‐ Sim, Curumo.
‐ Nem mesmo Gorthaur? ‐ o rosto de Curumo expressava a mais absoluta surpresa.
‐ Nem mesmo ele.
"Eis que a ocasião surgiu. Eu lhe provarei que sou mais digno das graças dele do que Gorthaur. Ele
entenderá que é melhor ter negócios comigo. Artano só sabe mesmo ouvir, contar estrelas e perder
tempo com esses... Elfos do Escuro. Não, ele não é um rival para mim. E o Senhor verá isso".
‐ Permita‐me, Grande...
‐ O quê? ‐ Melkor estava surpreso.
‐ Permita‐me tentar...
‐ Tudo bem, tente...
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“Não há dúvida, os Elfos são belos. Mas se começar uma guerra, nenhum deles poderá combater. Se em
Valinor soubessem disso, Melkor dificilmente permaneceria livre por muito tempo. Não consigo
entendê‐lo! Ele poderia ser um verdadeiro Senhor do Mundo, subjugar todos ‐ porque é que ele não
pensa sobre isso? Ouve as cantigas deles, os contos de fadas... E mais, ele queria fazer iguais dos Orcs?
Será que ele não vê ‐ eles estão destinados à guerra! Eles reverenciam a força? ‐ é o que deve ocorrer
com guerreiros. Ele diz, o medo tornou‐se a essência deles? ‐ melhor: temendo o poder dele, eles
lutarão até o fim. O Senhor não quer pensar sobre essas coisas – bem, então eu me ocuparei delas. Eu os
ensinarei a forjar metais e a lutar; eu serei para eles o segundo depois do Senhor: nas mãos em que está
o exército, está o poder. Os canalhas de Valinor ainda se arrastarão sob os meus pés! Eles, idiotas, se
entrincheiraram na Terra Abençoada deles e nem pensam sobre a guerra... Fazer o quê, será pior para
eles!”
‐ Eu cumpri a sua ordem, Grande!
Cinco fortes Orcs em armaduras completas prostraram‐se perante trono de Melkor.
Curumo iluminou‐se ao ver o rosto surpreso do Senhor. Durante todo este tempo, ele trabalhou sozinho
para que ninguém visse os frutos dos trabalhos dele antes da hora, e agora esperava elogios do Senhor
dele.
‐ O que é isso? – Melkor finalmente recuperou a fala.
‐ Orcs, meu senhor. Seus servos e guerreiros. Com eles, você dominará o mundo inteiro ‐ veja, quão
fortes eles são, quão fiéis a você! Que de hoje em diante tema aquele que se atreve a se chamar de Rei
do Mundo: agora ele saberá quem é o verdadeiro Senhor de Arda!
‐ O que você fez? ‐ perguntou Melkor pesadamente.
Curumo ficou desnorteado: ele não esperava tal recepção.
‐ Grande! Como pode um Senhor não ter um exército? E você não precisa travar as guerras você mesmo
– encarregue‐me disso, você verá – serei digno da sua confiança.
‐ Eu não quero sangue. Então você ainda não entendeu nada?
‐ Eu o entendo, meu senhor. Suas mãos estarão limpas ‐ eu farei tudo, ‐ Curumo recobrou a confiança,
ele falava deliciando‐se com o som da própria voz. ‐ E haverá uma grande guerra, e os Valar cairão a
seus pés ‐ você será o único a reinar em Arda, e eu serei o seu general...
De repente, ele viu o rosto de Melkor, deformado por ira e repulsa.
‐ Fora daqui, ‐ um horrível sussurro sibilante.
‐ O que?.. ‐ Curumo imaginou que ele tinha ouvido errado.
‐ Fora! Leve a sua maldita oferenda ‐ ela está manchada de sangue!
Curumo recuou, cobrindo o rosto com as mãos. Como se uma máscara de sábia grandeza tivesse caído
do rosto dele: medo e ódio nos olhos escuros, dentes furiosamente arreganhados, como de um lobo.
Melkor jogou nele, com toda a força, o cálice de ouro; e, com um agudo grito de pavor, o Maia correu
para fora da sala.
O Vala continuou de pé, respirando com dificuldade, apertando os punhos de raiva; e então o chefe dos
Orcs, com uma careta de animal feroz, disse:
‐ Permita‐me, Grande!..
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‐ Fora! ‐ urrou Melkor.
...Pareceu‐lhe que ele havia ficado cego. Um manto rubro cobrindo a vista. Mas mais terrível do que esta
repentina cegueira era a visão, impiedosamente nítida, inevitável ‐ como uma faca encostada no
pescoço.
Ele gemeu através dos dentes cerrados, e isso o trouxe de volta para a realidade. Alguém tocou os
punhos apertados convulsivamente. Gorthaur.
‐ O que houve? Você estava feito cego, e os olhos... perdoe‐me... eu tive medo... Nunca antes você olhou ‐
assim. Você está se sentindo mal?
‐ Não é nada, ‐ respondeu Melkor. ‐ Já acabou.
‐ Não, não. Por favor. Eu quero ajudar, permita‐me isso.
‐ Não precisa. Vá.
‐ Eu o ofendi de alguma maneira?
‐ Não. Perdoe‐me. Eu preciso ficar sozinho.
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O DISCÍPULO E O MESTRE. ANOS 500502 DO DESPERTAR DOS ELFOS
O Maia esperou alguns segundos, desnorteado, depois fez uma breve reverência e saiu. Sabe‐se lá o que
passa pela cabeça do Mestre. Talvez seja mesmo melhor ele ficar sozinho? Quem pode descobrir os
planos dele? Por alguns momentos Melkor via a silhueta alta e esguia na soleira, depois a porta se
fechou. Ele inclinou‐se para frente, apertando as mãos trêmulas. É difícil ocultar a tensão da alma dos
olhos alheiros. Principalmente desses. A si mesmo, ele parecia agora a corda estendida ao máximo de
um arco. O arco se partirá? A corda irá arrebentar? A mão vai tremer? Ou a flecha voará apesar de tudo?
Medo. Medo e perplexidade. Terrível descoberta ‐ Curumo. Uma parte da alma. Parte do seu “eu”. Foi
ele mesmo que o criou, trabalhou cada traço do rosto, colocou a alma e o espírito dentro da criatura
ainda imóvel, deu‐lhe uma parte do próprio coração... “E isso ‐ sou eu? E tudo que me é odioso, eu
coloquei nele, tentando livrar‐me de mim mesmo? E agora o expulso? Isso é terrível demais, parecido
demais... Ou eu sou igual a Eru? Isso sou eu mesmo. Mas eu não sou o que ele pensa, será que isso é o
outro lado de mim... Que peso... Ou o mutilaram assim? Mas Gorthaur é absolutamente diferente,
mesmo sendo o irmão dele, ele não é assim!” Ele estremeceu, fulminado por um súbito pensamento. “E
por quê não é assim? Talvez seja exatamente assim, só que mais esperto. Mais fingido. Não, não pode
ser... Seria tudo isso uma mentira? Não consigo acreditar...” Mas a dúvida já se remexia na sua alma. E
como uma avalanche, jorraram lembranças, mas agora ele via tudo com outros olhos...
“Não foi à toa que ele me trouxe uma oferenda. Também ‐ oferenda. Pagamento. Me comprava. E além
do mais, um punhal. Ele não sabe criar outras coisas. E mais ‐ o que ele fez de bom, aqui? Dizem que ele
ensina os Elfos a fazer armas e a combater... Para que? Não, não devo permitir isso. Curumo desejou o
poder e montou um exército para si. Não! Eu não permitirei mutilar as almas deles! Ele fará deles
criaturas, semelhantes aos Orcs... Não, não... Acreditar em quem, para quem rezar? Eu estou só, estou
absolutamente só... E é melhor continuar assim. Confiar em si – do jeito que eu sou. Mas como o
expulsarei? Talvez, eu esteja errado? Talvez, ele é aquilo o que parece? Mas o que é que faço agora, me
diga, alguém!” Ele ficou sentado por muito tempo, apertando as têmporas com os dedos. “Não, não
posso expulsá‐lo sem mais nem menos. Isso dói. Mas ele também não ficará mais entre os Elfos. Que vá
ter com os Orcs. Que seja. Que nem o irmãozinho dele”.
E o Maia Gorthaur já esqueceu de quão frio o Mestre foi com ele. O mundo era jovem, e ele mesmo era
jovem, e alegrava‐se com tudo. Ainda mais, o esperavam ‐ o Artífice e o Armeiro. Curumo? Que Eru
esteja com ele, que vá para onde quiser, desde que não apareça novamente com os seus Orcs nojentos.
Ele corria pelas ruas da cidade de madeira, entre as casas enfeitadas com entalhes preciosos, sorrindo
para os Elfos, que o conheciam bem e o amavam. E lá, perto do rio, estava a forja, onde ele e o Armeiro
trabalhavam. Poucos Elfos eram discípulos de Gorthaur; por enquanto, as armas e a arte do combate lhe
pareciam não mais que uma brincadeira empolgante. E o Maia torcia para que isso continue sendo uma
brincadeira. Ele nunca falou isso a Melkor, por julgar sem importância, mesmo que não fizesse esforços
para esconder isso.
Os olhos de Geleon brilhavam ‐ assim acontecia sempre que ele pensava algo novo. Gorthaur não pôde
falar nada, aquele agarrou o braço dele e começou a contar, excitado:
‐ Sabe, é possível domá‐lo! E eu entendi como!
‐ Do que você... ‐ o Maia mal teve tempo de falar.
‐ Sobre o ouro, o que mais! Eu não consigo esquecer o cálice de Curumo. Eu sofria, sem entender o
porquê, e depois entendi ‐ eu quero domar o ouro. Achar e descobrir a alma dele. Pois não há metais e
gemas bons ou maus, é preciso simplesmente saber ouvi‐los! E eu entendi, eu farei!
O Armeiro estava rindo baixinho no canto, apertando os límpidos olhos azuis. Ele quis falar algo, mas
não teve tempo ‐ um Elfo entrou e disse:
‐ O Mestre está chamando‐o, Gorthaur.
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A voz de Melkor era seca e fria como o vento de inverno, que traz do norte os grãos cortantes de gelo. O
olhar é distante e reflete um pouco de aversão.
‐ Eu soube que você está ensinando os Elfos a forjar armas. Para que?
‐ Perdoe, Mestre, se fiz algo errado, mas eu pensei que eles devem saber se defender. Eu gostaria muito
de acreditar que Valinor nos deixará em paz, mas infelizmente ‐ não consigo. Alguma coisa me
perturba...
Ele não terminou a frase.
‐ Permita‐me cuidar disso, Artano.
Alguma coisa mexeu‐se dentro do Maia, que havia perdido a fala. Ele involuntariamente levou a mão ao
peito – onde estava a coisa. Mais uma vez... mais uma vez apertou‐se e ficou quieta...
‐ Não lhe parece que aquilo que você ensina aos Elfos ‐ matar ‐ é mais próprio para os Orcs? Ou os
louros de Curumo não o deixam em paz?
Maia olhava para o seu rosto com olhos bem abertos de um animal ferido, sem forças para dizer ao
menos uma palavra.
‐ Eu resolvi dar‐lhe um encargo importante. Vejo eu que não foi à toa que me trouxe um punhal. Você
não é um criador. É um guerreiro. Você entende de guerra. Então vá para Ast Ahe. Ali, Ahere estão
cuidando dos Orcs, tentando domesticá‐los. E você é o meu primeiro discípulo, ‐ ele deu um destaque
especial a essas palavras, ‐ não é assim? E Aulë também apreciava o seu trabalho. Você é inteligente e
talentoso. É assim? Então vá, Artano ‐ os seus conhecimentos serão‐lhe úteis!
Gorthaur mal ouviu a própria voz:
‐ Sim... senhor...
Tudo o que estava acontecendo com ele agora se unia num único, imenso grito silencioso ‐ “Por quê?”
Antes, quando ele, por ignorância, cometia erros medonhos, nunca o humilharam... E ele explicou tudo,
contou tudo honestamente, e então... O claro sol primaveril agora queimava os olhos dele, os sorrisos
amistosos lhe pareciam caretas maldosas, e o ar morno – asfixiante, apertando o peito como água
pesada. Ele arrastou‐se com dificuldade até a casa dele e caiu no chão, sem forças, enrolando‐se para
fugir da sensação de algo se debatendo no peito, que havia voltado.
Ele não podia supor que o Mestre, que ele – ele mesmo do povo dos criadores ‐ idolatrava, poderia ser
injusto ou estar errado. Como uma criança na infância acredita que seus pais são impecáveis, assim ele
acreditava em Melkor. E, então, ele próprio é o culpado de tudo. Mas em que? O que ele fez?
Compreender isso estava além da capacidade dele. Pedir explicações ‐ não se atrevia. “Talvez a ira dele
se acalmará, e ele me contará? Ou talvez ele realmente pode confiar isso somente a mim”. E Maia
agarrou‐se a essa idéia, e começou a convencer‐se...
Ele estava perfeitamente calmo ao se despedir do Armeiro e de Geleon de manhã, sorria – só que havia
uma agulha o espetando por dentro.
Agora, Gorthaur e Melkor comunicavam‐se somente por meio de intermediários. E cada vez mais
pesado ficava, para o Maia, ler as ordens frias escritas por uma mão estranha, para o “general Artano”.
Como se cravassem pregos nele. Então, não perdoou. Não perdoou... E cada vez mais algo se mexia no
peito.
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Os Orcs o obedeciam como cães ‐ Oromë. E ele os odiava. Eles e as lembranças sobre Curumo estavam
entre ele e aquele a quem ele não se atrevia mais a chamar de Mestre. E pouco a pouco ele começou a
duvidar de si mesmo.
...Ele lia as mensagens de Ast Ahe, escritas pelo punho do discípulo dele. Breves, nenhuma palavra
inútil. “Ao Senhor Melkor do governante de Ast Ahe. Meu senhor...” E o coração tremia dolorosamente
quando ele notava: aqui a mão de Gorthaur tremeu, aqui a linha escorregou para baixo, aqui se infiltrou
uma palavra dolorosamente perplexa...
Ele tentava convencer‐se, tentava convencer com argumentos da razão ‐ nada ajudava, e não se
acalmava a preocupação, e a amargura enchia o coração; e na calada da noite, medindo com os passos
os corredores infinitos e salas de tetos altos do castelo de Helgor, ele travava uma discussão sem fim
consigo mesmo ‐ o mais cruel e terrível interlocutor...
Ele continuava o mesmo com os discípulos dele. Falava com eles, ouvia‐os, sorria, e as garras de gelo
apertavam cada vez mais o coração. Ele não necessitava de sono, e ele invejava aqueles a quem a noite
trazia o esquecimento e libertava das tristezas. Para ele, cada minuto de solidão transformava‐se em
tortura, cada noite virava uma cadeia de reflexões cansativas, dolorosas e inúteis. Ele tentava obrigar‐se
a não pensar sobre isso. E não conseguia.
“Ao Senhor Melkor do governante de Ast Ahe. Meu senhor...”
A carta pode ser rasgada, queimada, destruída ‐ mas não esquecerá as palavras, não lhe foi dado, você
não sabe esquecer, e as linhas ‐ fogo no negro ‐ surgem perante seus olhos, basta cerrar as pálpebras. E
como um chicote: “Meu senhor...”
“‐ Luz... de onde? O que é isso?
‐ O Sol.
‐ Foi você que o criou?
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe.
‐ ...O que é isso?
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos...”
“‐ ...Sabe... de vez em quando parece que o mundo é tão frágil...”
“Não, isso não poderia ser uma mentira, assim não se mente... Ou ‐ poderia? O coração contra a razão...
E se... Que venha até aqui... falar com ele, explicar... Mas não poderei expulsá‐lo pela segunda vez. E
acreditarei no que quer que ele diga. Não poderei entender onde está a verdade, e onde está a mentira.
Em verdade, somos cegos com aqueles que amamos... E se ele mentir, o que então? Não, melhor deixar
tudo como está...”
Mas a alma dele desconhecia o sossego, e o coração rasgava‐se em dois. Ele tentava passar mais tempo
com os discípulos, e isso os alegrava ‐ mas não conseguia mais viver entre eles. E, na escuridão ainda,
ele montava o cavalo alado, ou voava como um vento negro em direção à cidade de madeira. A cidade
dormia, e ele vagava sem rumo pelas ruelas entre casas cor de mel dourado por muito tempo...
As crianças o procuravam como antes. Só que as histórias que ele contava eram cada vez mais tristes.
...A Flor da Noite, que amou a Lua, assemelhava‐se a uma estrela. Foi‐lhe destinada uma vida breve, e a
flor sabia que adormecerá no outono, para acordar somente um ano depois. Mas a Lua a amava, e a cada
noite a flor estendia‐se no luar carinhoso dela, e parecia‐lhe impossível separar‐se do amor dela por
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longos meses. E assim lhe dizia a Terra: “Durma... O outono já está próximo, e a vida está abandonando‐
a, minha criança... Na primavera você acordará e novamente será a estrela da terra...” Nas a flor não
respondia à mãe dela. E, vendo a sua tristeza, assim disse a Noite: “Se o seu amor é tão forte assim, se
ele é mais precioso do que a vida; saiba, estrela da terra, você brilhará ainda por muitas noites, mas
pagará por isso com a própria vida”.
E assim foi.
Passaram‐se muitas noites, e o brilho da flor se transformou em dor, pois ela estava morrendo. E uma
tristeza inexplicável nascia nos corações daqueles, que aspiravam o aroma amargo dela, mas essa
amargura era felicidade, pois a Lua presenteava com o amor dela.
E, ao olhar para a terra uma noite, a Senhora da Noite viu que a estrela da terra havia se apagado. Então
ela compreendeu com que a flor pagava pelo amor. As lágrimas da Lua eram mais amargas do que a
água do mar, e imensa era a tristeza da Terra. Mas essa tristeza e essas lágrimas viraram absinto, a erva
da tristeza, cujas flores guardam a prata do luar e os caules ‐ a amargura das lágrimas da Lua. O absinto
é chamada de erva da tristeza, e a amargura dela é sagrada, pois essa é a amargura do amor mais
precioso do que a vida...
“O que está acontecendo com você, Mestre? Para todos, você é o mesmo de antes, mas eu vejo ‐ você
mudou... Você sorri, mas os seus olhos estão tristes; você está conosco, mas os seus pensamentos estão
longe, e quem os conhece? Eu vejo, a tristeza está no seu coração, mas como perguntar?
Como você espera as cartas de Ast Ahe ‐ mas não há alegria no seu rosto quando as lê. Por quê o seu
Discípulo nos abandonou? A casa dele está vazia, e as ervas cresceram altas do lado dos muros dela...
Mestre, por quê ele não retorna?
Quem pôde, quem se atreveu a ferir o seu coração, por que você esconde essa dor ‐ nos o amamos, cada
um de nos daria até a própria vida para ajudá‐lo... E você, como se escondesse atrás de um muro ‐ para
que? Pois quando dói o coração, isso é visível, e eu nasci Vidente...
Conte, o que há com você, Mestre? O que te tortura, Mestre? Veloz é o vôo do cavalo alado, a luz das
estrelas lava o rosto do cavalheiro como água de uma fonte ‐ a tristeza está nos seus olhos, e você não
tem sossego... O que te persegue, o que te tortura? Conte‐me, me responda ‐ eu não me atrevo a
perguntar... Como posso ajudá‐lo, Mestre? Mestre...”
Logo no início do outono, ele recebeu notícias de Geleon. Aquele o chamava para ver o ouro domado.
Para a festa que estava sendo organizada por essa razão. Era Geleon quem chamava ‐ não Melkor. E
Gorthaur tomou coragem. Afinal, ninguém o proibiu de sair de Ast Ahe...
Ele viveu por tanto tempo entre os Elleri Ahe, que se tornou semelhante a eles em muitos aspectos. Ele
aprendeu entender e valorizar o calor e o frio, a alegria do fogo na lareira num dia gelado, fogueira na
noite úmida de outono, faíscas das tochas na noite da festa primaveril. Ele aprendeu a amar o frio e o
gelo negro do céu noturno no inverno, a suave grandeza sonolenta da floresta coberta de neve, o reflexo
da alvorada nas lagoas congeladas, a queda de neve acumulada nos galhos das árvores no silêncio da
mata fechada. Ele amou o alegre cansaço do bom trabalho – depois de um dia na forja, entre metal
fundido e cheiro ardente do ferro, respiração ruidosa do fogo e retinir do martelo, quando ele, exausto e
encharcado de suor, olhava para o engenhoso trabalho do dia, e uma alegria ingênua e orgulho faziam
inflar o peito. O cansaço deitava os dedos, autoritariamente, sobre as pálpebras, tornava pesado o
corpo, afundava‐o nas profundezas dos pensamentos e sonhos sobre algo novo que ele fará, certamente
fará amanhã, as começar o dia. Ele aprendeu a deleitar‐se com o gosto da comida... Ele não necessitava
de nada disso – ele era um Maia. Mas ele queria saber o mesmo que eles sabiam. E ele refazia a si
mesmo, transformando‐se quase em um deles. Ele compreendia que isso era mais um jogo do que uma
transformação, mas jogava‐o com toda a seriedade. Mas mesmo assim ele não conhecia o sono. Ele não
conhecia a dor. Ele não conhecia muitas coisas, e ainda não poderia conhecer.
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Ele foi o ultimo a chegar à Casa de Festas, para, misturando‐se com a multidão, não ser visto por
Melkor. Gorthaur queria desesperadamente ser um dessa multidão alegre, mas não podia ‐ eles
estavam felizes, e não havia peso nos corações deles. Ele também sorria, mas havia um pedaço de gelo
dentro dele, e a preocupação congelou nos olhos dele. Ele estava com frio ‐ não assim como no vento do
inverno, muito mais frio, pois isso estava dentro dele. Ele sentou‐se na canto mais afastado do salão, na
sombra, longe daquela parte da mesa, onde Melkor já estava sentado ao lado do responsável pela
comemoração. Melkor sorria e falava alguma coisa aos vizinhos, e todos riam, e o próprio Vala ria...
“Que sorriso... Alegre e aberto, como o de uma criança... Absolutamente o mesmo. Mestre, o que é que
eu fiz para fazer o seu sorriso se apagar? Por quê o seu olhar foi tão pesado quando falava comigo? Qual
é a minha culpa?” Ele desejou ardentemente que o vissem, chegar perto, conversar... Mas ele imaginou
como este sorriso se apagará, e todos verão isso, e todos, todos, vão pensar que ele é o culpado... E se ele
realmente é culpado?.. Gorthaur escondeu‐se ainda mais na sombra.
A obra de Geleon estava sobre uma simples travessa de madeira negra, e cada um pegava essa
maravilha nas mãos, e o silêncio pouco a pouco preenchia a sala, e somente sussurros e suspiros
maravilhados ouviam‐se entre o cintilar dourado das chamas das velas. Era uma coroa de dois galhos
flexíveis enlaçados, com folhas e flores abertas. Geleon realmente domou o ouro ‐ ele vivia. O jogo da luz
quente sobre a superfície ‐ em alguns lugares polida, em outros áspera ou entalhada, fazia as folhas se
mexerem levemente, como no vento. As cores do ouro eram diferentes, provavelmente o Artífice usou o
metal de purezas diferentes, e as flores eram mais claras que as folhas, e as folhas ‐ que os caules. A
cada movimento da coroa, os galhos vivos brilhavam, e se alguém os olhasse por muito tempo,
imaginava ouvir uma música baixa. Não era o metal presunçoso e pesado – o ouro domado era suave e
carinhoso, e o brilho dele transformou‐se em uma luz morna.
A coroa era passada, cuidadosamente, de mãos em mãos, e cada um, a entregando para o vizinho, como
se deixasse para si uma parte daquela visão estranha que irradiava da coroa. Gorthaur segurava‐a com
as pontas dos dedos, como se tivesse medo de amassar as trêmulas folhas vivas. Parecia que gotas de
orvalho escorregam pelas folhas, e mesmo ele sabendo que isso é somente um jogo da luz, criada pela
mão mágica de Geleon, ele não entendia porque a água não cai sobre as mãos dele. Ele não percebia que
já está em pé, que todos estão o vendo, vendo o rosto maravilhado dele, surpreso como o de uma
criança. As mãos dele tremiam levemente, e as folhas tremiam como se houvesse uma brisa leve. Ele
não via e não ouvia nada ao redor dele. Ele olhava. Absorvia esse estranho encanto do metal domado...
‐ Pena, que Gorthaur não esteja vendo, ‐ suspirou Artífice. ‐ Mestre, conte, será que ele não pode deixar
Ast Ahe nem mesmo por um dia?
Melkor não respondeu. Ele de repente desejou, dolorosamente, que o Maia estivesse aqui: “Que seja eu
maldito com essa minha resolução! Não quero acreditar que ele está mentindo! Se fosse possível fazer
com que ele...”
De repente, Vala notou uma figura alta e esbelta que se ergueu no canto mais distante do salão. Como
uma queimadura: “Ele esta aqui?! De onde?! Ir lá, falar com ele...” Mas ele imaginou como o Maia se
curvará com medo e respeito perante ele, como ele ouvirá novamente: “Senhor...” Não só ele – todos,
todos verão e ouvirão isso... “Por que aqui? E nem mesmo veio falar comigo... escondeu‐se no canto...”
Uma terrível confusão de pensamentos e sentimentos. E como se viesse de fora ‐ a própria voz, palavras
cujo sentido é inalcançável:
‐ Por quê está aqui? Por quê veio em segredo?
A voz calma mas gelada como a própria indiferença irrompeu, destruiu, destroçou a visão. As mãos de
Maia estremeceram e a coroa caiu no chão... Um suspiro de pena soou no salão, alguém gritou. Gorthaur
ficou parado, olhando apavorado para o rosto chocado de Geleon, e para aquilo que minutos antes era
uma maravilha. E novamente soou aquela mesma voz, agora amarga, cheia de dor oculta:
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‐ Realmente, você não é capaz de criar ‐ somente de destruir. E não há lugar para você entre os
criadores. Volte para os Orcs ‐ eles são mais parecidos com você!
Gorthaur não teve coragem de olhar para aquele que falava nem uma vez. Ele se virou ‐lentamente,
como viram os feridos próximos da morte antes de cair, ‐ e correu para a rua. Ele não viu como Geleon
levantou‐se e, recolhendo a coroa amassada, falou surdamente, olhando para o rosto de Melkor:
‐ Por quê você feriu‐o assim, Mestre? Será por causa de um pedaço de metal morto? Amaldiçôo este
metal, então, então!
E Geleon, atirando a coroa no chão, pisou‐a e saiu, sem se virar.
Melkor continuou de pé, olhando para a porta.
‐ Mestre... ‐ começou o Menestrel. E calou‐se. O Vala deu um passo para frente, afastou o elfo e
caminhou lentamente na direção da porta. Os Elfos afastaram‐se em silêncio, abrindo o caminho. Os
olhos ‐ escurecidos, terríveis ‐ como duas estrelas doentes na sombra das pestanas retas.
...Vôo veloz ao encontro do vento negro, ao encontro das estrelas claras que cortavam o rosto... Ele fugia
de todos, agora parecia‐lhe ‐ nos olhares de todos lia‐se recriminação, em todos os rostos ‐ a amargura
da decepção naquele a quem eles não chamarão mais de Mestre, pois como pode ser Mestre alguém que
fez algo dessa ordem?..
Com dificuldade, ele foi ate o quarto dele, cambaleando como um ferido, apertando a palma da mão
contra o peito, onde o coração se debatia em dor. A vista dele estava escurecendo, e ele achava o
caminho tateando as paredes. Abriu bruscamente a janela, rasgou o colarinho da camisa e ficou
respirando o vento gelado por alguns instantes. Arrastou‐se até a cama e jogou‐se de bruços sobre ela,
apertando com as mãos a cabeça que ardia numa dor infernal.
“Gorthaur... O que eu fiz, besta cega e cruel... Meu lugar não é entre eles. Não há perdão para mim. O que
eu fiz, meu Discípulo... como me atrevo a chamar – você ‐ de meu discípulo?.. Certo, certo... aquele
adivinhou o que eu sou...”
Ele não sabia quanto tempo passou.
Alguém batendo na porta ‐ baixo, insistente.
‐ Mestre!
Num primeiro instante, ele não pensou que fosse com ele. Quando o fez, o rosto contorceu‐se num
sorriso torto.
‐ Mestre, abra, eu preciso falar com você!
Geleon. “Bem, julgue‐me, Artífice”.
‐ Sim.
A voz ‐ irreconhecivelmente rouca, surda e sem vida.
‐ Você... começou o Artífice, irado, quando o Vala surgiu na soleira da porta.
E parou.
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Que bom que quase todos agora estavam na Casa de Festas, senão ele caminharia sob os olhares, como
sob açoites. Que bom que era tarde, e a penumbra o escondia. Que bom que a casa dele estava afastada
do centro da cidade. Faz muito essa casa estava vazia, mas agora ela ficará vazia para sempre. Maia não
tinha coragem para atravessar a soleira. Não tinha direito. No escuro, ele ouvia as vozes das poucas
coisas que possuía, queridas a ele por serem presentes dos amigos e as criações dele próprio. Mas
agora, tudo que ele mesmo havia feito lhe parecia monstruoso e mal‐feito. E então ele entrou.
Ele não conseguiu destruir somente um único objeto – aquele punhal que ele havia um dia oferecido de
presente ao Mestre. Agora também ele lhe parecia horrível, mas ele não podia quebrá‐lo. Não podia. A
lâmina cintilava, guardando o toque das mãos de Melkor, naquele tempo ainda mãos amigas, mãos
daquele que ele respeitava como tudo o que teve de melhor na própria vida. Ele sentia agora algo novo,
ao mesmo tempo doloroso e purificante. Esse algo o fazia arfar, ele estava asfixiando, como um peixe
atirado para fora da água, ele engasgava‐se com esse ar, pois não sabia respirar; alguma coisa batia
desordenadamente no peito dele. Alguma coisa acontecia com os olhos – um líquido estranho escorria
pelo rosto ‐ ele julgava isso uma doença, e não podia entender porque isso acontece justo com ele, ele
que não conseguiu ser um filho de Arta. Com dificuldade, ele acalmou‐se e, sentindo dentro de si o
silêncio costumeiro, olhou em volta pela última vez...
Quando Geleon, finalmente, tomou coragem para ir até a casa afastada, ele viu somente a porta
escancarada e uma montanha de destroços no chão. A casa estava deserta.
Ele encontrou essa lagoa redonda perdida na floresta há muito tempo. A primavera estava no auge
então, e ele caminhava na semi‐escuridão da floresta, onde, sob as arvores, espremiam‐se as estrelinhas
delicadas e frágeis, como se estrelas brancas tentassem se esconder aqui dos raios do sol. E toda a
floresta estava inundada de cheiro mágico de lírios‐do‐vale de cera semitransparentes. Foi então que
algo se mexeu no peito dele pela primeira vez, e ele engoliu convulsivamente um pouco do ar
primaveril. Pareceu‐lhe que dentro dele dorme algum pássaro, e ele teve medo, inexplicavelmente, de
que o passaro subitamente acorde e fuja... E depois ele viu o olho azul escuro velado pelas pestanas
agudas das árvores. Um pedaço de céu derreteu formando uma lagoa no meio da floresta. A água era
morna, com um gostinho estranho e agradável e cheiro de folhas de outono. O fundo era forrado por
uma camada escura de folhas, e era possível observar, através da água transparente, como as sombras
das nuvens arrastam‐se pelo fundo. Ele vinha aqui com muito cuidado, tentando não amassar nenhuma
planta ou folha. Esse era o lago dele, e ele era – do lago. De vez em quando, parecia‐lhe que aqui há mais
alguém, especialmente quando o lago envolvia‐se na neblina.
Neblina assim aparecia só aqui. Ela estava cheia de menções e formas inacabadas, como se fossem
pedaços de pensamentos. E todas as vezes, ele levava consigo uma parte da miragem, embrião de plano,
pergunta que precisava ser respondida... À noite, ele olhava como cintila o musgo, e como as estrelas do
céu conversam, sem palavras, com as estrelas da água, que florescem com flores nunca antes vistas por
ele. Um dia ele levou uma dessas flores para o Mestre... então ele ainda conseguia chamá‐lo ‐ assim. Ele
perguntou ‐ foi você que criou essa estrela viva? Mas o Mestre olhava a flor com uma surpresa alegre e,
balançando a cabeça, respondeu que foi alguém mais bondoso e carinhoso que ele. Agora essas flores
estavam em quase todas as lagoas ‐ assim fez o Mestre.
Algumas vezes, ele tomava coragem para entrar na lagoa, e a água abraçava o corpo dele, abrindo‐se em
pesadas ondas escuras atrás dele, quando ele nadava de uma margem à outra. E ele ficava deitado de
costas e sorria para o céu. Só ele perturbava o eternamente liso espelho das águas, pois o vento jamais
conseguiu chegar até aqui. Esse espelho nunca mentia. Ele curvou‐se sobre a água e ficou perguntando
– quem sou eu? Ele se via e sorria, e bebia o melhor vinho do mundo com gostinho de folhas outonais...
As poucas folhas que ainda não haviam caído tremiam, sangrando ouro, como a coroa de Geleon nas
mãos dele. Um dia transparente, cristalino, floresta transparente e sonora... Frutas tardias de
framboesa, como pequenas pirâmides de rubis cintilantes sobre palmas verde‐escuras. Chapéus
coloridos dos cogumelos, as atraentes gotas venenosas dos frutos dos lírios‐do‐vale, olhos negros dos
olhos‐de‐corvo. O aroma primaveril virou veneno outonal. Ouro e fogo. Ouro e veneno. Ouro e sangue...
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“E eu nem sangue tenho... Quem sou eu, quem? E o que aconteceu, por quê fui expulso?” Ele se ajoelhou
e curvou‐se sobre a água... Foi o vento que soprou, ou uma gota caiu do galho, e da água olhou‐o – um
Orc...
Ele recuou bruscamente, e a terrível suposição caiu sobre ele como uma avalanche, o mundo rodou em
espiral, e a cada giro veloz, a verdade aparecia cada vez mais nua e terrível.
“...Então, ele viu tudo e entendeu logo de cara... e não aceitou o presente... Ele sabia que eu nunca, nunca
me tornarei vivo, que a Predeterminação chegou junto comigo. Ele sabia o que eu serei... Oh... Será que
eu realmente criarei somente o mal... mas eu não quero, eu entendo tudo, eu não farei nada de mal”. E
da memória, emergiu o rosto de Geleon e Elfos com espadas, e Orcs obedientes de medo. Eis as provas.
É terrível compreender que você é o mal, sem se sentir o mal... Mas por quê aconteceu assim? Será que
Melkor soube desde o início que nele, Gorthaur, está o mal? Ou ele mesmo fez algo que o transformou...
“Eru, um dia, teve medo da própria criação, porque Melkor era mais forte do que ele. Ele considerou‐o o
mal. Assim eu assustei o meu criador. Só que eu realmente sou o mal. Mas por quê ele não me expulsou
logo, por quê me fez amá‐lo?! Talvez pensou que era possível mudar‐me, tal como ele tinha esperanças
de curar os Orcs... Mas eu ainda não sou um Orc. Eu terei tempo de partir...”
Cada passo era difícil. Ele literalmente arrastava‐se, fazendo‐se andar à força. Não queria ir embora.
“E esse punhal ‐ será que eu o entregarei lá, em Valinor? Terão que esperar muito. Não é para eles. A
quem, então? O lugar dele é aqui, em Arta, pois eu ainda poderia mudar quando o fiz; nele ainda não há
maldade...” Ele lembrou de Neere. Ele o viu pela primeira vez entre as geleiras eternas do norte,
rasgados por um vulcão que nunca se apagava. O balrog estava no fogo até os joelhos e ria, abafando os
rugidos da erupção. Os brilhos do fogo refletiam na pele brilhante e negra, como se estivesse polida,
faíscas corriam pelas asas escuras e os olhos e cabelos dele eram chamas. Provavelmente, a mão dele
era ardente como a lava, mas Gorthaur não sentia dor. O Armeiro sempre se surpreendia quando ele
tirava a barra de metal em brasas do fogo com a mão desprotegida, e na mão dele não ficava sequer
uma marca de queimadura... “Neere usará a faca. Ele não se transformará no mal. Não se transformará
num Orc, como eu...”
Agora, compreendendo a própria condenação, a própria rejeição, ele quase se acalmou. Ele andava para
o noroeste, e a cada passo se consolava ‐ não é agora, não é logo, ainda poderei ficar aqui, em Arta, não é
agora ainda...
“Eu também fazia coisas boas, apesar de tudo. Enquanto pude. Tudo bem, o meu tempo acabou, e eu
não sou mais necessário. Eu entendi tudo ‐ agora é o tempo dos Elfos. E se eu fiquei assim, então é
realmente necessário partir, para não os levar à ruína... Geleon, Armeiro... Nem me atrevo a chamar
vocês de amigos...”
O mar estava sombrio, misturava‐se com o baixo, encoberto de nuvens rasgadas ‐ como uma teia
empoeirada ‐ céu. O grande mar de Arta. Mar vivo, cantante, amado. A água turva cinza‐esverdeada roia
furiosamente a terra. O ar cheirava a sal e a algas ‐ expresso, pode até cortar em fatias, cheiro.
Chuviscava. O vento misturava a maresia com a poeira de água do céu. Bom e triste. “Haverá mais uma
noite. E na alvorada, eu partirei. Não, no pôr‐do‐sol, que haja mais um dia, e eu nadarei seguindo o Sol.
Porque não haverá mais nada. É a soleira da porta... ” Ele caminhou para longe da margem, para longe
do marulho, para viver as ultimas horas em Arta sem essa lembrança de deverá partir. Atrás das rochas,
não se ouvia mais o mar. Aqui começava a floresta, parecida com aquela, perto da lagoa... Musgo,
miçangas rubras de airela vermelha... Do outro lado não há nem musgo assim, nem frutas assim.
À noite, o tempo ficou melhor. Céu. Céu de Arta, sem fundo, transparente. Mansões do Universo...
Estrelas... Olhos do Escuro...
“‐ Luz... de onde? O que é isso?
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‐ O Sol.
‐ Foi você que o criou?
‐ Não. Ele existia antes, antes da Arda. Olhe.
‐ ...O que é isso?
‐ Estrelas. Sois iguais àquele que você viu. Só que estão muito longe. Ali ‐ há outros mundos...”
“Lá, não haverá nada disso. Lá, o céu é cego. Mas eu não conseguirei esquecer de nada. Aonde eu irei
então, porque nem mesmo morrer eu posso...”
Algo fez barulho nos arbustos. Gorthaur levantou‐se num pulo. Olhos amarelos do lobo. Ele conhecia
estes animais. Não sabia de onde eles surgiram, mas eles eram amigos dele e de Melkor. Eles não
sabiam falar, mas Gorthaur conseguia ler os pensamentos deles. E ele compreendeu que o lobo estava o
procurando. Procurando a pedido de Melkor. E ele temeu que, depois de ver o Vala, ele não poderá mais
partir.
‐ Por favor, ‐ começou a falar ele rapidamente e se atrapalhando, ‐ não me entregue, não diga aonde eu
estou. Eu devo, tenho que ir embora, entende! Suplico, não me entregue!
O lobo o olhou durante alguns instantes, com os dentes arreganhados, como se estivesse sorrindo.
Depois se virou e desapareceu tão silenciosamente quanto havia surgido.
O Maia acalmou‐se. Nos pensamentos do lobo, havia compaixão. Não o entregará.
Pela manhã ‐ manhã quente, quase de verão ‐ o vento trouxe uma lembrança do mar. Dava vontade de
sentir Arta com a pele pela última vez... Quão difícil será no ar pegajoso e doce, sem vento, de Aman...
Ele tirou o casaco rasgado, como a cobra perde a pele velha, como se arrancasse de si mesmo a carne
que foi dada por Arta.
‐ Orthenner! ‐ o vento trouxe o chamado. Muito perto. Ele estremeceu, como se o açoite de um Ahero
tocasse as costas dele. Encontrou‐o. Seguiu e encontrou. Como a um criminoso. Para que, para que... Ele
mesmo queria que fosse embora... Para que torturar...
‐ Orthenner! Onde está? Não se esconda, onde você está?
Ele correu pela campina, abraçada por uma ferradura de rocha. Ir embora, esconder‐se, rápido, para
não ter de ver... Novamente, o pássaro inquieto mexeu‐se no peito... Tudo bem, logo passará... Ele se
atirou para um lado qualquer, esbarrou na rocha, caiu, machucando‐se nas pedras afiadas, ergueu‐se,
praguejando, e entendeu, que é tarde demais para fugir.
‐ Orthenner, espere! Por quê você foge? Ouça!
‐ Não... Não, vá embora! Vá, por favor! Deixe‐me em paz!
‐ Espere...
‐ Não!.. Não precisa, eu sei de tudo, eu entendi tudo, não diga nada! Você não poderá fazer nada, não
tenha pena de mim! Predeterminação... Você não a vencerá, eu não poderei nada, eu entendo tudo: o
meu destino é destruir. Não fale, não precisa de nada! Eu já fiz tudo, tudo o que pude, além ‐ sou o mal.
Seja piedoso, deixe‐me ir, para que você precisa de mim?
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‐ E aonde você irá? ‐ com uma voz estranha disse Melkor, e o seu rosto ficou terrivelmente cansado e
envelhecido.
‐ Não tenha pena, termine de falar. Eu não ficarei aqui, eu não devo trazer o mal, eu sou um estranho em
Arta! Eu sei, sei, você pensa que eu irei a Valinor e serei contra você, como Curumo. É isso?! Acredite
pelo menos agora ‐ eu antes arrancarei a própria língua do que falarei uma palavra que seja contra você
lá! Eu já não poderei esquecer! Lá também sou um estranho, sou um estranho também aqui, mas lá não
farei mal algum! Deixe‐me, vá embora!
‐ O que você está falando! Ouça! Não te perdoarão, você não vai lamber o chão sob os pés deles como
Curumo!
‐ “Como o seu irmão” ‐ fale assim mesmo. O que te importa, senhor... E o que eles poderão fazer comigo?
Ta, Aulë me botará numa corrente, algum dia vai acabar soltando... Mas você não estará lá, ninguém irá
me domesticar, é mais fácil, quando inimigos... Não diga nada! (“Pássaro maldito, por quê bate
novamente, por quê justo agora!”) Ninguém me domesticará...
Ele riu estranhamente:
‐ Conte, senhor, se você sabia de tudo, por quê domesticou‐me? Por quê me deu esperança? Por quê não
expulsou? Pois acabei gostando de você... Não, eu não minto, é verdade. Teve compaixão? Cruel é a sua
compaixão! (“Parede se debater, aquiete‐se!”) Agora será difícil para eu partir... Mas o que te importa,
sou somente um servo desobediente... Então mande Ahere me espancarem, se eu uma besta maligna,
ainda assim será mais fácil!
Ele recuava mais e mais, afastando‐se de Melkor, que caminhava na direção dele, até encostar nas
rochas. Acabou. Ele se calou, levantou o rosto desesperado, esperando tudo –golpe, maldição, ira... Ele
andava, apertando as costas contra as pedras ásperas ao longo da ferradura, sem tirar os olhos do rosto
de Melkor, com todas as forcas tentando obrigar o pássaro assustador a se calar. E o pássaro não se
aquietava, ele queria pular para fora, e o Maia já não entendia as próprias palavras, porque parou de
dominar o próprio corpo. Ele engolia o ar convulsivamente, engasgava, queimando a garganta, e, já
depois de cair, tentou arrastar‐se para longe, esconder‐se.E depois ele somente berrava de dor e se
debatia no chão como um animal ferido, tentando rasgar o peito e soltar o pássaro. E Melkor agarrou as
mãos dele, porque na mão do Maia havia uma pedra, afiada como uma faca, e ele já havia cortado duas
vezes o próprio corpo no lugar onde havia o pássaro, e o sangue vivo e quente escorria pelo peito dele.
Melkor nunca imaginou que o Maia tivesse tantas forças. Ele mal conseguia segurá‐lo. Pensava somente
sobre uma coisa ‐ o coração acordou em Gorthaur. Não permitir que ele se mate. Ele não poderá viver
em Valinor. Melhor não pensar no que poderão fazer com ele, como exemplo para os outros.Eles
perdoarão aquele que traiu, mas aquele que mudou ‐ jamais. Gorthaur continuava gritando, e os olhos
dele eram anormalmente grandes e negros, e lágrimas rolavam pelo rosto sujo de terra e sangue.
Melkor nunca antes vira tanto sofrimento nos olhos de um ser vivo. Tanta dor. Gorthaur se afogava no
ar de Arta, brotava dolorosamente nela, tornando‐se sua parte, transformando‐se num ser vivo. Ele
estava renascendo. E a dor era o primeiro sinal e a primeira dádiva da vida nova. Melkor não lembrava
quanto tempo passou até que os gritos do Maia se transformassem num choramingo convulsivo, e o
corpo dele amolecesse. O Vala ergueu‐se, respirando com dificuldade. Nunca antes ele havia se cansado
tanto... O Maia estava imóvel, de olhos fechados, como morto. O rosto dele estava extenuado,
envelhecido, marcado pela dor. Mas ele era vivo ‐ realmente vivo. Ele respirava inexperientemente,
pesadamente e, mesmo sem ouvir o coração dele, era possível ver onde ele bate. Melkor abaixou‐se do
lado dele, exausto, colocou a cabeça de Gorthaur sobre os próprios joelhos. Cuidadosamente, limpou o
sangue e a sujeira do rosto dele. Aos poucos, a respiração do Maia tornou‐se mais baixa e tranqüila, o
coração passou a bater mais calmamente, o rosto desenrugou‐se e tornou‐se tão desprotegido quanto o
de um recém‐nascido. Ele dormia – pela primeira e última vez. Mas mesmo o sono dele era incomum:
ele ouvia a Arta. Ele era uma gota de vapor e subia ao céu junto com o vapor, para se transformar num
arco‐íris, uma nuvem dourada nos raios do sol nascente e voar sobre toda a Arta, cair com chuva sobre
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a terra, e unir‐se às correntes e rios subterrâneos, passar pelos fios das raízes das árvores e ouvir a vida
e os pensamentos da árvore, dissolver‐se nela, abrir‐se numa folha verde... Ele era a águia do céu alto,
sobre as nuvens, e com a sua visão aguçada, via tudo embaixo... Ele era a grama, ele atravessava a terra
negra, ele a ouvia, ele ouvia o vento sobre si, ele bebia o vento e o Sol; e o ar de Arta jorrava nele, e a
chama de Arta batia no coração recém‐nascido dele. Ele brotava em Arta, como Arta brotava nele...
Ele dormia. Passou a noite, e passou o dia. E mais uma noite e mais um dia. E muitas noites e muitos
dias. E Melkor continuava sentado, imóvel, protegendo o Maia adormecido do vento e da chuva,
segurando a própria capa sobre ele, como um pássaro abre as asas sobre o ninho. Queimou o outono,
começou o inverno, e a neve o cobriu, e Melkor era como um pinheiro, cujos galhos cobertos de neve
protegem as ervas. Os Elfos vieram e quiseram carregar o adormecido, mas Melkor balançou a cabeça
em silêncio e apertou o dedo contra os lábios... E chegou a primavera, e acordaram as ervas e as
árvores. Então o Vala fechou as asas, e os raios do sol acordaram o Maia... E Melkor disse, baixinho,
olhando‐o nos olhos:
‐ Feliz aniversário, Gorthaur.
Gorthaur não perguntou nada. Ele tinha entendido tudo. Ele tinha entendido demais no seu longo sono.
Ele levantou‐se, quase da mesma altura que o Mestre, tomou a mão daquele e a colocou sobre o lugar
onde batia o coração dele.
‐ Você havia recusado a minha dádiva.Sei, não por querer ofender‐me. Mas e essa, aceitará‐a?
Melkor sorriu.
‐ Sim, e com imensa gratidão. Aceite você também a mesma dádiva, meu Discípulo...
E foi assim ‐ o Armeiro veio até Melkor e, rindo – ele tinha esse jeitinho de falar ‐ disse:
‐ Mestre! Gorthaur pediu‐me para falar com você.
Isso era curioso. Normalmente, Maia sempre vinha pessoalmente. Era incompreensível o que poderia
tê‐lo impedido agora.
‐ Fale então. Eu sempre estou feliz em ouvir você e ele.
O Armeiro riu novamente. Ele era um Elfo calmo e confiante, o que, contudo, nunca passava para
insolência. Não muito alto, ele tinha força descomunal. O trabalho contínuo na forja deu‐lhe largos peito
e ombros, braços musculosos, semelhantes a raízes de uma árvore milenar. Um dos poucos, ele usava
barba. “Para imponência”, ‐ dizia ele e, visivelmente, essa imponência o ajudava. Poucos poderiam
imaginar que esse Elfo calmo e sólido era mais novo do que muitos outros, quase da mesma idade do
Menestrel.
‐ Então, Mestre, Gorthaur não teve coragem de vir aqui ele mesmo...
‐ Por quê? ‐ perguntou Melkor, quase ofendido, e o coração dele estremeceu por causa da lembrança –
não é à toa que o Maia tem medo agora de qualquer criação, de qualquer feito, depois daquilo que
aconteceu entre eles.
‐ Tem um tanto de medo, ‐ sorriu o Armeiro.
‐ Mas do que? Eu ainda nem sei qual é o problema. Será que eu alguma vez impliquei com o trabalho
dele... desde então?
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Realmente, agora Melkor falava muito cuidadosamente com o Discípulo, com medo de feri‐lo
novamente. O ardoroso e jovem Maia era querido demais a ele.
‐ Sabe, Mestre, não se trata de uma coisa. Ele criou o vivo, ‐ O Armeiro pronunciou a última palavra por
sílabas, ‐ e, parece, ele mesmo não sabe o que fazer com as bestas que ele aprontou.
O Armeiro sorriu novamente:
‐ Na verdade, são uns monstros bem divertidos. Mas, juro, não entendo o que Gorthaur queria!
Melkor olhava perplexo para o Armeiro.
‐ Que venha aqui, então. E junto com a arte dele. Parece que ele aprontou algo bem feio dessa vez.
E o Gorthaur sentia‐se terrivelmente culpado. Por um lado, ele tinha as melhores intenções. Ele queria
que o trabalho pesado nas minas e pedreiras, talvez depois também na construção das casas de pedra,
fosse realizado por alguém mais forte do que os Elleri. Por outro, havia aqui uma pitada de presunção e
orgulho. O poder dele não seria suficiente para criaturas superiores, mas ele esperava criar algo
gnomóide, não pior que os de Aulë. Foi assim que ele criou algo vivo. Ele percebeu tarde demais ‐ em
essência, criou escravos. E ai que ele teve medo. Não poderia escondê‐los dos olhos de Melkor, destruir
‐ a mão não se levanta, afinal são vivos. Resolveu confessar, antes que seja tarde.
...A criatura era enorme e desengonçada. Ele poderia irritar‐se, mas poderia também rir. Melkor
preferiu a segunda opção. E era mesmo impossível não rir, olhando para o corpo que parecia uma pedra
coberta de musgo.
‐ O que você criou? ‐ divertia‐se Melkor. ‐ Isso é o que?
‐ Mestre, ‐ o Maia respirou aliviado. ‐ Eu mesmo não sei. Queria fazê‐los para ajudarem os Elfos, só que
tenho medo de que não vão servir para muita coisa. E, falando a verdade, não me sinto muito
confortável. Eles ficaram... como dizer melhor... deficientes. Até se eles mesmos não têm consciência
disso ‐ o que importa? A mente diz – destrua, e o braço não se ergue.
‐ Nisso você está certo. Eles são vivos. E tem alguma consciência, por menor que seja. Que vivam. Alias,
do que é que você os criou?
Maia ficou todo sorridente. Ele gostava de contar sobre como fazia isso ou aquilo, se empolgando,
descrevendo tudo até os mínimos detalhes.
‐ Sabe, eu os pensei faz muito, mas não conseguia imaginar de jeito nenhum como eles deveriam ser. E
ai, à noite vi uma monte de pedras. Pareciam algo com braços e pernas. E ai eu me apressei para
enfeitiçar a figura, para não esquecer, não perder. Parece que me apressei... E depois, eu o completei
com alguns detalhes e coloquei já o feitiço da existência. E apareceu ele, desse jeito...
Gorthaur olhou perplexo, mas com um tanto de simpatia para o gigante.
‐ E por quê ele está coberto de escamas? E tem esses dentes enormes na boca?
‐ Se eu soubesse, Mestre! Parece que ali, nas pedras dormia uma lagartixa, e quando eu enfeitiçava a
figura, eu a enfeiticei também. E ele ainda não gosta de luz, pois eu o vi de noite. Mestre, o que é que eu
faço com ele?
‐ O que fazer?.. Nada. Deixe viver. Talvez vão dar em alguma coisa. Eu te entendo; não tenha medo ‐ não
são Orcs. Eles dificilmente farão mal a alguém, se, claro, não aparecer algum Curumo para eles...
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‐ Não deixo! ‐ gritou Gorthaur, com petulância. ‐ Não permitirei! E para que ninguém se atreva a usá‐los
para o mal, eu jogarei mais um feitiço neles. Eles não poderão viver no sol. A noite gerou a forma deles,
a luz do dia os transformará nas mesmas pedras das quais eles nasceram.
‐ Não se apresse. Sabe, freqüentemente a criatura escapa do poder do seu criador. E, acho, como eles
são vivos e possuem inteligência, que sejam livres. Que tenham uma possibilidade de tornarem‐se
diferentes. Que vivam por conta própria ‐ talvez tenham força e inteligência suficientes para fazeres a si
mesmos.
Gorthaur sorriu.
‐ Bom. Eu nem tinha esperanças disso. Mas, Mestre, me perdoe ‐ se você mandasse destruí‐los agora, eu
iria embora com certeza. Só que não se ofenda, está bem?
Melkor riu, olhando estranhamente para o discípulo.
Gorthaur não entendeu e ficou pensativo. Mas enfim, quem conhece os planos do Mestre?
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O SENHOR E O SERVO. ANO 500 DO DESPERTAR DOS ELFOS
Curumo estava com falta de ar por medo e raiva. “Expulsou! Me expulsou! Mas não é nada, você ainda
me pagará por isso! Todos vocês me pagarão! Mas... o que fazer? Ficar em Endorë? Sem sentido. Não.
Somente para Valinor. Os Valar, eu os convencerei. Você ainda saberá quem eu sou! Gosta de ferro,
canalha? Terá ferro. O conjunto completo ‐ nas mãos, no pescoço e na cabeça. E esses... seus
discipulozinhos ‐ também receberão o deles!”
Em Máhanaxar, no Conselho dos Poderes, perante os tronos dos Senhores de Arda, apresentou‐se
Curumo ‐ rosto sofrido, vestido de trapos ‐ e estendeu‐se no chão perante o trono de Manwë, abraçando
os joelhos dele e regando de lágrimas os pés dele:
‐ Finalmente, meu senhor! Finalmente eu voltei!
O Rei do Mundo olhou o Maia com desconfiança mal disfarçada:
‐ E de onde é que você voltou?
‐ Não há perdão para mim, Grande! Com palavras enganadoras e oferendas traiçoeiras, o Inimigo me
inclinou para o serviço das trevas, e me ameaçava com os mais horrendos castigos se eu atrever‐me a
desobedecer. Mas eu recuperei a visão, eu vi a luz verdadeira; e então ele encarcerou‐me num
subterrâneo, assustando com terríveis tormentos, tais que somente o inimigo do Mundo é capaz de
concebê‐los. Mas apesar de eu ter me resignado na aparência, no meu coração vivia a memória da Terra
Abençoada, e eu esperava uma ocasião propícia para escapar. E então ‐ estou aqui. Sim, eu fui fraco, eu
estou culpado, Senhor do Mundo e todos os Grandes. Aceitarei com resignação qualquer castigo, eu que
sou somente poeira desprezível sob os seus pés, qualquer que seja a sua sentença... Oh, quão feliz estou
em estar aqui! Como eu me alegro por ter, finalmente, conhecido a verdade! Mas como eu pagarei pela
minha culpa?
‐ Levante‐se, ‐ finalmente respondeu Manwë, com visível satisfação. ‐ Qual será a sua decisão, Poderes
de Arda?
‐ Deixe‐o falar sobre os feitos de Melkor, ‐ falou Námo. ‐ Tudo o que sabe.
‐ A língua se recusa a obedecer‐me, Grandes, mal eu me recordo das terríveis maldades do Inimigo.
Tudo o que ele toca torna‐se perverso, repugnante e fonte de mal. As florestas, a maravilhosa criação da
Senhora Yavanna, ele as encheu de sombras e pavor, e as povoou de criaturas horríveis, sedentas de
sangue, como uma zombaria das criações de Oromë, o Grande Caçador dos Valar. Ele não pôde dominar
as águas da Terra‐Média, mas, envenenadas pelo mal, elas se tornaram amargas como o veneno, e as
vozes delas se calaram, como é de conhecimento do Senhor das Águas Ulmo. Ele destrói tudo o que está
ao alcance dele, e a face de Arda torna‐se monstruosa, pois ele zomba de tudo o que você criou, Aulë,
Grande Ferreiro, o meu misericordioso senhor. E ele inventou visões repugnantes, que anuviam a razão,
Irmo, Senhor dos Sonhos, e cada um que as vê pode perder a razão. E você, Námo, saiba que o Inimigo
se nomeia o Senhor dos Destinos de Arda, desobedecendo à vontade do Único. E ele transforma as belas
Crianças de Ilúvatar, com torturas e feitiços negros, em Orcs repugnantes, monstros sanguinolentos,
cheios de ódio a todos os seres viventes, os obrigando a servi‐lo, e prepara uma guerra contra vocês,
Poderes. Eles fazem sacrifícios sangrentos, torturando criaturas inocentes, e organizam danças
horrendas durante essas reuniões, bela Nessa; e os pássaros evitam os domínios dele, onde nunca há
primavera, sempre jovem Vána.
Chore, curadora Estë: terríveis são os sofrimentos de qualquer um que cai nas mãos do Inimigo! Chore,
ó misericordiosa Nienna: assustadoras são as feridas que ele causa a Arda!
Mas nem mesmo este é o mais terrível feito do Inimigo. Pois entre os servos dele há aqueles que
conservaram a inigualável beleza dos Elfos, mas as almas deles estão envenenadas pelo mal. Eles
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chamam a si de Elfos Negros, e são muito mais perigosos do que os Orcs, pois a aparência deles é bela e
nobre, mas eles são experientes na mentira. E eles distorcem toda a historia da Arda, ó sábia Vairë, e
maldizem o Único, e adoram ao Inimigo ‐ que esteja ele amaldiçoado para sempre! ‐ como o Criador de
Tudo o que Existe. E eles levam conversas heréticas sobre a multiplicidade dos mundos, e dizem que
não foi você, claríssima senhora Varda, que acendeu as estrelas, mas que elas existiam desde antes de
Arda, e não foi o Único que as criou. E o Senhor deles, Melkor, no orgulho dele declara‐se o Senhor de
Arda, e senhor de tudo o que há em Arda, e o mais poderoso entre os Valar...
‐ Basta! ‐ urrou Tulkas. ‐ Chegou a hora de acabar com o infame!
‐ Espere, poderoso Tulkas, ‐ disse Manwë. ‐ Grande é o poder do Inimigo...
‐ Perdoe, Grande, por atrever‐me a falar sem a sua permissão...
‐ Fale, ‐ na mesma hora permitiu o Rei do Mundo.
‐ O poder dele não é tão grande como ele pensa. Ele não espera uma guerra, pois está certo de que
ninguém se atreverá a atacá‐lo. Os servos dele são fracos e inexperientes nos assuntos militares, e os
Orcs ainda não são numerosos. Convoque o exército, Senhor do Mundo, e poderoso Tulkas, um
guerreiro invencível, o liderará. E eu conheço as fortalezas do Inimigo e mostrar‐lhes‐ei o caminho.
Então Manwë, o Rei do Mundo, se ergueu do trono, e respondeu:
‐ Que seja assim. E você, Curumo, terá o perdão dos Poderes, e agora esperamos que os seus feitos
sejam a prova das suas palavras. E você terá glória entre o povo dos Valar.
E, caindo de joelhos, o irmão mais novo de Gorthaur beijou a mão de Manwë. E o irmão mais novo de
Melkor não retirou a mão.
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A GUERRA DA LUZ. ANO 502 DO DESPERTAR DOS ELFOS. GUERRA DOS PODERES DE ARDA
“Disse então Manwë aos Valar: ‘Este é o conselho de Ilúvatar em meu coração: que devemos
reconquistar o domínio de Arda, a qualquer custo, e liberar os quendi da ameaça de Melkor’. Com isso
alegrou‐se Tulkas; mas Aulë se entristeceu, prevendo os danos ao mundo que deveriam resultar desse
combate... Longo e angustiante foi o cerco a Utumno, e muitas batalhas foram travadas diante dos
portões da Fortaleza Negra, das quais nada chegou aos ouvidos dos elfos a não ser rumores...”
Assim fala o “Quenta Silmarillion”.
Elenhel. O nome ‐ a luz salgada de uma estrela distante. Na língua dos Novos, Aqueles que Chegaram,
ele soaria como Elhele, o gelo das estrelas. Gelo transparente e esverdeado, que cobre os picos das
montanhas como um manto real, da cor parecida com a dos olhos dela.
Ele disse um dia ‐ Elhe. O nome ‐ a prata amarga do caule de absinto. Chamou assim ‐ e não errou. Ela
realmente parece um caule de absinto ‐ não muito alta, frágil, fininha. E essa inacreditável cor dos
cabelos ‐ quase prateados, como uma cachoeira de metal claro. Olhos enormes ‐ transparentes, verdes,
como os rios das montanhas no inverno...
Ela raramente chorava, mas ria menos freqüentemente ainda. Ela era uma sonhadora, que sabia contar
histórias maravilhosas, mas de vez em quando o olhar dela ficava amargo e atento ‐ e poucos podiam
suportá‐lo, pois ela era ‐ Aquela que Vê.
Imprevisível, ela podia conversar por horas com o Amigo dos Livros ou o Mago, interrogar o Andarilho
sobre as outras terras, e eles esqueciam, na conversa, que ela tem somente dezesseis – as palavras dela,
tristes e sábias, pareciam não pertencer a uma adolescente; ‐ e depois aprontava alguma coisa arisca.
Quem, além dela, se atreveria a voar na lua cheia pelo céu noturno, montado num dragão alado? As
crianças extasiavam‐se e invejavam às escondidas, o Mestre teve vontade de dar uma bronca, mas foi
totalmente desarmado pelo sorriso envergonhado e um pouco de culpa: “Mas ele mesmo permitiu...
Sabe, Mestre, ele gostou...”
Ela ficava sentada, longamente, com o irmão dela, Dene, e contava‐lhe sobre as estrelas e sobre Arta.
Falavam para ela: “Ouça, ele ainda não entende nada – ele tem tão poucos anos ainda; espere, deixe‐o
crescer um pouco...” Mas ela sorria e respondia: “Não, ele entende e irá se recordar...”
Nos últimos tempos acontecia assim com cada vez mais freqüência: ela partia sozinha para as
montanhas, florestas, até o rio e voltava calada e triste. A solidão é uma dádiva sagrada; ninguém a
interrogava, mas a meditação e uma certa “melancolia poética”, como definia com um sorriso o pai dela,
marcaram a aparência dela, e a feminilidade suave que repentinamente descobriu‐se nela, levavam a
crer que chegou a hora de descongelar o coração da pequena Rainha das Neves. A mãe sorria com
malícia e carinho, o pai estava perplexo – o que é que tem para esconder? – os rapazes tentavam
adivinhar quem era o eleito...
De flores e estrelas
farei‐te uma coroa,
meu coração:
estrelas do céu e estrelas da terra,
ervas dos encontros e desencontros,
pérolas da dor
entrelaçarei na sua coroa,
Escuridão Alada;
com o fio fino da minha vida
prenderei as flores...
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...A primavera saiu muito louca ‐ nunca antes houve uma dessas. Ele tinha visto todas as primaveras de
Arda e recordava delas ‐ os imortais não esquecem de nada. Primavera louca – como se o sangue
fervesse nas veias, como vinho novo. Deu‐se que ele ficou totalmente só ‐ todos foram levados a algum
lugar por esse redemoinho furioso. De manhã ele esbarrou em Gorthaur ‐ os olhos daquele eram
enormes e maravilhados. Ele olhava para Melkor, mas como se não o visse, ou melhor, não pudesse
compreender quem está na frente dele.
‐ O que há com você? ‐ Vala surpreendeu‐se e assustou‐se um pouco, Gorthaur não respondeu logo. Ele
falava devagar, como se refletisse sobre cada palavra, e a voz dele baixou quase até um sussurro.
‐ Mas é primavera, ‐ disse ele, meio nada a ver com nada. ‐ Lírios‐do‐vale na floresta...
E depois saiu, como se estivesse enfeitiçado pela Lua.
Melkor riu. Nada de incompreensível ‐ primavera, e lírios‐do‐vale na floresta. Claro. O que há mais
importante do que isso? Primavera. Lírios‐do‐vale. Largue os seus pensamentos, seu mala imortal, vá ‐
é primavera, há lírios‐do‐vale na floresta. Vai perder a primavera toda assim! E ele se sentiu tão bem
por causa dessa simplicidade da resposta ‐ primavera, lírios‐do‐vale ‐ que ele simplesmente, como um
garoto, chutou a porta e pulou para fora, para o sol morno. Do que mais se precisa? Aqui está ela, essa
vida, e não procure o significado dela, simplesmente ame e viva.
A floresta estava cheia de loucura primaveril. Ate as poças entre os musgos brilhavam inesperadamente
no sol, como aquele riso que vinha do rio. Será que estão se banhando? A água ainda está fria... Ele foi na
direção do riso. Aqui era o ponto mais alto da margem e floresta quase encostava na escarpa. Alguém
estava sentado sobre uma pedra. Imobilidade absoluta. Cabelos de um dourado pálido. Essa é Onnele
Cyolla. Até mesmo num dia tão claro. Ela tinha dessas horas ‐ sem notar nada ao redor, ela ficava
imóvel, absorta em pensamentos incompreensíveis, e se conseguiam tirá‐la desse estado, ela falava: “Eu
estava ouvindo”. E nem ela mesma podia explicar o que ouvia. Um dia ela ficou quase o dia todo assim,
sob o vento frio e neve molhada ‐ depois da tentativa dele de expressar visualmente a eternidade.
Naquele dia, foram Elenhel e Dene que a trouxeram para casa, e foi necessário tratá‐la – ela pegou um
severo resfriado. E agora ele queria, como um moleque, chegar perto dela na ponta dos pés e puxar os
cabelos dela. Ele riu silenciosamente.
‐ Onnele!
A moca virou lentamente. Ela sorria, e ele viu uma coroa de flores sobre os joelhos dela.
‐ Pensando novamente? Até mesmo hoje?
‐ Os pensamentos não escolhem a hora, Mestre. Vêm, e pronto.
‐ Largue‐os! Agora é primavera. Lírios‐do‐vale na floresta! Alias, aqui está a coroa. Significa que alguém
te deu? Não é assim?
‐ Sim, ‐ ela riu. ‐ E sabe quem? Gorthaur.
‐ Sim? ‐ as sobrancelhas de Melkor ergueram‐se.
‐ Mestre, você está enganado. Eu entendi o que você pensou. Sabe, eu simplesmente não tinha uma
coroa ‐ ninguém para dá‐la. E ele disse assim mesmo, que hoje ele é o meu cavaleiro. Simplesmente teve
pena, deve ser isso.
‐ Ninguém te presenteou com uma coroa de flores? Mas você é tão bonita...
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‐ Provavelmente, não tão bonita assim. Se bem que, é difícil de me encontrar. Alias, nem mesmo Allua
tem uma coroa. Mestre, se ela aceitasse todas as coroas, ela se afogaria nelas! Elenhel também recusa
todos que a cortejam.
‐ Por quê?
‐ Eu não leio os pensamentos delas. Acho que ela espera somente uma coroa, e dará a dela somente a
um único.
Melkor calou‐se.
‐ Bem, estou feliz por ela.
‐ E ali, olhe ‐ está vendo? Mas olhe!
Ele olhou para lá como se tivesse medo de assustar alguém. Moro e Orien.
‐ Olha, fazem de conta que não se conhecem, que para eles dá tudo na mesma! Sabe, Mestre, hoje é um
belo dia. Apesar de tudo...
‐ O que foi? ‐ ele sentiu alguma preocupação nas palavras dela quase instintivamente.
‐ Eu ouvia, ‐ ela parou. Depois levantou os olhos verdes bruscamente e perguntou:
‐ O que é morte? Como é ‐ morrer? Por quê? Para que? É ‐ não ser? Quando não há nada? Então, quando
eu ainda não existia, isso também era a morte? Ou a morte é ‐ quando sabe que isso é morte, que não
haverá mais nada?
‐ Menina... Num dia desses...
‐ Está bem. Não vamos.
‐ Não. Eu, sabe, posso dizer somente uma coisa: é a escolha. Você também a tem agora, mas você ‐ desde
o inicio é você. E quando puder escolher... não, é difícil explicar...
‐ Então, a morte é um bem?
‐ Não! Mas também não se deve ter medo dela. Ela não é o fim. Mas a perda de tudo, que é querido para
você... Eu não sei. Eu não morri antes. Eu sou um Vala... Enfim, é o direito de refazer a si mesmo desde o
começo, viver uma outra vida ‐ mas somente depois de viver bem essa vida, fazendo a escolha ainda
agora. Ouça, e será que eu já vivi antes, só que não me lembro? De onde eu sei tudo o que sei? De onde
eu tenho o meu poder? Menina, como você sabe perguntar...
‐ Eu não quis, verdade...
‐ Não, você agiu certo. Mas deixemos, hoje não é o dia. E a quem você dará a sua coroa?
‐ Precisarei fazer um agrado a Gorthaur!
A moça calou‐se. Depois olhou, séria, para o rosto de Melkor:
‐ E a quem você dará a sua?
‐ Eu... eu não sei... não pensei sobre isso!
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Ela sorriu, mas nada alegremente.
‐ Eu sei quem espera a sua coroa. Não sou eu, não pense besteira.
‐ Então quem?
‐ Não falarei isso. Desculpe.
Agora, o mundo lhe parecia novo, estranho, inexplorado, tudo lhe causava uma surpresa alegre. Mestre
estava certo quando chamou aquele dia primaveril de dia do aniversário dele. Ele absorvia gulosamente
a beleza do mundo, porque já sabia, sabia com certeza ‐ essa é a ultima primavera, e ela nunca se
repetirá...
Mestre disse ‐ Arta pressente. É, sim... Nunca antes as flores eram tão irremediavelmente belas, as vozes
dos pássaros ‐ tão límpidas e tristes, nunca antes se ergueram tão alto as ervas azuladas amargas. Ou
isso é somente a imaginação? Como se Arta se despedisse dos próprios filhos... Talvez somente o olhar
mudou? Só que nunca antes, nos dias da primavera, o alto céu noturno havia chorado com estrelas...
Gorthaur vagava pela floresta, quando, de repente ‐ ouviu. Ele nem entendeu logo o que é: pareceu ‐ a
canção de Arta soa dentro dele. E parou, sem ter coragem para chegar mais perto, como se tivesse medo
de assustar um passarinho trêmulo. Uma pessoa canta assim somente quando está sozinha, e não se
preocupa com o que os outros pensarão sobre a canção.
Aos poucos, ele começou a distinguir as palavras:
Pedaço de gelo, transparente, verde – tristeza, respiração suave do inverno de asas brancas –
Você não verá os picos altos, não ouvirá o Vento do Norte, é breve o seu tempo...
Caule quebrado de absinto, você não será enlaçado numa coroa,
A Lua não te lavará coma água límpida dos raios prateados;
Você ficará como a amargura da memória nos lábios...
Eu também não farei uma coroa de flores e estrelas:
As águas amargas do mar ocultam pérolas da tristeza, não tem como chegar até os vales claros onde
cresce a erva dos encontros...
Não conseguirei entrelaçar as flores com o fio prateado da vida –
Mais facilmente que uma teia de aranha, o vento do ocidente a rasgará...
Somente a erva do desencontro está tão alta...
Maia ouvia prendendo a respiração. Ele estava dolorosamente sem jeito ‐ como se ouvisse por acaso
algum segredo alheiro, ‐ mas ele também não podia fugir: a voz esvoaçante o encantava.
Ele reconheceu a cantora ‐ pelos compridos cabelos prateados. Ele não entendia o que há com ela, o que
há com ele mesmo, ‐ simplesmente era amargo e claro, como se viesse o conhecimento do inevitável,
como se ele tivesse achado a resposta para uma pergunta que o torturava há muito.
Ela parou, voltando o rosto para a luz das primeiras estrelas. Era preciso ir embora. Agora ele não tinha
direito de permanecer. Maia desapareceu silenciosamente na penumbra, que ficava mais densa a cada
instante. Ele sabia, que nunca mais esquecerá...
...Um pouco mais tarde, Gorthaur decidiu que precisa dar a Elhe algum presente como lembrança desse
encontro. Não, claro que ele não contará a ela que ‐ ouviu. Simplesmente ‐ deve ser assim. Um presente
de despedida, como essa canção foi uma despedida.
Estranho e assustador ‐ o dia começou com uma alegre insanidade, e acabou com reflexões alarmantes.
Maia caminhava devagar para casa. À esquerda, em algum lugar bem distante, ardiam as últimas brasas
do pôr‐do‐sol. Mas ainda estava bastante claro, e florestrelas cintilavam na penumbra. Gorthaur parou.
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Por quê ele não reparava nessas flores antes? Claro, o luxuoso lírio‐do‐vale, um cálice de cera com um
aroma expresso e estonteante, é magnífico; mas quando em todos os lugares estão lírios‐do‐vale, lírios‐
do‐vale, lírios‐do‐vale ‐ você simplesmente se cansa. Ele abaixou‐se para ver melhor as flores. Pequenas
estrelinhas brancas, sem cheiro, como enlaçadas na confusão de caules finos e quebradiços, com
pequeninas folhas estreitas. Agora o verde naturalmente escuro das florestrelas parecia quase preto.
Ele pegou cuidadosamente três caules ‐ e na mão dele ficou o emaranhado de renda de fios verdes, com
estrelas presas na teia escura... Como naquela coroa que Geleon fez para Ierne. Maia sorriu. Eis o
presente desse dia singular...
As luzes nas casas pareciam tão boas e aconchegantes que Maia sentiu um calor no coração, e a angústia
vaga e a amargura se acalmaram e se calaram. Ele caminhava lentamente na direção da própria casa,
segurando as flores ‐ alguma idéia deveria desenhar‐se já‐já na mente dele, mas ele não sabia ainda o
que seria.
‐ Eh, Gorthaur! E o Mestre estava procurando‐o. Ele está te esperando há tempo, vai logo!
Maia fez um sim, e correu à casa de Geleon ‐ Melkor estava o visitando agora.
Entrou. Percebia‐se no primeiro olhar que o Mestre também está estranhamente oprimido. Ele já quis
perguntar, mas Vala foi o primeiro a falar:
‐ Não te parece que hoje há algo de preocupante no ar?
‐ Sim. É tudo bem confuso ‐ um dia assim, e está tão pesado...
‐ Sabe, eu queria valar com você. Lembra, eu falei daquelas nove crianças?
Maia acenou com a cabeça. Ele conhecia todos eles muito bem. Não que eles fossem os queridinhos do
Mestre ‐ ele amava a todos igualmente ‐ mas s sos com Gorthaur, era justamente deles que ele falava
com mais freqüência.
“‐ ...Cada um deles tem um dom próprio. Ele ainda não está desenvolvido, mas eu sinto neles tal poder
que algumas vezes tenho um pouco de medo. Simplesmente porque eu não consigo prever a força deles
e me pareço um tolo... Parece‐me que eles juntos são mais poderosos do que os Valar. Sabe, eu quero
muito desenvolver os dons deles, como posso. Você imagina o que eles poderão criar então?
‐ Mas os outros são menos talentosos?
‐ Não. Absolutamente não. Possivelmente, isso acordará em outros, ou nascerão novos, mas eles são os
primeiros. Talvez, nem os mais poderosos. Eu preciso ensiná‐los a compreender uns aos outros, preciso
desenvolver os dons deles. Espere, daqui a uns quinze anos Dene e Ayoni crescerão, e então... é até
difícil imaginar, o que será então! Gorthaur, eles são mais poderosos que eu, é verdade!”
Agora ele falava sobre eles novamente.
‐ Sabe, hoje me perguntaram ‐ como é a morte. E eu não pude responder. Onnele Cyola. Ela já agora está
pensando sobre coisas sobre quais eu jamais refleti. Mas ‐ sobre a morte... Como uma profecia.
Gorthaur, eu não posso esperar. Amanha mesmo falarei com todos eles. É hora de explicar‐lhes tudo.
‐ Sim, isso. Eu também estou preocupado. E não precisa esperar até eles crescerem. Eles já são amigos,
que se tornem ainda mais próximos agora, Mestre. Que seja assim.
Eles ‐ todos os nove ‐ estavam sentados a sua frente, calados, sérios de repente ‐ crianças adultas. Como
são belos... Todos – absolutamente diferentes, mas nenhum rosto difícil de se recordar... Começar com
que? Como explicar? Ele baixou a cabeça, concentrando‐se. As crianças continuaram em silêncio.
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‐ Eu os escolhi, ‐ as palavras fluíam dolorosamente devagar, com dificuldade, ‐ para que vocês se tornem
Guardiões e Mestres. Agora começará o seu aprendizado. Mas eu poderei dar‐lhes muito pouco. A sua
força está dentro de vocês mesmos, e eu posso somente ajudá‐los a despertá‐la e a compreendê‐la. E
vocês devem compreender uns aos outros, para depois realizar e criar. Cada um de vocês tem o próprio
grande dom, mas cada um tem parte nos dons dos outros. Por isso juntos ‐ vocês são mais poderosos do
que eu. É assim. Simplesmente, vocês ainda não se compreenderam até o fim. É nisso que está a parte
principal do seu aprendizado. E depois... Depois virão os Homens...
‐ Mas e nos, nos por acaso não somos Homens... – esse é Naure.
‐ São. Mas vocês se transformaram em Homens, escolhendo a liberdade. E eles a terão desde o início. Eu
posso guiá‐los. Mas eles ‐ não poderei. Não tenho direito, e nem poder também. Eles também serão
mais poderosos do que eu. Pelo menos, no coração. Mas vocês poderão ficar com eles, pois vocês são
Homens. Vocês os entenderão melhor do que eu. Pois eu é que não sou humano... ‐ ele sorriu, triste e
desajeitado.
‐ É isso. Chegou a hora de aprender.
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FESTA DOS ÍRIS. ANO 502 DO DESPERTAR DOS ELFOS
A festa dos Íris é na metade do verão. Aqui, no Norte, a primavera começa tarde, e o tempo quente é
breve. A festa dos Íris cai na época de Noites Brancas: três dias e três noites ‐ reinado da Rainha dos
Íris...
...A criança assustada fecha os olhos, pensando que assim é possível esconder‐se daquilo que causa
medo; mas ela deixou de ser criança há muito tempo, e como fechar os olhos da alma? Ver e saber ‐ é
um dom cruel, mas será que é possível renegá‐lo?
Por curtos três dias ‐ esquecer de tudo. É festa, e em todos os rostos está a alegria, e a luz está em todos
os olhos ‐ esqueça, esqueça, esqueça... O Mestre também sorri ‐ vê? Mas quem será a última Rainha dos
Íris?
Última... Esqueça, esqueça, esqueça...
...Os olhos brilhantes de Gelren:
‐ Elhe... Nos decidimos, a Rainha será ‐ você!
Ela se obrigou a sorrir, mas pareceu ‐ o coração parou por um instante.
Porque, desde a época em que se começou a festejar o Dia dos Íris, a Rainha deve dizer o nome ‐ do Rei.
Isso ‐ como? ‐ na frente de todos ‐ dizer o nome?..
Mesmo que já tenha acontecido isso algumas vezes: aquela cujo coração está livre, nomeava Rei o
Mestre ou o seu primeiro Discípulo; talvez, ninguém nem pensará... “Não, não consigo... mas o que
fazer?..”
A solução veio no mesmo instante, apesar de ter parecido‐lhe uma eternidade:
‐ Não, esperem! Eu sei! ‐ ela riu baixo, bateu as palmas. ‐ Yolli!
Cachos dourados macios ‐ objeto de orgulho especial da menina; olhos serão, provavelmente, negros ‐
um vago pressentimento, mas agora, como os de todos os pequenos ‐ são de um cinza límpido. Yolli ‐
caule, e o nome de criança ‐ a ela, magrinha ‐ cai surpreendentemente bem. A incriminação desaparece
dos olhos do Menestrel: realmente, muito bem pensado!
Yolli aceita, com uma seriedade adulta, como um cetro precioso, a flor rósea e dourada de íris do
amanhecer. Elhe respeitosamente leva a pequena rainha até o trono ‐ madeira talhada enfeitada com
hera e uvas selvagens; Gelren caminha do outro lado de Yolli, lançando olhares para Elhe.
Os da jovem estão sorrindo, mas a voz é seria e cerimoniosa:
‐ Nossa Senhora Yolli, clara Rainha dos Íris, diga‐nos o nome do seu Rei.
Yolli franze o nariz, pensativa, depois se ilumina e, levantando o cetro de flor, aponta para...
“Mas claro. E, concorde, você nem esperava outra coisa. Isso?”
‐ Senhora Rainha, ‐ pergunta Elhe num sussurro; os cabelos dourados da menina quase tocam nos
lábios dela, ‐ e por quê ele?
Yolli fica envergonhada, olha de lado com uma certa desconfiança para o rosto sorridente da jovem:
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‐ Não vai contar a ninguém?
Elhe faz um não com a cabeça.
‐ Encoste‐se mais...
Aquela obedece, e a menina sussurra bem no ouvido dela:
‐ Ele não vai ficar tirando sarro.
‐ E como tiram sarro? ‐ também sussurra Elhe.
A menina fica vermelha, quase imperceptivelmente:
‐ Yutti‐yulli...
Elhe mal contém o riso: arminho‐doninha, escolheram um apelido e tanto! Isso deve ter sido o Eino que
inventou; aquele menino sempre teve uma língua afiada. Não, por três dias ‐ nenhum “yutti‐yulli”:
Rainha é Rainha, e é preciso tratá‐la com o devido respeito.
A festa quase prescreve roupas claras, por isso há poucos vestidos de negro costumeiro, das mulheres ‐
somente Elhe. E o Menestrel ‐ de verde prateado, cor das folhas de absinto. Como um convite para um
duelo.
E, claro, o atual Rei dos Íris está de negro: só na cintura ‐ cinto habilmente bordado com um complexo
desenho de faíscas brilhantes de pedras preciosas.
‐ Senhora Rainha... – uma reverência profunda e respeitosa.
A menina abaixa a cabeça, tentando parecer séria e adulta.
A Festa dos Íris ‐ metade do verão. Três dias e três noites ‐ reinado da Rainha e do Rei dos Íris. E
qualquer desejo da Rainha é lei para todos...
Qual é o seu desejo, Rainha Yolli?
‐ Eu quero... ‐ de repente, o rosto dela fica triste de um jeito adulto, como se a sombra do espectro do
pressentimento tivesse a tocado também, ‐ eu quero, que a paz esteja sempre aqui. Que não exista o
mal.
Ela olha com esperança para o Rei dela; a voz dele soa calma e carinhosa, mas Elhe involuntariamente
abaixa o olhar:
‐ Nos todos, minha senhora Rainha, temos esperanças de que seja assim.
Ergue o cálice:
‐ Pela esperança.
O vinho dourado é bebido em silêncio, como se ninguém tivesse mais palavras. E quando o silêncio, que
ninguém se atreve a quebrar, torna‐se insuportável, o Rei levanta‐se:
‐ Música em honra da Rainha dos Íris!
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...De dia ele fazia espadas, ensinava os Elleri Ahe a arte do combate. À noite, com uma estranha timidez ‐
como se estivesse fazendo algo proibido ‐ escolhia as pedras e fundia a prata.
Ele não via Elhe com freqüência, e a cada lição sentia cada vez mais que tem medo por ela. Assim como
os outros, ela preferia defender os golpes; mas se os outros conseguiam pelo menos arrancar a arma
das mãos do inimigo, ela não conseguia nem mesmo isso. Num combate, ela estaria condenada.
Por alguma razão, ele lembrava muito bem de quando ela trouxe um cálice com água para o Mestre um
dia, depois de um longo dia de trabalho na oficina. Como se entrelaçaram os dedos finos sobre o cálice
de madeira, como ela ficou com a cabeça levemente inclinada para trás – parecia quase uma criança, a
cabeça dela, coroada de tranças prateadas, não devia chegar nem no ombro do Mestre... Olhava
diretamente nos olhos, com um sorriso calmo e carinhoso, tão parecido com o sorriso do Mestre, e a
mesma sombra amarga estava nos cantos da boca. Elhe. Absinto.
E eis o colar, feito de galhinhos quase sem peso de absinto, cobertos de orvalho, nas mãos dele. Mas o
que falta?..
‐ Mestre, veja...
Melkor olhou para o colar e depois para o rosto do Maia. Aquele baixou os olhos:
‐ Aqui está faltando algo... Eu entendo, não é hora agora, mas eu gostaria...
‐ Deixe comigo por enquanto. Eu pensarei.
“Não é hora, você disse? Não, exatamente agora. Nove símbolos, nove runas, nove pedras. Vocês serão
nove, como nove raios da estrela...”
Entre as flores prateadas cintila um pedaço de gelo verde ‐ uma fria pedra nunca antes vista, que
finaliza o objeto.
‐ Acho que Elhe irá gostar disso.
Maia ficou vermelho:
‐ De vez em quando, me parece que você realmente vê tudo, Mestre...
‐ Não, ‐ suspirou Vala.
‐ Sabe... eu simplesmente quis agradecer pela canção. Eu estive na floresta e ouvi... ‐ Maia calou‐se, sem
saber como continuar.
“Caule quebrado de absinto, você ficará como a amargura da memória nos lábios...”
‐ Eu entendi.
‐ E o que é isso? ‐ de repente exclamou Gorthaur.
Um sinal brilhou dentro da pedra, num risco cintilante.
‐ Nien Ahe. Runa do Escuro, Tristeza e Memória. A nona. Fale a Elhe ‐ é hora de se preparar para a
viagem.
Acontece as vezes, que o destino, sem qualquer motivo – somente por um capricho imprevisível – dá a
um tanto que os outros só podem se surpreender e invejar. E depois o destino pouco se importa, quem
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será o sortudo ‐ serão as suas dádivas utilizadas para o bem das pessoas ou, orgulhoso, o seu escolhido
será a tristeza de todos. Ele era um dos primeiros em tudo ‐ mesmo que não fosse o primeiro em nada.
Mas só os talentos incomuns dele o destacavam entre os outros. Ele mesmo falava de si, por
brincadeira: “eqüilátero”. Semelhante a um cristal perfeitamente polido, no qual todas as faces são
iguais. Talvez era por isso que ele gostava de simetria e equilíbrio. Provavelmente, ninguém sabia
definir tão nitidamente a essência de cada objeto ou fenômeno como ele, se bem que perante conceitos
como alma, amor, sonho e tudo o mais do gênero capitulava até mesmo a mente nítida dele. Ainda, ele
era belo. Nisso também ele era o queridinho do destino. Idealmente belo, tão belo que o olhar
escorregava pelo rosto dele, sem poder parar em algum traço ‐ tudo era belo, nada se destacava. Assim
era a voz dele, assim eram os modos dele. Maravilhosamente, isso tudo encantava e seduzia. O
respeitavam, o admiravam, mas dificilmente alguém o amava. Ele era ideal e íntegro, e não precisava
disso, se preservando como um eterno cristal precioso. Mas o respeito e, acima de tudo, a admiração
eram‐lhe necessários, tal como um cristal precisa de luz ‐ para que, refletindo‐a, ele possa brilhar.
Somente refletindo. Ele não possuía luz própria.
Tudo lhe saia igualmente bem, havia algo que ele preferia a tudo. E isso era a arte da magia e a ciência
estranha, que hoje não tem mais nome. Ela já nem existe mais – míseros pedaços dela estão espalhados
por outras ciências, e não há ninguém que os junte numa coisa só. Pois as pessoas são racionais demais.
Elleri Ahe a chamavam de “visão da alma”. Qualquer que a dominava, poderia submeter a si os outros,
mas uma grande proibição só permitia usá‐la para o bem dos outros, não para o próprio bem.
Mas ele não era primeiro nem mesmo nisso. Quatro eram mais fortes que ele. Ele se conformava com o
fato de Gorthaur e Mestre o ultrapassarem, mas havia mais dois ‐ Naure e Allua, e o pior de tudo,
justamente Allua. Os olhares desses quatro eram mais forte do que o dele. Sim, ele podia suportar o
olhar do dragão – mas muitos se igualavam nisso a ele. Mas fazer o dragão obedecer‐lhe era alem do
poder dele. E Allua podia fazer isso. Parecia que ela gostava de zombar dele. Allua, semelhante a uma
chama, rápida, arisca, forte, ora explodindo em riso, ora repentinamente sombria. Fogueira na noite,
que dá a todos luz e calor, chama viva. De vez em quando, ele se pegava pensando que quase desmaia ao
vê‐la. Mas a beleza dela não gerava inveja ‐ deixava os outros mais belos. De alguma forma ela
conseguia isso – como uma lâmpada se acendendo a partir da outra. Allua. Ele queria a luz dela. Mas
essa luz deveria pertencer somente a ele. No início, Allua realmente não o evitava, como se
compreendesse que este cristal perfeito necessita dela. Depois, quando ele já pensava que ela lhe
pertence, Allua de repente saiu do poderio dele. E como trazê‐la de volta, se os olhos dela são mais
fortes do que os do dragão? Como segurá‐la? Ele tentou. Normalmente, ele sabia convencer o
interlocutor. Ele sabia falar, voz dele possuía um poder imenso, os olhos dele enfeitiçavam ‐ tudo isso
junto fazia o outro lhe obedecer, assim o rato vai sozinho para a boca da serpente. Mas aqui ele era
impotente.
‐ Compreenda, ‐ ela honestamente tentava explicar‐lhe, ‐ eu não posso assim. Eu não posso pertencer.
Não, não é isso... Eu poderia me tornar sua esposa, mas você exige a obediência total. Não se tranca o
fogo em casa. E luz somente é luz quando a vêem.
‐ Mas eu preciso de você! Por quê não quer ir comigo?
‐ Não. Você quer, não que eu vá com você, mas atrás de você, como amarrada. E os outros, eles não
precisam de mim? Você não me vê como igual. Você não considera ninguém igual a você mesmo. E não
quer mudar. E eu não posso...
Por segundos, ele acreditou que poderia enganá‐la.
‐ Allua, eu farei tudo que você quiser! Eu mudarei. É verdade.
Ela balançou a cabeça.
‐ Não. Os seus olhos te traem. Se o Mestre pudesse te mudar...
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Mas ele não queria isso. Ele gostava de si assim como ele era, e se considerava perfeito. E o Mestre
nunca mexia à força na alma dos outros – Julgava que não tinha o direito. Somente se pedissem. E ele
não pediu. Ele achou uma explicação simples e perfeitamente satisfatória para si mesmo ‐ ele é
inteligente e bonito demais para que os outros o amem. Simplesmente o invejam. E o Mestre continuava
a destacá‐lo entre os outros, apesar de não amá‐lo. Se bem que ele nem queria isso.
Quando o Mestre convocou os nove para alguma coisa importante ‐ pela primeira vez ocultando isso
dos outros ‐ ele teve uma surpresa desagradável. Por quê não ele? Por quê ‐ isso ele não conseguia
entender de jeito algum ‐ confiavam nessas crianças tolas: Ayoni, Dene, essa idiota vazia Elenhel, mas
não nele? Mistério, até mesmo para ele? Ele deve saber. No começo, ele tentou perguntar diretamente a
Melkor.
‐ Mestre, você não confia em mim?
‐ Por quê pensa assim? Os outros não acham que é assim.
‐ Mas por quê então não me contou para que escolheu esses nove?
‐ A você, eu posso falar o porquê. É um segredo perigoso. Para aqueles que sabem. Por isso, é melhor
não saber.
‐ Mas por quê eu não posso? E por quê não me escolheu?
‐ Porque você é “eqüilátero”. Todos aqueles que eu escolhi, são primeiros em alguma coisa. Apesar de
serem, por inteiro, mas fracos do que você. E alem disso, você será necessário aqui.
De um lado, isso lhe lisonjeou, mas também o deixou preocupado. Perigo. Aqui há alguma ameaça. Ele
queria saber. Era inútil se meter com os cinco mais velhos. Onnele Cyola nunca confiou nele. Sobravam
os três mais jovens. Eles poderiam ser obrigados. E o que? Ele quer algo mal? Ele só quer saber...
Estranho, Elenhel revelou ser muito mais forte do que ele pensava. Ele não conseguia quebrar a
barreira impenetrável e chegar até os pensamentos dela. Com Ayoni, ele teve mais sorte. A menina nem
entendeu nada ‐ como se tivesse adormecido por um minuto, e, claro, não lembrava de nada. Agora ele
sabia. Sem compreender o objetivo do Mestre, na verdade, mas o conhecimento de um segredo como se
o colocasse acima dos outros.
‐ Nunca pensei, Artífice, que você sairia de casa num tempo desses! Entre, seja bem vindo!
Artífice tirou a capa encharcada e entrou, seguindo o dono da casa. A casa era grande, de sólida madeira
de carvalho, toda decorada com entalhos. Na sala maior ardia o fogo da lareira, na mesa estava um livro
grosso, que o dono enfeitava com complexas iniciais. Do lado, em folhas separadas, já estavam prontas
as iluminuras coloridas.
‐ Será um livro lindo, ‐ disse o Artífice, estudando o trabalho delicado. ‐ Quer que eu faça a capa e os
fechos?
‐ Quem recusaria o seu trabalho, Artífice Geleon! Acho que o Amigo dos Livros ficará feliz se você
também ajudar ele. E o Narrador também. Se bem que, ‐ Pintor sorriu, ‐ não deve ter sido só por isso
que você veio, Artífice.
Geleon ficou desesperadamente vermelho. Sem saber aonde olhar, ele tirou do bolso uma pequena
caixa de madeira negra entalhada e estendeu‐a ao Pintor.
‐ Aqui. É um presente de casamento. Para Ierne
Pintor riu.
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‐ Isso não é novidade para mim. Seria eu cego e surdo? Como deixaria de saber que vocês tem um
acordo? Mas para qualquer um é lisonjeiro tornar‐se parente do Artífice. E eu estou feliz, mesmo que
seja difícil eu me separar da filha ‐ não tenho outras crianças. E ela ainda é uma dançarina, poucas se
comparam a ela. O próprio Mestre gosta de olhar a dança dela no dia do Novo Sol e na festa do Começo
do Outono... Bem, se a filha concorda ‐ que seja assim. No final do verão começaremos a preparar o
casamento, e no dia do Começo do Outono será a festa. Vamos, beberemos mel pela ocasião!
O presente do Artífice não tinha preço ‐ não era porque o metal e as pedras eram caros, não era isso que
os Elleri valorizavam. Acontecia um cálice de madeira entalhada ter mais valor que um colar de pedras
preciosas. E aqui – no entrelaçamento dos finos fios prateados cintilavam, como coágulos de neblina, as
pedras da lua. Todos já viram o presente do Artífice e falavam que o enfeite precioso deixará Ierne
ainda mais bela quando ela for dançar no casamento. E diziam ainda que será um lindo casal – mesmo
que o Artífice fosse dos Mais Velhos, mas a inspiração preservou a sua juventude, e somente nos olhos
notava‐se a sabedoria antiga. E Ierne sempre foi famosa por sua beleza.
No meio do verão foi preciso forjar armas, nem se pensava mais no casamento. O Artífice não
trabalhava mais com prata, não polia pedras – criava somente espadas e escudos, elmos e malhas de
metal. Ele não os enfeitava ‐ não tinha tempo. Só uma espada ‐ leve e prática – tinha um cabo
lindamente decorado. A espada que ele deu a Ierne.
Os combates em Ast Ahe eram cruéis. Aqui, pela primeira vez, os Imortais encontraram os Ahere,
Chamas das Trevas, demônios do Fogo Escuro ‐ Valaraukar. Maiar quase recuaram, mas os
comandantes do Exército da Luz não desistiam facilmente.
E a fortaleza foi tomada.
Gorthaur cavalgava para o norte, para a cidade de madeira dos Elfos das Trevas. E, mais velozes que ele,
os Espíritos do Fogo voavam num vento ardente em direção a Helgor, e atrás, parecia‐lhe, soavam os
passos pesados do exército de Valinor.
‐ ...Não, Gorthaur. Eu compreendo a sua preocupação; mas Mestre disse que os Valar vieram a Arta por
amar o Mundo e pelos Elfos e Homens. Ele disse assim, e eu acredito nele. Eles não farão mal a nos; e
nos lhes explicaremos, e eles entenderão. Nos não fazemos mal a ninguém, para que nos matar? E como
é possível ‐ matar? – O Pintor deu de ombros e sorriu. ‐ Não se preocupe, vai dar tudo certo...
‐ ...Aonde é que eu irei, Gorthaur? Veja – as espigas estão maduras, o tempo da colheita está próximo: a
terra diz – um ou dois dias a mais e poderemos recolher o trigo... As maças estão amadurecendo
também – tome, experimente! O gosto está diferente esse ano, não é? Veja só o que inventaram:
guerrear bem na época da colheita! É besteira tudo isso. Não irei a lugar algum: perderemos o trigo, dá
pena...
Mesmo assim, muitos foram embora. E muitos ‐ ficaram; e obrigá‐los à força a abandonar os lares deles,
a terra deles ‐ Gorthaur não podia. E também na alma dele ainda vivia a esperança de que realmente os
deixarão em paz. Talvez ele mesmo tenha se exaltado. Soltou os Balrogs em cima deles, como se tivesse
esquecido ‐ como ele tinha medo de ir para o estranho e desconhecido Norte – até o Inimigo. Não é nada
estranho que eles tenham se armado: o próprio Gorthaur então, se acontecesse algo, não pensaria duas
vezes antes de usar o punhal...
Mas os Balrogs, mesmo que sejam vivos ‐ e tem‐se pena de que muitos morreram ‐ não são Homens...
Realmente, os Grandes não devem fazer mal aos Elfos: é como ferir uma criança, vão entender!.. A
mente dizia ‐ está certo. O coração batia como um pássaro de asas quebradas... “Talvez, eu estraguei
tudo? Por quê o Mestre não me impediu? E porque ‐ deveria impedir... Ele simplesmente não achava
que eu fosse uma criança estúpida e inábil. Só que eu, pelo que se vê, sou exatamente isso. Depois da
morte de tantos guerreiros – será que eles vão ouvir o Mestre? Desejarão entender? Acreditarão?..”
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‐ Ouça, Gorthaur, ‐ o Andarilho de olhos dourados, Gellair dizia, alongando um pouco as palavras ‐ eu vi
muitas terras e muitas tribos... Você diz ‐ guerra; mas não ouvi essa palavra de mais ninguém. Você diz ‐
crueldade; mas eu nunca vi a crueldade. Não, eu acredito; mas acho que se falar com eles, eles irão
compreender. Acredite, eu falei com muitos.
‐ Você falava com Elfos. Eles não são Elfos nem Homens.
O Andarilho sorriu:
‐ Mas o Mestre também é um Vala, e você ‐ Maia... Vocês não se parecem conosco? Não nos
compreendem? Querem uma guerra?
‐ Mas nos queríamos se tornar iguais a vocês!
‐ E os outros Valar? Eles não adotaram formas semelhantes às formas dos Elfos e Homens para melhor
nos entender? O Mestre disse isso, você não acredita nele? – o Andarilho sorriu novamente: haveria
pelo menos um que não acredite no Mestre? Que piada!
Colocou a mão sobre o ombro de Gorthaur, disse, tranqüilizando‐o:
‐ Não acontecerá nada. Eles vão entender, Gorthaur...
...Quando a primeira casa pegou fogo, e as chamas correram alegremente pela parede de madeira
entalhada, ele ficou parado por alguns instantes, e depois correu na direção deles e exclamou, com dor e
incompreensão:
‐ Para que?.. Para que vocês estão fazendo isso?.. Parem, ouçam... Nos fizemos‐lhes algum mal?
Por algum tempo, os Maiar o ignoraram; depois alguém disse, fazendo uma careta, ‐ o que esse ai está
falando... – puxou a espada da bainha. O Andarilho ficou petrificado.
‐ Não... ‐ a voz dele abaixou até um sussurro. ‐ Não... não pode ser...
Ele não teve tempo de falar mais nada.
A cidade de madeira, sem muralhas, queimou. Foi queimada também a casa do Pintor. Ele mesmo foi
assassinado na soleira, e o incêndio da casa foi a sua pira funerária. Algum Maia estudava, curioso, os
sinais esquisitos do volume grosso e os desenhos divertidos, mas Tulkas arrancou o livro e atirou‐o no
fogo, e o Maia ganhou um belo safanão, para não se distrair dos grandes feitos.
...O Mago desmontou com dificuldade e desabou nos braços dos amigos que acorreram. Abriu os olhos
negros anuviados pelo sofrimento:
‐ Eles... não se apiedam... de ninguém... Você estava certo, Gorthaur... perdoe por não termos
acreditado... Mestre... Ali não há... mais... ninguém... vivo... só eu... para chegar a tempo... contar... Gellain,
Gellain, minha estrela de neve... O que eu fiz, por quê não te mandei ir... Você a defenderia, Mestre, sim?..
Terrível era esse sentimento de completa impotência. Te consideram onipotente ‐ e você pode confiar
somente na força dos braços e na espada afiada... E é possível proteger, possível defender ‐ possível, se
arrancar do corpo de Arda um pedaço de carne... e você não tem forças fazer isso ‐ ela é viva e sentirá
dor...
Ele tentou falar com os irmãos dele por pensamento. Não lembrava direito o que houve depois: uma
onda de ódio desabou de repente sobre o pensamento dele, ódio a ele mesmo e aos discípulos dele... Ele
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não poderia derrubar essa muralha. E os infinitos dias e noites do cerco eram o adiantamento do fim
inevitável, que transformava a espera em tormento...
Aqueles que chegaram à fortaleza de Helgor levaram pouco consigo ‐ agora as armas eram o bem mais
precioso. Conseguiram salvar alguns poucos livros. Daquela, feliz, inacreditável como delírio, vida, o
Artífice conservou somente o anel com serpentes – Anel do Discípulo; Ierne ‐ uma grande conta que
lembrava um olho amendoado ‐ agora ela levava no pescoço. Eram todos os tesouros.
O forte de Helgor era agora o último refúgio e fortaleza dos Elfos do Escuro. O cerco não poderia ser
muito longo – eles não eram bons combatentes, e eram poucos também, e ninguém quis ir embora. No
dia anterior ao Início do Outono, numa quieta noite de lua cheia, o Maia Gorthaur estava sobre uma
rocha, olhando para o acampamento embaixo... “São tão poucos. Mestre, você não queria que eles
conhecessem o ódio – e eis o pagamento. O que valem as espadas deles, se eles não sabem matar... Você
pensava – eles irão à sua ordem, e veja – não quiseram te abandonar... Parece que o Artífice Geleon
deveria ter feito primeiro uma espada e somente depois – um anel...”
...Só agora eles começaram a entender o sentido da palavra “guerra”. Esse conceito, que antes parecia
uma história de terror, agora se tornou uma realidade mais terrível ainda. Aquilo que eles julgavam
uma brincadeira, exercício de força e habilidade, revelou‐se indispensável para sobreviver; tudo o que
eles sabiam, além disso, tornou‐se inútil, pois não os ajudava a permanecerem vivos. E o mais
necessário de tudo era aquilo que nenhum deles sabia fazer e nem era capaz de fazer: matar.
‐ ...Vão embora. Todos. Agora mesmo. Sem demora.
‐ E você, Mestre?
‐ Eu... irei também. Depois.
Aquele que Vê baixou o olhar:
‐ Você não sabe mentir. Você achou que nos o abandonaremos, fugiremos, salvando a própria vida? Por
quê nos humilha, Mestre?
‐ Entendam, é necessário!
‐ Eles o matarão, como mataram o Andarilho.
‐ Eu sou imortal, vocês ‐ não. Eu ordeno...
‐ Você não pode, ‐ pela primeira vez, os olhos do Armeiro o encaravam com um desafio sombrio. ‐ Nos ‐
somos Homens, e temos o direito de fazer a nossa escolha!
Ele se sentia perdido. Pela primeira vez, teve pena de não ter poder sobre eles, de não poder fazê‐los
obedecer às suas ordens. O pensamento era terrível, mas cem de vezes pior era saber o que farão com
eles se eles ficarem em Helgor. Ele se voltou àqueles dois que chegaram as terras do Norte há pouco.
Assim acontecia as vezes: os Elfos se embrenhavam nas florestas sombrias e encontravam a cidade de
madeira – e acabavam ficando entre os Elleri Ahe. Dois irmãos, Gelnor e Gelloth, cabelos acinzentados e
olhos claros, estavam de mãos dadas. Havia algo de criança nos rostos deles; até mesmo a jovem Artais
dos que Ouvem a Terra agora parecia mais velha. Mas, respondendo a sua pergunta silenciosa, eles
falaram em uníssono – não.
‐ Mestre, ‐ adicionou Gelnor, tentando encontrar as palavras certas, ‐ nos tentamos ser dignos de ser
chamados de seus discípulos. Talvez não tenhamos entendido tudo o que você nos disse, talvez
tenhamos cometido erros. Mas diga, como poderíamos abandonar os nossos amigos numa má hora?
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Sim, certo, não sabemos ainda combater, não poderemos protegê‐los. Ainda não sabemos muitas coisas,
mas o Caminho foi eleito. Perdoe, não iremos embora.
‐ Vocês ainda não viram nem morte, nem sangue. Se...
O Menestrel ficou ruborizado:
‐ Se for preciso, nos juraremos! Eu juro...
Ele o interrompeu com um gesto:
‐ Não. Não se apresse a falar por todos. Se esta é a sua decisão ‐ escolher por si mesmos ‐ eu não tenho o
poder de mudá‐la, ‐ a voz do Mestre soava amarga; ele baixou os olhos. ‐ Mas que cada um reflita e pese
tudo. Eu não os amarro com um juramento. Eu peço, ‐ ele destacou essa palavra, ‐ somente uma coisa:
não julguem aqueles que continuarem vivos.
E pouco tempo depois Geleon voltou e disse – baixo:
‐ Nos ficaremos. Você e nos temos somente um caminho. E aquele que abandona o mestre numa hora
má – seria ele digno de ser chamado de discípulo?
“Somente uns quatro meses ‐ e como ficaram mais adultos. Até os dois mais jovens ‐ os mais pequenos
mesmo. Crianças. O que mais é que eu posso...”
‐ Chegou a hora. Vocês devem partir.
Silêncio. Depois Naure começou a falar:
‐ Por quê? Por quê devemos ir justo agora, quando aconteceu algo assim? Agora, cada espada é
preciosa!
‐ Há coisas mais valiosas do que uma espada. Tentem entender. Vocês, provavelmente, acham agora que
eu sou terrivelmente injusto, que sacrifico todos os outros por vocês. Não é assim, acreditem! Sim,
vocês sabem o que eu esperava de vocês, mas infelizmente não tive tempo de fazer nada, e quem sabe
quando poderei ajudá‐los novamente. Eu prometo – assim que a guerra acabar, eu os encontrarei. E
agora ‐ vão. Eu protegerei os outros, não tenham medo. Eu sou um Vala, e ainda tenho poder sobre os
elementos. Mas eu quero ter certeza de que...
Ele olhou‐os. “Não acreditam. Quem você está tentando enganar?”
‐ E por isso, vocês farão um juramento. Que irão embora. Farão aquilo, para o que foram eleitos. (“Cruel,
vil e cruel! Pobres crianças...”)
Eles beijavam em silêncio a lâmina gélida da espada, ajoelhando‐se e depois ‐ uns em voz alta, uns
quase sem voz repetiam ‐ em nome de Arta. Acabou. Agora está melhor.
‐ E, aqui, recebam os meus presentes. Cada um deles ajudará vocês a desenvolverem os poderes ainda
adormecidos. Eu não tive tempo, como vêem. E esperar até nos encontrarmos novamente ‐ quem sabe
quando isso irá acontecer? Só não desistam. Esses símbolos ajudar‐lhes‐ão a ser uma única força,
sempre ouvir e compreender uns aos outros, ajudar sempre. Encontrar, caso se perderem, lembrar, se
esquecerem. Isso ‐ é poder. Isso é tudo o que eu posso lhes dar...
‐ Naure ‐ você é o mais velho. Terá de unir... aqui está o seu símbolo...
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Bracelete, feito de um único cristal de morion, pulsante, como se dentro dele batesse um coração. No
centro do circulo vermelho, onde raios quase invisíveis se encontravam, no ar surgiu a runa Erath, runa
do Fogo, símbolo do Movimento e da Criação.
Moro ‐ olhos azuis‐escuros da noite, amargos. Ele ia sozinho. Orien ficava.
‐ A você ‐ determinar o caminho.
Pesada estrela de aço enegrecido com nove pontas. Em cada raio ‐ uma runa. A dele ‐ Cioth, runa do
Caminho e da Iluminação. O mesmo símbolo, em prata, no simples anel de ferro.
Ollo. Um cristal azul‐transparente numa corrente fina, runa Helre riscada com fogo frio: Purificação e
Clareza da mente, símbolo do Gelo. O jovem abaixa a cabeça dourada ao receber o presente, e ao
levantar já não tira mais os seus olhos estranhos ‐ o céu refletido num rio fundo ‐ do rosto do Mestre.
Allua ‐ chama da vida, a luz que acende as outras almas. Uma lisa pedra oval, cor de vinho ou de sangue,
dentro se debate uma faísca vermelha. E no medalhão de obsidiana ‐ runa da Vida e do Renascimento,
signo da Terra, signo de Arta ‐ Erth. A jovem estremeceu e sussurrou: “Sangue...”
Broche‐gota azul, no qual, das profundezas, no cruzamento de duas pétalas ‐ passado e futuro ‐ brilha
Te‐Esse, Água eterna, correnteza do Tempo.
‐ Isso é seu, Onnele Ciola.
‐ Um gole de água... ‐ sorriso triste.
‐ E isso ‐ para você, Elhe.
Não há mais palavras. Resposta quase inaudível:
‐ Agradeço.
E só.
‐ Aldh...
O jovem deu um passo pra frente. Fez um movimento brusco com a cabeça, como de costume, para tirar
uma mecha rebelde da testa. Impetuoso como o vento. Assim era também o seu signo ‐ Ol‐aer, runa das
Asas e do Vento. Runa do Pensamento ‐ e o arisco falcão prateado com olhos de ametista.
‐ Minha esperança, Ayoni...
Uma folha de bordo, um anel verde‐dourado com a mesma pedra ‐ grande demais para os dedos finos
da menina, ‐ e a runa da Esperança e da Luz, Aeth.
‐ E você, Dene.
Numa outra hora, isso provavelmente teria graça ‐ um menino e a runa da Força, runa do Ferro Tor‐en.
Fivela com a imagem de um dragão. O menino pegou‐a – sério, tentando parecer mais adulto ‐ e
respondeu com voz propositalmente grave:
‐ Eu farei tudo, Mestre.
E só. Como está vazio na alma, como dói...
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‐ Agora, Onnele, você sabe como ela é ‐ a morte. Você viu.
‐ Sim. Qualquer que seja a liberdade lá, além da fronteira, a vida é bela. E não se deve partir antes da
hora... Eu estou errada? Mas, parece, é impossível partir antes de fazer tudo o que está ao seu alcance
daquilo que te foi destinado. A alma será então fraca e inútil demais para preservar força, vontade e
forma, e ainda mais para fazer... E a morte é amedrontadora, mesmo quando sabe...
‐ Mestre, ‐ a voz baixa e cortante, como vidro, Elhe, ‐ é possível retornar? Se der o passo para além da
fronteira do mundo?
‐ Não sei... Mas se há escolha... Se precisar, se deixou algo por fazer, não fez, não finalizou, e não há mais
ninguém que... Provavelmente pode. Por quê?
‐ Só para saber.
Não conseguiria mais nada. Ele sabia.
‐ Está bem, chegou a hora. Agora, tudo depende de vocês...
Ela parou na frente do espelho e olhou longamente o próprio reflexo. Depois mexeu nos cabelos curtos,
tirou a comprida, pelos joelhos, malha de aço enegrecido. É pesada demais, prende os movimentos. Mas
o elmo certamente será útil...
‐ Elhe!...
Allua escancarou a porta do quarto da amiga. O jovem frágil, de costas para ela, estremeceu e virou‐se.
‐ Elhe?.. ‐ ela parou, estranhando. O jovem tirou o elmo, e Allua sorriu:
‐ Fica lhe bem... nem dá pra reconhecê‐la... ‐ ficou séria. ‐ Acha que isso vai ser útil no caminho?
Elhe não respondeu, somente mordeu o lábio.
‐ Você... vai?
‐ Não, ‐ baixo e resolvido.
‐ Por quê?.. Mas... E o Mestre, ele sabe?
Elhe balançou a cabeça, negando.
‐ Mas é preciso contar... ‐ Allua estava completamente perplexa.
Os olhos verdes ficaram frios e duros.
‐ Você não falará para ele.
‐ Elhe! Esse é o nosso dever...
‐ Eu voltarei, ‐ breve como uma punhalada.
‐ Ouça, ‐ Allua encostou a porta e falou, séria e triste, ‐ você entende... É guerra, e a morte não escolhe...
‐ Sei. Eu não partirei.
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E de repente atirou‐se a Allua, apertou impetuosamente as mãos quentes dela com os dedos gélidos e
respondeu, rápido e baixo:
‐ Entenda, acredite ‐ sei, sei tudo, vejo, mas não posso, não posso ir... Perdoe ‐ talvez ele também
perdoará ‐ eu devo ficar. Eu voltarei; não sei como ‐ só sei: será assim. Não pare. Não conte a ninguém. E
a ele também ‐ não conte. Ele não deve saber. Eu te peço ‐ deve ser assim, acredite...
Allua ficou calada, olhando para a parede.
‐ Você está certa. É assim... como eu não percebi antes... Não tenha medo, não falarei a ninguém, a
ninguém e nunca. E não explicarei nada, se perguntarem...
‐ Sim, sim! Que acusem de traição, que amaldiçoem ‐ eu não posso de outro jeito, não posso! Se eu não
ficar aqui agora, eu deixarei de ser o que sou, a minha força morrerá, e eu serei um vazio inútil, e que
utilidade teria eu assim...
‐ Deixe, não fale nada. Eu entendo. Mas nos devemos ser ‐ nove. Dificilmente conseguiremos fazer algo,
se pelo menos um partir.
‐ Eu voltarei, juro! Allua, você me conhece! Você acredita? Acredita?
‐ Eu sei e acredito. Tudo bem, então. Esperaremos.
‐ Perdoe‐me. E peço...
‐ Não precisa falar. É melhor não dizer nada...
‐ Allua, Allua... Eu tenho tanto medo...
‐ Naure, eu preciso te dizer algo. Elenhel nos alcançará mais tarde.
‐ Por quê ela não vai junto com todo mundo?
‐ Ela está doente. O Mestre pediu para avisar que temos de ir sem ela. Daqui a uns doze dias ela vai nos
encontrar.
‐ Bem, sendo assim... Então, partiremos de madrugada.
Oito ‐ foram. Uma ‐ ficou. Quando ele lhe falava as palavras de despedida, ela ficou de cabeça baixa,
escondia os olhos, já sabendo ao certo, que não poderá obedecer. E não se atrevia contar‐lhe isso.
Dedos finos não segurarão a espada pesada.
Mas eu não partirei – e não importa o que seguirá.
A armadura é pesada demais para os ombros de menina,
Mas ficarei ao seu lado, serei o seu escudo.
Ela sabia que era a sua última canção, que ninguém cantará. “E depois vocês retornarão”, ‐ dizia ele, e
essa foz suave, essas palavras confiantes poderiam enganar a qualquer um ‐ mas não a ela, que Via. Doía
tanto, como se, ao ficar, ela o traísse, mas não havia outro jeito ‐ porque ela Via. Porque obedecer
significava matar o próprio coração. Porque ela sabia, o que está para acontecer.
... Poucos eram aqueles que sabiam manejar uma espada. A pena é mais costumeira para as mãos do
escritor, e ao bardo serve melhor o alaúde. E batalha sangrenta não é lugar para as mulheres. Mas
ninguém recuou; e o próprio Melkor entrou no combate a frente dos Elleri Ahe.
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E então, sobre uma rocha, o Menestrel Gelren gritou:
‐ A última canção é para você, Alado!
Os seus olhos brilhavam com inspiração, e o vento fazia voar os cabelos cor de cinzas, e uma estrela
alada brilhava em seu peito. Ele começou a cantar. E todos pararam, ouvindo‐o. Ele cantava sobre Arta ‐
o coração trêmulo nas mãos carinhosas do Escuro, e sobre os outros mundos, que são a vida e a
grandeza do Universo. E cada um ouvia no canto dele algo próprio, e as mãos soltavam as armas, e
surgiam sorrisos nos rostos manchados de sangue, e o Escuro não parecia mais amedrontador e hostil,
pois só no Escuro há Luz...
Ninguém jamais compôs uma canção assim em Arta, e jamais comporá, a menos que as Muralhas da
Noite sejam derrubadas e os corações dos homens se abram à Música dos Mundos e ao Chamado de
Ëa... Mas vala Tulkas, livrando‐se do feitiço, gritou:
‐ Por quê estão ouvindo?! Matem!
E o Maia que estava mais próximo do Menestrel, correu e golpeou‐o. Aquele não teve tempo de se
proteger. Melkor atirou‐se para frente, e a espada negra desceu sobre a cabeça do Maia.
‐ Vá às Mansões de Mandos!
Vala curvou‐se sobre o discípulo. A sua capa negra se transformou em asas, e essas asas esconderam o
moribundo dos olhos dos Imortais. E como se uma muralha invisível os cercasse: ninguém podia e não
se atrevia a aproximar‐se, apesar do combate em volta.
A estrela prateada no peito do Menestrel avermelhou‐se. “O sinal da morte súbita... Era isso então que
você levava sobre o coração, discípulo...” ‐ pensou Melkor.
Gelren sorriu:
‐ Pelo menos o encontrei mais uma vez, Mestre... Agradeço...
‐ Meu discípulo... – a voz do Vala falhava.
‐ Adeus... me perdoe... perdoe a todos nos... por aquilo... que acontecerá... Nos não conseguimos...
perdoe...
‐ O que você está dizendo... – Faltava‐lhe ar por causa da dor.
‐ Mestre... Não desista; Arta está em suas mãos... não se culpe de nada, Alado... Agora eu sei, estrela...
estou vendo...
A cabeça do Menestrel caiu. Os dedos que apertavam a mão de Melkor soltaram‐se. Morto.
Com cuidado, como se tivesse medo de acordá‐lo, Vala colocou o corpo do discípulo no chão, e passou a
mão sobre o rosto dele, fechando os seus olhos. O rosto de Melkor ficou imóvel.
‐ Durma, criança... – inaudível.
Ela via só uma coisa: esse rosto pálido, desfigurado pela ira e pela dor. O rosto de um condenado. Ela
sabia ‐ ele é condenado à vida, como eles – à morte, e a morte pareceu‐lhe misericórdia. Para ele. Para
ela ‐ covardia, traição. Mas ela não conseguia ser diferente.
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Depois, tudo foi rápido demais. Era muitos ‐ Maiar em vestes rubras, cujos olhos brilhavam com o fogo
sombrio da morte ‐ ela não teve tempo de compreender, mas notou mais um, que subitamente avançou
pela esquerda. E ela se jogou para frente.
Ela não sentia dor quando levou dois golpes pesados no peito. Só teve tempo de perceber que não tem
mais nem espada, nem elmo ‐ ela os atirou para longe momentos antes. Agora, não são mais
necessários. E depois uma mão a segurou, e ela se surpreendeu ‐ estou caindo?..
O rosto sobre ela – perplexo, preocupado. Ele tirou o elmo da cabeça do pequeno guerreiro. O rosto de
Elhe parecia o de uma menina, inacreditavelmente jovem por causa dos cabelos cortados. Ela tinha
pensado ‐ para que eles prestam agora? Nem entram sob o elmo... E somente suspirou quando as
madeixas pesadas caíram no chão numa onda de luar.
Uma mecha, mais comprida, escorria pelo pescoço como uma serpente; ele quis acertar os fios ‐ um
gesto absurdo, inútil ‐ e só agora percebeu que ainda estava segurando a espada.
“Por quê você... eu pedi, eu mandei ir... por quê...”
Elhe respirou com dificuldade, o rosto empalidecia, gotas de suor brilhavam nas têmporas.
‐ Você... não..foi ferido?.. ‐ expirou ela.
A dor explodiu em duas bolas de fogo – perto do pescoço e no peito, à esquerda.
‐ Mel kori...
Ela tentou sorrir‐lhe ‐ através da dor, através da escuridão sangrenta que se aproximava. E depois a
Estrela brilhou. O último pensamento desesperado foi sobre o retorno... e o mundo deixou de existir.
Ave, estrela, vento, chuva outonal,
Eu voltarei, com nova forma e novo nome...
Meu coração, serei o seu escudo.
Daqui a milênios – voltarei, eu sei...
Perdoe.
Ele não lembrava direito daquilo que se seguiu. A sua espada estava coberta de sangue dos inimigos até
o cabo: os Maiar também conhecem algo que se assemelha à morte. Ele recuava, olhando para os
inimigos com olhos cegos de dor e raiva, e esse olhar a muitos parecia mais terrível do que a espada
negra que jamais errava o golpe. E Maia Gorthaur lutava lado‐a‐lado com ele. Por breves instantes,
Ahere conseguiram reter os Imortais. Melkor virou‐se para Gorthaur:
‐ Vamos. Rápido.
Na sala do trono, ele entregou o Livro de Arta ao discípulo.
‐ Vá, Orthenner.
‐ Eu não sou um traidor, Mestre. Eu não te abandonarei.
Melkor olhou para ele.
‐ Eu ordeno, eu peço... Será que não entende o que acontecerá agora? Mesmo se você ficar, não
resistiremos. Vá. Eu voltarei. Daqui a muito tempo. Mas ‐ voltarei. Eu prometo.
‐ Que me julguem!
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‐ Eles precisam é de mim. Você ficará em Endorë. Assim deve ser, Discípulo, ‐ a voz de Melkor era cruel.
‐ Vá. É a única coisa que pode fazer para me ajudar. E ainda: eles não devem pegar o livro. É a memória
de Arta, Discípulo.
Por alguns instantes, Gorthaur imaginou ver uma pesada corrente prendendo as mãos de Melkor.
‐ Mestre!
Sumiu. Melkor repetiu, surdamente:
‐ Vá.
Na porta, o Discípulo virou‐se. A ultima coisa que ele viu ‐ Melkor, parado no meio da sala, tenso,
segurando a espada na mão.
Ierne surpreendia‐se, como ela conseguiu resistir por tanto tempo? Talvez havia algum feitiço na
espada de Geleon? Ou a ira dava‐lhe forças? O seu corpo forte estava acostumado à dança e a
movimentos bruscos, ela escapava dos golpes facilmente e não sentia cansaço por muito tempo. E
depois, uma mulher surgiu na sua frente, bela e impiedosa, com olhos negros mortos, e Ierne
compreendeu que não conseguirá se defender. E, mesmo assim, ela tentava resistir, mas a espada
cortou e a armadura de couro, e a roupa, e o corpo. O corte estreito rapidamente encheu‐se de sangue.
Um segundo golpe a atirou no chão. A voou para longe. “O fim”, ‐ sem um mínimo medo pensou ela,
vendo a lâmina ensangüentada encostada na sua garganta. Mas esta de repente desviou. Algo novo, vivo
brilhou nos grandes olhos negros. A mão forte ergueu‐a.
‐ Não tenha medo... Não faremos nada com os prisioneiros, eu prometo... Está doendo, sim? Consegue
andar?
Ierne fez um sim. A guerreira levou‐a para baixo, aos destroços do portão, onde já havia uma dúzia de
Elfos do Escuro, cercados de guardas.
Ele combatia como um animal acuado os que vieram da terra abençoada de Aman. Por um milagre eles
conseguiram resistir por tanto tempo. Os nove saíram à noite ‐ ou melhor, ele achava que foram todos
os nove. Depois entendeu que não... E no combate a sua raiva aumentava por causa da amargura do
sentimento de que o sacrificaram, como a todos os outros, por esses nove. O Mestre o sacrificou, e ele o
respeitava tanto... Não foi graças a ele que eles resistiram por tanto tempo? “Mestre você escolheu as
pessoas erradas... Eu deveria ser o Guardião... Mestre, mas por quê é que não me escolheu?..”
Entre os discípulos de Tulkas, eles eram os melhores ‐ dois irmãos, Guerreiros. Sombriamente belos,
corajosos e fortes, no combate eles se igualavam ao próprio senhor. Quando eles combatiam juntos,
ninguém poderia subjugá‐lo. Os olhos deles luziam com chamas escuras de batalha quando Tulkas
falava aos Maiar dele sobre a marcha para o norte. E o Guerreiro soltou um sonoro grito de guerra
quando Tulkas nomeou‐o seu general.
...E o exército do Inimigo foi destruído. Somente os últimos defensores ‐ os Elfos Negros ‐ estavam em
frente aos portões das mansões escuras, em silêncio, e havia morte nos olhos deles.
Eles caíam, defendendo desesperadamente ao seu senhor, e aos poucos nos espíritos dos Guerreiros
surgia à admiração com a coragem dos inimigos, e a Guerreira desviou a mão, e não matou a ferida ‐
uma guerreira igual a ela mesma. Assim ela conheceu a piedade.
E o Guerreiro já havia engajado no combate com o último dos Elfos. Aquele estava ferido, e defendia‐se
com dificuldade.
‐ Renda‐se! ‐ gritou Maia. ‐ Renda‐se, e eu juro ‐ você viverá!
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Mas o Elfo balançou a cabeça. Então o Guerreiro arrancou a espada das suas mãos enfraquecidas.
Aquele caiu. O Guerreiro curvou‐se para ajudá‐lo a se erguer, mas o Elfo inesperadamente agarrou a
lâmina da espada dele, e cortou a própria garganta num movimento brusco.
“Por quê?” ‐ desnorteado, quase ofendido, pensava Guerreiro. “Eu cumpriria a minha palavra... Por quê?
Será que ele me odiava e me temia tanto?” Mas nos olhos escancarados e mortos não havia nem medo,
nem ódio ‐ somente dor e compaixão.
Eles irromperam na fortaleza. E Tulkas lutou corpo‐a‐corpo com Melkor, e os Guerreiros, olhando o
combate, viam ‐ o Vala Escuro é bem mais hábil. E mais honesto. As espadas quebraram, mas eles
continuaram a luta. Alguns segundos ficaram imóveis, e poderia‐se dizer que eram dois irmãos
abraçados. Mas, lentamente, Tulkas, cada vez mais vermelho, começou a ajoelhar‐se. Parecia que o
próprio olhar do Inimigo o faz curvar‐se. Guerreiro deu um empurrão no ombro da irmã:
‐ Olha só aquilo! Que poder!
Aquela concordou. Olhava.
‐ Se ele vencer Tulkas, nos teremos que ir ‐ assim é a lei da luta honesta!
Mas não houve luta honesta. Alguém guinchou: “Por quê estão parados, para cima dele!”
E o exército dos Valar atirou se sobre Melkor e quando a multidão se abiu, ele estava no chão ‐
espancado e amarrado. Tulkas chutou‐o com raiva e virou‐se para os discípulos, esperando elogios
maravilhados. Mas ouviu em resposta somente um taciturno:
‐ Isso é contra a honra...
O rosto da Ira de Eru alterou‐se, mas ele ficou quieto. Mas não esqueceu.
E então foi trazida a corrente de ferro, habilmente forjada por Grande Aulë. O mais poderoso dos
feitiços estava nela, e ela era tão pesada que até Tulkas, o mais poderoso entre os Valar, a erguia com
dificuldade. E o nome dela era Angainor.
E Aulë trouxe duas algemas de ferro em brasa, e fechou‐os para a eternidade nos pulsos de Melkor.
Aquele se debateu, mal segurando o grito; mas Tulkas e Oromë seguravam‐no bem. Daquela hora em
diante, a dor não cessava e as queimaduras não se curavam: essa era a maldição do Único e do Manwë.
Valar vedaram os olhos dele. Ele não entendia o porquê; e pensou, não sem fundamentos, ao fato de que
eles temiam o olhar dele, e também queriam humilhar ainda mais o rebelde. Mas Melkor descobriu a
verdadeira causa disso somente muito tempo depois. E assim o fizeram ir até os portos, onde os navios
de Valinor já os aguardavam; e ele ia ereto e pisava firme, apesar da dor e da corrente, que o puxava
para o chão e parecia tornar‐se mais pesada a cada passo. E em seu espírito Melkor jurou que os Valar
não ouvirão nem seus gemidos, nem pedidos de clemência, que nenhum sofrimento o fará humilhar‐se
perante eles e nenhuma ofensa lhe arrancará uma palavra que seja. Mordendo os lábios até sair sangue,
ele repetia este juramento rolando pelo chão de tábuas, impotente e preso. E com grandes festas os
Valar levaram o prisioneiro para a Terra Abençoada dos Imortais.
Gorthaur não foi encontrado. Diziam depois que ele, temendo a ira dos Valar, escondeu‐se numa das
cavernas da Fortaleza de Melkor, e por muito tempo permaneceu lá, tremendo de pavor e não se
atrevendo a abandonar o esconderijo, mesmo depois da partida dos Imortais. Mas foi assim: ele seguiu
para o castelo de Ahanagger, no oriente, levando consigo o Livro. As linhas sobre a Guerra dos Poderes
de Arda estavam inscritos nele com letras de fogo. E lendo essas palavras, Gorthaur sentia a dor do
Mestre e entendeu aquilo que foi oculto deles dois até aquela hora. E o maia Negro amaldiçoou a si pela
impotência e pela cegueira.
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...Terminada a batalha, Oromë foi até os Elfos, e escolheu três dentre eles: Ingwë, Finwë e Elwë, que
depois se tornaram reis. E ele os mandou segui‐lo, para que eles fossem os enviados do Quendi em
Valinor e vissem a beleza eterna da Terra Abençoada e, ao retornar, contassem isso aos seus povos...
O mar não estava calmo, e o navio balançava. Ouvia‐se pouco do porão, e o desconhecimento era o pior
de tudo. Ierne reclinou‐se cansadamente sobre o ombro do Artífice.
‐ Eis o casamento, ‐ disse ela tristemente. Artífice abraçou‐a em silêncio.
‐ Talvez, tudo ainda dará certo? Ela disse ‐ não farão nada aos prisioneiros... Talvez, ficaremos na
mesma cela. Não é verdade, tudo dará certo? ‐ Ierne olhou implorando para o Artífice, e aquele forçou
um sorriso. Alguém aproximou‐se e se sentou no chão ao lado deles. Amigo dos Livros.
‐ Ierne, não fique triste. O quer que aconteça ‐ estamos livres. Nos somos Mortais, entende? Nos
poderemos escapar do circulo da predeterminação. E eles não conseguirão fazer nada. Assim dizia o
Mestre, e eu acredito. E você?
‐ Acredito. Mas eu gostaria de viver um pouco mais.
‐ E eu também...
Um silêncio pesado. Subitamente, o Amigo dos Livros levantou‐se bruscamente. Os olhos dele
brilhavam.
‐ Mas vocês estavam por casar... Todos, vêm aqui!
Os outros os cercaram, sem entender o que está passando. E então o Amigo dos Livros, levantando as
mãos, pronunciou:
‐ Perante Arta e Ëa, Sol, Lua e Estrelas, de agora e para sempre eu os declaro marido e mulher!
Eram palavras da tradição. Ele só não pronunciou uma coisa ‐ “na vida e na morte”.
‐ Que seja assim!
E então, de repente, a segunda das mulheres presas ‐ quase uma menina ainda ‐ começou a chorar
torrencialmente: só agora ela compreendeu que tudo acabou, que ela nunca terá mais nada ‐ nem um
casamento destes. E o Amigo dos Livros foi até ela e afastou as mãos dela do rosto em lágrimas. Ele
disse baixinho:
‐ Por que você chora? Você é mais esbelta que uma árvore jovem, seus olhos são estrelas matutinas, o
seu sorriso é mais claro que o sol da primavera. Seus cabelos são como linho claro. Você é bela, e eu te
amo. Por quê chora? O resto é besteira. Eu te amo e me caso com você ‐ perante todos. Não chore.
‐ Está inventando, ‐ choramingou ela.
‐ Eu já menti alguma vez? E agora também falo a verdade. Acredite, por favor. Acredita, sim?
‐ Verdade?
‐ Claro, ‐ mentiu ele pela primeira vez na vida. “Estou inventando tão bem quanto o Narrador”. Acabou
aí o meu primeiro e último conto de fadas”.
‐ Agora vocês viram a Terra Abençoada, sua glória e sua grandeza, sua beleza e sua luz. O que dirão
vocês, filhos do Único?
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‐ Grande, ‐ finalmente rompeu o silêncio Ingwë, de olhos fechados ‐ não temos palavras, pois não temos
o poder de expressar aquilo que sentimos nos nossos corações...
‐ Não me chame de grande, ‐ sorriu o Maia suavemente, ‐ pois eu não sou mais do que o servo ou o
mensageiro dos Poderes de Arda, somente pó aos pés dos Valar e a sombra da sombra deles. Mas vocês
foram escolhidos não somente para ver Aman e falar com os seus povos sobre ele: uma sombra de
tristeza anuviou o sossego dos Poderes, e eu devo, pois essa é a vontade deles, falar com vocês sobre o
Inimigo.
‐ Inimigo? E o que é isso? ‐ perguntou Elwë.
‐ Saibam que o Inimigo é um renegado e um rebelde, que ele deseja destruir a beleza do mundo,
transformar os jardins em cinzas e os vales em desertos, secar os rios e libertar as chamas de Arda, para
o mundo se afunde no caos, e para que o Escuro eterno devore a Luz...
Elwë estremeceu, recuando um passo.
‐ Mas esse não é o pior dos planos dele. Saibam que ele desejou tirar‐lhes tudo o que lhes foi dado por
Ilúvatar, dando em troca a morte.
‐ O que é isso ‐ morte? ‐ os lábios de Elwë tremiam, como os de uma criança assustada.
‐ A morte os levará para fora dos limites do mundo, para o nada, para o vazio, e vocês se transformarão
em vazio, e todos os seus pensamentos e sentimentos, as suas criações e a própria essência se
transformarão em pó.
Eles ficaram calados, tentando compreender o que ouviram. Como assim? Tudo isso ‐ flores e arvores,
estrelas e relvas, e montanhas, e o próprio mundo ‐ existirá, mas eles não. Tudo ficará como está, só não
haverá mais eles, e nunca mais ouvirão o cantar do rio, não verão o céu límpido polvilhado de estrelas,
não sentirão o gosto das frutas, não respirarão o cheiro das ervas, não sentirão o vento no rosto... Como
é isso? Incompreensível e terrível: há tudo, não há somente você mesmo, e isso para sempre?
‐ Para... para que ele precisa disso? ‐ sussurrou Ingwë.
‐ A inveja está no coração dele ‐ inveja a tudo que é límpido e claro, a tudo que é inalcançável para ele. E
ele quer se elevar por meio da infelicidade de vocês, e transformá‐los em escravos, obedientes a ele ‐ a
voz do Maia tornou‐se ameaçadora. – O terrível é que ele corrompeu as almas de muitos, e eles se
tornaram seus servos, mas o medo das cruéis torturas a que ele submete os que o renegam é imenso, e
o agora o ódio deles está destinado ao mundo inteiro, principalmente a aqueles que foram antes do
mesmo povo que eles, mas negaram o caminho do Mal. E aqueles, cujas almas o Inimigo não conseguiu
escravizar, nos calabouços sombrios são submetidos a terríveis tormentos, que mutilam o corpo e a
alma; e assim o Inimigo cria os Orcs, cuja essência é uma zombaria dos belos Elfos, pois ele mesmo não
consegue criar nada, pode somente conspurcar e corromper as criações dos outros.
‐ Mensageiro... ‐ Elwë abaixou a cabeça; mechas longas de cabelos acinzentados esconderam o seu rosto
empalidecido. ‐ Responda, por que nos fala sobre isso aqui, nesta terra inalcançável para o Inimigo? Ou
o Mal já se infiltrou em Valinor?
Maia ficou por muito tempo em silêncio, observando os três com os olhos semicerrados. As suas
palavras atingiram o alvo. Finalmente, ele começou a falar, lentamente e com imponência:
‐ Os Poderes de Arda derrotaram o Inimigo numa guerra terrível, e os servos dele foram destruídos ou
se dissiparam como névoa maligna. Mas os Poderes não devem castigar, e sim fazer justiça; por isso o
Inimigo e aqueles que o serviram serão agora julgados pelos Valar. E como eles travaram esta guerra
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não pelo próprio sossego, mas pelas Crianças de Ilúvatar, tal como pelas Crianças de Ilúvatar eles
vieram há muito para Arda, para preparar‐lhes uma morada, então mais dignos entre os Eldar devem
falar a sua palavra neste julgamento: esta é a vontade dos Valar. Somente depois disso o Rei do Mundo
poderá declarar a sua sentença aos renegados. E eu vim para dizer‐lhes: que os seus pensamentos
agora sejam sobre o bem dos seus povos; fortaleçam os seus corações, expulsem os maus pensamentos
e sigam‐me, pois vocês deverão apresentar‐se aos Poderes em Máhanaxar.
Ele notou com satisfação, como brilharam os olhos de Finwë, que se mantivera calado ante então.
Parece que esse, silencioso, entendeu melhor do que os outros as palavras dele.
...O que fará a criança ao ver uma aranha pela primeira vez na vida ‐ monstro asqueroso, peludo, com
muitos pés? Uma ‐ fugirá apavorada e ficará chorando perto dos mais velhos. Outra ficará petrificada,
sem poder se mexer de medo ou entender o que vê. Terceira ‐ com a cruel coragem infantil esmagará o
inseto repugnante, para livrar‐se dele para sempre...
Eles colocaram Melkor perante o trono de Manwë. Com uma compaixão desdenhosa, Manwë encarava o
seu irmão mais velho, o mais poderoso dos Ainur. As zombarias de Manwë não tingiram o alvo: Melkor
permaneceu em silêncio. E o Rei de Arda mandou tirarem a faixa dos olhos do rebelde e disse:
‐ Agora você verá o que acontece com aqueles que se atrevem a desobedecer ao Único e aos Poderes de
Arda, que se atreveram segui‐lo e nos combater!
Do alto da Taniquetil, Melkor olhou pra baixo, para onde apontava a mão de Manwë. O seu rosto ficou
mortalmente pálido, e ele estremeceu de horror e dor, e o sofrimento era visível nos seu rosto, pois
naquele momento ele entendeu tudo.
Nem todos os Elfos do Escuro morreram nos combates. Aqueles que ficaram sobreviveram foram
aprisionados pelos Valar: nem Melkor, nem Gorthaur sabiam disso. Eles foram levados a Valinor no
mesmo navio que Melkor; e agora eles estavam lá, no sopé da Taniquetil, guardados por Maiar,
esperando o destino. Amarrados, com as roupas negras rasgadas, eles eram, ainda, belos, e os seus
olhos brilhavam como estrelas.
E o Vala orgulhoso caiu de joelhos e implorou o Rei do Mundo, seu irmão mais novo:
‐ Perdoe‐os! Eu tenho culpa de tudo, eu! Eu os fiz obedecer‐me, eu os guiei: faça o que quiser comigo,
mas perdoe‐os! Eu te imploro!
E Manwë sorriu friamente, olhando para o inimigo derrotado, e perguntou:
‐ Arrepende‐se, insignificante, daquilo que fez?
‐ Sim! ‐ Melkor gritou com desespero. “Talvez pagando esse preço poderei salvá‐los?”
‐ Reconhece a sabedoria e a grandeza dos Valar?
‐ Sim.
‐ Reconhece que com torturas e feitiços repugnantes você transformava os belos Filhos do Único em
Orcs asquerosos?
‐ Sim.
‐ Reconhece, impostor, que se nomeou o Senhor de Tudo o que Existe?
‐ Sim
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‐ Reconhece que veio a Arda trazendo raiva e inveja em seu coração, que queria dominar o mundo
inteiro, povoando‐o com as suas próprias criações repulsivas?
‐ Sim, sim, ‐ gemia Melkor, ‐ eu admito, eu reconheço tudo ‐ mas perdoe‐os! Tenha piedade ‐ e eu serei
um servo dos Valar!
E Varda perguntou:
‐ Admite que somente por inveja negra do Criador de Tudo o que Existe e desejando diminuir a
grandeza dele falava mentiras sobre os outros mundos?
‐ Admito, ‐ a voz de Melkor soava rouca; ele fechou o rosto com as mãos. “Como eu quero que eles não
ouçam isso, tomara que não vejam, tomara...”
‐ E queria enganar os Fieis com essas histórias, mesmo sabendo que antes de Arda não havia nada além
do Único e dos Ainur, e que para lá dos limites de Arda há somente o vazio e escuridão?
‐ Sim...
‐ E você não viu nada no vazio?
‐ Nada, ‐ suspirou Vala roucamente.
‐ Mais alto!
‐ Nada! ‐ gritou Melkor. ‐ Eu confesso, menti! Só os perdoem, perdoem, perdoem!
Depois ele não ouvia mais nem as perguntas, nem as próprias respostas. Ele só repetia: “Sim...” Sim,
Ilúvatar é o único Criador; sim, Melkor fazia somente o mal; sim, ele queria deturpar o plano da Criação;
sim, ele sabia somente destruir, mas não criar; sim, ele odiava todos os viventes; sim, as estrelas são
criação de Varda; sim, sim, sim... Ele negava tudo o que viu e o que sabia, ele se confessava culpado de
todos os crimes possíveis e impossíveis; ele já não entendia o que falava ‐ só um pensamento: agora os
devem perdoar, ele pagará com ele mesmo por eles, senão eles morrerão ‐ porque eles escolheram o
caminho dos Mortais... Melhor, que os Valar o condenem a tormentos eternos ‐ ele é imortal e não
conseguirá morrer, qualquer que seja a pena... Mas ficarão aqueles, que continuarão o que ele
começou... Ficarão...
Finalmente, o Rei do Mundo deu‐se por contente e fez um sinal para Tulkas. E melkor foi levado para
além dos portões dourados de Valmar, capital de Valinor. E no Conselho dos Grandes, Máhanaxar, os
Poderes de Arda acomodaram‐se nos seus tronos; mas Aulë não estava entre eles, e colocaram Melkor
no trono dele. E os servos dos Poderes, Maiar, reuniram‐se a mando de Manwë: ele queria que eles
também vissem e ouvissem tudo.
E assim disse Manwë, o Rei do Mundo:
‐ Repita tudo aquilo que nos disse. E que todos te ouçam.
E Melkor repetiu. Surdas e pesadas eram as palavras, ele falava com uma voz morta. E Valar, e Maiar, e
os três chefes dos Elfos que também estavam ‐ Ingwë, Finwë e Elwë ‐ ouviam e memorizavam.
Ele traia a si mesmo, para salvar os seus discípulos. E quando ele acabou, pensava somente em uma
coisa: eles não ouviram isso...
Manwë novamente fez um sinal, e os Elfos do Escuro foram trazidos até o Círculo do Destino, eram
vinte e um; e havia entre eles duas guerreiras. E, dirigindo‐se a Melkor, assim disse o seu irmão mais
novo, Manwë:
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‐ Os Valar são justos e piedosos. Nos ouvimos as suas palavras e vimos o seu arrependimento. Você será
perdoado e terá a liberdade. Será novamente um de nos, e ocupará por direito um dos tronos de
Máhanaxar. Os seus conhecimentos servirão aos Poderes, e aos Filhos do Único, aos Primogênitos, você
os dará, para compensar as suas maldades. Jure!
E Melkor jurou. E Manwë disse:
‐ Veja, agora está num trono como um igual. E assim será. Receberá o perdão dos Poderes, mas antes os
seus feitos serão um penhor das suas palavras.
E, apontando para os presos, adicionou:
‐ Mate os. Com as próprias mãos. O sangue deles pagará a sua culpa: mate.
O desespero cego abandonou Melkor; dor e ira deformaram o seu rosto, e ele urrou:
‐ Não!
Silêncio.
E no Círculo do Destino, perante o trono de Manwë, estavam os Elfos do Escuro; mas olhavam somente
para Melkor, o seu Mestre, e ele também olhava para eles. E com uma clareza assustadora entendia:
tudo foi em vão. Não haverá perdão nem clemência.
Então o Rei do Mundo falou:
‐ O que deve ser feito com aqueles que renegaram o Único e foram para o lado do Inimigo? O que nos
faremos com aqueles que desejaram a vossa morte, Filhos do Único? ‐ ele dirigia‐se aos três que
estavam agora ao lado do trono dele.
Intimidados pelo olhar do Rei do Mundo, os três baixaram os olhos. Mas de repente Finwë deu um
passo pra frente; seus olhos brilhavam, e a voz clara e tensa soava quase inspirada:
‐ Permita‐me dizer uma palavra, Manwë Súlimo, Rei do Mundo, senhor do céu! Eles merecem a mais
severa punição, e nada será cruel demais para eles. Os Grandes devem esquecer, nesta hora, a piedade
infinita, e que seja feita a vontade do Único!
Manwë concordou:
‐ Agora eu lhes direi as palavras do Único, que eu ouvi, e quero eu que todos as ouçam: as ervas
daninhas devem ser arrancadas com as raízes. Imensa é a piedade do Único, mas é terrível a sua ira.
Que os Valar sejam agora uma ferramenta dessa ira!
E Manwë pronunciou a sentença. E quando ele começou a falar, Melkor gritou: “Não!..” ‐ e caiu de
joelhos, estendendo as mãos acorrentadas num gesto de desespero.
Então soou a voz clara de Geleon:
‐ Não se humilhe, Mestre: eles não conhecem a piedade e a compaixão. Eles...
Mas Tulkas ergueu‐se num pulo, rosto escurecido de raiva, e ele fez o Elfo se calar com um tapa.
E Melkor, rangendo os dentes, levantou‐se e ficou ao lado dos seus discípulos. Ele ouviu a sentença até o
fim. E não pronunciou mais nenhuma palavra.
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O próprio Aulë acorrentava os renegados, e Finwë o ajudava no seu trabalho, pois os outros dois
recuaram atemorizados. E grande foi a recompensa dos Valar; e foram ele e os seus descendentes
eleitos entre os outros Elfos. Mas Melkor o amaldiçoou.
Eles esperaram treze dias. E mais dez. Elenhel não aparecia. E então Allua disse ‐ ela não virá. Naure
olhou‐a com raiva:
‐ Então você sabia?
‐ Sim, desde o começo.
‐ E não falou nada? Vocês duas – sim, as duas, são traidoras!
‐ Que seja assim. Mas ela voltará.
‐ Ela está morta, ‐ disse Moro surdamente. Pela primeira vez desde a partida, ele abriu a boca. ‐ Tudo
acabou. Todos estão mortos. Será que você não entendeu porque o Mestre nos mandou ir?
‐ Eu entendi. Você acha que eu queria ir? Acha que...
‐ Basta! ‐ os interrompeu Allua. ‐ Basta. Todos entendiam.
‐ Mas ela não foi! Ela jurou também! E agora nada dará certo por causa dela! É uma traição! E você, você
também... Alua, como você podia? Porque ficou em silêncio?
‐ Não precisa, Naure. Você mesmo não acredita nas próprias palavras. Se bem que nos amaldiçoe como
quiser. Mas ela voltará.
‐ Quando? Então?!
‐ Não sei. Mas voltará. E nos veremos isso, ‐ ela apertou na mão o saquinho de pano pendurado no seu
pescoço ‐ ali estava a pedra rubra. ‐ É preciso esperar.
‐ E agora ‐ ficar aqui sem fazer nada?
‐ Não. Vamos viver. Conhecer a si e ensinar os outros, para estarmos pronto, quando chagar a hora.
‐ Mas tudo mudou, ‐ disse Alhd. ‐ O que devemos fazer agora?
‐ Vamos resolver nos mesmos, ‐ respondeu Onnele Cyolla. ‐ Acreditavam em nos. Nos temos o Dom e
temos a Herança. Pensaremos.
O destino não lhes deu tempo. Na terceira noite, os Orcs atacaram. De manhã, quando eles se
novamente reuniram, descobriram que eram somente quatro. Dene e Ollo chegaram mais tarde. Ayoni
desapareceu. Há dias, ela reclamava de estranhas dores de cabeça, que quase lhe tiravam a memória. E
agora também, ela se atirou em direção à floresta, e por mais que a procurassem depois, não apareceu.
E os Orcs, eles mesmos assustados com o combate inesperado, logo se dispersaram e provavelmente
não a levaram consigo. Onnele Cyolla correu atrás dela, ainda não tinha voltado. Ela nem voltou mais...
Depois desapareceu Dene – foi embora enquanto os outros dormiam. Provavelmente, o pequeno
guerreiro resolveu tentar achar Ayoni de qualquer jeito...
E depois já não fazia mais sentido procurar. E então os cinco se separaram ‐ cada um foi para um lado,
para se encontrar ali mesmo, quando o mais velho ‐ Naure os chamar, e a Herança responder. Talvez,
poderão encontrar os outros... Só uma coisa os consolava ‐ eles sabiam sentir uns aos outros, e sabiam
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que todos estavam vivos. Pena, eles ainda não eram fortes o suficiente para apontar caminho por
pensamento. Pode‐se chamar ‐ mas para onde? Isso eles não podiam indicar. Sabiam que estavam vivos.
Não sabiam ‐ onde...
Ierne ficava do lado do Artífice, tentando fechar a roupa, cortada pela espada. Isso era extremamente
incômodo com as mãos acorrentadas. A corrente era curta e atrapalhava qualquer movimento. Artífice
a abraçava ‐ ela estava no círculo das mãos acorrentadas dele. Assim eles ficaram, juntos. Ierne
compreendeu há muito tempo que eles serão mortos, só não sabia quando e como. Aqui, havia uma
sensação pesada e enjoativa ‐ a luz forte de todos os lados, morta, o ar imóvel sem cheiro, nem frio nem
quente ‐ nenhum. Ele tinha um gosto estranho e cortante, que lembrava em algo o sangue... Ela entendia
mal o que acontecia, estava tonta. Mesmo se ela não sofresse por causa da ferida, de qualquer jeito a sua
mente se negaria a entender o que estava se passando. Primeiro ‐ o Mestre de joelhos, depois o Artífice
a deixou, e dando um passo para frente, falou alguma coisa, depois o bateram e ele caiu, cuspindo
sangue, depois a voz de alguém:
‐ Deixem viver pelo menos as mulheres!
E outra, fria e cerimoniosa.
‐ Aqui não há homens e mulheres. Aqui há somente os malditos renegados!
“Pelo menos juntos, ‐ pensou ela, tranqüilizada. ‐ pelo menos morreremos juntos”.
E os olhos negros enormes a olhando multidão, cheios de horror e ira...
...Os penduraram pelas mãos acorrentadas nas rochas de Taniquetil. E as águias de Manwë rondavam o
pico, e, descendo, rasgavam os seus corpos com as garras. E Melkor via isso. Mesmo que ele quisesse
desviar o olhar, não poderia fazê‐lo: ao lado estava Tulkas, que o observava atentamente. Mas mesmo
se não houvesse um guardião, ele não fecharia os olhos: ele queria ver, para lembrar sempre. Ele lhes
deu todas as suas forças. Eles escolheram a morte; mas a morte não chegava ‐ nem mesmo isso ele
podia lhes dar. Ele podia somente ver. As correntes apertavam o seu peito de tal forma que mesmo
respirar causava dor, mas ele não sentia nada; ele apertava os punhos e sangue escorria debaixo das
algemas. Ele não podia fazer nada. E então ele abriu a mente para os pensamentos deles, e o coração –
ao sofrimento deles...
‐ Vocês pensaram sobre tudo? Não se apressem com a resposta; a dádiva da morte é uma dádiva
terrível e grandiosa. Quem sabe, talvez me amaldiçoarão depois por essa escolha.
‐ Não. Nos mesmos escolhemos este caminho; agora não há mais outro para nos.
‐ Olhem para dentro de si. Haveria em voz medo ou dúvidas?
‐ Não, Melkor. Nos escolhemos o caminho com olhos abertos, e nenhum de nos jamais dirá que você nos
atraiu para o seu lado com mentiras. Eu sei com o coração que você diz a verdade. Nos fizemos a nossa
escolha, Alado.
“Por quê, por quê assim ‐ com eles? Será que ninguém falará: “basta”?! Eu sou o culpado de tudo; eu
devia, devia ter defendido‐os ‐ e agora não posso nem ao menos lhes dar uma morte rápida... Sereia
melhor se eu estivesse no lugar deles!” Ele odiava o Único, odiava os Valar, mas mais de todos – a si
mesmo. Ele se amaldiçoava. Ele olhava, sem tirar os olhos, sabendo que jamais poderá esquecer e se
perdoar. E então, como um suspiro, como um gemido, não as palavras, mas um pensamento:
‐ Não se culpe, Mestre. Você não tem culpa de nada: nos mesmos fizemos a nossa escolha; nos somos
Homens, e pagamos por isso com nos mesmos. Assim sempre foi. Não se torture, imploramos: dói... Pois
nos te ouvimos...
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E, num último esforço, ele fechou deles a sua mente...
Eles podiam se ver mesmo sem virar a cabeça para o lado. Como se fosse para tornar a morte destes
dois mais dolorosa, os acorrentaram a rochas vizinhas. As águias por enquanto não tocavam Ierne, mas
as garras afiadas já rasgaram duas vezes o corpo do Artifice, desnudando as costelas. Seu sangue
gotejava, manchando a areia brilhante embaixo. Mas ele não gritava. Ele via como o rosto dela
empalidecia de horror e de sofrimento. Mas ela já não gritava.
‐ Não olhe, ‐ rouquejou ele. ‐ Por favor, te peço...
Ierne mordeu o lábio e abaixou a cabeça. As roupas rasgadas mostravam o seio, cortado com um risco
vermelho. Ver isso era o mais doloroso de tudo, e ele rangia os dentes por não poder fazer nada.
Ele gritou somente quando uma águia enorme voou, veloz, para baixo, em direção a Ierne. Mas o
pássaro não lhe deu atenção ‐ já havia escolhido a vitima. Como num pesadelo, ele viu como o bico
curvo bateu no pescoço, de lado. O sangue jorrou num chafariz, e o pássaro subiu, com gritos de
desagrado. O corpo dele se contorceu, como se ele quisesse se soltar, atirar‐se a ela... Ierne não se
mexia, o seu corpo balançava como uma boneca de pano. Pareceu‐lhe que ali, sob a roupa negra
rasgada, está uma outra – rubra, terrivelmente vermelha. Ele pensou ‐ Ierne já está morta, mas
subitamente ela ergueu a cabeça, e ele viu mais uma vez o rosto dela, coberto de sangue. Os lábios
sussurraram alguma coisa, sem som. Ele entendeu ‐ o que. Depois a cabeça dela caiu sobre o peito.
Acabou.
“...Eu te esperarei...”
Quando a sentença estava sendo cumprida, Nienna surgiu ao lado do trono de Manwë. Lagrimas
corriam pelo seu rosto, e ela implorava que o rei do Mundo concedesse a morte aos condenados, pois,
dizia ela, é inadmissível torturar assim os viventes.
‐ Lembre, eles são Crianças de Ilúvatar!
‐ Eles negaram as dádivas do Único, e ele os renegou. Eles estão amaldiçoados. E que seja assim com
todos aqueles que se atreverem a ir contra os Poderes!
Nienna queria dizer mais alguma coisa, mas Manwë falou friamente:
‐ As ervas daninhas devem ser arrancadas junto com as raízes!
‐ Tenha piedade de Melkor, ele é seu irmão! Ordene, pelo menos, que vedem novamente os olhos dele!
Que ele não veja isso!
‐ Não. Ele deve ver.
‐ Eu te imploro, tenha piedade...
Manwë ficou pensativo, depois, sorrindo, respondeu:
‐ Está bem. Eu farei a sua vontade.
E, erguendo o olhar com piedade fingida, suspirou:
‐ Piedade, até para aqueles que não merecem ‐ é o caminho de todos que carregam o fardo de serem
Guardiões de Arda!..
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Por isso, Melkor não viu a morte dos Elfos do Escuro. O levaram antes para as Mansões de Mandos, a
prisão subterrânea, de onde ninguém pode escapar: nem Vala, nem Maia, nem Elfo, nem Mortal. O pior
de tudo ‐ a tortura com o desconhecido. E as horas se arrastavam, assemelhando‐se a séculos, e depois
não havia mais nada, e ele entendeu, e sussurrou: “Eles morreram...”, e caiu, sem forças, no chão de
pedra...
“Isso o quebrará, ‐ pensava o Rei do Mundo. ‐ Ele é orgulhoso demais, poderoso demais, vê demais...” O
Senhor de Arda não precisava nem de um Melkor livre, nem de um Melkor servo. Ele precisava de um
escravo, sem vontade própria, ferramenta obediente nas mãos do Único. Mas ele julgava pensando em
si mesmo, e por isso errou...
Tudo foi contra a honra. E o castigo de Melkor, e, mais ainda, o julgamento dos Elfos Escuros. A
Guerreira via aquela, que não conseguiu matar. Agora ela se amaldiçoava pela compaixão. “Seria melhor
se eu a matasse então... Ela morreria rápido, sem sofrimento...” O Guerreiro, olhando para os
condenados, sussurrava surdamente a irmã:
‐ Eu lhes prometi a liberdade e a honra, e agora, quem sou eu? Mentiroso e traidor, um lixo...
A eles era permitido somente combater; não era permitido ter opinião própria.
E quando acabou, Guerreiro dirigiu‐se a Tulkas novamente:
‐ Isso é contra a honra.
Desde aquele tempo, os Guerreiros não apareciam mais nas mansões de Tulkas ‐ nem para a guerra,
nem para a festa. A sua casa eram agora os jardins de Irmo, e lá a Guerreira conheceu as lágrimas.
Os corpos foram arrastados pra baixo. O cadáver do Artífice era arrastado pelo caminho de diamantes, e
lascas grudavam no corpo mutilado, vestindo‐o em escamas brilhantes, como um peixe. Eles ficaram
deitados, em sudários de diamantes, e um dos Maiar inspecionava os corpos por ordem dos Valar ‐ se
não sobrou algum talismã. Foi ele que notou o anel no dedo do Artífice. Mal pode decepar o dedo do
morto, quando alguém lhe deu um tapa forte, jogando ele no chão.
‐ Se retire! ‐ urrou Guerreira, apertando os punhos. Maia sabia que é melhor não se meter com ela, e
saiu correndo.
Guerreira abaixou‐se ao lado do corpo de Ierne e ficou olhando longamente para o rosto morto, com um
sentimento novo e ainda desconhecido. E depois ela viu a pedra. “Você me perdoe. Levarei de
lembrança... não esquecerei, verdade! Não perdoarei. E você ‐ me perdoe...”
Ela saiu rapidamente, sem procurar caminho, sentindo cada vez mais uma dor estranha. Algo apertava
a garganta, doía nos olhos... Ela já estava correndo, sem entender o que estava acontecendo com ela,
apertando a pedra na mão.
Ela caiu sobre a relva verde na penumbra acinzentada e dourada do jardim encantado, e então um som
estranho sai da sua boca, como o de um animal ferido. Os olhos ficaram úmidos, tudo ficou manchado, e
não havia como parar isso. Alguém tocou os seus ombros trêmulos. Irmo a olhava suavemente.
‐ O que há comigo... o que é... eu estou morrendo?
‐ Não, são lágrimas. Você está renascendo. Chore, chore. É preciso conhecer isso. Chore, minha filha. É
necessário.
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... E sobre a lagoa, os sonhos de Ayo dissolviam‐se como uma neblina, e os quatro Maiar viram tudo o
que aconteceu em Valinor. E o Caçador ficou petrificado, e a Folha Primaveril fechou o rosto com as
mãos, horrorizada, e o dos Olhos Dourados não conseguia conter as lágrimas. E Ayo não falava nada.
...E no Livro, que o Gorthaur segurava nas mãos, surgiam palavras, traçadas por uma mão invisível. Essa
narração estava escrita com sangue e, lendo as linhas escuras, o Maia Gorthaur chorava num pranto
sem lágrimas. Ódio e ira ardiam em seu coração, e ele jurava que os Elfos, os Maiar e os Valar pagarão
pela dor do Mestre e pela morte dos Elleri Ahe. E naquela hora negra, ele amaldiçoou Finwë e toda a sua
casa.
“Inicialmente, tal como Melkor, Vala Aulë era um criador. Mas, temendo a ira de Ilúvatar, ele renegou as
próprias criações e tentou destruí‐las; naquele tempo, Maia Gorthaur, cujo nome era naquele tempo
Artano Aulendil, o primeiro dos discípulos de Aulë, e igual ao próprio Ferreiro em habilidade, o
abandonou, pois era‐lhe repugnante a covardia de Vala. E agora, o medo de desobedecer a Manwë e a
Eru fez de Aulë um carrasco. E depois que ele forjou Angainor e as correntes para os Elfos do Escuro,
ele perdeu o dom de criar, e não podia criar mais nada, pois o carrasco não pode ser um criador”.
Assim termina a narração sobre os Elleri Ahe. Ela não é conhecida nem por Elfos, nem por Homens do
Ocidente: nem os Valar, nem os Maiar contaram isso a eles. Por isso, nada diz sobre os Elfos Escuros o
“Quenta Silmarillion”, e os sábios não dizem nada. Só entre os descendentes de Finwë, rei‐carrasco, é
contada a história sobre o Julgamento de Valinor. E nem os Valar, nem os seus servos, em sua maioria
não querem nem saber, nem lembrar.
...Não restaram mais nomes. Foi mandado esquecer.
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TERCEIRA PARTE. A COROA DE FERRO
O SENHOR DO DESTINO E O SENHOR DO ESCURO. ERA DAS ÁRVORES.
O CATIVEIRO DE MELKOR. ANOS 502802 DO DESPERTAR DOS ELFOS
Em Valinor, o tempo passava para poucos. Em primeiro lugar para Námo, Senhor dos Destinos de Arda,
apelidado de Mandos. Ele sabia, diferentemente dos outros, sentir o tempo. Para ele, existia o Passado e
o Futuro, e não o eterno Sempre. Talvez, assim era porque nas suas Mansões apareciam e aguardavam a
partida os Homens, e depois seguiam para o Desconhecido, para não retornar mais; e os seus destinos
não estavam sob o domínio do Senhor do Destino. A sua memória continha tudo o que ele descobria
com eles. Seu pensamento e a visão ‐ nisso estava o seu poder, mas a Memória era a fonte deste.
Atando uns aos outros os fios disjuntos dos eventos, ele os uniu numa corda única, que cantava com a
voz de Arda no coro eterno de Ëa. Parecia que ele a sente com a mão, estendida, ecoando a cada
pensamento, a cada sussurro do mundo. E pela frente ‐ novamente fios, fios, e qual deles será a base
para uma nova corda, e quantos fios se enrolarão num único ‐ quem sabe? Como cantará essa corda, e
quem a fará cantar? Námo sorriu involuntariamente. Senhor dos Destinos, criador da Corda, que tece...
Vairë. V – a – i – r – e. Não é ela que é a tecelã dos destinos, é ele – o tecelão. E Vairë vê somente aquilo
que é, não aquilo que pode ser. Não, não será, mas poderá ser. Milhares de fios, e ele sente todos eles.
Grande é Eru, se o plano dele é isso, na possibilidade de achar um único fio, mais sonoro, que dá a voz
para toda a corda. Interessante, quem mais ouve essas canções de Arda? Eru as ouve? Ele se alegra com
o desenho que surge sobre o tecido que ele criou? Námo baixou a cabeça pesadamente. Ele já notou há
tempo que nem tudo lhe é compreensível e nem tudo é agradável nos feitos dos Valar. Mas quem é ele
para julgá‐los? Eru fala somente com Manwë. Ele, Rei do Mundo, sabe tudo, e a canção do coro é bela e
ordenada somente quando é regida por uma harmonia única. Mas ‐ o plano final de Eru? Significaria
isso que todos os fios darão no mesmo, e a escolha da canção é somente uma sombra? Se for assim, o
que ele, Námo, faz aqui? Por que ele é o Senhor do Destino? Ou ele deve fazer tudo dar no mesmo,
fazendo o mundo cantar assim planejou Eru, e não ouvir a música? Quem dirá?..
...Ele escreveu as primeiras linhas do seu Livro nos tempos imemoriáveis, quando ele mesmo ainda não
compreendia o porquê. E ‐ teve medo da própria descoberta. Assim como temia a própria visão. Assim
como temia mais tarde o poder das próprias palavras. Ele escrevia, e esses sinais ‐ que expressavam os
pensamentos ‐ de onde eles vieram? Eles surgiam sozinhos nas páginas, como se alguém guiasse a mão
dele. Námo não se considerava um criador, e por isso jamais admitia que foi ele mesmo que os criou.
Então ele pensou ‐ é uma dádiva de Eru, e glorificou o Único em seu coração. E desde então, ele anotava
os seus pensamentos, a sua memória, as suas visões no Livro... Quando é que aconteceu assim, que seus
próprios pensamentos o assustaram? Ele voltava sempre a uma mesma recordação, que feria
dolorosamente a sua consciência. Mas não queria livrar‐se dela, pois o Senhor dos Destinos deve
lembrar tudo.
Isso foi há muito tempo, antes ainda dos Homens olharem para o rosto do Sol. Námo, desde o início,
surpreendia‐se e maravilhava‐se com a duplicidade do existir, na qual consistia a essência da vida de
Arda. Ele a encontrava em tudo, até no mais simples, e lhe trazia alegria buscá‐la em todos os lugares e
estudar as suas diferentes faces. Foi então que ele pensou sobre o Equilíbrio pela primeira vez, e
maravilhou‐se com a profundidade do plano do Único, que criou algo assim, e com o eterno movimento
do Equilíbrio, que dá vida a Arta. Mas gradativamente ele começou a perceber que Manwë substitui o
Equilíbrio pela simetria morta. Manwë ‐ Rei do Mundo, eleito de Eru... Então essa é a vontade do Único?
Então ele, Námo, está errado? Ele ainda acreditava incondicionalmente em Eru ‐ e parou de acreditar
em si. Mas ‐ não parou de pensar. “Não há nada de mal nos meus pensamentos, se eu os guardar para si.
Que eles estejam no meu Livro. Ninguém verá, e nenhum mal resultará deles”, ‐ pensava ele. O primeiro
passo estava feito. Agora, era necessário continuar andando. Ou pensar e agir por si mesmo, ou
obedecer a Eru. E Námo acreditava em Único e em seu regente Manwë. Por isso ele negou a si mesmo.
Mas ele não podia negar a Duplicidade. Ela estava a sua frente – sempre e em todos os lugares, e por
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mais que ele tentasse fugir dela, não a ver, continuava a ver. E, assustado, ele compreendeu que, além
dele, só um dos Valar consegue ou se atreve a ver a Duplicidade e não esconde isso ‐ Melkor.
Desde o inicio, Námo se inclinava a ele, vendo nele algo próximo de si, mesmo que não entendesse o
quê. E ao mesmo tempo tinha medo dele. Ou de si? Ele compreendia, em seu espírito, que Melkor estava
certo em seus feitos, mas Manwë dizia que isso é contra a vontade de Eru. E essa duplicidade o
atormentava. Então ele, não suportando mais isto, resolveu escolher um dos lados, e escolheu ‐ a Luz.
Assim ele pensava então. E tornou‐se hostil a Melkor. Ele escolheu Eru. Por isso ele não disse nenhuma
palavra contra a sentença dos Elfos do Escuro. Ele sabia prever, e o terror dominou‐o quando ele
entendeu o que farão com eles, mesmo que ninguém ainda tinha dito. “Não. Não. Isso não pode ser, ‐
argumentava ele consigo mesmo, ‐ Eru é piedoso. Isso são novamente os meus pensamentos.
Expulsarei, expulsarei eles. Nada de ruim acontecerá. Eru sempre está certo”. E ao mesmo tempo, o seu
espírito convulsionou‐se dolorosamente, e os argumentos covardes apagavam‐se na onda crescente do
terror. E quando Melkor caiu de joelhos, Námo não agüentou. Foi embora. O Rei do Mundo, jubiloso, não
notou a sua partida.
“Ele humilha‐se. Humilha‐se por outros ‐ ele, o Inimigo, o Mal, salva os outros... Por mais que sejam
malignos os seus feitos, mas este ‐ é mal? Aquele que faz o mal, faz o bem para os seus discípulos... Mas
ele não pode, ele não é capaz, não deve, ele é o Mal!” A Duplicidade novamente estava perante ele. Não
há saída. Não se pode não ver. Isso foi um choque. Mas um choque ainda mais terrível o aguardava. Ele
caminhava, em sofrimento e confusão, pelas suas mansões subterrâneas imensas e, sem saber como,
entrou na sala destinada aos Homens.
...Eles surgiram como um relâmpago. Em vestes negras ensangüentadas ‐ assim eram os seus corpos,
abandonados sem um enterro no campo de batalha. Assim eles apareceram a ele – nas Mansões dos
Homens. E, falando com dificuldade, ele falou com uma voz que não era dele:
‐ Quem... Por quê aqui...
Os seus lábios tremiam. E ele ouviu a resposta, que soava dentro dele, em sua mente.
‐ Nos somos Mortais.
Ele não pôde pronunciar mais nada. Ele os reconheceu. E o ódio ergueu‐se numa onda ardentemente
fria ‐ ódio a Melkor, que os levou a esse fim. Ódio a Manwë ‐ aquele que pronunciou a sentença. Ódio
aos seus coirmãos, que os condenaram a morte. Ódio de si mesmo ‐ por não se atrever a acreditar em si.
E este foi o segundo passo para longe do caminho de Eru, pois ele se atreveu a ponderar os feitos do Rei
do Mundo, desde o início correto em todos os seus feitos.
Ele não teve tempo de perguntar mais nada – a voz de Ëonwë o convocava para a sala do trono. Ele
subiu para a superfície. Ali já estavam os quatro ‐ Ëonwë e, entre Tulkas e Aulë ‐ Melkor. Námo olhou
para todos com pesar e perguntou, sombriamente:
‐ O que o trouxe até aqui, arauto do Rei do Mundo?
E Ëonwë, elevando a voz, pronunciou a mensagem de Manwë.
‐ “Em sua piedade imensa, Eru, o Único, Pai de Tudo o que Existe, com pena de Arda, ordena aplicar
uma pena exemplar a Melkor, aquele que se negou a seguir o caminho de Eru. Por isso, o Rei do Mundo
Manwë Súlimo, regente do Único em Arda, ordenou encarcerar o rebelde por três séculos, para livrar
Arda das suas maldades e dar‐lhe a possibilidade de repensar tudo e se arrepender. Ele ordena levá‐lo,
acorrentado, para as Mansões de Mandos, onde este permanecerá”. Eu, Ëonwë, boca de Manwë, disse.
“Mandos, o Carcereiro”, ‐ o rosto de Námo ficou rubro, como se fosse tocado por um ferro em brasa.
“Por causa de Melkor, essa alcunha grudará em mim para sempre”, ‐ pensou ele com raiva.
‐ O meu nome é Námo, ‐ disse ele, e Ëonwë empalideceu sob o seu olhar.
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Durante todo este tempo, Melkor permaneceu imóvel, olhando além deles. Dor e terror estavam
escritos em seu rosto. Suas mãos pendiam. Ele não ouvia nada ‐ ouvia algo além...
‐ Sigam‐me, ‐ resmungou Námo.
Tulkas empurrou Melkor. Aquele obedecia, sem vontade própria. Ele não estava ali. Eles desciam para
as profundezas do corpo de Arda, para a cela escura, onde não havia nem luz, nem som. Tulkas
segurava a tocha, enquanto Aulë prendia na parede uma argola, para acorrentar o prisioneiro. Melkor
durante todo este tempo permaneceu imóvel. Estava feito. Aulë e Tulkas já estavam na soleira, e Námo
pronunciou então as palavras pelas quais se amaldiçoaria depois:
‐ Criou o Escuro, delicie‐se com ele agora!
“Por quê eu fiz isso? Por quê ferir mais ainda o vencido?” ‐ pensou depois de instantes. Essas palavras
chamaram a atenção de Melkor. Ele levantou a cabeça, e duas lâminas de fogo gelado acenderam‐se na
frente de Námo. Pareceu‐lhe que está perdendo a consciência ‐ a sua mente parou de obedecer‐lhe e ele
mal compreendeu as palavras:
‐ Se não houvesse o Escuro, como você conheceria a Luz?
Námo recuou bruscamente. A ultima coisa que ele viu antes de bater a porta era Melkor, em pé, de
olhos fechados, apertando os punhos, mãos acorrentadas.
Ele voltou para a Sala dos Homens, mas os Elfos do Escuro não estavam mais lá. Ele começou a
trabalhar novamente com o Livro dele naqueles tempos. Pois tudo o que havia acontecido estava em
desacordo com a predefinição de Valinor. Elfos do Escuro – Mortais surgiram simultaneamente aos
Eldar, e nem Eru, nem Manwë souberam disso. E não puderam fazer nada, além de matá‐los ‐ “para
retornar ao Plano de Eru”. Piedosos. E ele mesmo? Ele apoiou Manwë... Námo gemeu de raiva de si
mesmo. Novamente a maldita Duplicidade! Mas ele escolheu! Escolheu? Não. Ele entendeu – ainda
agora ele pode escolher. Melkor o atormenta? Há dois caminhos ‐ segui‐lo ou destruí‐lo, para que a
consciência não torture, eternamente lembrando, com a existência daquele, da sua, de Námo, covardia.
Não, tudo menos isso. Seguir Melkor? Námo compreendeu com horror que é esta a opção que ele deseja
escolher. E tem medo. E então pensou ‐ por quê não o seu próprio caminho?
“Duplicidade? Que seja”. Que ela esteja em mim. Eu irei pelo limite, o limite fugaz do Equilíbrio,
levando‐o nas mãos, como um cálice precioso com a bebida da vida. Luz? Se isso é Manwë, então não é a
Luz. Não é o meu caminho. Escuro? Não consigo. Não sei porque, mas não consigo. Limite, onde a Luz e
o Escuro se dão as mãos, mantendo o Equilíbrio... não sei... Somente aqueles conhecerão a Luz, que já
conheceram o Escuro... Ele disse assim... E eu os conheço?” Ele quis perguntar, mas a quem? Manwë?
Não, nunca. Eru? Por quê não? Não seria ele um Ainu, Senhor dos Destinos? E ele chamou a Eru. Ele
sabia de alguma forma que o Único o ouvia. Mas não obteve resposta. E então, pela primeira vez, surgiu
a louca e assustadora idéia de se dirigir a Melkor...
Ele não foi logo até ele. Naqueles anos, teve muito trabalho. Nas suas mansões surgiram os Elfos, e junto
a eles ‐ Orcs. E novamente surgiu a duplicidade oculta da existência ‐ será que os Orcs são o segundo
“eu” dos belos Filhos de Ilúvatar? Ou foi mesmo Melkor que os criou? Assim dizia Manwë, mas Námo
não acreditava mais. Ele lembrava dos Elfos do Escuro. E então ele teve coragem de escrever no Livro a
história deles. E a história da primeira guerra de Arda...
Naquele tempo ele ainda freqüentava às vezes as festas dos Valar, mas a alegria era‐lhe cada vez mais
difícil. E por isso ele ficou quase feliz, encontrando Nienna ao retornar de uma festividade. Em Valinor,
a evitavam – a sua eterna tristeza não combinava nem um pouco com a alegria dos Imortais. Estranha
era ela ‐ irmã de Námo Mandos e Irmo Lórien.
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Ela olhou nos olhos do irmão, fazendo este se sentir desconfortável subitamente.
‐ Você não tem pena de Melkor, irmão? ‐ perguntou ela, baixo, e foi embora sem esperar resposta. E
então Námo compreendeu que está procurando algo para justificar consigo mesmo a vontade de
conversar com Melkor. E ele a encontrou.
Ele descia pelas escadas infinitas, caminhou por corredores infinitos, passando por pesadas portas
trancadas, para baixo, cada vez mais próximo do coração de Arda, até a cela de Melkor. Aqui não
penetrava luz. Aqui não havia sons. Aqui o tempo seguia com dolorosa lentidão até para os Imortais, e a
morte parecia ser a salvação, não o mal. Mas nem isso foi dado a Melkor ‐ por enquanto.
Námo via muito bem na escuridão, mas aqui até ele andava com dificuldade, tropeçando. E pela
primeira vez ele pensou ‐ e como Melkor se sente lá? Cem anos sozinho consigo mesmo ‐ o mais terrível
interlocutor... Esse pensamento causou‐lhe mal‐estar. Parou em frente a porta. Ela se abriu
silenciosamente a um gesto, mas Námo não entrou, intimidado, mas parou na soleira, ouvindo o silêncio
e tentando em vão ver algo nas trevas.
‐ Melkor, ‐ chamou ele, indeciso, assustando‐se com o som da sua voz. ‐ Melkor, está aqui?
Soou uma curta risada maldosa:
‐ E aonde é que eu posso estar? Estou acorrentado, ‐ mais uma risada. ‐ Aulë deu o melhor de si.
A voz soava um pouco rouca, como se Melkor perdesse o costume de falar durante os anos de solidão.
Námo não respondia, sem saber como começar a conversa, mas Melkor facilitou a sua tarefa.
‐ Não foi à toa que você veio aqui, Mandos. Pergunte, eu responderei.
A adicionou, com zombaria:
‐ Um visitante educado não deixará as perguntas do anfitrião sem resposta!
Námo engoliu a ofensa ‐ ele compreendia que Melkor tem todo o direito de falar assim. Ele tomou
coragem e fez a pergunta que o trouxe até lá.
‐ Melkor, conte‐me, porque você criou os Orcs?
‐ Ah, então já apareceram nos seus domínios... E por quê você acha que eu os criei?
‐ Assim diz Manwë.
Outra risada maldosa.
‐ Claro, o que se pode esperar de bom do vilão Melkor! Ah, pobres Crianças de Ilúvatar!
De repente ele calou‐se, e depois continuou com uma voz totalmente diferente ‐ com uma tristeza e
amargura oculta:
‐ Eu não sou o seu criador, mesmo que uma parte da culpa seja minha.
‐ Mas quem, então?
‐ Medo. Medo e escuridão.
‐ Mas você não é o criador da escuridão e do medo?
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Depois de um breve silêncio:
‐ Námo, você tem medo do Escuro?
Námo pensou.
‐ Não, eu acho. Eu estou acostumado a escuridão.
‐ Não confunda escuridão com o Escuro. A escuridão vem do Escuro, mas a Luz também nasce no
Escuro. É preciso saber ver, somente... Você vê estrelas?
‐ Sim, mas...
‐ Há muito tempo?
Námo novamente ficou pensativo, e subitamente estremeceu ‐ nesse momento ele percebeu que as via
sempre, desde antes do nascimento de Arda. Como se uma cortina caísse entre a visão e a percepção.
Por quê agora? Seria ‐ Melkor?
Melkor compreendeu o silêncio dele.
‐ Então você também pode ver. Mas tem coragem? Conseguirá entender que o Escuro existia antes de
nos, que não foi criado por mim? Eu posso somente vê‐lo e compreendê‐lo, e ajudar aos outros a verem
e conhecerem‐no. O Escuro não gera medo naquele que tem força de vontade para não fugir dele, mas
olhar atentamente e compreender. E as Crianças de Ilúvatar mostraram‐se fracas... em sua maioria. E
agora quase todos eles vivem sob cuidado dos Valar, não por si mesmos... E os Orcs ‐ fazer o que, são tão
imortais quanto os Elfos. Eles foram gerados pelo medo e vingam‐se de todos pelo seu medo; medo é a
sua essência, medo é a sua arma... As criações de Eru são perfeitas em tudo ‐ sábios, belos, corajosos...
Mas eles nunca entenderão preço e o valor da vida, pois não foi lhes dada a morte. E eles não
conhecerão inteiramente o bem e o mal, pois em qualquer caso não haverá punição para eles. Em
essência, eles são iguais aos Orcs, por que odeiam assim uns aos outros; e esses, e aqueles são a
maldição de Arda.
Melkor pronunciava essas palavras com uma amargura cruel, e quando ele acabou, Námo perguntou,
temendo a própria pergunta:
‐ Melkor, Elfos do Escuro... eu os encontrei – no Salão dos Mortais. Disseram ‐ somos Mortais... Mas os
homens devem chagar depois dos Elfos... Não, não é disso...
Ele demorou para responder: falou rispidamente, como se atirasse as palavras no rosto de Námo:
‐ Eu não falarei sobre eles com você. Você veio saber dos Orcs ‐ soube. Agora vá. Você pode ter
problemas por conversar comigo.
‐ Melkor, se permitir, eu virei de vez em quando para falar com você.
Em resposta – mais uma risada maldosa:
‐ Se permitir! O Grande Senhor dos Mortos pede permissão a insignificante Melkor! Não, Mandos, eu
não quero nem problemas para você, nem a piedade de Manwë. Vá embora.
Námo não via o rosto de Melkor nas trevas. Mas pareceu‐lhe que Melkor o via. Ele partiu com um
sentimento estranho ‐ inacreditável mistura de dor, esperança, pesar e alivio. “Melkor, ‐ pensava ele. ‐
Sim, Manwë escolheu bem o castigo para ele. A ele não há nada pior do que ser privado da capacidade
de criar. O que quer que saia das suas mãos ‐ seria possível corrigir o espírito com uma punição? Talvez,
melhor fosse entender... E agora ele está com raiva, e fomos nos que o fizemos assim. Temo agora que
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seu poder sirva somente ao mal agora. E ele realmente é o mais poderoso entre nos”. Havia somente
uma coisa da qual Námo tinha certeza ‐ ele ainda virá aqui muitas vezes.
Algo aconteceu com ele depois do primeiro encontro com Melkor. Ele entendeu, o que, somente depois
de ter saído, finalmente, do portão das suas Mansões. Ele quase ficou cego. Luz. Luz do céu ‐ ele
compreendeu que justamente isso é Luz ‐ e não aquilo que jorrava das Árvores de Valinor! Námo quase
gritou de alegria. Aconteceu algo grandioso! Ele desejou compartilhar a sua alegria com todos os outros,
ele pensava ‐ é uma dádiva de Eru, e todos sabem disso, mas ninguém o compreendeu. Ninguém viu
nada. Ele notou o olhar assustado de Manwë e de repente soube ‐ Manwë tem medo dele, Námo! E o
pensamento herético de que ele talvez seja mais poderoso do que o Rei do Mundo, surgiu em seu
espírito, vagamente.
Os pés o levaram sozinhos até o calabouço. Desta vez, ele carregava um recipiente de cristal com uma
estrela cadente, e pela primeira vez desde o julgamento viu o rosto de Melkor. O Vala Rebelde estava
sentado, encostado na parede. Ele fechou os olhos ‐ desacostumou‐se a luz. Os seus cabelos estavam
grisalhos, e rugas marcaram os cantos da boca. As mãos com pesadas correntes estavam deitadas
impotentemente sobre os joelhos. Isso era tão artificial, tão absurdo ‐ mãos destinadas a criar estavam
presas, para que não consigam criar nada... Námo suspirou. Melkor, notando isso, perguntou‐o:
‐ O que há com você, Senhor dos Destinos, Senhor dos Mortos?
A sua voz era calma, não como da outra vez. Pareceu a Námo, que Melkor o esperava. Mesmo assim
esperava.
‐ Parece que eu vi a Luz, ‐ ou interrogando, ou talvez já com toda a certeza disse Námo. ‐ Sabe, eu sai ‐ e
no céu há luz! Ali há algo ígneo, belo, claro! Eu me alegrava, eu falava: “Vejam, ali está a Luz!” E eles...
‐ E eles não vêem nada e se assustam com as suas palavras. Sim?
‐ Sim, sim! E Manwë ‐ ele temeu! O que? Não entendo...
‐ Você. A sua visão. O seu poder, Námo. Você sabe ver. Você se atreve a ver. Você é mais poderoso do
que eles, ‐ na voz de Melkor soavam notas suaves, e Námo notava na sua fala os ecos quase
imperceptíveis de alegria e surpresa. ‐ Você é poderoso, Námo. Desde o início, você comanda os
Destinos de Arda. E agora você se atreve a ver e saber tudo que quer ‐ não aquilo que Manwë lhe
permite.
‐ Mas... talvez é uma alucinação... ‐ Námo não acabou de falar. “Alucinação enviada pelo Inimigo”, ‐
queria dizer ele, mas o Inimigo – eis, aqui, preso, impotente. Námo tropeçou, escolhendo as palavras
desesperadamente, mas Melkor, compreendendo a sua confusão, sorriu e respondeu:
‐ Não, não é uma alucinação. E você não é o único. Mas você vê e se atreve a ver, os outros fecham os
olhos propositalmente. Pois Eru não ordenou, ‐ uma zombaria venenosa soava em sua voz. ‐ Nada. Se
não Valar, Maiar verão. Como Gorthaur, ‐ abruptamente terminou ele.
‐ E quem dos Valar vê, alem de você? ‐ perguntou Námo.
‐ Você, penso que o seu irmão e a sua irmã. Talvez Estë. Vêem, mas ainda não percebem. E Varda.
A sua voz ficou seca e desagradável quando ele pronunciava o último nome.
‐ Varda? Mas quando eu vim... quando eu disse...
‐ Certo. Ela vê, mas possui o poder de vedar os olhos dos outros. Assim é a vontade de Eru. Mas você é
mais poderoso.
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‐ De onde você conhece a vontade de Eru? Ele falou contigo?
Melkor olhou‐o com um pouco de zombaria, e Námo sentiu toda a inutilidade da sua pergunta.
‐ Sim, claro. Senão Eru não teria medo de você.
‐ E de onde você sabe que Eru me teme?
‐ N‐não sei... Sei e pronto... Por quê? ‐ perguntou Námo surpreso.
‐ Mas assim deve ser. Nos somos parte da mente e dos planos de Eru. E qualquer um de nos,
encontrando a si, pode igualar‐se a Eru e ultrapassá‐lo. Só que nem todos se atreverão. Você ‐ sim.
Námo, acredite, você é poderoso, e ninguém pode se igualar a você em Valinor. Então deixe de temer,
acredite em si!..
Agora, as conversas com Melkor já se tornaram para Námo uma necessidade, como, parecia, também o
eram para o prisioneiro. E depois de cada conversa, Námo notava que a sua maneira de ver o mundo
está mudando. Não por causa de Melkor, não, Námo começava a compreender sozinho, e buscava
somente uma confirmação com o Vala Escuro. Parecia‐lhe que ele segue por um caminho estreito, e dos
dois lados está o abismo. Ele pisa devagar e com cuidado, mas avança, e Melkor estende‐lhe a mão para
que ele não caia... Ele aprendeu a compreender a Duplicidade e não negar nenhuma das suas faces e, o
mais importante, ele descobriu a essência do Equilíbrio dos Mundos e via agora o seu movimento
eterno e a sua mutabilidade ‐ aquilo que há muito se transformou em imutabilidade em Valinor. Aqui, o
Equilíbrio foi sacrificado a Predeterminação. Ele agora olhava diferentemente para os Valar e todos os
seus feitos; cada vez mais nítido era o seu dom de previsão, e ele sabia que é realmente o Senhor do
Destino, e que a sua palavra pode tornar‐se um feito. Ele entendia, agora, o que planejou Eru, e o que
tentou fazer Melkor, e olhava as mãos acorrentadas dele com dor. Ele escrevia muito, e o Livro tornava‐
se cada vez mais grosso.
Freqüentemente, ele conversava com Melkor sobre Arda, sobre Endorë. E Melkor sorria ao se recordar
das Terras Mortais. Parecia que ele via aquilo de que falava.
‐ Lá, o tempo segue. Lá ‐ é a vida. E cada dia é novo, diferente do anterior. Lá até as estrelas são
diferentes. Não, Elfos não viverão lá ‐ eles não sabem o valor da vida, eles não compreendem a doce dor
do correr do tempo... Aqueles que viverão lá serão os Homens. Eles chegarão. Eles verão o Sol, e
ninguém poderá vedar os seus olhos. Eles irão viver, e não existir. E lhes será dado o direito de escolher
e decidir, julgar e realizar...
‐ Melkor, mas se você for capaz de fazê‐los assim, você é muito mais poderoso do que Eru...
Melkor levantou as mãos acorrentadas num gesto abrupto e estendeu a corrente. Seu rosto tornou‐se
gélido e impenetrável.
‐ Nisso, Eru tem mais poder. Imensa é a arte de Aulë ‐ não é possível se soltar, ‐ adicionou ele, sem
esperanças, abaixando a cabeça.
E Námo sentiu vergonha e dor.
‐ Perdoe‐me, Melkor. Perdoe, se puder, ‐ falou ele surdamente e saiu da cela. E não viu o olhar abalado
de Melkor; pois a compaixão é a arma que consegue quebrar a armadura mais resistente.
Quando ele veio novamente, viu que Melkor o esperava. Agora, os dois precisavam um do outro. De
agora em diante, falavam de igual para igual. Námo considerava Melkor acima de si, e por isso ficou
surpreso e feliz, quando este lhe disse que ele possuía mãos de criador. Námo olhou para os próprios
dedos, sem compreender.
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‐ Sim, você é capaz de criar, Námo. Você ainda não tem consciência disso, mas eu vejo. Você conseguirá.
E Aulë... ‐ ele olhou para a corrente e continuou com amargura. ‐ Essa é a sua última obra. Quando um
criador começa a fazer correntes, ele se transforma em carrasco, e jamais criará o que quer que seja. E
nas suas mãos ‐ eu vejo ‐ está o grande dom de criar...
‐ E as suas mãos estão acorrentadas... Ate o nome lhe foi tirado, aquele que amou Arda.
‐ Tal como o seu, Senhor dos Destinos. Mas para mim você é Námo, e não “Mandos, “Carcereiro”.
Námo balançou a cabeça.
‐ Não. Justamente carcereiro. E sou culpado.
‐ Não você. Você é meu irmão, Námo. E continuará sendo‐o... ‐ Melkor calou‐se subitamente.
‐ Até mesmo aqui eu vejo as estrelas, ‐ quase sussurrou Melkor, para o vazio, e um pressentimento
terrível e doloroso surgiu no espírito de Námo, e ele compreendeu que Melkor está sentindo o mesmo
neste instante. Naquela tarde eles não falaram mais ‐ simplesmente ficaram em silêncio, sem se olhar...
Ao sair, Námo quase esbarrou num dos seus Maiar, escondido atrás da porta. Aquele se encolheu contra
a parede e olhou para Námo, irado, com medo desesperado e simultaneamente com desafio. Námo o
agarrou pelo ombro e empurrou para frente.
‐ Vamos!
Maia caminhou, obediente. Em cima, numa das salas, Námo fechou todas as portas.
‐ Você se atreve! Você me vigiava? Ouvia? Ou, quem sabe, delatava? ‐ urrava ele, sacudindo‐o. ‐
Responda!
Maia balançava a cabeça desesperadamente.
‐ Não, não, Senhor! Não! Eu ouvia... e entendia... Mestre! ‐ de repente gritou ele. ‐ Te imploro, me deixe ir
com ele! Quando o soltarem... Mestre!
Námo o olhou com curiosidade.
‐ Por enquanto, você ainda é o meu Maia, ‐ respondeu ele, sem pressa.
‐ Mesmo se não deixar ‐ irei. Como Artano, ‐ disse Maia com teimosia.
Námo fez uma carranca. O Maia, sem querer, o igualava a Aulë.
‐ E você não acha, ‐ disse ele severamente, ‐ que eu posso agora ordenar prendê‐lo por desobediência?
Maia recuou. O seu rosto ficou vermelho, os olhos se estreitaram de raiva e de desdém. Ele estendeu as
mãos e atirou, por entre os dentes:
‐ Chame. Que prendam. Irei de qualquer jeito.
Námo riu tristemente.
‐ Você, me parece, está me confundindo com Aulë. Eu o deixarei ir.
‐ Mestre! ‐ Maia caiu de joelhos.
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‐ Levanta! ‐ berrou Námo. E adicionou baixo:
‐ Mas você voltará.
“Meu Maia, ‐ pensava ele, ‐ encarnação dos meus pensamentos... Ele escolheu... Será que isso é o outro
lado de mim? Interessante...” Námo sorriu, lembrando a teimosia do seu discípulo.
‐ ...Você disse, tenho mãos de criador. É difícil acreditar nisso. De vez em quando, eu mesmo não me
entendo. Quem sou eu? Para que estou aqui? Qual é o meu papel?
‐ Você está aqui porque amou este mundo, como todos nos.
‐ E daí? Eu não fiz nada aqui. Nada aqui foi criado por mim. Para que estou aqui?
‐ Mas você não planejou nada, quando nos criávamos a Música? Você não teve a sua nota do Canto?
‐ Eu não o lembro. Eu não compreendo. Naquele tempo, nos não sabíamos nada sobre os Elfos e sobre
os Homens. E agora o destino deles está em minhas mãos. Qual foi a minha parte? Eu não era necessário
na criação de Arda. Ou eu esqueci?
‐ Eu não posso te ajudar. Não sei como. É verdade. Eu sempre pensei ‐ por quê você, seu irmão e sua
irmã, chegaram ao mundo naquele momento, quando nele ainda não havia, e nem poderia haver dor,
mortes, sofrimentos? Por que choraria Nienna? Do que você seria o senhor? Ou você previa algo?
‐ Eu não sei. Esqueci. Eu, o Senhor do Destino que tudo lembra ‐ esqueci. Não consigo lembrar... De vez
em quando, me parece que me colocaram aqui especialmente para ser o seu carcereiro.
Silêncio.
‐ Eu não sei o que você viu, o que criou então, para assustar tanto o Único, a ponto de te fazerem
esquecer, te privarem do direito de criar. E a sua vontade foi dominada... E ainda assim o temem... Não
sei.
‐ Até você não sabe.
‐ Eu não posso saber tudo, Námo. Eu não sou o Único, ‐ sorriu. ‐ E o Único, temo eu, não contará, apesar
de que ele é quem sabe isso ao certo. Mas não é com ele. Foi um erro fazerem de ti o meu carcereiro!..
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SOBRE FINWË E MIRÍEL. O CATIVEIRO DE MELKOR. ANOS 654655 DO DESPERTAR DOS ELFOS
...Um século e meio... Agora, ele já não estava mais tão terrivelmente solitário: Námo descia até a sua
cela freqüentemente. Mas era cada vez mais difícil ficar novamente sozinho.
Dessa vez, a porta pesada não rangeu, mas ele sentiu a presença alheira antes de levantar os olhos.
Uma figura esguia parou na soleira: não escura, mas prateada e cintilante, como o luar, e ele se ergueu
num pulo antes de se dar conta do erro.
‐ Miríel... O que a bela rainha dos Noldor deseja de um rebelde aprisionado?
A visão tremeu, como prestes a desaparecer, mas na voz dele havia mais dor do que zombaria, e ela
respondeu:
‐ Não me chame assim. Chame... como antes.
‐ Como?
‐ Tayli. Você não se lembra... Melkor?
‐ Tayli... Eu lembro de tudo. E de todos. Mas como você chegou aqui?
‐ Em Mandos, não há barreiras para um espírito... Melkor. E para a memória...
‐ Você lembra?
‐ Lembro. Você... ‐ a figura prateada balançou, como se quisesse se aproximar. ‐ Os seus cabelos estão
todos brancos...
Ele ficou em silêncio. E de repente, um terrível pensamento: um vivo não pode penetrar na Mansão dos
Mortos! Ela ‐ também?!..
‐ Como você achou o caminho até aqui?
‐ Eles falam – e eu dormi... Eu... fui; era tão pesado... O ar queima, e a luz... Mas abandonar o filho...
Fëanáro, ele é tão parecido... conosco... e Finwë... pois ele me ama; e eu...
Ele estremeceu ao ouvir o nome odiado. Claro, ela é a esposa dele... esposa daquele, que condenou os
últimos do povo dela!.. que zombaria... Saberia o próprio Finwë a quem havia desposado?
‐ Você como se o odiasse... Melkor, ‐ na voz‐murmúrio ‐ uma sombra de triste surpresa. ‐ Você era
diferente. Você não sabia odiar.
‐ Acha que assim se ensina a amar? ‐ ele levantou as mãos acorrentadas, mas ao ver tristeza no rosto
translúcido, adicionou suavemente. ‐ Perdoe.
Ela continuou a falar sobre Finwë.
‐ Ele é tão claro, tão aberto ‐ como uma criança... Às vezes me parecia que eu sou mais velha; queria
ajudar, proteger... Será que é possível odiá‐lo?
“Proteger... Até assim...”
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Ele ficou em silêncio, depois disse, pensativo:
‐ Talvez você esteja certa em algumas coisas. Pode‐se também dizer assim... Uma criança assustada...
Os seus punhos apertaram‐se involuntariamente, os olhos brilharam:
‐ Não posso, Tayli!.. Não posso...
‐ Meu Mestre não sabia odiar, ‐ repetiu ela, e ele compreendeu por que ela pensava por alguns instantes
antes de pronunciar o seu nome. ‐ Eu entendo... as vezes o rosto dele ficava tão estranho... é a sombra do
seu ódio. O que ele lhe fez? – ela apertou os braços pálidos contra o peito, olhando‐o quase com súplica.
‐ O que ele podia ter feito a você?
“Claro, você não sabe, não viu aquilo”.
‐ A mim? ‐ ele não pode conter uma risada seca. – A mim, ele não fez nada. Não encostou nem um dedo
em mim.
‐ Mas você o odeia... E o filho – o filho dele ‐ você também irá odiá‐lo?! ‐ com desespero gritou ela.
‐ Você veio para pedir por eles? Não, eu não odiarei o seu filho, Tayli, ‐ a voz dele estremeceu, mas logo
recobrou a firmeza, soou rispidamente, quase cruel. ‐ Mas não me peça para que eu perdoe o seu
esposo, rainha Miríel!
A figura cintilante ajoelhou‐se.
‐ Não compreendo, ‐ sussurro, ‐ não compreendo...
‐ Você lembra o que aconteceu com a sua irmã?
‐ Orien... sim... a mataram... e Laytenn também...
‐ E depois?
‐ Eu não lembro... ‐ ela estava confusa, levou a mão translúcida até o rosto. ‐ Não lembro... não sei... Eu
dormia... Depois, Senhor Irmo me pegou pela mão, e eu o segui... Ele estava triste... Havia luz, e flores ‐
muitas flores... bonitas... diferentes. Não como... em casa. Rainha Varda sorriu para mim e disse ‐ como
você é bela, minha criança... E ele... Eu o vi nos jardins de Irmo. Ele era tão bonito...
“Certo, bonito. Isso eu lembro. Alto, esbelto, olhos acinzentados...”
‐ ...numa coroa de flores... Nos nós olhávamos ‐ como se não houvesse mais ninguém e mais nada em
volta... Depois nos nós encontrávamos freqüentemente, e um dia eu lhe fiz uma coroa de flores brancas,
e ele...
‐ Não!..
Ela estremeceu e recuou. Ele rangeu os dentes:
‐ Não! Menos isso... não é assim...
‐ Que houve?
“Não devo falar... o espírito é tão indefeso... mas como explicar de outra forma? Como dizer ‐ sim, eu não
devo odiar Finwë, sim, não foi ele o culpado, sim, ele não sabia o que estava fazendo, sim, ele parecia
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uma criança assustada ‐ mas eu não consigo perdoá‐lo, não consigo esquecer aquelas palavras, não
consigo... Eu sou injusto, mas ser justo é acima das minhas forças. Talvez eu não tenha deixado de ser
um espírito superior, mas não posso permanecer imparcial. Imenso é o seu amor, criança: você não veio
para saber o que aconteceu com o seu povo, porque mataram a sua irmã, onde está o seu irmão ‐ veio
pedir por Finwë...”
Ele permaneceu calado. Ela esperou a resposta por muito tempo, depois deslizou até a porta, mas na
soleira virou‐se e perguntou, como se pensasse sobre isso pela primeira vez:
‐ Melkor... Por quê você está aqui? Por que te acorrentaram?
Ele levantou os olhos ‐ e de repente soltou uma gargalhada rouca e assustadora.
Ela desapareceu – leve neblina matutina sob um sopro furioso de vento gélido, e ele ainda ria, até que o
riso não se transformasse num pranto surdo sem lágrimas ‐ e calou‐se.
“Pergunte ao meu irmão, por que estou aqui. Pergunte a Aulë, porque estou acorrentado. Pergunte a
Tulkas, como morreu o seu pai. Pergunte a Oromë, por que mataram os outros. Pergunte ao seu esposo,
como morreu Ahtener, seu irmão!”
...Ahtener ‐ olhos negros com faíscas douradas, cabelos negros com brilhos de fogo, atrevido e
zombeteiro... Será que o futuro Rei dos Noldor sabia que condenou a morte o irmão daquela que mais
tarde se tornaria a sua amada esposa?Provavelmente não, e ela também não sabia...
E Manwë, provavelmente, se alegrava com essa união: conseguiu desfazer o mal feito pelo vilão, venceu
o combate pelo jovem espírito, consegui curá‐la! E há mais quantas crianças assim em Valinor? Não
mataram as crianças, os Poderes são piedosos: para que matar, se é possível mandar esquecer...
Irmo caminhava lentamente entre sombras e raios de luz, farfalhar e gotas de orvalho. Ali onde passava
o Senhor dos Sonhos, os Jardins ganhavam uma nova força. Lentamente, pensativo, ele caminhava,
como se deslizasse sobre a relva, não deixando a mais leve pegada na terra. Diziam que os jardins são
parte do próprio Irmo, seu poder e sua mente. Provavelmente, isto era verdade – ele sentia os Jardins
como uma parte de si mesmo. E agora uma dor aguda nas têmporas o levava para lá onde as ervas
morriam por causa do pesar de alguém.
Os galhos quase se fechavam sobre a campina redonda, deixando somente uma janela na cúpula verde,
através da qual jorrava um feixe de luz. Ali, entre pequenas flores brancas, dormia uma jovem mulher.
Irmo conhecia tão bem esse recanto dos Jardins, que sentiu uma dor aguda, pois a triste perfeição deste
lugar foi perturbada. Rápido sussurro, soluços ‐ as folhas tremem, preocupadas... Uma figura escura
ajoelhada, ombros tremem. Irmo já compreendeu quem era. Ele freqüentemente vinha aqui. Vala
aproximou‐se silenciosamente e parou ao lado daquele que chorava. Este levantou a cabeça; o rosto
belo, cheio de pesar e desespero, estava úmido de lágrimas.
‐ Senhor, ‐ sussurro entrecortado ‐ por quê... Por quê? Eles disseram ‐ Miríel não acordará nunca mais...
por quê, Senhor? Porque ela não volta? Eu a amo! E ela também... Ela não poderia morrer, verdade?
Verdade?!
Irmo balançou a cabeça e não respondeu nada. Mas o Rei dos Noldor, aparentemente, não se importava
com a resposta. Ele falava. Falava mais para si do que para Irmo.
‐ Eu lembro, lembro... Foi aqui, nestes Jardins, que eu a encontrei... Oh, como ela é bela...
... Ela lhe parecia o espírito de uma flor branca. Sombra – na sombra das árvores, neblina prateada,
caule delicado... A jovem com cabelos prateados e belos olhos meigos de uma gazela assustada. Quão
lentamente caiam das suas mãos as flores brancas... Quão lentamente voavam os braços‐asas nas largas
mangas brancas... Ela mesma parecia tão translúcida... E ele corria, corria ao encontro dela. Neste
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instante ele pensou que sabe agora o que significa – morrer. Parecia‐lhe que ele estava morrendo... Eles
ficaram em silêncio, abraçados, e parecia‐lhes que tinham um só coração. E somente depois puderam
olhar‐se nos olhos. Num sussurro, ele perguntou:
‐ Qual é o seu nome...
‐ Miríel... – como o suspiro do vendo.
‐ Ela abandonou os seus Jardins, e eis – voltou, para me abandonar... Por quê, por quê, Senhor? Ou ela
não é uma Eldë? Ela é uma sombra?..
‐ Não, ‐ Irmo quebrou o silêncio, ‐ ela é igual a você.
‐ Eu sei... mas então ela não pode morrer! Não pode, enquanto houver Arda! Eldar não morrem!
‐ Não morrem.
‐ E ela, não está morta? Sim? Ela dorme?
‐ Não é bem assim, Finwë... O espírito dela abandonou o corpo, mas não está nas mansões de Mandos.
‐ Mas ela voltará? Me disseram ‐ ela se foi, para sempre... Mas como... Eu não acredito! Ela não poderia
me abandonar, nos nós amávamos tanto!
Irmo sentou‐se na grama, ao lado de Finwë. Vala olhava para o alto, não desejando olhar nos olhos do
Elfo – conhecia o poder do próprio olhar, e não queria impor nada a Finwë.
Falou em voz baixa, tentando acalmá‐lo:
‐ É de seu conhecimento que o espírito dela não poderia mais habitar este corpo. Ela entregou todas as
forças para o filho; pois o seu amor deu‐lhe a vida...
‐ Amor... Então amor mata? Então, fui eu que a matei? Sim? Então, amar demais – é matar... Eu sou o
culpado de tudo, eu, eu!
Ele foi novamente tomado pelo desespero; balançava de um lado para o outro, repetindo esse “eu, eu,
eu”. Irmo tocou o seu ombro. Ele poderia contar muitas coisas sobre a morte, e sobre o amor, e sobre a
culpa... Mas falou sobre outra coisa:
‐ Não. Não foi o amor que a matou. Sabe... Nem todos podem entregar assim as suas forças. Algumas
vezes, estas não podem ser recuperadas.
‐ Mas aqui é Aman! Será que algo assim pode acontecer nesta terra sagrada?Não estaria aqui a cura de
todos os males? Senhor, eu não entendo!
‐ Nem todos podem viver aqui. Alguns não podem suportar... a benção de Aman. Sim, Finwë, ela te
amava. Sim, o seu amor lhe dava forças. Mas ela também se entregou inteiramente a você. Era difícil
para ela, difícil demais... Juntar todas as forças para viver, te amar, carregar o filho sob o coração... Ela
era forte, mas...
Finwë o olhava, começando a compreender.
‐ Você diz, que... ‐ começou ele baixo, ‐ que ela não podia suportar? Mas somente... ela era daqueles?!
Irmo não respondeu. Mas Finwë não precisava mais de palavras.
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‐ Ela sabia? ‐ surdamente.
‐ Não.
Finwë ficou imóvel por muito tempo, de cabeça baixa ‐ e desabou ao lado do corpo de Miríel, com um
gemido:
‐ Odeio... odeio! Foi ele, ele que a matou! Ele corrompeu, deturpou os espíritos deles! Ate aqueles que
não estavam mais em seu poder, não podiam viver aqui! Até mesmo aqui as garras negras dele os
alcançaram! Então essa é a vingança... Ele a matou. Ele me matou. Miríel...
‐ Deve concordar que, se foi assim, ele tinha porque se vingar.
Finwë se ergueu abruptamente, com brilho furioso nos olhos:
‐ Sim... Ele se vinga por tudo aquilo que é contra a vontade dele! Sim, eles deviam ser mortos! Estavam
impregnados de maldade, não havia como curá‐los! Era necessário, para arrancar‐lhe pelo menos os
espíritos deles!
“Você mesmo não sabe o que disse, Finwë. A erva daninha é arrancada – e até ela sente dor. E quando se
arranca uma alma, mesmo que não seja a sua, mas a que se enraizou em você... Agora você sabe, como
isso acontece”.
‐ Isso tudo foi por causa dele... Se não fosse ele, Arda seria semelhante a Aman, e não haveria esses... E
Miríel estaria comigo eternamente! Talvez, nos nem mesmo tivéssemos que partir de Endore. Irmo. Eu
quero que o soltem. Eu o desafiarei para um combate, e matarei!
Irmo permaneceu em silêncio. O Elfo também se calou. Depois olhou para o Senhor dos Sonhos. O rosto
tornou‐se novamente triste, os traços se suavizaram.
‐ Perdoe‐me, Senhor, fui pouco polido. E ‐ agradeço. Permita‐me ficar sozinho. Eu preciso me despedir
dela...
Irmo ergueu‐se e recuou para as sombras, se dissolvendo nelas. Na campina, permaneceram os dois –
Miríel, adormecida, e Finwë, imóvel como uma estátua – de joelhos; a mão alva de Miríel,
translucidamente clara, estava nas mão dele, como se ele esperasse, aquecendo‐a, devolver a vida à
amada.
“Talvez, você a traria de volta, ‐ pensou Irmo, ‐ se a chamasse pelo nome verdadeiro. Mas você não
gostaria de conhecê‐lo. E se quiser ‐ não poderá pronunciar...”
Como uma chama trêmula da vela ‐ a vaga figura na soleira. Delírio? Ou realmente o Escuro gerou algo
vivo? Mas para isso, precisaria de pensamento. E ele há muito não pensava mais em criar ‐ era terrível
demais imaginar que isso novamente será assassinado... E ele não tinha poder aqui ‐ na Terra‐sem‐
Escuro, Terra‐sem‐Luz. Não, aqui há Luz, mas eles, depois de arrancar dela o Escuro, nunca descobrirão
nem o seu poder, nem a sua beleza...
E a figura não desaparecia. Quem é? Ele discernia o seu rosto com dificuldade, uma recordação vaga.
Somente quando as lembranças vieram numa onda amarga, o rosto tornou‐se mais definido, e ele
compreendeu quem era a visitante. O rosto infinitamente triste, dedos finos entrelaçados, cabelos
prateados que a envolviam como uma mortalha... “De novo aqui... Por quem você veio pedir agora,
menina? Que bom que não lembra...”
Uma voz ‐ baixa e amarga:
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‐ Adeus, Mestre. Eu vou...
A dor rasgou o coração com as garras. Por alguns minutos, não conseguia ver nada, e quando pôde,
havia somente a escuridão, e o eco se dissolvia:
‐ Mestre... Mestre... Mestre...
“Por quê, por quê você lembrou disso? Por quê?!”
‐ Por quê, Tayli!..
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ANO 802 DO DESPERTAR DOS ELFOS
No livro de Námo, surgiram anotações sobre Homens. Eram seres incompreensíveis. Freqüentemente
rudes, cruéis e selvagens, apesar disso, eles compreendiam aquilo que não foi dado nem aos Elfos, nem
aos Valar, pois lhes era conhecida a morte. Por mais que fosse difícil discernir entre o bem e o mal, os
Homens não só tinham esta capacidade, como também a de corrigir o mal. E com isso o seu tempo era
tão breve!
Os Elfos, por mais que o tempo passasse, sempre permaneciam os mesmos. A sua sabedoria era
eternamente a mesma. E os Homens que passavam pelas Mansões eram cada vez mais sábios, e Námo
notava, surpreso, que muitos deles já estão acima não só dos Elfos, mas também dos Valar em
sabedoria, e ao conversar com muitos deles, ouvia as mesmas palavras que ouvira de Melkor... E depois
eles partiam para o desconhecido... Ele desejou dolorosamente conhecer o caminho dos Homens, ainda
mais porque ele aceitou por vontade própria, pelo costume daqueles que amavam Arda, carregar todos
os pesares e dores deste mundo, para compreender melhor as Crianças de Ilúvatar. Ele ainda não sabia
que a maioria dos Valar recusaram esse fardo em segredo, julgando‐o pesado e humilhante demais para
os Poderes de Arda. Námo desejava a resposta. Ele não falou com Manwë ‐ clamou novamente por Eru.
Mas aquele não respondeu. Nem Melkor respondeu ‐ somente disse com pesar: “Eu não sou um mortal
para saber...”
E depois terminaram os prazos do cativeiro de Melkor, e o Rei do Mundo reuniu novamente os Valar,
para decidir se o Vala rebelde será solto. E Nienna implorou para darem‐lhe a liberdade. E Námo desceu
ate o subterrâneo, e a alegria iluminava o seu caminho nas trevas.
‐ Melkor! ‐ gritou ele; o eco da sua voz rolou pelos corredores escuros, como uma avalanche.
Ele abriu a porta da cela. Melkor estava sentado no chão, curvado sobre as páginas do Livro de Námo. A
lâmpada de cristal jogava uma suave luz fria sobre o seu rosto. Ele ergueu a cabeça, visivelmente
surpreso com a alegria de Námo.
‐ Melkor, você está livre, ‐ disse aquele. Estranho, mas o Vala Escuro não demonstrou alegria, pelo
menos aparentemente.
‐ Então é assim, ‐ falou ele não muito alto, levantando. ‐ Livre? E o que farão comigo agora? Vão botar
uma coleira, como nos cães de Oromë? Ou colocarão um vigia para que o vil rebelde não pense que foi
permitido‐lhe permitido ser ele mesmo? ‐ falou ele com rancor.
Námo estremeceu. Ele esperava outra coisa. As palavras de Melkor o feriram – também ele estava entre
aqueles que o condenaram. Carcereiro. Mas como esquecer tudo o que aconteceu? Ele abriu o seu
coração, confiou ‐ e agora feri‐lo assim na alma desprotegida... Parece que é mais uma lição ‐ não confie
em ninguém. Não se abra com ninguém.
‐ Bondosos são os Valar, ‐ lentamente, com uma careta de nojo, Melkor continuou. ‐ Misericordioso
Manwë, sábio Tulkas, Aulë de bom coração, hospitaleiro Man...
“Mandos”, ‐ continuou Námo para si, baixando a cabeça.
Melkor parou de repente.
‐ Námo, ‐ disse ele depois de um curto silêncio. – Perdoe‐me... Eu não queria... Eu não pensei em você,
desculpe!
Námo respondeu com dificuldade:
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‐ Está certo. Por que devo que perdoá‐lo? Está tudo certo. Sou um carcereiro. Eu te julguei. Você está
certo em tudo, ‐ ele não conseguia se obrigar a olhar nos olhos de Melkor.
‐ Námo, te imploro, perdoe! Será que você quer adicionar mais aos meus pesares? Eu sei ‐ sou culpado,
minha ira cegou‐me, mas será que por causa de uma palavra descuidada você também me abandonará?
Havia tanta dor nos olhos do Senhor do Destino, que Melkor começou a ajoelhar‐se.
‐ Não, por favor! ‐ gritou Námo, segurando as suas mãos. ‐ Se precisa de palavras ‐ então eu perdôo,
perdôo, mas não se humilhe! Não se atreva...
Ele se sentia estranhamente desnorteado, quase não percebia aquilo que fazia. E quando, finalmente,
voltou a ver, a primeira coisa que ele viu foi a corrente Angainor nas próprias mãos. E depois o olhar
surpreso de Melkor. Aquele olhava para os pulsos, como se não conseguisse acreditar que a corrente
não existe mais. A arte de Aulë e o feitiço de Varda não resistiram a vontade de Námo.
‐ Como é poderoso, Námo! Eu te agradeço, Senhor do Destino. Estou feliz por ser justo você a fazer isso.
Das suas mãos eu aceito a liberdade como um presente. Das mãos dos outros, ela seria uma esmola.
E ele fez uma profunda reverência. Então Námo pegou a corrente, abriu um dos elos e o guardou, como
lembrança. Depois, juntos, eles subiram, assustando Aulë e Tulkas, que seguiam para cumprir a ordem
de Manwë.
...Melkor estava perante o Rei do Mundo sem baixar a cabeça ‐ somente piscava os olhos,
desacostumados forte luz morta. Nenhum dos Valar se atreveu a ser o primeiro a falar ‐ somente Varda,
curvando‐se, sussurrou quase sem som no ouvido do seu esposo aquilo que todos sentiam agora:
‐ Ele não se resignou.
Então Valië Nienna começou a falar; ela pedia liberdade para Melkor, e na sua voz havia uma força
oculta, a qual nem mesmo o Rei do Mundo poderia resistir. Ele perguntou somente:
‐ Quem mais o defenderá?
‐ Eu, ‐ respondeu Irmo. Este fez um sim com a cabeça, Námo levantou‐se em silêncio e ficou ao lado de
Melkor, olhando para o Rei do Mundo. Aulë agitou‐se, como se quisesse falar, mas baixou a cabeça e
calou‐se.
E Manwë pronunciou então que, em sua imensa misericórdia e respondendo a um pedido da Valië
Nienna, Valar dão liberdade a Melkor.
‐ Mas, ‐ falou ele, ‐ Nos ordenamos que você, Melkor, jamais cruze os limites de Valmar, até que com
seus feitos tenha merecido o perdão dos Poderes.
‐ Agradeço... meu irmão, ‐ uma curta risada. E, voltando‐se a Nienna, com uma outra voz, suave e triste:
‐ Agradeço por tudo, irmã.
Nienna não respondeu ‐ baixou a cabeça, pela primeira vez escondendo as lágrimas.
E ele não possuía uma morada em Valinor; ele permaneceu nas Mansões de Námo, mas agora era
considerado um hóspede querido. E freqüentemente, já sem se esconder – o maia de Námo ouvia as
suas conversas, aquele mesmo, que havia pedido para deixá‐lo partir...
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JARDINS DE LÓRIEN. ANO 803 DO DESPERTAR DOS ELFOS
...Ele estava olhando as águas da lagoa mágica Lórellin. Por alguma razão, aquelas águas refletiam as
estrelas invisíveis... Irmo se aproximou silenciosamente e parou atrás dele.
‐ Melkor...
‐ Irmo?
‐ Eu devo contar a você, como foi... com eles.
‐ Para que causar mais dor ao seu espírito?
‐ Nenhum de nos sabe esquecer. Sei, não ficará mais fácil, mas eu tenho culpa. Eu não busco me
justificar, somente desejo contar. Você... me ouvirá?
Ele virou e olhou nos olhos do Senhor dos Sonhos. Irmo foi o primeiro a desviar o olhar.
‐ Diga.
...Maiar vestidos de azul, com rostos belos sem expressão, estavam atrás deles num semicírculo.
‐ Senhor dos Sonhos, eis as palavras do Rei do Mundo Manwë Súlimo: você sabe, o que deve ser feito
com eles, então faça aquilo que é devido.
Irmo não respondeu, estudando os rostos assustados das crianças.
‐ Qual será a sua resposta?
‐ Eu farei, ‐ disse ele com uma voz estranha.
Ele não soltou mais nenhuma palavra, até os Maiar se retirarem. As crianças também ficaram em
silêncio, compreendendo de alguma forma que é melhor não falar na presença daqueles.
‐ O que aconteceu com o nosso Mestre? ‐ o primeiro a falar foi o mais velho, um garoto de uns quatorze
anos com olhos alongados, castanho‐esverdeados, moreno e com cabelos cor de cobre. ‐ Por quê
mataram Orien e Laytenn?
‐ Você vai matar a gente? ‐ quase ao mesmo tempo perguntou a garota de olhos escuros e cabelos
prateados, um pouco mais jovem. Ao seu lado estava uma menininha de uns quatro anos, assustada ‐ a
mais velha acariciava os seus cabelos dourados despenteados, tentando acalmá‐la.
‐ Não, ‐ respondeu Irmo rapidamente, alegre por ter a possibilidade de não responder às primeiras
perguntas, e com vergonha dessa alegria covarde. ‐ Não, vocês só vão descansar aqui ‐ estão tão
cansados, ‐ e depois vão acordar e tudo ficará bem...
‐ Você não sabe mentir, ‐ disse o mais velho.
‐ Não, não, acredite‐me, eu não estou mentindo!
‐ O que pode ficar bem se o meu pai agora está morrendo ali?! ‐ o menino apontou, certeiro, em direção
a Taniquetil, e Irmo sentiu um frio no peito: “Vidente...”
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‐ Acreditem, eu não lhes farei mal, ‐ com culpa, quase implorando, pediu o Senhor dos Sonhos; ele se
sentia impotente perante as crianças que viram a morte. ‐ Acreditem...
A pequena dos cabelos dourados olhou para ele debaixo da mão da mais velha:
‐ Ele está falando a verdade, ‐ disse ela baixo. ‐ Ele é bonzinho...
Irmo alegrou‐se com essa defesa inesperada:
‐ Sim, sim! Vamos comigo – vamos descansar, tirar uma soneca... ‐ ele simplesmente não sabia o que
mais dizer a eles, como tranqüilizá‐los. – Como vocês se chamam?
‐ Linner... Tayli... – apresentaram‐se os mais velhos quase em uníssono.
‐ Yolli... ‐ a sua defensora de cabelos dourados.
‐ Eyno, ‐ também de cabelos dourados, olhos acinzentados, corajoso.
‐ Dael... Oyoli... – provavelmente irmãos, os dos com cabelos cor de cinzas, frágeis e quietos, apertam‐se
um ao outro como indefesos passarinhos no frio.
‐ Aheír, ‐ cabelos escuros e olhos límpidos. ‐ E essa é Gelli, ‐ pequena, um ano e meio, que ele segura nos
braços.
‐ Tayo, ‐ cabelos dourados claros, sobrancelhas de alguém persistente e corajoso: pequeno guerreiro. E
eis a sua dama: cabelos curtos com reflexos ruivos, tenta olhar com desafio, mesmo assustada:
‐ Erelli.
‐ Ellorn... Enneth... ‐ gêmeos, cabelos negros e mãos dadas.
‐ Torn...
‐ Isilhe... ‐ olhos enormes, lábios tremem, está quase chorando.
‐ Tenno...
‐ Alcho...
‐ Ennoro...
‐ Hellir...
‐ Aello...
‐ Tiellinn... ‐ novamente uma menina, a voz fina e límpida.
‐ Anta... ‐ se envergonhou. ‐ Anta‐elli...
A última permanece em silêncio. Tiellinn responde por ela:
‐ Ela é Elgeni. Ela não... Ela não vai falar. Laytenn é a sua irmã. Era.
‐ Levaram os outros a algum lugar, ‐ adiciona Linner. ‐ Nos perguntamos, mas não nos contaram para
onde.
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Ele os levou para a floresta, com a esperança secreta de que a magia cintilante daquele lugar os
distrairá pelo menos um pouco; mas as crianças o seguiam em silêncio assustado. Apesar de todos os
seus argumentos, eles não esperavam nada de bom aqui.
...Eles adormeciam rapidamente: seus corpos e espíritos estavam exaustos demais para resistir aos
feitiços do Senhor dos Sonhos. Ele falava com eles suavemente, passava a mão sobre os cabelos
desarrumados, olhava nos olhos tristes. Corpos magros, roupas rasgadas ‐ não tiveram muita cerimônia
com eles.
Linner era o último.
‐ Você não me respondeu, ‐ ele olhou nos olhos de Irmo. – Se bem que eu já sei. Nos não temos mais
nada e ninguém; e ele... ‐ o menino calou‐se, por um instante fechando os olhos e apertando os dentes. ‐
E você, ‐ rispidamente, ‐ deve nos tirar a memória. O último que temos. Acertei, Irmo?
Vala surpreendeu‐se ‐ de onde Linner conhece o seu nome?..
‐ Claro. Sabiam a quem pedir. Você é misericordioso. Você não deseja mais sangue aqui, ‐ ele fez uma
careta. ‐ Raspar a escrita do pergaminho. Afinal, o pergaminho queima mal. E para que? ‐ é possível
reescrever tudo depois! Mas os vestígios dos outros símbolos, apagados, eles ficarão, Irmo. Nada poderá
apagá‐los inteiramente.
Ele falava com o Vala não simplesmente como adulto, mas como alguém mais velho; mas isso já não
surpreendia.
‐ E nem todo o sangue se cobrirá de ervas; a marca ficará. Ficara tanto nos seus espíritos quanto nas
suas mãos, e nem mesmo todas as água do Grande Mar o lavarão... Por quê eu não nasci antes! Eu
poderia estar lá, junto com meus irmãos e irmãs, com uma espada em mãos... Mas o que importa. Nos
não sabíamos matar. Vocês ‐ sabem.
O Senhor dos Sonhos tentava não desviar o olhar. Linner falou sobre outras coisas:
‐ Neste outono, eu deveria eleger o Nome das Estrelas. Eu já o sabia: Gelleyn. Eu sou Vidente, afinal. Mas
não há Mestre, para que ele diga ‐ “Agora o seu nome é Gelleyn; o seu Caminho está escolhido ‐ que seja
assim”. E não haverá mais Caminho. Não haverá ‐ aqui. E não haverá forças para voltar. E não tem para
onde.
Ele se levantou um pouco, apoiado sobre o cotovelo, e olhos os outros.
‐ Quantos deles levantarão a espada contra ele? ‐ baixo e amargo.
Irmo não pode falar nenhuma palavra.
‐ Eu partirei, Senhor dos Sonhos. Eu sei, você não nos deseja mal. Mestre falou sobre você. Perdoe‐me
por ter falado assim com você; você não tem culpa.
‐ Não, Linner. Eu fiquei calado quando planejavam o ataque. Eu me proibi de acreditar naquilo que via e
sabia. Eu tinha medo. Medo de que me castigassem como Aulë. E fiquei calado.
‐ Eu lembro. Mestre falou também sobre ele. Nos só não podíamos entender uma coisa: como se pode
proibir de criar. Para que isso é necessário. E como matar pessoas, ele também não nos explicou, ‐
sorriso torto. ‐ Mas não tem importância: isso nos vimos por nos mesmos.
‐ ...Então sou simplesmente um covarde, Linner. O meu Maia também foi embora, como Artano de Aulë...
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‐ Gorthaur, ‐ corrigiu o menino.
‐ Como?..
‐ Gorthaur. Mestre de vez em quando o chama por um outro nome: Orthenner. Mas na nossa língua ‐ é
assim.
‐ Sim, claro, ‐ rapidamente concordou Irmo.
Silêncio.
‐ Eu gostaria que você ficasse aqui, ‐ Irmo disse, pensativo. ‐ Mas você não vai querer. Eu, acho, também
não iria querer...
Linner colocou a sua mão sobre a de Irmo:
‐ Você... não, não é um covarde. Você simplesmente não tem coragem de acreditar em si.
Irmo estremeceu involuntariamente; pereceu‐lhe que essas palavras foram pronunciadas por um outro
‐ aquele que era levado, agora, acorrentado, às Mansões de Mandos.
‐ Você não tem culpa, Senhor dos Sonhos, ‐ repetiu Linner.
‐ Eu gostaria de... ‐ quase implorando continuou Irmo, ‐ que você fique. Eu nem tenho com quem
conversar... Mas você tornou‐se mortal, e não o farei um Elfo, e muito menos poderei transformá‐lo
num maia. E não poderá viver aqui... Me parece que eu falo com ele. Não atrevia‐me enquanto era
possível. E depois daquilo que eu fiz, provavelmente não poderei mais...
‐ Você não queria nenhum mal. O que eu digo: ninguém aqui queria mal algum a nos! Somente
realizavam cegamente a vontade de alguém. Como crianças ingênuas.
E novamente Irmo imaginou ouviu uma outra voz.
‐ Mas você, Senhor dos Sonhos... É difícil para mim olhar tão longe, mas você ainda será humano. E,
sabe...
O menino sorriu triste e sabiamente:
‐ Sabe... que seja você a dizer aquelas palavras que o Mestre não teve tempo de dizer. Ele não me
condenaria por essa decisão.
‐ Eu, Linner, escolhi o Caminho de Vidente, e como um sinal do Caminho, em nome de Arta e de Ea,
tomo o nome de Gelleyn, o Olho da Estrela.
Irmo, quase sem voz, respondeu:
‐ Perante às estrelas de Ëa... e... Arta... ‐ Pela primeira vez ele pronunciou o nome do mundo assim, ‐ o
seu nome será... Gelleyn. O seu Caminho está escolhido... Que seja assim.
O menino sorriu:
‐ Agradeço. Adeus.
E fechou os olhos.
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...Ele foi o único que não acordou do seu sono na hora devida.
‐ ...Parece que ele simplesmente teve pena de mim. Perdoe‐me, se puder, por ter dito as suas palavras
em seu lugar.
‐ Você não tem culpa alguma. E depois, ele mesmo decidiu assim.
‐ Ele não pode esquecer. Eu entendi que ele é seu discípulo aluno quando vi, que a vontade dele é mais
forte que a minha. E ele estava certo: a memória não desapareceu, ela dorme em todos ‐ até em Gelli. E
eu... eu queria matar a memória. Não se pode perdoar isso, eu sei...
‐ Mas eles estão vivos. Agradeço‐o.
‐ Eles não são mais seus filhos...
‐ Isso significa somente que do seu pai adotivo eles retornaram ao verdadeiro pai.
‐ Mas não estavam melhor com o adotivo?
‐ Não sei, talvez com os seus atuais pais adotivos eles serão mais felizes, do que... Onde eles estão agora?
Tayli Miríel ‐ eu sei. E os outros?
Irmo baixou os olhos:
‐ Yolli e Eyno ‐ com Manwë. Agora os chamam de Amarië e Glorfindel. Tayo ‐ Laurë – é educado na casa
do rei dos Vanyar Ingwë. Dael, Oyoli, Isilhe e Tiellinn ‐ em Alqualondë, com Olwë. Tiellinn é sua filha
adotiva. Ela...
‐ Eu sei. Os outros ‐ com os Noldor?
‐ Sim.
‐ Melhor não nos encontrar. Se lembrarem ‐ não poderão viver aqui. E se... não, isso não acontecerá.
Sorriu maldosamente:
‐ Assim, o meu irmão mais novo também resolveu arranjar uns discípulos. E defendeu bem a casa dos
seus eleitos!..
E, repentinamente, baixo e triste:
‐ Como tudo foi simples...
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LUZ NAS PALMAS. ANOS 803866 DO DESPERTAR DOS ELFOS
Os Vanyar valorizam o sossego; eles estão contentes com o próprio destino ‐ para que servem a eles
novos conhecimentos, que perturbam as suas almas? Teleri não se esforçam para voltar às Terras
Mortais. Somente os Noldor se parecem com aqueles... No início, eles o evitavam, olhando com receio
para as pesadas algemas de ferro que continuaram para eternidade em seus pulsos ‐ como estigma,
como marca, como lembrete: ele desobedeceu ao Único. Depois se acostumaram também a isso...
E um dia ele viu os livros dos Noldor.
Melkor levou um choque. Na escrita dos Elfos da Luz havia um peso, atípico da leve, esvoaçante escrita
Tay‐an; mas, sem dúvida, essa era a escrita dos Elleri Ahe.
‐ Quem... deu‐lhes esses sinais?
‐ Fëanáro, ‐ respondeu Rumil, um dos mais sábios entre os Noldor.
O coração do Vala Escuro bateu pesado e surdo:
‐ Espere, repita. Essa escrita foi criada por...
‐ Curufinwë Fëanáro, o filho mais velho de Finwë.
Melkor calou‐se.
‐ Ele é considerado por direito o mais sábio dos Noldor, ‐ Rumil suspirou. ‐ Quando nos criávamos a
escrita, gastamos vários anos. Mas os meus sinais não são tão belos, e o sistema é mais complicado.
Fëanáro é talentoso; o trabalho que levou‐me anos, ele fez em um mês. Seus sinais não se parecem
muito com os meus; na verdade, os meus são mais fáceis de entalhar em pedra... Sim, ele me
ultrapassou; provavelmente, logo se esquecerão sobre mim e os meus sinais...
‐ Não, ‐ surdamente respondeu Melkor. ‐ A pedra ficará por séculos. E os livros... ‐ um breve silêncio, e o
fim inesperadamente brusco, ‐ os livros queimam.
Rumil olhou‐o surpreso, mas o Vala Escuro levantou‐se e saiu rapidamente.
...Quando Melkor retornou às Mansões de Námo, o seu rosto estava alterado. Morto. Ele sentou‐se em
silêncio e fitou um ponto na parede.
‐ O que houve? ‐ perguntou Námo, preocupado.
‐ Tengwar, ‐ respondeu Melkor. ‐ Escrita de Fëanáro. Por quê não me disse?
‐ Eu... ‐ Námo não conseguia escolher as palavras certas. ‐ Melkor, eu não pôde... não quis... não tive
coragem...
Como explicar?.. Ele não anotou isso no Livro. Não sabia o que acontecerá com Melkor, quando ele ler.
‐ Teve pena de mim, ‐ com a mesma voz continuou Melkor, ‐ decidiu que isso me quebrará. Ou teve
medo de que eu resolva vingar‐me.
Námo estremeceu: Melkor parecia ler seus pensamentos. O Vala Escuro voltou‐se a ele; um sorriso
torto surgiu no seu rosto:
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‐ Nada. Pelo menos restou alguma coisa deles, ‐ com uma risada morta disse ele, mas o seu riso
transformou‐se ou em tosse seca, ou talvez em pranto; o Vala Escuro virou‐se novamente.
‐ Você sabe... eles ficaram tão felizes com o poder de anotar os pensamentos... Eles... fizeram tudo ‐
sozinhos... Eu só... ajudava um pouco...
Ele parou novamente. De repente, riu baixo, e Námo pensou com horror que Melkor havia
enlouquecido.
‐ Sabe... sabe o que um deles um dia me trouxe? Contos de fadas. Sim, isso mesmo. Depois o chamaram
assim – Contador de Histórias. Sabe, ele conta... ‐ Melkor não disse: “contava”, mas não notou o erro, ‐
...sobre flores, árvores, ervas... sobre o mundo, os pássaros, os animais, as estrelas... Para ele, cada folha,
cada pedra, cada estrela fala com uma voz especial ‐ e conta a sua história, a sua lenda, ‐ Melkor riu
novamente. ‐ Ele diz: quando as crianças crescerem, lerão isso. Sabe, me parece que as crianças devem
amar esses contos. Contos sábios. E ele mesmo ‐ uma grande e sábia criança... Estranho, verdade? E ele
ainda fala sobre outros mundos. E, eu acho, ‐ ele realmente os vê...
Melkor olhou para Námo. No rosto do Senhor dos Destinos, o horror misturava‐se com compaixão e
perplexidade. O sorriso desapareceu do rosto de Melkor. Ele voltou à realidade.
‐ Via, ‐ corrigiu‐se ele, com aspereza. E depois de uma pausa:
‐ Conte, como foi.
Námo balançou a cabeça.
‐ Conte. Eu tenho o direito de saber.
E Námo contou.
Os manuscritos dos Elfos do Escuro foram parar nas mãos de Aulë. E quando Fëanáro resolveu
trabalhar seriamente com a escrita, o Ferreiro entregou‐os ao seu discípulo. Eles entenderam logo.
Assim Tay‐an se transformou em Tengwar Feanorean.
‐ E... os livros? O que aconteceu com eles?
Foram queimados. Ali mesmo, nas Mansões de Aulë. Ninguém alem de Fëanáro tomou conhecimento.
Os livros onde estavam escritos os conhecimentos que vinham do Escuro. Lendas dos Elfos do Escuro e
a sua história.
‐ Não sobrou nada?
‐ Não, Melkor, ‐ a voz do Senhor dos Destinos estremeceu.
‐ Nem mesmo memória... Mas o seu Livro, Námo... Fale, você escreverá sobre isso? Escreverá, não é
verdade? Pelo menos alguma coisa...
‐ Eu prometo que escreverei, ‐ quase sem som respondeu Námo. E repetiu, como um juramento. ‐ Eu
prometo, Melkor.
O Vala Escuro revelou aos Elfos muitas coisas que não eram de conhecimento dos demais Valar; ele era
um mestre atento e paciente. Ele não tinha pressa, pois a sabedoria do Escuro é como uma lâmina, que
fere aquele que não toma cuidado, voltando‐se contra ele.
E a muitos deles as palavras de Melkor pareciam estranhas e perigosas, mas os Elfos ficaram calados.
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E chegou o tempo ‐ o Vala Escuro começou a contar aos Noldor sobre a Terra‐Média. E assim dizia ele:
‐ Vocês são escravos... ou crianças, se assim desejarem; crianças, a quem foi ordenado contentar‐se com
os brinquedos e não tentar ir longe demais, nem aprender demais. Vocês dizem que estão felizes sob o
poder dos Valar: talvez; mas atravessem os limites traçados por eles ‐ e conhecerão toda a crueldade
dos corações deles. Vejam: tanto a sua arte, quanto a sua própria beleza servem somente para enfeitar
os domínios deles. Não é o amor que os move, mas sede de possuir: verifiquem vocês mesmos! Exijam
aquilo que lhes foi dado por Ilúvatar, aquilo, que é seu por direito: todo esse mundo, repleto de
mistérios, que vocês deverão decifrar e conhecer. E a carne desse mundo se transformará em suas
criações, às quais não bastará lugar nesses jardins de brinquedo, separados do mundo por um mar sem
fim, protegidos por cadeias de montanhas...
Noldor ouviam as suas palavras, e aquilo que ele dizia ficou nos corações de muitos. E, vendo isso, o
Vala contou‐lhes sobre os Mortais – Atani:
‐ Vocês se tornarão seus irmãos mais velhos e mestres, ‐ dizia ele, ‐ e juntos farão as Terras
Abandonadas tão, ou talvez mais belas, que Aman.
Os Elfos se maravilhavam com as falas do Vala Escuro, pois os Valar não lhe falaram nada sobre os
Atani: naquele tempo em que Ilúvatar revelou aos Ainur a visão de Arda, souberam também sobre
aqueles que deveriam vir ao mundo após os Elfos. Mas os Elfos eram semelhantes aos Ainur, e eram‐lhe
compreensíveis, enquanto os Homens, estranhos e livres, Mortais – e que após a morte partiam por
caminhos desconhecidos, eram diferentes, e nos espíritos dos Grandes não havia amor a eles, somente
um receio vago. Por isso, os Valar decidiram que os Elfos deverão permanecer em Valinor, ao seu lado;
e não se importavam com os Mortais.
Os Noldor entenderam pouco daquilo que Melkor disse; e aquilo que compreenderam, explicaram a sua
maneira. E acharam que Atani querem dominar as terras que foram destinadas, desde o início, aos
Elfos; e Manwë prende os Eldar em Valinor, pois é mais fácil aos Valar dominar um povo fraco e mortal.
Daquele tempo, nunca houve amizade entre os Elfos e os Homens, e depois os Elfos passaram a falar
que, mais que aos demais Valar, os Mortais se assemelham a Melkor, Morgoth, Inimigo Negro. Somente
um parecia entender tudo: Finarato, o filho mais velho de Arafinwë; somente ele perguntou mais sobre
os Atani ao Vala...
...Naqueles dias, uma nova idéia veio à cabeça de Fëanáro, filho mais velho de Finwë. Ele recordava
daquilo que leu nos livros dos Elleri: um dos discípulos do Vala Escuro pensou em criar pedras que
guardam a luz das estrelas. Bela idéia. Se iguala a das pedras de chama daquele Maia, traidor, que fugiu
de Valinor ‐ disso também contaram os livros. Mas se até eles foram capazes de fazer isso ‐ será que
Curufinwë Fëanáro, o melhor aluno do próprio Aulë, não poderá fazê‐lo melhor do que eles?
Ele se esforçou para lembrar tudo que os livros diziam sobre a criação dessas gemas. Ele completou
aquilo que não entendia com aquilo que sabia. Ele era sábio, hábil e talentoso; ele era imensamente
orgulhoso, por isso admitia que somente o próprio Aulë foi o seu mestre, mesmo tendo aprendido
muito com Mahtan, pai da sua esposa Nerdanel.
Em segredo absoluto, Fëanáro iniciou os seus trabalhos. E trabalhou mais rápido, e com mais paixão do
que havia trabalhado antes. Para criar as suas gemas, ele pegou um pedaço daquele não‐Escuro que
irradiavam as Árvores de Valinor, e confinou‐o em cristais.
Assim foram criadas as três gemas élficas, orgulho e maldição dos Noldor; e o seu nome era Silmarils.
Surpresos e maravilhados, o povo de Aman olhava para a obra de Fëanáro. E Varda as consagrou, e
assim disse:
‐ Que não se atreva a tocá‐las nem aquele cujas mãos estão impuras, nem aquele cujo coração oculta a
raiva, nem um homem mortal; e elas queimarão o corpo do mortal que as tocar.
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E foi predito, naquela hora, que os elementos de Arda, terra, água e ar, ficarão ligados ao destino dessas
jóias.
E o coração de Fëanáro apegou‐se a obra das suas mãos; e a Rainha das Estrelas concedeu
benevolentemente a guarda das gemas à casa de Finwë.
‐ Pois, ‐ disse ela, ‐ a casa de Finwë é a casa de eleitos, e a graça dos Valar está com os descendentes
dele. Grandes foram os feitos de Finwë, Rei dos Noldor, nos dias passados, e grande será a recompensa
dele, e a dos seus filhos. Que sejam estas jóias, de agora em diante, o símbolo da casa eleita pelos Valar!
E Fëanáro fez uma profunda reverência para Varda, e tomou das mãos dela as Silmarils. Desde então ele
passou a se considerar o senhor dos Noldor, o mais sábio, o escolhido. Ele olhava com orgulho e
presunção para os demais Noldor, e mesmo que a sabedoria, talento e beleza dele os atraíssem, os
outros Elfos não lhe tinham amor; nem todos queriam obedecer‐lhe.
Entre os Eldar, eram igualmente honrados Fëanáro e Nolofinwë, os filhos mais velhos de Finwë; por
esta razão, Nolofinwë não queria obedecer a Fëanáro. E pareceu a este que o irmão deseja tomar o seu
lugar no trono em Tirion, e também no coração de Finwë, seu pai.
Então ele voltou a trabalhar em segredo; mas desta vez ele forjou espadas. Os outros Noldor o
imitaram, apesar de ninguém usar armas abertamente.
Fëanáro ouviu falar de Endore ‐ do pai, dos outros Elfos, mas com maior freqüência ‐ do seu sobrinho
Finarato. Justamente devido a palavras do primogênito de Arafinwë o desejo de ver Endore nasceu no
coração de Fëanáro; daquele cujas palavras Finarato repetia, ele não queria lembrar. E pensou assim:
“Quem poderá ser rei das Terras Sombrias além de mim?” Ele notava que o desejo dos Noldor de
retornar a Endore não era de agrado dos Valar, e pela primeira vez pensou – e se Melkor estiver certo, e
Eldar forem somente brinquedos dos Poderes, que servem somente para embelezar Valinor?.. Esse
pensamento feriu cruelmente o seu orgulho; agora, ele chamava abertamente a uma rebelião contra os
Valar e ao retorno; proclamou‐se um grande chefe dos Noldor, prometendo libertar da escravidão
aqueles que o seguirem.
Naquele tempo, Nolofinwë foi até o seu pai, e pediu‐lhe para refrear o orgulho de Fëanáro; e assim
falou:
‐ Meu senhor e pai, refreie o orgulho do nosso irmão Curufinwë Fëanáro ‐ realmente, por direito leva
ele o nome de fogo, pois o seu espírito furioso é semelhante a chamas que a tudo devoram. Quem deu‐
lhe o direito de falar por todo o nosso povo, como se ele fosse o rei dos Noldor? Não foi você que no
passado falou para os Quendi, não foi você que os convocou a Aman? Não foi você o líder dos Noldor na
longa jornada, e nem foi você a guiá‐los das trevas de Endore até a abençoada luz de Eldamar? E se
agora não se arrepende destes feitos, você ainda tem dois filhos que o respeitam!
Mas enquanto ele falava, Fëanáro entrou na sala; e ele vestia uma armadura e carregava uma pesada
espada. Disse palavras iradas a Nolofinwë, acusando o irmão de querer criar inimizade entre ele e o pai.
Nolofinwë não respondeu e dirigiu‐se à saída, mas Fëanáro alcançou‐o e, encostando a lâmina da
espada no seu peito, disse:
‐ Veja, filho do meu pai, isso é mais afiado do que a sua língua! Tente mais uma vez disputar o meu lugar
e ficar entre mim e o meu pai e, talvez, isso livrará os Noldor daquele que deseja se tornar senhor dos
escravos!
Nolofinwë permaneceu em silêncio, ocultando a ira, e saiu; mas os Valar souberam dos atos e das
palavras de Fëanáro, e ele foi convocado a Máhanaxar, para dar‐lhes as devidas explicações. Assim foi a
sentença dos Valar: não é mais permitido a Fëanáro viver em Tirion sobre Tuna. E ele partiu, com os
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seus sete filhos e uma parte dos Noldor, para o norte da terra de Aman, e fundaram ali a cidade‐
fortaleza de Formenos. E Finwë, rei dos Noldor, seguiu com ele para o exílio por amor ao filho de
Miríel...
‐ Mas entre os tesouros de Valimar não há nada que se compare às Silmarils.
‐ Eu já ouvi essa palavra. O que é isso, Rumil?
‐ Ninguém sabe disso, alem de Fëanáro e os Poderes. Fëanáro criou três gemas que contêm a luz das
Árvores. O cintilar dourado e o prateado se misturam nelas, e essa luz parece o brilho de um diamante ‐
e das perolas, e... Melkor, está me ouvindo?
‐ ...Eu queria fazer umas gemas que brilhassem com a luz das estrelas. Gorthaur fez com que a chama
não se apague nas gotas de sangue de Arta. E eu quero que a Liz das estrelas, preservada nas gemas,
seja visível também de dia. Eu quase sei como fazer isso, somente...
Os olhos de Geleon escureceram; ele olhava para longe ‐ como se visse através do tempo.
‐ Somente temo que não terei tempo. Eu anotarei isso; talvez, alguém um dia conseguirá...
Ele parecia um andarilho em suas roupas negras e capa empoeirada: só falta um bordão. Ou um alaúde
nas costas. Se bem que a poeira é clara, brilhante.
Ele parou, maravilhando‐se involuntariamente com a casa: complexos ornamentos traçados sobre os
pilares de pedra, vitrais preciosos emoldurados em prata... Lá ‐ também gostavam disso. Mas a madeira
queima fácil, e então começam a se fundir as rendas de prata das janelas...
A amargura das lembranças ficou na garganta. Não se deve mexer na ferida eternamente – de qualquer
jeito nunca se fechará, como não se curarão as queimaduras nos pulsos.
Ele subiu lentamente os degraus e bateu. A porta abriu‐se quase no mesmo instante ‐ como se o
esperassem, e na soleira surgiu uma figura vestida de negro e vermelho. Negro?!.. ah, sim ‐ Fëanáro
agora não é mais o queridinho do Rei do Mundo.
‐ O que o trouxe aqui?
‐ Quero perguntá‐lo, Fëanáro. É doce o sossego de Valinor? Os favores dos Poderes agradam‐lhe?
Os olhos do Noldo brilharam ameaçadoramente:
‐ Fale.
‐ Você é um artífice, Fëanáro, ‐ com uma amargura incompreensível disse Vala. ‐ Você deseja
permanecer aqui e decorar os jardins de brinquedo com pedras preciosas ‐ ou afinal das contas se
decidirá a conhecer a amargura da liberdade?
‐ Fale.
‐ Eu repito, Fëanáro ‐ a minha força e os meus conhecimentos lhes ajudarão; os Valar não começarão
uma guerra pela segunda vez ‐ e também vocês poderão se defender.
Com um sorriso de orgulho sombrio, Noldo acariciou o precioso cabo da espada.
‐ E o que você quer como prêmio?
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‐ Somente uma coisa: que os Noldor se tornem irmãos mais velhos e mestres para aqueles que os
seguem.
‐ Eu pensarei sobre as suas palavras.
‐ E mais, Fëanáro: permita‐me ver as Silmarils.
“E que o seu não‐Escuro se transforme em luz do Sol e da Lua... Só não sei se haverá então um lugar
para eles nessa terra?..”
Noldo lançou um breve olhar para o rosto pensativo do Vala; nos seus olhos ardia a ira.
‐ Eu entendi para que serviam as suas doces falas, escravo dos Valar!
Vala estremeceu, como se tivesse acordado.
‐ Você desejou a luz das minhas criações somente para você mesmo! Vejo que, por mais fortes que
sejam estas paredes e por mais valentes que sejam os guardiões, na terra dos Valar isso não basta para
guardar as Silmarils! Retire‐se, criminoso, retire‐se para a prisão de Mandos ‐ ali é o seu lugar! Longe
das minhas portas!..
‐ E Varda consagrou essas gemas, dizendo que não as tocará nem aquele cujas mãos estiverem impuras,
nem aquele cujo coração oculta a raiva, nem aquele que segue o caminho dos Mortais, e elas queimarão
a carne mortal que as tocar. E de agora em diante, disse ela, essas gemas serão o símbolo da casa dos
eleitos... Está me ouvindo, Melkor?
‐ Sim. É o preço pelo sangue.
‐ O que você está falando?!..
...Ele irrompeu na sala como uma tempestade rubra e dourada. O Vala Escuro, que explicava algo aos
Elfos, calou‐se e encarou o filho de Finwë.
‐ Por quê estão o ouvindo! ‐ urrou Fëanáro. ‐ O que ele pode contar a vocês que não seja do
conhecimento dos outros Valar? Ele só mesmo sabe é falar bonito; mas o veneno das suas palavras
penetra imperceptivelmente nas suas mentes – os seus espíritos foram envenenados pelo Inimigo!
Ele virou‐se para Melkor. O rosto do Vala Escuro estava calmo, triste e cansado, e isso fez o filho de
Finwë perder totalmente o controle:
‐ Como você se atreve a olhar para o meu rosto, escravo! Ajoelhe‐se perante o rei dos Noldor!
No silêncio repentino, soou a voz fria de Melkor:
‐ Você não será rei dos Noldor por muito tempo, filho de Finwë, e a sua coroa foi paga com sangue. Sim,
o ferro ata as minhas mãos, mas eu sou mais livre do que você: o medo dos Valar, temor de desobedecer
a ordem deles e abandonar estas terras faz de você um escravo. Eu nunca fui inimigo dos Noldor; se
vocês tiverem coragem de escolher a liberdade, eu os ajudarei a partir de Valinor; e eu, um Vala, lhes
darei auxílio e proteção...
‐ Não o ouçam! Está mentindo!
‐ E a você, Noldo da casa de Finwë, eu digo: cuidado! ‐ disse Melkor, e havia uma ameaça oculta na sua
voz.
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Eles se encaravam agora: Fëanáro vestido de vermelho e dourado, com uma preciosa corrente de ouro
no peito ‐ e Melkor em vestes negras simples, calmo e perigoso como uma lâmina negra. Os Noldor
recuaram e os olhavam perplexos, como crianças assustadas. O olhar penetrante de Melkor fez o filho
de Finwë estremecer, fazer involuntariamente o movimento de quem deseja desembainhar uma
espada. Melkor não se moveu, e Fëanáro foi obrigado a baixar os olhos. No olhar de Melkor havia uma
sombra de zombaria:
‐ Cuide‐se, Noldo, ‐ repetiu ele devagar.
E vieram para o Conselho dos Poderes também aqueles dos Eldar que se assustaram com a sabedoria
que Melkor havia compartilhado com eles; e falaram contra ele, e o acusaram perante Manwë.
E o Rei do Mundo, irado, ordenou Tulkas capturar o rebelde e novamente levá‐lo ao julgamento.
“Tomara que dê tempo...” ‐ pensava Námo febrilmente.
‐ Melkor!..
O eco correu, batendo nas paredes da sala escura.
Ele surgiu em instantes, o Vala Escuro alado. Námo falou com dificuldade:
‐ Melkor, eu tinha pressa... de avisar a você... eles...
‐ Eu sei, ‐ disse aquele baixo. ‐ Estou partindo. Agradeço‐o, meu irmão.
Algo estremeceu na alma do Senhor do Destino quando ele ouviu essa voz, triste e honesta; uma nó
ficou na garganta.
...Como ele sabia rir ‐ livre, aberto; parecia que o mundo inteiro alegra‐se junto a ele... Como era o seu
sorriso – claro, confiante, alegre ‐ sorriso surpreendente; e os olhos de estrelas brilhavam...
Námo daria tudo para ver o irmão assim novamente; mas desde a execução dos Elfos do Escuro, Vala
jamais sorriu: somente um sorriso torto marcava o seu rosto de vez em quando, e nos olhos havia uma
tristeza negra. E Námo desejou dolorosamente dizer algo ao Vala Escuro, para que a dor o deixe pelo
menos por um instante. Ele procurava palavras ‐ e não as encontrava. Ele somente repetiu:
‐ Melkor... ‐ e baixou os olhos. Somente agora Námo notou nas mãos do Vala rebelde uma espada.
Espada estranha: a sua lâmina cintilava como uma estrela negra, e uma fina corrente de faíscas brancas
azuladas corria pelo seu centro. A sua empunhadura acabava com algo semelhante a asas negras, e o
Olho do Escuro ‐ pedra‐estrela, semelhante a um olhos ‐ brilhava ali. A empunhadura era coroada pela
foice de uma lua negra.
‐ O que é isso, Melkor? Para que?
‐ O guardião de Arta não pode permanecer desarmado, Námo. Essa é a Espada‐Vingança; você estava
certo ‐ eu não consigo perdoar. Não poderei esquecer, meu irmão.
Um curto silêncio. Depois ele adicionou:
‐ Um dia, você também fará uma espada.
‐ As minhas mãos não servem para criar algo assim, ‐ disse o Senhor do Destino ‐ e no mesmo instante
teve medo de ter ofendido o Vala Escuro.
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‐ E nem as minhas servem para destruir e matar.
Os dois se calaram. Depois Námo perguntou, como se tentasse se desculpar pela involuntária grosseria:
‐ Conte me, o que... significa esse símbolo?
‐ A Onisciência do Escuro, ‐ resposta breve.
Ele tocou a mão de Námo com os dedos gélidos e repetiu:
‐ Eu estou partindo. Até o próximo encontro, meu irmão.
E de repente Námo compreendeu o que o torturava tanto. Palavras estranhas emergiram do nada ‐
sobre espinhos e coroa de ferro em brasa ‐ e ele exclamou:
‐ Não, não precisa! Melhor que não haja esse encontro!
‐ Você mesmo sabe, meu irmão ‐ será assim.
‐ Melkor... Meu irmão...
‐ Adeus.
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SOBRE O PERECIMENTO DAS ÁRVORES DE VALINOR. ANOS 867869 DO DESPERTAR DOS ELFOS
“Assim, sem ser visto, ele afinal chegou à sombria região de Avathar. Essa terra estreita ficava ao sul da
Baía de Eldamar, junto aos sopés orientais das Pelóri, e suas praias tristes e longas se estendiam para o
sul, escuras e inexploradas. Ali, abaixo das muralhas escarpadas das montanhas e junto ao mar frio e
negro, as sombras eram as mais profundas e densas do mundo; e ali, em Avathar, em total segredo,
Ungoliant havia feito morada. Os eldar não sabiam de onde ela teria vindo; mas alguns diziam que, em
épocas muito remotas, ela descera da escuridão que cerca Arda, quando Melkor pela primeira vez
contemplara com inveja o Reino de Manwë, e que no início ela fora um dos seres que ele corrompera
para seu serviço. Ungoliant, no entanto, renegara o seu Senhor, por desejar ser senhora de seu próprio
prazer, tomando para si todas as coisas a fim de nutrir seu vazio. E ela fugira para o sul, escapando às
investidas dos Valar e aos caçadores de Oromë, pois a vigilância destes sempre fora dirigida para o
norte, e o sul ficara por muito tempo negligenciado. De lá ela se arrastara na direção da luz do Reino
Abençoado; pois ansiava pela luz e a odiava...”
...O Nada acinzentado e disforme; gerado pelo Vazio e próprio – o vazio, cercado de não‐Luz...
Melkor estremeceu de nojo e rangeu os dentes.
Ele estava perante a cria do Vazio: o Vala Escuro vestido de Escuridão. Perante o Disforme, ele estava na
sua forma verdadeira, e nos olhos claros e impiedosos havia uma coragem fria. Ele disse:
‐ Siga‐me.
E foi, sem se virar, sabendo que, obediente à sua vontade, acorrentada por medo dele, como um cão
castigado segue o dono, segue a Besta. Ele agora sentia a sua presença atrás ‐ a fria respiração mortífera
do Vazio.
No pico Hyarmentir, no extremo sul de Valinor, na terra de Avathar – terra das Sombras – ele parou,
olhando para baixo, para as terras Abençoadas dos Imortais; ele olhou para o norte, e viu ao longe os
vales cintilantes e grandiosos palácios de Valimar que brilhavam como. E ele viu as Árvores.
...Quando as Lâmpadas ruíram, o pavor tomou conta os Poderes de Arda. E era noite, mas eles não
viram as estrelas; e era dia, mas eles não viram o Sol, pois pela vontade do Único os seus olhos estavam
fechados, e até a hora certa foi lhes dado somente olhar, sem ver. E havia Escuridão; e ela encheu os
seus corações de medo, pois eles desconheciam a sua essência e o seu significado. E eles amaldiçoaram
o Senhor do Escuro e fugiram apavorados para a terra de Aman, que se tornou a Morada dos Poderes de
Arda. E no monte Corollairë, que se chama também Ezellohar, eles se reuniram. E Yavanna subiu no
monte, e invocou o Único. Naquela hora, os demais Valar lhe emprestaram os próprios poderes, e o seu
chamado foi ouvido. E com o poder do Único e dos Valar foram criadas as duas Árvores de Valinor. E a
árvore Prateada foi chamadas de Telperion, e a Dourada ‐ Laurelin. E o Escuro recuou diante do não‐
Escuro das Árvores, que não era a Luz; pois onde não há lugar para o Escuro, não existe também a Luz.
Não Arda, mas o Vazio deu vida às Árvores. E de agora em diante, os Valar podiam buscar forças do
Vazio criado pelo Único, para realizar a sua vontade no mundo; mas eles permitiram que o Vazio
penetre no mundo, e este Vazio poderia destruir a própria Arta. E os Valar se alegraram, mas Fëanturi
permaneceram em silêncio, e Nienna chorava. E Valië Yavanna não pôde criar mais nada, pois aquele
que tocou o Vazio e o aceitou não pode ser um criador.
Era o tempo de uma grande festividade em Valinor, e por ordem do Rei do Mundo Manwë, nas suas
mansões no topo de Taniquetil se reuniram os Valar, os Maiar e os Elfos. E Fëanáro, o filho mais velho
de Finwë, também compareceu; mas deixou as Silmarils, sua grande obra, em Formenos. Nem o seu pai,
Finwë, nem os Noldor de Formenos vieram.
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Nessa hora, Melkor desceu do pico de Hyarmentir e subiu na colina verde de Corollairë. E a Besta que o
seguia envolveu as Árvores em não‐Luz. Ela sorveu a sua vida e as secou; e elas se transformaram em
esqueletos escuros e quebradiços. Assim pereceram as Árvores, a grande criação de Yavanna
Kementári, e elas jamais renasceriam; e a Besta absorveu o poder das Árvores.
E Melkor desceu da colina; mas a Besta, cercada de não‐Luz, o seguia.
...E começou a noite. E os Valar se reuniram em Máhanaxar, e ficaram em silêncio por muito tempo.
Valië Yavanna subiu o monte e tocou as Árvores; mas elas estavam negras e mortas, e os galhos
quebravam e caiam no chão ao toque de suas mãos.
“Muitos então elevaram as suas vozes e choraram; e parecia a estes que eles beberam até o fundo do
cálice de amarguras que Melkor lhes preparou; mas isto não era verdade...”
E Yavanna afirmou que poderia ressuscitar as Árvores, se tivesse pelo menos uma gota da sua
abençoada luz. E Manwë pediu que Fëanáro entregue as Silmarils para Yavanna; e Tulkas ordenou o
filho de Finwë ceder aos rogos de yavanna. Mas Fëanáro respondeu que as gemas lhe são preciosas
demais, e ele jamais poderá criar algo semelhante a elas.
‐ Pois, ‐ dizia ele, ‐ se eu as quebrar, quebrarei também o meu coração e morrerei ‐ primeiro dos Elfos
na terra de Aman.
‐ Não o primeiro, ‐ resmungou Námo surdamente; mas poucos compreenderam as suas palavras.
Fëanáro ficou pensativo; mas ele não desejava obedecer à ordem dos Valar. E exclamou:
‐ Isso eu não farei de livre e espontânea vontade. Porém, se os Valar me forçarem, saberei então com
certeza que Melkor é da sua estripe!
‐ Você disse, ‐ respondeu Námo.
E Nienna chorava.
Naquela hora vieram mensageiros de Formenos; e traziam notícias funestas.
“Pois contaram como uma Escuridão cega chegara ao norte, e no meio dela viera algum poder para o
qual não havia nome; e a Escuridão emanava desse poder. Melkor, porém, também estava lá e fora à
casa de Fëanáro. Ali ele assassinara Finwë, Rei dos Noldor, diante das portas, e derramara o primeiro
sangue no Reino Abençoado; pois somente Finwë não havia fugido ao horror das Trevas. E contaram
que Melkor arrombara a fortaleza de Formenos, tirando todas as pedras preciosas dos Noldor que lá
estavam guardadas; e as Silmarils havias desaparecido...”
O rosto de Melkor parecia feito de pedra:
‐ Eis que nos encontramos novamente, Finwë, o escolhido dos Valar.
A voz do Vala Escuro era calma, mas uma chama fria de ódio ardia nos seus olhos claros.
‐ Eis que nos encontramos novamente, Melkor, escravo dos Valar!
...Diz‐se que as palavras abrem feridas. E é verdade. Não foi a primeira, e nem a última vez que o
chamaram de escravo. Isso era sempre a primeira ofensa que vinha a cabeça dos seus inimigos quando
eles viam as algemas de ferro nos seus pulsos. E isso sempre causava dor.
‐ O tesouro dos Noldor o perturbam?
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A voz do Vala continuou fria:
‐ Talvez eu tenha sido um escravo, mas carrasco e assassino dos próprios irmãos ‐ nunca. Pegue a
espada e lute: eu não mato desarmados. E para que os tesouros? Sim, eu levarei as Silmarils, o preço do
sangue. Mas a sua vida primeiro. Você morrerá.
O rosto do Rei dos Noldor estava quase alegre. Ele não tinha medo de morrer ‐ e não porque
desconhecesse a morte; nos seus olhos, havia um reflexo de insanidade:
‐ Não será assim tão fácil levar a minha vida!
Vala entendeu, de repente, ‐ Finwë sabe que morrerá. Verdadeiramente, Tayli não amou a um covarde.
‐ E sobre o preço do sangue... Mentira, como sempre! Mentira, mentira! Não foi você que os criou, e não
tem nenhum direito de possuir estas gemas! Você cobre a sua ganância com palavras belas. Você é
simplesmente um ladrão, diga logo ‐ me dê as gemas, pois eu as desejo, assim será mais honesto!
Finwë riu, apertando os dentes ‐ assim seguram o grito de dor na garganta. Nos seus lábios, um sorriso
de desafio, e dor em seus olhos.
‐ Eu não pretendo argumentar contigo. Basta que vocês me tiraram o que me era mais precioso. Acha
que eu não sei quem criou a escrita? Não li aquilo que estava nos livros queimados? Não conhecia
aquele, ‐ a cada palavra, a voz de Melkor ficava mais alta e áspera, ‐ não conhecia aquele que devia criar
essas gemas e as encher de luz viva? Sim, Fëanáro fez isso, mas o plano não lhe pertence!
‐ Mentira!
‐ Você sabe muito bem que não. E sabe que pagará! O preço do sangue – pelo sangue deles. Sua vida ‐
pelas vidas deles. O mais precioso ‐ pelo mais precioso.
‐ Eu estou feliz por ter feito isso! Sim, feliz! Agora você não tem poder sobre eles!
As espadas cruzaram‐se. Vala combatia em silêncio, Finwë golpeava‐o com gritos furiosos e insanos.
‐ Sim! Estou feliz! Um milhar de vezes... eu faria... o mesmo!
Os seus rostos estavam muito próximos ‐ olhos nos olhos ‐ sobre as espadas cruzadas.
‐ Até Miríel? A ela ‐ também?!
‐ Não, ‐ riu Noldo, ‐ foi você que a matou! Você! Você corrompeu os espíritos deles e quebrou o coração
dela! Por sua culpa ela está morta! Se você não existisse, não haveria estas mortes!
Por um instante, um pensamento insano ‐ falar com ele. Fazer entender. No próximo segundo entendeu
‐ não adianta. Não é o lugar, nem o tempo, e o espírito – propositalmente surdo. E depois novamente viu
‐ aqueles... “Até por Tayli. Nem mesmo pelos rogos dela haverá perdão para você. Ela lembrou. Agora
sabe ‐ porque. Mas não tocarei Fëanáro. É o sangue dela...”
‐ Você morrerá, ‐ disse ele, quase inaudivelmente. Não falou mais nada até o fim do combate.
O próximo golpe de Melkor acertou‐o na barriga, Finwë soltou a espada e caiu. Melkor se curvou‐se
sobre ele.
‐ Lembre da dor deles. Pois você viu, como eles morriam.
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O Elfo gemeu abafadamente. Vala olhava nos seus olhos:
‐ Está certo. É inadmissível permitir que um ser vivo sofra tanto, ‐ com um sorriso amargo disse Melkor.
O último golpe, rápido ‐ no coração.
A vida se agarrou ao corpo por alguns instantes ainda, e os lábios se mexeram quase
imperceptivelmente. Vala estremece ao entendendo qual é o nome que morria nos lábios que
esfriavam.
“Miríel...”
Ele virou‐se e foi embora.
...Ele voltava a Endorë, e levava consigo as Silmarils, o preço do sangue. E as gemas queimavam a sua
palma como carvão em brasa ‐ o não‐Escuro é mais inimigo do Escuro do que a Luz; mas ele somente
apartava mais o punho.
A Besta continuava o seguindo. Ela sentia o próprio poder ‐ poder dado a ela pelo não‐Escuro das
Árvores. E quando Melkor parou, ela o atacou.
Ele sabia que será assim, estava pronto para isso. Mas a dor tirava forças. Ele sentia o único desejo da
Besta: fugir, escapar para além dos limites deste mundo. E sabia: isso não deve acontecer.
Agora eles eram iguais em poder, e para fortalecer‐se, a Besta precisava somente de uma coisa:
Silmarils, a última partícula do não‐Escuro de Valinor.
‐ Você não as terá, ‐ disse Melkor.
Ele pronunciou a Palavra do Fogo, e um círculo de chamas se fechou em volta deles, e a Besta não tinha
poder para sair dele.
Ele pronunciou a Palavra do Escuro, e o Escuro se transformou em seu escudo, e a Besta recuou para o
limite do círculo.
Ele perdia forcas; preso a Arda pela palavra de Eru, ele não poderia buscar forças em Ëa, fora dos
limites deste mundo. Parecia que uma voz servil estivesse sussurrando: pegue as forças de Arda, você
pode fazer isso, você é o verdadeiro Senhor de Arda. Mas ele expulsava esses pensamentos: fazer isso
significava destruir, transformar em nada uma parte do mundo. Isso não faria parar o Rei do Mundo;
mas aquele que amou disse ‐ “não”. E agora ele podia contar somente consigo mesmo.
A dor tirava forças ‐ mas também não permitia perder o controle de si. Ele pronunciou a Palavra da
Forma; e uivando de desespero e raiva, a Besta tomou a forma de uma enorme aranha, monstro
cinzento de mil olhos.
Ele pronunciou a Palavra da Terra; e a Besta recebeu um corpo mortal. E, chiando de ódio, ele se atirou
a Melkor: aquele somente teve tempo de erguer o braço, defendendo‐se, e a curva garra afiada
escorregou sobre o ferro da sua armadura; Melkor notou, na ponta dela, uma gota de veneno
esbranquiçado.
Restava somente pronunciar a Palavra da Morte, mas ele já não tinha mais forças. A Besta encolheu‐se
para saltar. E então Melkor gritou, e o seu grito ecoou nas encostas das montanhas negras, e parecia
que a própria terra tremeu, como se Arta sentisse a dor e o sofrimento daquele que amou o mundo.
E as montanhas negras lembram da voz de Melkor e da sua dor. Essa memória transformou‐se em eco;
e Lammoth, Grande Eco, passou a se chamar o vale desde então
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E nas mansões subterrâneas de Ast Ahe, os Ahere ouviram o chamado do Senhor. Como uma
tempestade de fogo, um vento ardente eles voaram sobre a terra; e entraram no circulo de fogo; e com
seus açoites de fogo expulsavam para longe a Besta do Vazio ‐ Ungoliant. Ali onde ela se arrastara, a
terra por muito tempo permaneceu morta por causa do seu sangue e do seu veneno. Nas Montanhas do
Terror, Ered Gorgoroth, na caverna mais profunda, ela se escondeu dos açoites de fogo, e desde então
nunca e ninguém a viu, e não é conhecido como pereceu Ungoliant, filha do não‐Existir.
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A FUGA DOS NOLDOR. ANOS 870871 DO DESPERTAR DOS ELFOS
As suaves pérolas rosadas rolam, cintilando, no cálice de madrepérola. Teleri gostam de pérolas. Seus
jovens freqüentemente nadam bem longe ao Mar, erguendo do fundo conchas de inigualável beleza, e
estranhos peixes com nadadeiras cintilantes brincam com os mergulhadores. Quase todos os Teleri
usam jóias de pérolas, corais e conchas. E até o próprio palácio de Olwë em Aqualondë se assemelha a
uma enorme e frágil concha branca. Aqui sempre há uma suave penumbra, e o palácio cintila
ligeiramente na beira do Mar. As ondas avançam e recuam – são elas que cantam? ou estas são as vozes
dos Filhos do Mar, Teleri? Até mesmo aquele que ouviu as canções dos Vanyar não pode não cair sobre
o inquieto encanto destas canções. O canto dos Vanyar é para as grandes festividades, para disputas de
canções; a música dos Teleri – para reflexões, ligeira tristeza e doce sonho...
Nerwen balançou a cabeça, pensativa:
‐ Que canto... Por quê, senhor, os seus súditos comparecem tão raramente nas festas em Valmar?
‐ Nos não gostamos muito de tudo que é barulhento e berrante. E não estamos muito contentes com o
sossego.
‐ Nem os Noldor.
‐ Não. Vocês buscam outra coisa. Mais exatamente, não tanto achar, mas refazer e domar. Sem bem que
não serei eu a os julgar. Não sou Noldo. Desculpe se não compreendo direito o seu povo.
‐ Eu mesma já não compreendo... Mas eu também não sou inteiramente Noldë. Posso chamá‐lo de pai,
pai da minha mãe?
‐ Claro, minha filha. Mas o que a preocupa? O que aconteceu em Valmar? Qual foi o mal que se abateu
sobre Tirion? Eu já ouvi sobre o exílio do irmão do seu pai. Lamento a tristeza de Finwë, mas Fëanáro é
merecedor de uma punição.
‐ Meu pai, uma inquietação surgiu nos espíritos dos Noldor. Talvez, foram realmente as palavras de
Melkor que levantaram o lodo do fundo dos nossos corações... Mas, meu pai, por mais terrível que isso
seja ‐ parece‐me que ele está certo em muitas coisas! Ou as vezes a verdade e a mentira seguem pelo
mesmo caminho? Poderá isso acontecer?E como, então, diferenciar uma da outra? Sabe, o meu coração
agora é como um pássaro cativo. Pesa‐me viver aqui. O que eu posso? Todos dizem ‐ você é a primeira
das donzelas dos Eldar, é a mais forte, mas sábia, mais bela... Para que tudo isso, se eu não posso nada?
Nada posso mudar aqui tal como eu gostaria... Provavelmente é mal pensar assim, pois nos disseram
que assim se iniciou o caminho de Melkor. Será que nos, em nossos corações, nos inclinamos ao Escuro?
Eu tenho medo de mim, eu não me entendo... Eu quero criar ‐ criar no mundo por nos abandonado. Algo
me atrai para lá.
‐ Mas talvez é assim que deve ser? Não haverá mal se você abrir os seus pensamentos aos Grandes.
Quem, além deles, saberá sobre nós aquilo que nos mesmos não sabemos? Se esta é uma doença, não
haveria cura, em Valinor, para qualquer mal?
‐ Não, meu pai. Miríel não retornou.
Olwë suspirou.
‐ Não se entristeça. Vá, fale aos Poderes. Não fique triste, minha filha.
Ele encheu os cálices de vinho dourado e esverdeado de uma jarra feita de concha, e pérolas
começaram a girar no fundo dos cálices.
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‐ Esse vinho foi abençoado por Yavanna. Ele te alegrará. Os espíritos como o seu não devem entristecer!
Filha da minha filha, não fique triste! Saiba ‐ se os desejos do seu coração forem de agrado dos Grandes,
e se o seu caminho levá‐la às Terras Esquecidas ‐ não se preocupe sobre o navio. Ele já te espera. Veja!
Olwë levantou‐se e foi a janela de vitrais, empurrou‐a e o vidro se abriu para fora. As ondas
esverdeadas e douradas, como o vinho, balançavam levemente os navios brancos e prateados, e as suas
velas sonolentas pareciam respirar ligeiramente sob a brisa suave. O vento remexia os cabelos
acinzentados de Olwë, as mangas largas das suas vestes brancas lembravam as asas de uma andorinha.
‐ Aquele, ‐ apontou o rei. ‐ É o meu navio. Receba‐o de presente, filha da minha filha!
...E o que houve depois? Eldar não sabem esquecer, não receberam esta misericordiosa dádiva. De vez
em quando, tem‐se involuntariamente inveja dos Mortais ‐ foi lhes dado o esquecimento. Ou isso é uma
compensação pela morte? Somente os Grandes sabem...
...E a Luz se extinguiu lentamente, e as estrelas cobriram o céu como milhares de feridas sangrando. A
Luz se extinguia, e o horror erguia‐se nos corações. A noite infinita caiu sobre Valinor, a noite cheia de
fumaça das tochas, cheia de ira e de dor.
Provavelmente, em crônicas não será escrito assim. E também os sábios falarão de maneira diferente ‐
Eldar nada esquecem, mas nem tudo o que houve pode ser lembrado. E houve ‐ os olhos abertos
imóveis de Finwë, que pareciam vidro cinza. Pela primeira vez, Nerwen via a morte, e esta era terrível
pela sua artificialidade. Tão terrível que ela se surpreendeu com a própria calma ‐ ela simplesmente não
conseguia sentir esse horror. A luz das tochas dava a tudo em volta a coloração de sangue do aço em
brasa. Parecia‐lhe que Fëanáro agora queimará todos um com um único toque... E houve ‐ a camisa
ensangüentada de Finwë nas mãos de Fëanáro, enlouquecido de dor e raiva, e ele a atirou no rosto do
mensageiro dos Valar, os acusando desse assassinato, pois eles eram da estripe de Morgoth. Foi então
que esse nome ‐ Morgoth ‐ soou pela primeira vez, e o filho do morto exigia daqueles da estripe do
assassino a recompensa pelo pai. Era terrível olhar para ele ‐ e impossível não olhar. Era terrível ouvi‐lo
‐ e impossível não ouvir. Como causa dor a mordida do fogo, assim próprio fogo desfaz a escuridão ‐
perigoso e belo; assim as falas e a aparência de Fëanáro faziam todos obedecerem‐lhe ‐ não de má
vontade, mas com uma admiração furiosa e cruel. Artanis chamou‐a o pai dela, mas ela era agora
verdadeiramente Nerwen. E havia o juramento ‐ aquele juramento que selou o destino deles na fumaça
e fogo das tochas, no brilho feroz e vermelho das lâminas desembainhadas... E ‐ quase mais terríveis
que a ira de Fëanáro ‐ as lágrimas de Nolofinwë, rubras como sangue nos reflexos do fogo. Ele não
jurava ‐ mas a sua espada, apontada para o céu, era o seu juramento ‐ juramento de vingar o pai. Isso
era compreensível sem palavras.
Foi exatamente naquela hora que ela compreendeu que tudo mudou. Agora ela deveria partir, mesmo
não tendo feito o juramento. A vingança a levava, mas muito mais ‐ o desejo de mudar este mundo para
não ver mais, de forma dolorosamente inevitável, os olhos parados de Finwë, para, ao retornar,
depositar aos pés dos Valar um mundo livre de dor, tristeza e raiva... Quem saberia que o mal mais
terrível acontecerá em Valinor, que os próprios Noldor serão o mal, que eles levarão esse mal às Terras
Abandonadas... Quem saberia...
Ela foi primeira a levar notícias detalhadas do ocorrido aos Teleri. Olwë caminhava nervosamente pela
sala:
‐ Agora você não poderá navegar.
‐ Não, meu pai! Justamente agora! Não há mal em mim. Deve haver pelo menos uma pessoa com eles
que poderá fazê‐los voltar a si? Eu sou do sangue deles. Acreditarão‐me. Senão, eles chegaram lá
tomados de imensa ira e fúria, e perecerão todos!
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‐ Mas...
Olwë não teve tempo de responder. Um Elfo em trajes prateados da corte entrou na sala e disse que
Fëanáro exige um encontro...
Ela lembrava desse combate, curto e terrível. Então Nerwen tornou‐se verdadeiramente igual aos
homens, e o sangue dos irmãos cobria os seus braços até o cotovelo. Isso era terrível e belo ‐ matar, e o
horror lutava no coração dela com o êxtase. Lembrava como tudo parou por um instante quando ela de
repente – olhos nos olhos ‐ encontrou com Fëanáro. Depois o destino os separou.
‐ Não fique no meu caminho, mulher, ‐ urrou ele.
‐ Eu sempre ficarei no seu caminho! ‐ respondeu ela no mesmo tom. Alguém gritou atrás, e Fëanáro
virou‐se, e Nerwen recuou – para auxiliar Olwë. E se ela o tivesse golpeado então ‐ tudo seria diferente...
Olwë estava ferido, e ela quase o arrastava até os navios. Noldor já cobrias os convés, como formigas, e
somente o navio do próprio Olwë era ainda defendido. Um massacre atrás, combate em frente – restava
somente um caminho – abrir o caminho até o navio. Com uma dúzia de Teleri, eles abriram o caminho.
O navio levantou âncora, e do convés eles assistiram, tomados de fúria impotente, o massacre e a
destruição dos outros navios, sem utilidade para os Noldor.
‐ Vá atrás deles! ‐ chorou Olwë, rangendo os dentes. ‐ Vá! Agora eu te peço. Castigue‐os você, se os Valar
permitiram isso! Vingue‐se por nos, filha da minha filha, Nerwen!
Ela apertou a mão de Olwë em silêncio.
...Na noite que caiu sobre Valinor, cortada pelas chamas dos incêndios, os Noldor viram a alta e sombria
figura do Senhor do Destino. E a voz, terrível e impiedosa, pronunciou a sentença que quebrou a
predefinição de Eru:
‐ Vocês estão expulsos de Valinor, e não há retorno para vocês. Nem mesmo o eco das suas lamentações
atravessará as montanhas. Amaldiçôo a casa de Finwë, que derramou o sangue dos próprios irmãos, e a
maldição se abaterá sobre esta casa e sobre todos aqueles que se dispuserem a acompanhá‐los, desde o
oeste até o extremo leste de Arda. Vocês jamais possuirão por que fizeram o juramento, pois este é o
preço do sangue. Todas as coisas que iniciarem se voltarão contra vocês. Vocês traíram os seus irmãos,
e os seus irmãos os trairão. Vocês derramaram sangue alheiro, e se afogarão no próprio. Vocês
condenaram os outros a morte, e conhecerão os tormentos da morte, pesares e dores dos mortais.
Agora sentirão, na própria pele, tudo aquilo que por sua culpa os outros – dor e sofrimento, tormentos
do corpo e do espírito, traição e tristeza, impotência e derrota. E vocês retornarão a Valinor, e seus
espíritos virão, então, às minhas Mansões, e não encontrarão repouso, pois eu os julgarei pelos seus
feitos. E aqueles que resistirem na Terra‐Média e não retornarem a Valinor que sejam por ela
renegados, e que vejam a própria vileza nos dias de chegada daqueles a quem a Terra‐Média foi
destinada. Eu, Námo, disse. Que seja!
Nem todos compreenderam as palavras de Námo, mas foi pela palavra dele. E para a eternidade os
descendentes de Finwë ficaram aprisionados nos subterrâneos de Mandos, e a vontade de Manwë não
pôde resgatá‐los, pois os Valar não oferecem por duas vezes...
‐ Eu irei para lá mesmo assim, ‐ sussurrava Nerwen. ‐ Eu entendi. Eu sou o castigo dos Valar. Eu sou a
espada nas mãos deles...
Na noite infinita, o navio de asas prateadas zarpou. Abençoada era Nerwen aos olhos dos Valar, e antes
do exército dos Noldor as ondas a trouxeram às Terras Mortais, aos domínios de Círdan.
Como descrever essa viagem solitária na escuridão? Ela estava sozinha a bordo. Ela e os seus
pensamentos, seu medo que a chamava de volta aos pés dos Valar, para a confortável e calma
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segurança. E a sua sede de conhecimentos e viagens, tal que não há nada mais poderoso neste mundo.
Quão bem ela compreendia o irmão, Finarato... Onde está ele agora? Nolofinwë, se não recuou, deverá
seguir pelo gelo ‐ não há outro caminho, não sobraram mais navios. E dificilmente Teleri ajudarão aos
parentes dos assassinos, ainda mais contra vontade dos Valar. Sozinhos, abandonados por todos... O que
restou a eles, além da coragem e da honra? Ela sabia muito bem ‐ eles não desejarão perder os últimos
restos... Então, aos que não têm culpa – o caminho mais difícil...
Através das neblinas e da escuridão, fora dos dias e anos, o navio voava, e o vento de Endorë atirava
água salgada em seu rosto, vento trazia cheiros desconhecidos da terra, dolorosamente atraentes, da
terra estranha... E estrelas! Quantas eram, quão forte elas brilhavam aqui! E parecia‐lhe ‐ a própria
Elentári ilumina o seu caminho. Realmente, a boa sorte a acompanhava, e ela se tornou a mensageira
dos Valar...
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A TERRA DA ESTRELA. ANOS 516872 DO ACORDAR DOS ELFOS
Chegou o dia em que a Estrela levou os Elliri até as margens mar. O mar frio do norte do breve verão
nórdico. Tudo parecia grisalho, como se uma camada de sal cobrisse e o céu, e as areias pálidas, e as
ervas; as águas verde‐acinzentadas arrastavam o olhar para algum lugar distante, para o lugar onde o
céu se unia ao mar, e parecia aos homens que a tão esperada Terra da Estrela emergirá ali a qualquer
momento. Eles ficaram em silêncio e ouviam o sussurro incompreensível das ervas e os suspiros da
areia, a voz baixa das ondas e os gritos distantes das andorinhas brancas, e eles compreendiam ‐ o mar
e o vento falam com eles, lhes trazem novas sobre a terra longínqua, mas ainda não sabiam o que
significavam as palavras do vento e do mar. E uma tristeza incompreensível aninhou‐se em seus
corações, e alguém disse ‐ são os Feitiços Marinhos, Tellor ‐ força do Mar. E eles amaram o mar para
sempre. A força do Mar deu força aos seus barcos, e a força do Amor os guardava na viagem. Os barcos
iam para o norte sob velas brancas como espuma, e nem as tempestades, nem os gelos fechavam o seu
caminho, e o vento levava nas suas asas as suas embarcações‐cisnes. Feliz foi a sua jornada. E então ‐ na
neblina marinha da manhã eles viram as ilhas, e flocos brancos de espuma se transformavam em
andorinhas voando sobre as rochas, dando boas‐vindas aos homens com seus gritos. E aqueles que
viam melhor do que os outros ‐ aqueles viam a Estrela até de dia, exatamente sobre as ilhas. Ela sempre
permanecia no mesmo lugar, mesmo que as outras se movessem em torno do próprio eixo. E então os
homens chamaram esta terra como Neyir a havia chamado um dia ‐ Terra‐sob‐a‐Estrela, Elles.
Ainda nos dias de juventude da Arta, do seu sangue e seu fogo, Melkor criou essa terra ‐ como um
desafio ao mundo imóvel, ainda sem vida. As chamas se debatiam nos cálices dos oito vulcões ‐ como
vinho em taças elevadas ao céu numa eterna festa. E com o poder dele, a fúria do fogo agora foi
aprisionada, pois tanto o fogo quanto o frio estavam sob seu poder. A grossa camada de fuligem,
expelida nos dias de insanidade dos vulcões, aquecida pelo fogo de Arta, recebeu as sementes levadas
até ali pelo vento. Ali sobraram também sementes daquelas plantas que há muito pereceram na Terra‐
Média, e aquelas que jamais haviam existido no resto do mundo.
A terra morna cultivou densas florestas, e levantaram‐se as ervas nas campinas; aves marinhas fizeram
os ninhos nas rochas, os bosques estavam cheios de animais, e os rios – de peixes. As sementes trazidas
de Endorë deram fartos frutos, e os homens disseram ‐ é abençoada esta terra, ficaremos aqui!
Eles sabiam e conheciam muitas coisas. Conheciam a força das ervas e das pedras, feitiços e magias, e
sabiam curar muitas doenças, das quais os homens de Endorë não conheciam remédios. Eles sabiam ler
sinais do céu e do mar, ouvir o vento e a terra, e tudo o que eles descobriam, gravavam em pedra,
madeira e couro com sinais e desenhos, e lembravam dessa sabedoria, fazendo‐a tomar a forma de
versos e canções, passadas de geração em geração. Eles tinham poder sobre a madeira, pois conheciam
a sua alma – e a madeira em suas mãos se transformava em quentes casas e barcos velozes como aves,
objetos entalhados, belas estátuas e quadros. Poucos eram tão hábeis nessa arte quanto eles. E a
madeira ganhava voz, e aquele que ouvia‐a transformava‐se num músico e cantor. E estes homens eram
não menos respeitados do que chefes e sábios, pois eles criavam música e beleza.
Eles conheciam a alma da pedra, e sabiam encontrar gemas coloridas. E valorizavam acima de tudo a
obsidiana, pois esta era memória e verbo do fogo da terra, e âmbar, pois este era memória e verbo do
mar.
Eles conheciam a alma do mar, e as suas embarcações navegavam para o oriente, pois assim dizia o
mar, mas eles não buscavam caminhos para o ocidente, a Avallonë e Valinor, pois os seus corações e a
força do Mar Tellor diziam: ali espera‐os algo funesto. E eles acreditavam a voz do próprio coração e a
voz do mar.
Eles conheciam a alma do metal, e em suas mãos ele tinia e cantava, se transformando em jóias e
preciosos cálices, cordas das liras e flechas para caça – tudo que um homem precisava para seu trabalho
e sua diversão. Só não faziam armas que não fossem para a caça, pois não guerreavam. A vida humana
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lhes era sagrada, pois em cada um existia um dom próprio, que o diferenciava dos demais; eles
chamavam isso de Ando Tael. E se acontecia um homem morrer pelas mãos de um outro homem, o
assassino, mesmo que a morte fosse somente um acidente, preferia morrer, não suportando o crime
terrível. Eles valorizavam a vida e o que estava ligado a ela acima de tudo. Talvez por isso que eles
sabiam amar e rir? Talvez porque o maior prêmio para uma pessoa era ver o sorriso no rosto do outro
em resposta as próprias palavras? Talvez por isso consideravam sagrados a amizade e o amor, e belas
canções e lendas eram compostas sobre aqueles que amavam e estavam dispostos a dar a vida pelo
amado?.. Nem sempre eram alegres as suas canções, pois não viviam na terra de Aman, mas nas Terras
Mortais – a dor e os perigos não os evitavam...
Eles respeitavam a morte, e despediam‐se em solene tristeza daqueles que partiram, pois um homem
que seguiu pela vida sem baixar os olhos e sem procurar o sossego é digno de respeito. E não temiam a
morte, pois sabiam – o Caminho não tem fim...
Eles construíam cidades, mas não possuíam muralhas. A sua capital se chamava Eldain, Cidade da
Estrela. O país era governado pelo conselho dos sábios, Nastari; e os três dos mais sábios elegiam o
governante, que se chamava aentar. E na sua bandeira havia um dragão dourado sob a coroa de oito
estrelas, sobre fundo negro.
Assim eles viviam, Elliri, Homens da Estrela, na Terra da Estrela, que fica entre Valinor e a costa de
Beleriand. Valar não voltavam os seus olhares às oito ilhas, até um certo dia, e as embarcações dos
Teleri não penetravam nessas águas...
A mãe do governante era uma grande mulher – daquelas que sabem ouvir e escutar. O farfalhar da areia
e o retinir das conchas brancas na praia, o vôo da andorinha e o silêncio do mar matutino – tudo
possuía significado para ela, em tudo ela via sinais que nem todos conseguiam compreender.
Afirmavam que ela ouve as vozes das estrelas, e que o reflexo da lua canta para ela. Em momentos de
coração sensível – assim dizia ela, ‐ ela ficava imóvel, como uma estátua morta, e depois, ao voltar a si,
cantava. E o seu canto podia curar o espírito e o corpo, e as suas palavras eram verdade e profecia.
Assim um dia ela foi até um homem que era conhecido como um grande marinheiro, e disse‐lhe:
‐ Saudações, aquele que possui a força de Tellor, filho do mar! Eu vim para tornar‐me a sua esposa, pois
sei que de nós nascerá aquele que salvara o nosso povo.
E o marinheiro a tomou por esposa, pois sabia que ela sempre dizia a verdade. E ainda porque era bela.
E do seu casamento nasceu Eayir, aquele que foi eleito governante.
E foi assim: um dia Eayir‐Vidente chegou para o conselho dos Sábios. E assim falou ele:
‐ Por muitas noites seguidas, uma visão me visitou. Eu vi um homem em vestes de Escuridão, e ele me
pareceu ser Aquele que Vinha; e os seus olhos eram claros como estrelas, mas brancos eram os seus
cabelos, e o selo da tristeza estava em seu rosto. E ele me dizia, vá e leve o seu povo, pois a sua terra
está destinada a desaparecer.
Os sábios tiveram um conselho, e foi decidido dar ouvidos à visão, abandonar Elles. E barcos alvos sob
velas verdes e prateadas levavam os Viajantes da Estrela – para longe, para longe das ilhas, e os Elliri
levaram consigo as tristes canções de exilados; não havia em Endorë ninguém que se equiparasse a eles
na arte de compor canções, nem mesmo os Elfos.
E quando os últimos navios zarparam dos portos da Terra‐sob‐a‐Estrela, chamas rubras subiram ao céu
noturno: ali, atrás, no fogo dos vulcões, desaparecia Elles. E pereciam aqueles que não desejaram
abandonar a pátria...
Oh Elles, eram brancas as asas das suas embarcações, mas hoje
A fuligem cinzenta cobriu‐as, e foi o vento frio a causa das lágrimas?..
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Assim era a vontade dos Grandes: eles não se importavam com esta terra, nem com aqueles que ali
habitavam; e saberiam sobre eles os oniscientes Valar? Naquele tempo, Noldor rebeldes abandonaram
Valinor. E assim decidiram os Valar: não haverá retorno para os desobedientes.
As costas de Valinor e Avallonë se envolveram em neblina: Valar não perdoam aqueles que os renegam.
E as ilhas de Elles passaram a se chamar desde então Ilhas Enfeitiçadas, e aqueles que pisavam nelas
não retornavam.
E sobre o país destruído, sobre a terra morta batia, como um coração ferido, a Estrela Meltor...
Assim o povo dos Elliri ganhou um segundo nome ‐ Vayiri, Exilados.
E, ao voltar a Terra‐Média, eles encontraram uma nova pátria ‐ Es‐Tellia, Terra‐ao‐lado‐do‐Mar. No
ocidente, oriente e no sul, essa terra estava cercada de florestas sombrias. Vivia ali o povo Aoi, Homens
das Sombras da Floresta, que os Elliri em sua língua nomearam Foyolli, Povo do Silêncio. Estes eram
baixos e de ossos delicados, com pele alva e translúcida, cabelos negros retos e olhos esverdeados. Eles
preservavam lendas e mitos antigos, a sua memória era comprida como a sua vida. Eles sabiam
compreender os animais silenciosos e os pássaros desta terra; viviam às margens de lagoas da floresta,
e seus cabelos cheiravam a ervas aquáticas... Não havia e não haverá em Arta um povo que
compreendesse melhor a língua das ervas, flores e árvores, pois eles eram filhos da Floresta.
Aoi receberam como irmãos os filhos do Norte que vieram do além‐mar. Elliri povoaram a costa, onde
havia areia branca e afiadas rochas negras, onde o vento cantava nos pinheiros cor de cobre.
E límpida e triste era a felicidade dessa terra ‐ terra daqueles, que sabiam ouvir a dor de Arta...
Em breve, mais capítulos da parte 3 do Livro Negro de Arda
estarão disponíveis. Meus agradecimentos a N. Vassilyeva e N.
Nekrasova pela criação deste maravilhoso fanfict, e a Tatyana
‘Moriel’ Zabanova pela sua tradução do russo para o português.
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