Você está na página 1de 10

NA PONTA DA LÍNGUA

Prof. Elias Santana

ELIAS SANTANA

Licenciado em Letras – Língua Portuguesa e Respectiva Literatura –


pela Universidade de Brasília. Possui mestrado pela mesma instituição,
na área de concentração “Gramática – Teoria e Análise”, com enfoque
em ensino de gramática. Foi servidor da Secretaria de Educação do DF,
além de pro­fessor em vários colégios e cursos preparatórios. Ministra
aulas de gramá­tica, redação discursiva e interpretação de textos. Ade-
mais, é escritor, com uma obra literária já publicada. Por essa razão,
recebeu Moção de Louvor da Câmara Legislativa do Distrito Federal.

1 Aurélia estava ocupada em reunir os diversos casais e enviá-los ao meio


da sala; desembargadores de todo o tope e calibre, conselheiros caruncho-
sos, viscondes mofados, marqueses carranças: tudo tratava de executar-
-se da melhor vontade, que era o meio de tomar mais leve a penitência.
5 Nisto chegou-se a Lísia Soares ao braço de Fernando. A travessa
trazia nos lábios um sorriso maligno; o olhar beliscava como um alfinete.
 — Está muito entretida com os outros e não se lembra de si — disse ela.
 — Como? — perguntou Aurélia voltando-se.

— Não disfarce. A justiça começa por casa; aqui está seu marido. Dê o exemplo.
10 Aurélia compreendeu a vingança da amiga, despeitada por não valsar com o
Alfredo Moreira.

Desde a primeira vez que apareceu na sociedade, depois do luto de sua mãe,

Aurélia que, apesar da palavra afouta e viva, tinha o casto recato de sua pessoa,

resolveu não valsar para não arriscar-se a encontrar um desses pares que põem
15 ao vivo a comparação poética da trepadeira enroscada ao tronco musgoso.

Declarou, portanto, que não sabia valsar e que nunca poderia aprender

porque o giro rápido causava-lhe vertigem. Havia nesta segunda parte um fundo

de verdade. Quando valsava no colégio com as amigas, sentia tão vivo prazer

nessa dança impetuosa que deixava-se arrebatar e, desprezando o compasso


20 da música, volvia uma velocidade prodigiosa até que o atordoamento a obrigava

a sentar.

www.grancursosonline.com.br 2 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

Convencida de que ela não sabia realmente valsar, Lísia lembrou-se de tomar

uma desforra, obrigando-a a fazer triste figura na sala, ou então a retratar-se de

sua esquisitice e acabar com a tal valsa dos casados. O que mais estimulara a
25 moça fora a suspeita de que Aurélia fizera aquilo por maldade, e só para privá-la

de dançar com o Moreira.


Nisto era injusta. A razão que movera Aurélia, não sei; mas que ela nesse mo-

mento não se lembrava da existência da Lísia e do Moreira, disso posso dar certeza.
— Não seja má, Lísia! — disse Aurélia, com um modo queixoso, que não ocultava
30 de todo o fino motejo do olhar.

— Nada, minha cara; você não dispensa ninguém, tenha paciência.

— Eu não sei valsar!


 — Aí é que está a graça. Meu pai também não sabia.
 — Ela sabe, era meu par no colégio — observou uma senhora.
35 — Há de dançar.

— Pena de talião — dizia um velho advogado gotoso que voltava da valsa tão

estafado como nunca o deixara a mais complicada defesa do júri.


 — Caso de justa represália! — acudiu um velho diplomata que fizera sua
carreira em eterna disponibilidade, sem trocadilhos.
40 — A coroa cede ante a opinião! — orava um ministro para quem coroa e opinião

no Brasil eram a chapa e o cunho da mesma moeda em que se recebia o salário.

As senhoras insistiam para se despicarem da entrega que lhes fizera a dona

da casa; as moças por pirraça; e os rapazes pelo desejo de quebrar o encanto

a Aurélia e terem-na daí em diante como par certo de valsa.


45 — Não é preciso essa revolução. Eu me submeto — disse Aurélia, curvando
gentilmente a cabeça.
Dirigindo-se ao marido, que estava defronte e a quem a Lísia não consenti-
ra que se retirasse, tomou-lhe resolutamente o braço e deixou-se conduzir ao

meio da sala.

www.grancursosonline.com.br 3 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

50 — Por que se constrange? Não quer valsar; eu tomo sobre mim a recusa —
segredou Seixas.
 — É questão de vaidade. Compreende a força que tem para nós, mulheres,

este nosso ponto de honra? — tornou Aurélia também à meia voz.


 — Neste momento, não; não compreendo.
55 — Veja a Lísia como está saboreando o meu vexame de não saber valsar, e
o fiasco que me espera? Demais...

Sua voz teve uma nota vibrante.


 — Demais, o senhor pode pensar que tenho medo.

Aurélia pousara a mão no ombro do marido, e, imprimindo ao talhe um movimento


60 gracioso e ondulado, como o arfar da borboleta que palpita no seio do cac-

to, colocou-se diante de seu cavalheiro e entregou-lhe a cintura mimosa.

Era a primeira vez, e já tinham mais de seis meses de casados; era a pri-

meira vez que o braço de Seixas enlaçava a cintura de Aurélia. Explica-se,

pois, o estremecimento que ambos sofreram ao mútuo contato, quando essa


65 cadeia viva os surpreendeu.
José de Alencar. Senhora.

1. As palavras “má” (l. 29), “aí” (l. 33) e “Há” (l. 35) são acentuadas de acordo com

a mesma regra.

2. Na linha 64, o vocábulo “pois” poderia ser substituído por porquanto ou por

uma vez que, sem trazer ao texto prejuízos sintáticos ou semânticos.

3. As expressões “mais leve” (l. 4) e “como par certo de valsa” (l. 44) exercem a

mesma função sintática nos períodos em que ocorrem.

4. Na linha 37, o advérbio “estafado” indica o modo como o advogado voltou da valsa.

www.grancursosonline.com.br 4 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

5. Observa-se uma agramaticalidade na linha 14 do texto: a forma pronominal

“se”, em “arriscar-se”, deveria estar em posição proclítica.

6. Na linha 10, a retirada da vírgula alteraria o sentido original do texto.

7. Apesar da coloquialidade, é possível notar que o vocábulo “que”, na linha 12,

funciona como um pronome relativo.

8. Na linha 5, é adequado inserir um acento grade no vocábulo “a”, uma vez que

antecede um substantivo próprio feminino.

9. “A mais complicada defesa do júri” (l. 37) funciona, na oração em que se insere,

como complemento do verbo “deixara” (l. 37).

10. Na linha 64, pode-se substituir “o estremecimento” por os tremores, sem ferir

a correção gramatical do texto.

11. Na linha 27, a forma verbal “movera” poderia ser substituída por havia movido.

12. Pelos sentidos do texto, percebe-se que o discurso direto da linha 34 foi profe-

rido por Aurélia, o que indica que ela era o par de dança do pai de Lísia.

13. O pronome “se”, nas linhas 41 e 63, possuem a mesma classificação.

14. Infere-se do texto que Seixas demorou para enlaçar a cintura de sua esposa

porque ela sentia vertigens ao dançar.

15. O texto é predominantemente narrativo, apesar de algumas passagens descritivas.

www.grancursosonline.com.br 5 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

1 Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta


transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor altera-
ção aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena,
alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha
5 de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em
que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sos-
segada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas meta-
físicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas,
10 além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando,

cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação.

Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cin-
quenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao
que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção
15 com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto ba-
talhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que
os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição
espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, con-
testou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era
20 capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:

— Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da pa-

lavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus

meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente o


25 quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma

discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões

que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistên-

cia dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião,

uma conjetura, ao menos.

www.grancursosonline.com.br 6 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

30 — Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar

a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me ca-

lados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara

demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma

só alma, há duas...
35 — Duas?

— Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas con-

sigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro...

Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não

admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior


40 pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma

operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma

exterior de uma pessoa; – e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma

máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício

dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o


45 homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das me-

tades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que

a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A

alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer.

“Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no
50 coração.” Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte

para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...

Machado de Assis. O espelho.

16. Na linha 2, a forma verbal “trouxesse” poderia ser substituída por lhes trou-

xesse, o que conferiria ao texto maior valor enfático, sem prejudicar a correção

gramatical e o sentido original.

www.grancursosonline.com.br 7 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

17. O pronome “cuja” (l. 4), cujo referente é “sala” (l. 3), tem a finalidade de in-

troduzir oração de valor explicativo.

18. Caso a vírgula após “velas” (l. 4) seja suprimida, poder-se-ia inferir que, na

sala, há outras velas com luzes que não se fundem com o luar.

19. Segundo as informações do segundo período do texto, é possível inferir que há

mais de um “luar” (l. 4).

20. Na linha 7, o verbo “estavam” é classificado como de ligação.

21. A vírgula após “anos” (l. 13) poderia ser substituída por um ponto final, desde

que houvesse o ajuste de maiúsculas e minúsculas.

22. A conjunção “que” (l. 19) introduz uma oração que funciona como complemen-

to verbal de “demonstrar” (l. 19).

23. A oração “se era capaz” (l. 19-20) possui valor condicional.

24. Na linha 20, percebe-se uma agramaticalidade, uma vez que o pronome “ele”

foi usado como complemento verbal de “chamava”.

25. Na linha 25, o vocábulo “mas” possui valor adversativo.

26. O pronome “se” (l. 27) indica reflexividade.

www.grancursosonline.com.br 8 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

27. Na linha 30, o verbo “pode” poderia ser flexionado no plural. Com isso, há a

manutenção da correção gramatical, mas o sentido original é alterado.

28. O trecho “mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de

minha vida” (l. 31-32) poderia ser assim reescrito: caso queiram, todavia, me

ouvir calados, posso informá-los de um caso da minha vida.

29. Haveria manutenção da correção gramatical e do sentido original caso a forma

“de que” (l. 33) fosse substituída por a qual.

30. O trecho “em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas” (l. 33-34) poderia

ser assim reescrito: não tem uma só alma; tem duas, em primeiro lugar.

www.grancursosonline.com.br 9 de 10
NA PONTA DA LÍNGUA
Prof. Elias Santana

GABARITO

1. E 26. E

2. E 27. C

3. C 28. C

4. E 29. E

5. E 30. E

6. C

7. C

8. E

9. E

10. E

11. C

12. E

13. C

14. E

15. C

16. C

17. E

18. C

19. C

20. E

21. C

22. E

23. E

24. E

25. E

www.grancursosonline.com.br 10 de 10

Você também pode gostar