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A incômoda verdade de Philip Roth

Para o autor de "Adeus, Columbus", a literatura representa a verdade que não pode fazer
concessões, mesmo quando incômoda e perigosa.

por Isadora Sinay

Em novembro de 2016, logo após o anúncio da eleição de Donald Trump, o telefone


começou a tocar sem parar na casa em que Philip Roth morava, isolado em uma área rural
do Connecticut. Jornalistas de diversos veículos buscavam um comentário do escritor que
parecia ter antecipado a todos ao imaginar os Estados Unidos comandado por um quase-
fascista autoritário: em O Complô Contra a América, escrito em 2004, Roth experimenta
com uma história alternativa, em 1942 o vencedor da eleição presidencial é Charles
Lindbergh, um antissemita com simpatias pela Alemanha de Hitler. O romance voltou
imediatamente à lista de mais vendido e seu autor, aos 83 anos, mais uma vez saudado
como o grande analista do que ele mesmo chamou de “a loucura assassina americana”.

Quando o livro foi publicado, diversos críticos viram nele uma leitura da Era Bush:
mentiras, autoritarismo, manipulação e intolerância. Roth, sempre um tanto crítico em
relação a seu trabalho, mas também um notório enganador de seu público, afirmou que o
romance não era sobre 2004, mas sobre 1942. Sua relevância em 2016 prova que ele
estava falando a verdade: o tema de Roth não era Bush, ou Trump, ou mesmo Lindbergh,
mas a veia autoritária que fluía por baixo de uma certa ideia de América.

Eventualmente, naquele início de novembro, ele falaria com a New Yorker a respeito do
novo presidente: ignorante em relação ao governo, à história, à ciência, à filosofia e à arte,
incapaz de expressar ou reconhecer sutilezas ou nuances, destituído de toda decência e
possuidor de um vocabulário de setenta e sete palavras que deveria ser chamado de
babaquês, em vez de inglês¹. Como diria o título de sua última entrevista, publicada pelo
New York Times em janeiro de 2018: Roth podia ter se aposentado da escrita, mas ele
ainda tinha muito a dizer.

Se Calvino define um clássico como um livro que nunca terminou de dizer o que tem a
dizer, Roth definia sua literatura como uma que nunca parava de dizer, ponto. Seus livros
nunca ficam quietos, nunca te deixam em paz, mas assombram o leitor como fantasmas
de todas as coisas que preferimos deixar subterrâneas. A “loucura assassina americana”
é umas dessas coisas, a brutalidade do envelhecimento e da morte é outra, a batalha da
intimidade entre os gêneros, as contradições e abismos de ser judeu em um mundo pós-
Holocausto. Philip Roth é um desses escritores obsessivos, que repetem infinitamente os
mesmos temas, o mesmo cenário. Segundo ele, judaísmo, Newark, família e
masculinidade era tudo de que ele sabia falar. Pouco, por um lado, por outro tudo que
compõe o que chamamos de humanidade: religião, origem, patrimônio, corpo. Roth
destrinchou em frases memoráveis tudo aquilo que torna uma pessoa quem ela é, tudo
que tornava ele o homem que era, e então remontou as partes para refletir sobre a
fabulação essencial que é a identidade.

Em sua fase mais tardia, Roth se mostrou profundamente interessado em personagens que
vivem como o que não são: Sueco Levov, o judeu que vive como uma fantasia WASP;
Coleman Silk, o negro que vive como judeu; e Ira Ringold, o comunista que vive como
uma estrela do rádio. Não é por acaso que esses três personagens protagonizam a chamada
“Trilogia Americana”, a radiografia absolutamente lúcida que ele faz de seu país e que
levou seu telefone a tocar incessantemente na manhã de 9 de novembro de 2016.

O que Roth desde o princípio de sua carreira demonstrou compreender sobre os Estados
Unidos é que o ethos americano exige para o sucesso a alienação de si mesmo. Em
Pastoral Americana ele definiria a felicidade como a possibilidade de alienar-se da
própria história. Alexander Portnoy, David Kepesh e Neil Klugman são homens que, em
busca do ideal dourado que a América prometeu, fraturam-se irreversivelmente.

Se ser americano é alienar-se de si, ser um judeu-americano, híbrido do qual Roth tornou-
se o representante por excelência, é um exercício de alienar-se da própria história. Quando
publicou seu primeiro livro, Adeus, Columbus: E Cinco Contos, Roth foi recebido com
ódio e revolta pelas instituições judaicas, chamado de antissemita, acusado de “aquecer o
coração de um Himmel ou um Goebbels”. Seu pecado havia sido “lavar a roupa suja em
público”, colocar os judeus em risco ao retratá-los com uma luz pouco favorável. O que
ele realmente estava esmiuçando era qual o custo da segurança, qual o custo da chamada
excepcionalidade da comunidade americana, qual o custo de uma infância como a sua,
jogando baseball nas ruas de Newark durante os anos da Solução Final.

Como ser todas as coisas, como ser americano e judeu e homem, é uma questão que nunca
deixou de mover o escritor. Do início ao fim de sua carreira, os cenários e circunstâncias
podem mudar, refletindo sempre o cenário do momento. Roth era afinal um escritor
profundamente político, mas a questão segue a mesma: como articular as diversas facetas
que compõem uma identidade sem fraturar-se? Isso é sequer possível?

Da mesma forma como O Complô Contra a América não era um livro sobre os anos
Bush, A Marca Humana, uma de suas obras mais famosas, não era (apenas) sobre a fúria
puritana que ele viu tomar o discurso público durante o governo Clinton. A história do
homem negro que se passa por branco e é destruído por um comentário racista e um
relacionamento consensual com uma empregada é um dos mais complexos e incômodos
do autor. Está ali tudo que em períodos diferentes fizeram tochas se erguerem contra ele:
a obsessão com o corpo, a representação do sexo como uma espécie de embate.
Muito se fala de Philip Roth como um escritor misógino, apesar das extraordinárias
personagens femininas que povoam sua obra. Seria reducionista apontar apenas que todos
os seus protagonistas são homens. Todos os seus protagonistas também são judeus (ou se
passam por judeus) que trabalham em profissões intelectuais e vivem na Costa Leste dos
Estados Unidos e possuem mais ou menos a idade do escritor no momento de seu
nascimento. Alguns deles até mesmo se chamam Philip Roth. O próprio autor
reconheceria seu arsenal limitado de ferramentas, seu enraizamento, sua necessidade de
escrever sobre o mundo a partir do seu próprio ponto de vista. Roth jamais poderia ter
olhado o mundo pelos olhos de uma mulher e sua obra é melhor por ele não ter tentado.

O que é preciso notar é que ele tem uma visão hostil não das mulheres, mas do sexo e do
relacionamento que seus personagens estabelecem com seus corpos. Em O Professor do
Desejo, David Keppesh reflete sobre o desencontro entre seu eu intelectual e suas
vontades sexuais. Roth vê a intimidade como uma zona de guerra, um campo de batalha
em que se defende a ilusão de uma integridade identitária. Os relacionamentos amorosos
são, no universo de Philip Roth, o teste final das fábulas que contamos para nós mesmos.
Essas fábulas que são a matéria-prima de uma carreira que durou mais de 50 anos e
produziu mais de 30 obras.

Ao longo de meio século de movimentada história americana, Roth olhou para o pior de
seu país, de seu povo, de seu gênero. Poucos escritores tiveram o apreço pelas
profundezas que ele teve. Dessa viagem, ele não trouxe respostas fáceis, mas um espírito
combativo e incapaz de simplificações. Em Writing About Jews, um ensaio escrito em
resposta à violenta reação da comunidade judaica a Adeus, Columbus, Roth defende o
lugar da literatura como portadora da verdade que não deveria fazer concessões jamais,
mesmo quando essa verdade é incômoda e potencialmente perigosa.

Embora alguns de seus personagens tenham levado seu nome, seu maior alter-ego não
parece ser Philip Roth ou mesmo Nathan Zuckerman, mas Mickey Sabbath, o titereiro
demoníaco e artrítico, o artista de um mundo que deixou de existir, aquele que traz
destruição à bem organizada intelectualidade nova-iorquina. Roth talvez tenha tido sorte
de deixar o mundo quando deixou, mas seu legado ganha novo significado em um tempo
que Michiko Kakutani, a implacável crítica do New York Times com quem ele
estabeleceu um longo embate intelectual, chama de “A Morte da Verdade”.

Isadora Sinay é doutoranda em Letras pela Universidade de São Paulo, onde pesquisa
a obra de Philip Roth, com passagem pela Universidade da Califórnia, Los Angeles.
Trabalha como tradutora e escritora.

Notas:
¹ Em tradução livre da autora.

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