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OPINIÃO

Um fantasma assombra o Brasil


Nunca acertamos as contas com o fascismo brasileiro e seus representantes, com sua violência e
segregação

19.jan.2020 às 17h19

Vladimir Safatle (https://www1.folha.uol.com.br/autores/vladimir-safatle.shtml)

Em 2015, fiz a música para uma peça de Roberto Alvim (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/simples-


emotiva-e-popular-fala-de-alvim-recuperou-premissa-da-propaganda-nazista.shtml). Tratava-se de uma interpretação de Júlio

César, de Shakespeare (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcos-lisboa/2019/12/brutos.shtml?origin=folha), reduzida para


dois atores. Havia algo na peça que ganhou atualidade inesperada. Seu próprio diretor a
encenou da forma a mais macabra. A ideia central era mostrar como a história se encarna em
pessoas sem que elas o saibam. Brutus imaginava estar a defender a república, mas ele fora
usado pela história para produzir o império. Pois tal processo traz novamente à vida fantasmas
que são, na verdade, aquilo que uma sociedade tem de mais real. As pessoas acreditam estar a
agir por consciência própria, mas elas estão sendo movidas por processos que se dão às suas
costas, que se encarnam em suas falas e gestos.

Alvim afirmou recusar a “origem espúria” das ideias estéticas que ele mesmo reconheceu
partilhar com o ideário nazista (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2020/01/nazista-sai-do-armario-mas-corrupcao-
e-arrochao-sao-as-crises-na-gaveta.shtml),
como fosse possível fazer tal distinção. Ao mesmo tempo, afirmou
que os trechos que plagiam (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/01/video-em-que-alvim-parafraseia-goebbels-
gera-mais-de-1600-publicacoes-em-alemao-no-twitter.shtml)Goebbels (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/01/video-em-

que-alvim-parafraseia-goebbels-gera-mais-de-1600-publicacoes-em-alemao-no-twitter.shtml) foram “enxertados”. Difícil imaginar


descrição mais precisa, por mais que ela seja farsesca. De fato, a partir do momento em que o
ideário estético nazista (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/estetica-e-discurso-do-video-de-roberto-alvim-tem-origem-
anterior-a-hitler.shtml) parece estranhamente próximo, nosso corpo será tomado de forma integral,

nossa fala e nossas ações serão “enxertados” por fantasmas que voltam com a força de espectros
que estavam sempre latentes, à espera da primeira oportunidade para se explicitar. Não se fala
em arte nacional feita para “salvar a juventude” (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/edital-dignificante-de-
alvim-tinha-custo-menor-do-que-de-um-espetaculo-musical.shtml) da sua degradação e salvar a “civilização cristã” de sua

ruína inexorável impunemente. 


Roberto Alvim, ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro, em vídeo em que parafraseia Goebbels -
Reprodução/Twitter

Que esse espectro seja o fascismo, isso serve apenas para calar aqueles que durante esses
últimos anos procuraram nos desqualificar dizendo que éramos muito alarmistas quando
falávamos do fascismo imanente ao governo (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2017/03/1863080-um-
fascista-mora-ao-lado.shtml)Bolsonaro (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2017/03/1863080-um-fascista-mora-ao-lado.shtml).

Pois esses preferiam tratar o fascismo brasileiro como um anedotário, sem querer ver que, ao
contrário, ele era e continua a ser um eixo fundamental de um país cujos ocupantes do governo
louvam torturadores e se veem em uma revolução conservadora enfim realizada, mas há muito
gestada.

Isso não poderia ser diferente, já que estamos a falar de um país que, nos anos trinta, contava
com mais de 1 milhão de membros nas hostes do integralismo. Um país que viu sua versão
nacional do fascismo (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/12/com-lema-copiado-por-bolsonaro-integralismo-tem-raro-acervo-
preservado-no-rs.shtml), com sua tríade deus, pátria, família (mais uma vez atualizada), fornecer à
ditadura militar alguns de seus principais quadros. Miguel Reale, um dos ideólogos do aparato
legal da ditadura militar fora integralista. Plínio Salgado, seu líder principal, terminará como
deputado pela Arena, chegando a escrever compêndios de educação moral e cívica para a
ditadura.
Nada disso serviu para que lembrássemos como nunca acertamos as contas com o fascismo
brasileiro e seus representantes, com sua violência e segregação. Ao contrário, ele é tão útil que
os ditos agentes “modernizadores da economia” não veem problemas em chamá-lo à superfície
caso precisem passar os ditames de sua “racionalidade econômica” à força. Neste sentido, o
Brasil caminha para se transformar em um laboratório mundial de junção entre
ultraneoliberalismo e violência fascista, mostrando o caminho para uma nova roupagem do
autoritarismo. A queda do secretário da Cultura não muda em nada este horizonte.

Por fim, há de se lembrar que não cabe a um funcionário público dizer o que a arte de um país
deve ser. A função do estado na cultura é simplesmente permitir a circulação daquilo que não
circula, por ser estranho aos interesses econômicos ou às leituras predominantes. O Plano
Nacional de Cultura proposto deve ser imediatamente abortado. Ele é a continuação do
fascismo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/01/alvim-e-parte-de-um-governo-que-flerta-com-ideias-fascistas-diz-pesquisador.shtml)
por outros meios.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o
Fim do Indivíduo”.

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