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CAPÍTULO 2 – POR QUE E PARA QUÊ ARGUMENTAR

Em algum momento da sua trajetória você provavelmente já ouviu de


alguém que (ou já teve você mesmo a impressão de que) discussões se
assemelham a desavenças. Que pessoas que acreditam estar argumentando numa
discussão frequentemente estão, na realidade, sendo rudes com seus
interlocutores, ou tentando impor seus pontos de vista pessoais de maneira
arrogante. E que seria melhor para todos nós, no final das contas, se evitássemos
discutir e procurássemos, ao invés disso, construir relações cordiais uns com os
outros, admitindo e respeitando toda a variedade de opiniões, porque é preferível
manter boas relações sociais do que estar certo.
Quem já ouviu ou já pensou coisas como essas não está completamente
equivocado – de fato não é um acontecimento raro que discussões percam
completamente sua dimensão argumentativa e se transformem em meras
desavenças, às vezes com troca hostil de insinuações e farpas. E certamente
admitir e respeitar a variedade de opiniões é algo positivo e necessário, assim
como zelar pelas as boas relações sociais.
Mas há um problema com esse tipo de posicionamento – é que ele parece
deixar implícito que argumentação, em si mesma, é uma atitude na pior das
hipóteses hostil e, na melhor delas, sem sentido. Ou seja, parece trazer o
pressuposto implícito de que a argumentação é em todo caso algo inconveniente
e sem razão de ser. Ora, isso precisa ser repensado.
Argumentos são razões dadas para acreditar em alguma coisa. Em si, eles
não são desrespeitosos nem hostis – o que pode ser desrespeitoso e hostil é o
modo como lidamos com eles (seja ao avançá-los, no contexto de uma discussão,
seja ao recebê-los e ao reagir a eles). Qualquer argumento, incluindo bons
argumentos, pode fazer as pessoas se sentirem mal. Muitas pessoas sentem que
precisam ganhar todos os debates e que, se forem refutadas numa discussão, isso
significará que elas são pessoas ruins, ou pessoas não muito inteligentes. Com
isso, elas tendem a avançar argumentos de maneira arrogante, desrespeitosa
para com seus interlocutores e hostil. Além disso, muitas pessoas odeiam ser
refutadas; ficam zangadas com qualquer um que discorde delas ou que apresente
argumentos racionais com cujas conclusões elas não concordam, e com isso elas
tendem a reagir aos argumentos de seus opositores intelectuais também de
maneira desrespeitosa, arrogante e hostil. Ou seja, argumentos, mesmo bons
argumentos, são capazes de motivar raiva e hostilidade e, assim, podem armar o
palco para grandes desavenças, quando as duas partes numa disputa não lidam
com eles de maneira adequada, seja ao avançá-los, seja ao reagir a eles.
No entanto, participar de discussões onde se lide com argumentos é
fundamental para que as pessoas possam pensar de forma racional e crítica.
Embora infelizmente seja comum que a tentativa de argumentar em discussões
tome descaminho e se torne uma empreitada desrespeitosa, hostil ou sem sentido,
nem toda argumentação acaba assim. Na verdade, nenhuma boa argumentação
acaba assim, porque parte do que é argumentar bem (ou simplesmente
argumentar de maneira efetiva) envolve possuir bons propósitos e proceder
adequadamente de acordo com eles, e isso naturalmente envolve o respeito, a
cordialidade e a humildade. Argumentações realizadas de maneira adequada
jamais descambam para a falta de decoro ou para a falta de sentido.
Para compreender como realizar uma argumentação de maneira adequada,
é preciso, em primeiro lugar, ter clareza sobre qual o propósito de uma discussão,
ou seja, entender por quê e para quê argumentamos. Nesse capítulo você vai ter a
oportunidade de aprender sobre diferentes propostas de boa argumentação
(argumentação efetiva) e sobre por que e para quê as pessoas argumentam (o que
ajuda a entender por quê e para quê as pessoas escrevem textos argumentativos).

2.1. Para quê as pessoas argumentam?


Essa pergunta admite mais de uma “camada” de resposta. A primeira e
mais imediata resposta é: argumentamos para tomar parte em discussões. Toda
argumentação, e todo texto argumentativo, têm isso em comum: são uma
tentativa, do autor, de participar e dar uma contribuição em uma disputa entre
ideias ou pontos de vista diferentes acerca de uma mesma pergunta. Ou seja, toda
argumentação e todo texto argumentativo pressupõem a existência de uma
interlocução entre duas ou mais posições diferentes relativamente a uma mesma
questão; e a razão pela qual o autor se pronuncia no contexto de uma discussão
(por exemplo, escrevendo um texto argumentativo) é o fato de que ele tem algo a
dizer sobre essa discussão, em geral, e dentro dela, em particular (ou seja, ele
tem algo a dizer “sobre” e “para” os demais membros do fórum). Assim, a
primeira e mais simples razão pela qual uma pessoa argumenta é o seu interesse
em participar de uma discussão.
Uma segunda “camada” de resposta para a pergunta sobre para quê
argumentamos tem a ver com o quê exatamente uma pessoa tem a fazer dentro de
uma discussão; o que é que ela vai efetivamente fazer a partir do momento em
que estiver participando do fórum. Ou seja, tem a ver com como e para quê ela
irá entrar no debate em questão. Entrar num debate é algo que pode ser feito de
mais de um modo, e com mais de um propósito. Isso significa que argumentos
servem a mais de um propósito e podem ser utilizados de mais de uma forma.
Em geral, argumentos servem para nos ajudar a

▪ aprender a esclarecer nossos pensamentos para nós mesmos, isto é, tornar claras para nós
mesmos as implicações e as consequências das opiniões que já temos;

▪ articular de maneira honesta e precisa aquilo que nós pensamos, a fim de torná-lo
compreensível para outras pessoas;

▪ formar opiniões de maneira responsável e crítica;

▪ considerar as idéias dos outros de maneira respeitosa e crítica;

▪ persuadir pessoas a adotar um determinado ponto de vista;

▪ persuadir pessoas a adotar uma determinada ação ou comportamento;

▪ alcançar consensos e produzir compromissos;


Essas diferentes funções ou serventias dos argumentos podem ser
pensadas em termos de dois tipos básicos de propostas práticas, que aqui vamos
chamar de proposta de persuasão e proposta de compromisso.

A proposta argumentativa de persuasão. Na primeira proposta, a de


persuasão, o indivíduo desenvolve argumentos tendo como meta o
convencimento de seu interlocutor. Isto é, o indivíduo procura levar seu
interlocutor à formação de uma opinião responsável e crítica relativamente a um
ponto sobre o qual ele até então não possuía opinião alguma, ou então levá-lo a
abandonar sua opinião atual relativamente a um ponto para, em seu lugar, adotar
outra (qual seja, a opinião em favor da qual o indivíduo está advogando). O
mesmo vale para ações e comportamentos: podemos argumentar tendo como
meta persuadir nosso interlocutor a adotar determinada ação, ou a deixar de
adotar determinada ação para, em seu lugar, adotar outra (mudar de
comportamento, fazendo aquilo que nós desejamos que ele faça). Essa proposta
costuma ser chamada de “proposta aristotélica”, por referência aos ensinamentos
de Aristóteles, ou de “proposta dogmática”, por referência ao fato de que o
argumentador advoga por uma posição que é tomada, por ele, como verdadeira
ou correta à partida.
Num texto argumentativo orientado por uma proposta de persuasão o
autor procura endossar uma posição ou hipótese (isto é, fazer uma “defesa” de
uma determinada posição ou hipótese, digamos, “A”) ou refutar um argumento
existente (isto é, “atacar” determinada posição ou hipótese, digamos, “não-A”).
Usando um certo repertório de técnicas, o autor, dentro dessa proposta, organiza
o texto de modo a fazer com que seu interlocutor, que inicialmente era um
partidário de “não-A”, ao final da leitura, mude (ou pelo menos sinta-se
fortemente tentado a mudar) de ideia, de opinião ou de comportamento, passando
a adotar “A”.
Assim, uma argumentação bem-sucedida num texto argumentativo
orientado por uma proposta de persuasão será aquela em que o autor vencer (ou
se aproximar o máximo possível de vencer) o proponente da posição contrária à
que está sendo advogada, deixando-lhe pouca ou nenhuma condição de manter
sua posição inicial ou de articular um contra-ataque. Ou seja, uma argumentação
bem-sucedida num texto argumentativo orientado por uma proposta de persuasão
é aquela em que o autor consegue “derrotar” seu adversário.
Ser “derrotado” numa disputa organizada em torno de uma argumentação
persuasiva significa ser forçado (isto é, ser racionalmente constrangido) a “se
converter” ao ponto de vista do oponente, a reconhecer que ele está com a razão.
E “derrotar” significa obter esse reconhecimento. Um argumentador partidário da
posição “A” vence seu interlocutor, que inicialmente era um partidário de “não-
A”, quando o leva a, pela razão, abandonar a posição “não-A” e adotar “A” em
seu lugar.

A proposta argumentativa de compromisso. Uma proposta inteiramente


diferente da de persuasão é a de compromisso. Na proposta de compromisso, as
estratégias argumentativas são utilizadas para empreender uma discussão que
pode levar ao desenvolvimento e estabelecimento de posições ulteriores
diferentes daquelas que os participantes originalmente sustentavam, porque cada
um deles terá sua posição inicial avaliada à luz das críticas de seus opositores, em
contextos em que essas críticas levam a uma reformulação das posições iniciais,
a fim de torná-las mais razoáveis ou simplesmente de manter um grau mínimo de
razoabilidade. Ou seja, a proposta argumentativa de compromisso é aquela na
qual ambos argumentador e adversário ingressam com a pretensão não de
derrotar um ao outro, e sim de ampliar os horizontes da questão que está sendo
discutida.
Paralelamente, numa proposta argumentativa de compromisso também
podemos argumentar tendo como meta a produção de um consenso entre pessoas
que sustentam pontos aparentemente incompatíveis, ou que simplesmente
pensam diferente relativamente a um mesmo ponto. Por exemplo, um
argumentador partidário da posição “A” e seu adversário partidário da posição
“não-A” podem entrar numa discussão pautada por uma proposta argumentativa
de compromisso tendo como meta a obtenção de um consenso – digamos, chegar
a um acordo, segundo o qual o melhor, mais racional ou mais correto não é nem
A nem não-A, e sim (por exemplo) A’. Essa proposta costuma ser chamada de
“proposta rogeriana”, por referência aos estudos do psicólogo norte-americano
Carl Rogers.
Num texto argumentativo orientado por uma proposta desse tipo, o autor
procura por uma combinação entre duas posições, opiniões ou hipóteses
inicialmente tidas como conflitantes. Seu objetivo é transformar a contradição
(simples) em síntese (complexa). Ou seja, ele procura chegar a uma espécie de
meio-termo que atenda da melhor forma possível aos interesses (divergentes) de
ambas as partes, ou que abranja e considere as críticas apresentadas por ambas às
partes às posições iniciais adversárias. Para tanto, recorre a um repertório de
técnicas que visam mitigar o aspecto de “enfrentamento” da disputa e
desenvolver uma espécie de mecanismo de confiança, baseado na ideia de que
posições antagônicas precisam ser assimiladas, e não derrotadas. Enquanto numa
proposta de persuasão a disputa termina com um dos lados vencendo e o outro
sendo derrotado (ou pelo menos tende a terminar em termos de vitória e derrota),
na proposta de compromisso nenhum dos lados da disputa ganha ou perde, mas
ambos são obrigados a ceder em algum ponto ou pontos. Ou seja, enquanto a
proposta de persuasão é uma proposta “bélica”, por assim dizer, a proposta de
compromisso é uma proposta “diplomática”: ela procura negociar.
Desse modo, enquanto o lado “perdedor” numa argumentação de
persuasão bem-sucedida perde “tudo”, por assim dizer, numa argumentação de
compromisso bem-sucedida ambos os lados perdem, mas perdem somente o
mínimo necessário à garantia e à manutenção do compromisso. Assim, uma
argumentação bem-sucedida num texto argumentativo orientado por uma
proposta de compromisso é aquela que consegue (ou que se aproxima o máximo
possível de) resolver – e não vencer – uma disputa de forma a que cada um dos
lados perca menos. Em outras palavras, uma argumentação bem-sucedida num
texto argumentativo orientado por uma proposta de compromisso é aquela que
consegue um grau razoável de conciliação entre posições antagônicas.
Qual das duas propostas argumentativas é a melhor? Não há uma resposta
unívoca para essa questão. Isso é algo que dependerá fortemente do contexto, dos
objetivos e do estilo pessoal do autor. Depende do contexto, porque há contextos
que, em virtude de suas características, pedem por uma argumentação orientada
por uma proposta de persuasão, porque não admitem produção de consenso, ou
porque são tais que uma tentativa de negociação teria poucas chances de êxito.
Há outros contextos que requerem uma argumentação orientada por uma
proposta de compromisso porque, devido às suas características situacionais, a
persuasão simples com vistas à vitória argumentativa (e à derrota da contraparte)
será improdutiva – são contextos em que é preciso tentar negociar. E depende
também dos traços pessoais dos argumentadores, porque, do mesmo modo, há
pessoas que gostam de negociar e pessoas que gostam de competir. Discussões
orientadas por propostas argumentativas de compromisso requerem (como
credencial inicial) que todos os participantes estejam ao menos em princípio
dispostos a ceder em algum ponto relativamente às suas próprias posições, ou
seja, requerem que todos se comprometam a adotar posicionamentos não-
dogmáticos, flexíveis. Já as discussões orientadas por propostas argumentativas
de persuasão requerem de seus participantes mais ou menos o oposto: que eles
sejam resolutos na defesa de suas teses e na tentativa de levar a tese de seus
opositores a ser abandonada.
Embora essas duas propostas argumentativas aparentem ser
completamente opostas, a linha que as separa é, na realidade, bastante tênue. Isso
porque frequentemente discussões são complexas e muitas delas possuem tanto
um componente persuasivo quanto um componente de compromisso. O
componente persuasivo é manifesto pela crença primária, mantida por cada um
dos participantes, individualmente, de que a sua própria posição é a mais
razoável; e o componente de compromisso é manifesto pela disposição, que
comumente existe e que é bastante salutar, de revisar sua própria posição à luz de
críticas vindas da contraparte e reformulá-las, o que envolve, naturalmente,
abandonar a formulação inicial da sua própria posição. Então o contexto e o
interesse pessoal do argumentador ao entrar num debate importam, para a
determinação do tipo de proposta argumentativa a ser adotada, mas as proporções
em que cada um dos componentes descritos acima está presente, no contexto e
nas intenções dos argumentadores, também importam. Tentarei ilustrar essa
complexidade através de alguns exemplos.
Consideremos um embate entre interlocutores relativamente a se um
indivíduo, digamos, João, é ou não é culpado de ter cometido determinado delito.
Nesse contexto, a defesa sustenta a posição “A”, de que João é inocente, ao passo
que a acusação sustenta a posição “não-A”, de que João é culpado. Se o contexto
dessa discussão for o contexto de um tribunal, a defesa tentará “a todo custo”,
digamos assim, estabelecer seu ponto, “A”, de que João é inocente, e a acusação
tentará fazer o mesmo quanto à sua posição “não-A”, de que João é culpado.
Nenhuma das duas partes está disposta a revisar sua posição inicial, cedendo,
flexibilizando-a ou reformulando-a. No contexto de um tribunal real, dificilmente
qualquer uma das duas irá de fato convencer a outra a mudar de posição, ou seja,
nenhuma das duas conseguirá “vencer” a outra de modo a obter dela o
reconhecimento de vitória. Mas uma delas, e apenas uma, verá a sua própria
posição triunfar publicamente em detrimento da outra (ainda que a contraparte
não tenha se sentido racionalmente constrangida a aceitar isso), porque no final
das contas ou João será considerado culpado, ou será considerado inocente, não
sendo possível um meio termo entre essas duas possibilidades, ou qualquer forma
de reformulação. Essa discussão sobre se João é culpado ou inocente é uma
discussão orientada por uma proposta argumentativa cujos traços principais são
de persuasão.
Agora considere a seguinte situação hipotética: João é uma criança
pequena e o delito em questão é um delito grave. Suponha que João foi
considerado culpado, no final das contas, de modo que ambas as partes na
disputa, acusação e defesa, reconhecem que João é culpado, mas discordam entre
si quanto à gravidade da pena a ser atribuída: a acusação é a favor da atribuição
da pena máxima, argumentando que todo infrator deve pagar pelos seus atos na
justa medida de sua gravidade, ao passo que a defesa é a favor de uma pena
muito mais branda, argumentando que punir crianças pequenas com a pena
máxima é mais nocivo do que positivo tanto pra a sociedade como um todo
quanto para o próprio infrator. Nesse caso, uma discussão pautada por uma
proposta argumentativa de compromisso tem lugar, e parece apropriada: é
possível reconhecer e assimilar tanto a demanda por punição (vinda da
acusação), com seus respectivos argumentos, quanto a demanda por adequação
na proporção do caso particular (vinda da defesa), com seus respectivos
argumentos, de modo a produzir um consenso. Esse consenso pode ser
basicamente a aceitação de um compromisso, por ambas as partes, com a
atribuição de uma pena intermediária: não tão branda quanto a que havia sido
sugerida pela defesa, mas ainda assim consideravelmente inferior à pena
máxima, que havia sido sugerida pela acusação. Uma proposta argumentativa de
persuasão, por outro lado, parece não atender às características da situação:
suponhamos que a defesa consiga derrubar os argumentos da acusação em favor
da atribuição da pena máxima, “vencendo-a” e convencendo-a a desistir de
recomendar essa pena. Ainda que a defesa consiga fazê-lo, isso, por si só não
impõe nenhum constrangimento à acusação no sentido de aceitar a sugestão de
pena apresentada pela defesa (uma pena muito mais branda) ou qualquer
sugestão específica. Isto é, ainda que a acusação abra mão de sua recomendação
pela pena máxima, e ainda que faça isso constrangida pela razão, isso não fará
com que ela adote a recomendação por qualquer outra pena específica; e o
mesmo se aplica inversamente.
Agora, imaginemos uma disputa envolvendo duas partes sustentando
posições antagônicas relativamente à escravidão em um Estado escravocrata. De
um lado temos os proponentes da abolição – pessoas apresentando argumentos
segundo os quais a escravidão é inaceitável porque pode perfeitamente ser
substituída pelo trabalho assalariado, mais justo e menos dispendioso. Do outro
lado temos os proponentes da manutenção da escravidão – pessoas argumentando
que essa instituição deve ser mantida porque é imprescindível para o
desenvolvimento econômico do país, já que embora o trabalho assalariado de
fato seja mais justo, ele não é capaz de suprir a totalidade da demanda por mão-
de-obra, de modo que a tentativa de substituir a mão-de-obra escrava pela
assalariada levaria todo o sistema produtivo nacional a entrar em colapso. Essa é
uma disputa mais complexa. Frente a uma disputa como essa, é possível o
desenvolvimento bem-sucedido de uma argumentação de compromisso? Em
certo sentido sim e, em outro, não. Isso porque o núcleo da discordância entre as
duas partes, antes de ser sobre se a escravidão deve ou não ser abolida, é sobre se
o trabalho assalariado é ou não é suficiente para suprir a totalidade da demanda
por mão-de-obra no país; e essa questão tem uma resposta simples e binária: ou
bem o trabalho assalariado é suficiente, ou bem o trabalho assalariado não é
suficiente. Não há como o trabalho assalariado ser “parcialmente suficiente”. A
questão sobre a suficiência é inteiramente binária: ela não admite meios termos,
porque qualquer coisa que fique aquém de “ser suficiente” já se qualifica como o
oposto, ou seja, como “insuficiente”. O mesmo se aplica à questão sobre a
inadmissibilidade: ou bem escravizar pessoas é inadmissível, ou bem é
admissível. Os dois lados concordam que a escravidão é injusta, mas um deles (o
lado escravagista) acha que ela é admissível, apesar de ser injusta. Alguém que
pense ser a escravidão inadmissível dificilmente aceitaria ceder de modo a
reconhecer que ela possa ser “admissível em alguns casos”; vice-versa. Em
relação a essas questões, portanto, é legítimo pensar que propostas
argumentativas de compromisso têm poucas chances de êxito, porque nenhum
dos dois lados pode ceder o que quer que seja sem, com isso, desmoronar.
Uma proposta argumentativa de persuasão, por outro lado, parece uma
proposta mais lógica de ser adotada por ambas as partes: é interesse da parte
abolicionista “derrubar” a reivindicação escravagista segundo a qual a abolição
da escravidão levaria o sistema produtivo do país a entrar em colapso, porque é
seu interesse (e ela está comprometida com, por exemplo) extinguir instituições
injustas em seu país. E uma maneira que ela tem de fazer isso é mostrando que o
trabalho assalariado é suficiente para suprir a totalidade da demanda por mão-de-
obra. Se o abolicionista conseguir demonstrar isso, ele terá “derrubado” o
argumento escravagista. (Note que uma questão inteiramente diferente é se o
lado oposto, o escravagista, irá aceitar a reivindicação abolicionista com base
“apenas” na demonstração de que o argumento abolicionista derruba o
argumento escravagista. Isso porque embora de um ponto de vista epistêmico
essa demonstração é tudo o que é requerido para a derrubada de um argumento,
frequentemente do ponto de vista prático as pessoas resistem em ceder no
momento em que têm seus argumentos derrubados. Isto é, elas relutam em
aceitar a própria derrota e em reconhecer a vitória do opositor. Isso acontece
sobretudo quando há interesses de ordem não-epistêmica envolvidos, tais como,
por exemplo, interesses econômicos. Teremos ocasião de falar sobre “código de
honra epistêmico” futuramente, e isso ficará mais claro). Do mesmo modo, se a
parte escravagista genuinamente acredita que a escravidão é um mal necessário,
parece mais lógico que essa parte entre no debate orientada por uma proposta
argumentativa de persuasão: ela deve estar comprometida com não permitir que o
sistema econômico de seu país entre em colapso, e portanto é seu interesse
derrubar a reivindicação abolicionista de que a escravidão deve ser abolida por
ser injusta. Ou seja, num caso como esse ambas as partes estão visceralmente
interessadas em derrubar os argumentos do adversário, em “derrotá-lo”.
No entanto, a questão sobre se a escravidão deve ou não ser abolida é uma
questão que pode, ao menos em princípio, ser resolvida através de um
compromisso: não há nada que impeça que as partes cheguem a um consenso
sobre uma abolição gradativa, por exemplo. Para que isso ocorra, cada uma delas
precisará revisar alguns de seus pontos, e ceder um pouco (o que elas podem ou
não está dispostas a fazer).
Um caso semelhante é o da disputa entre os chamados “terraplanistas” e
“globalistas” – grosso modo, pessoas que argumentam a favor de que a Terra é
plana e pessoas que argumentam a favor de que a terra é redonda,
respectivamente. Ocorre que ou bem a Terra é plana, ou bem ela é redonda – se a
querela for realmente essa (a terra é um disco versus a terra é uma esfera), então
meios-termos, nessa disputa, parecem difíceis de conceber e uma proposta
argumentativa de compromisso parece, em princípio, difícil de obter êxito.
Também parece difícil imaginar que um dos lados possa ceder em alguns pontos,
abrir mão de algumas de suas reivindicações, sem com isso abrir mão de tudo –
um terraplanista, a princípio, não pode, por exemplo, aceitar a legitimidade de
algumas das provas de que a Terra é redonda enquanto recusa a legitimidade de
outras e ainda assim manter sua reivindicação de que a Terra é plana. Se ele
aceitar a legitimidade de uma só prova de que Terra é redonda, tecnicamente ele
já está obrigado a abandonar “todo” o seu ponto, de que a Terra é plana, porque
esse ponto terá sido derrubado. Inversamente, se o terraplanista for capaz de
apresentar uma só prova de que a Terra é plana, e o globalista aceitar a
legitimidade dessa prova, tecnicamente o globalista terá sido derrotado.
Novamente, vale ressaltar, uma questão inteiramente diferente é se um lado, ou
um indivíduo, irá de fato aceitar a reivindicação do lado oposto com base
“apenas” em provas. Embora esse seja o comportamento epistemicamente mais
adequado e esperado de argumentadores num debate sério e maduro, ele nem
sempre ocorre porque frequentemente há motivações de ordem não-epistêmica
interferindo na disputa. Talvez uma proposta argumentativa de compromisso
funcione para abordar a disputa entre essas motivações de ordem não-epistêmica.
Isto é, talvez essas motivações sejam passíveis de consenso. Mas note que nesse
caso não estaríamos mais abordando a disputa “disco versus esfera”, e sim uma
outra disputa entre terraplanistas e globalistas. (Essa pode ser, por exemplo, a
seguinte disputa: o terraplanista argumenta, contra o globalista, que a ideia de
que a Terra é redonda segrega as pessoas e traz infelicidade. E o globalista
argumenta, contrariamente, que a felicidade não deve se sobrepor à verdade, que
não vale a pena ser feliz na mentira. Nesse caso o que temos é uma disputa sobre
felicidade, ou seja, uma disputa não-epistêmica. Não temos porque pensar que
não seria possível produzir consenso a partir de uma argumentação de
compromisso frente a uma disputa como essa.)
2.2. Por quê as pessoas argumentam?
Vimos para quê as pessoas argumentam – elas argumentam ou para tentar
persuadir seus interlocutores, ou para tentar chegar a um consenso junto a eles.
Agora, por que argumentar? Isto é, por que argumentar em vez de fazer outra
coisa? Ou – por que participar de debates, ao invés de não participar?
Como vimos, argumentar é algo que fazemos para entrar em discussões, e
uma discussão é algo que tem lugar somente quando há, relativamente a um
mesmo tópico, ou questão, diferentes posições sendo adotadas, ou passíveis de
serem adotadas.
Além disso, uma discussão é algo que tem lugar somente quando (i.e., em
contextos em que) é reconhecido o caráter incerto de determinadas ideias, ou
teses. Para haver uma discussão, não basta que haja pessoas discordando – a tese
central de cada uma das posições discordantes deve ser reconhecidamente não-
óbvia, ou incerta, ou seja, deve admitir controvérsia, a fim de que possa ser
discutida sua aceitabilidade em bases racionais. Então a razão principal pela qual
argumentamos é dada pelo fato de que acreditamos em certas ideias (tomamos
como verdadeiras certas ideias) que não se impõem imediatamente, que não são
auto-evidentes, que não são compartilhadas por todos e para as quais cabe,
precisamente por isso, fornecer suporte (a fim de que possam ser confirmadas ou
desconfirmadas, aprovadas ou reprovadas, aceitas ou rejeitadas).
Podemos reformular isso da seguinte maneira: argumentamos porque
desejamos tornar uma tese aceitável para alguém que não a vê imediatamente
como aceitável. E, sobretudo, porque desejamos tornar uma tese aceitável para
alguém que têm dificuldade de aceitá-la, ou mesmo de compreendê-la.
Com isso ganhamos acesso a uma segunda “camada” da resposta para a
pergunta sobre o porquê: argumentamos porque precisamos tornar claras, para
alguém, uma tese e as razões para se aceitar essa tese. Sempre, ao argumentar,
partimos do pressuposto que o interlocutor pensa diferente de nós (isso é algo
que assumimos naturalmente). Mas, além disso, devemos partir também do
pressuposto de que nosso interlocutor é alguém que pensa tão diferente de nós a
ponto de ser difícil para ele até mesmo compreender o que dizemos (quem dirá
compreender as razões pelas quais pensamos da forma como pensamos). Tornar
uma tese aceitável para alguém requer, portanto, torná-la clara, em primeiro
lugar, e tornar claras as razões pelas quais nós a aceitamos. É preciso tornar a
tese favoravelmente à qual iremos argumentar o mais clara possível, para que
seja perfeitamente compreendida por alguém que até então não a compreendia;
para que faça sentido para alguém para quem ela, até então, não fazia sentido.
(Muitas vezes esse “alguém” somos nós mesmos, quer dizer, muitas vezes nós
não temos clareza nem a respeito das nossas próprias ideias, nem a respeito das
razões pelas quais nós mantemos essas ideias. Muitas vezes nós temos ideias
confusas e tudo o que possuímos são meras pistas sobre porquê nós as temos.
Nesse caso, argumentar ajudará a tornar claro para nós mesmos aquilo que
pensamos e porquê pensamos assim.)
E, assim, antevemos uma terceira “camada” da resposta para a pergunta
sobre por que argumentamos: argumentamos porque essa é a melhor forma de
tornar uma ideia clara e aceitável para alguém que até então não a enxergava nem
como clara, nem como aceitável. É por isso que argumentamos, em vez de não
argumentar; que entramos em debates, em vez de ficar de fora: porque quando
queremos levar outra pessoa a enxergar como aceitável algo que ela atualmente
enxerga como inaceitável, fornecer argumentos é a forma mais honesta,
respeitosa e eficiente; e por isso é a melhor. Certamente a argumentação (uma
argumentação boa, efetiva) é mais honesta e respeitosa do que o uso da força, por
exemplo, ou de outras formas de constrangimento; e certamente é mais eficiente
do que o uso de ironia ou de outras formas de discurso. Dar as razões para se
aceitar algo funciona melhor, para fins de que a pessoa aceite esse algo, do que
simplesmente dizer que ela deve aceitar, ou contar uma história, ou se reportar a
um exemplo, etc. Quando damos ao nosso interlocutor acesso às razões para se
aceitar determinada tese, fazemos com que ele compreenda essa tese de maneira
profunda e, com isso, lhe damos a oportunidade de avaliar se se tratam de boas
ou más razões, e se a tese deve ou não ser aceita. Ou seja, quando damos ao
nosso interlocutor acesso às razões, nós abrimos caminho a que ele exercite sua
racionalidade na faculdade de julgar e endossar. Ora, dar as razões, e articulá-las,
é precisamente o que argumentar é. Agora compreendemos porque é que alguém
que está sendo rude com seus interlocutores, ou tentando impor seus pontos de
vista pessoais de maneira arrogante não está realmente argumentando – essa
pessoa pode até ter tentado argumentar, mas está falhando miseravelmente. A
boa argumentação é a abertura do acesso às razões (para se aceitar determinada
tese) a alguém que antes não as tinha.
Há alguns parâmetros normativos que garantem a efetividade de uma
argumentação. Trata-se das exigências ou condições requeridas para a condução
produtiva das controvérsias, o que será assunto de uma próxima sessão.

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