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2 0 - J U L H O DE 2010
Ensaio sobre a perda do instante decisivo
Pollyanna Freire
Apresentando parcialmente a discussão desenvolvida no mestrado em Linguagens
Visuais, abordo o problema do tempo tal como imposto pela fotografia instantânea,
sugerindo uma reflexão sobre o trabalho 1 segundo (l’instant décisif), por via tanto
técnica – operada pela máquina fotográfica – quanto filosófica.
Fotografia instantânea, tempo, repetição, paradoxo.
Zenão, filósofo nascido em Eleia, Itália, por largada. Para alcançá-la, Aquiles primeiro
volta de 464 a.C., é o autor de uma série de deverá chegar ao ponto em que ela esteve
famosos paradoxos a respeito do movimen- antes e, ao alcançá-lo, deverá novamente
to. Esses argumentos irão à defesa da dou- chegar ao próximo ponto em que ela este-
trina de Parmênides, oposta àquela sobre o ve, e assim indefinidamente.
fluxo contínuo das coisas, disseminada por
Heráclito; afirma daí que apenas identidade Zenão, já em sua terceira aporia sobre o
e permanência são verdadeiras, sendo o movimento, afirma que há sempre o aqui e
movimento uma ilusão de nossos sentidos. o agora como partículas que dividem o es-
Para defendê-la eram necessários argumen- paço e o tempo; portanto, algo que está em
tos que negociassem o movimento real – movimento, paradoxalmente, está sempre
tal como percebido por nós (como trans- parado. O filósofo dá como exemplo: uma
formação contínua através do espaço e do flecha lançada estará sempre num aqui e
tempo) – com permanência e unidade. Es- agora, permanecendo estática mesmo que
ses argumentos, chamados de aporias, res- aparentemente se esteja movimentando em
direção ao alvo. Para que esses argumentos
ponsabilizaram-se, habilmente, por essa ne-
se tornem possíveis, no entanto, é necessá-
gociação.
rio admitir que o tempo e o espaço sejam
De acordo com o primeiro deles, um obje- infinitamente divisíveis. Essa condição
to em movimento antes de percorrer um axiomática deve ser aceita.
termo chega a sua metade e, para chegar a Apontamentos sobre a fotografia instantânea
essa metade, deve percorrer metade de sua
metade e só atingirá essa metade ao chegar Observando atentamente o desenvolvimen-
a sua metade, e assim por diante. O impasse to técnico da fotografia a partir do século
imposto é que nunca será possível atraves- 19, poderíamos tornar seu percurso uma ilus-
sar um termo quando a divisão desse espa- tração desses argumentos; essa relação não
ço é operada infinitamente. Observando a passou despercebida por diversos autores.
Pollyanna Freire
1 segundo (l’instant lógica desse primeiro argumento, ainda, o Ainda em 1840 a fotografia estava sujeita à
décisif), 2007, veloz coelho Aquiles nunca alcançará a tar- ação de químicos débeis, que exigiam expo-
fotografia. 40x30cm taruga que se lançou com antecedência à sições longas e contínuas com variações en-
Pertence à fotografia a perpetuação de acon- Essa questão pode ter-se tornado mais com-
tecimento único; o que decorre não é mera plicada e menos imediata quando, nos anos
temporalidade reduzida a um simples instan- 80, o artista Richard Prince adota como fon-
te, a um ponto, mas também à superação te de seus trabalhos imagens de revistas, jor-
nais, etc.; imagens de propagandas em geral,
dele, que terá outra duração, outra inscrição
feitas por fotógrafos anônimos comerciais,
no tempo. Giorgio Agamben comparará cada
que gerarão séries como “Cowboys”,
fotografia ao Dia do Juízo. Não necessaria- “Sunset”, entre outras. Inicialmente, parece
mente porque mostre algo grave, ou trági- pertinente observar que refotografar uma
co, mas por captar, em sua flanêrie, até o imagem atribui ao ato certa leveza – como
gesto mais banal e ordinário: “cada homem prefiro interpretar – ou “não esforço”, como
fica entregue para sempre a seu gesto mais Prince coloca com certa recorrência ao lon-
ínfimo e cotidiano (...) o gesto agora apare- go de seus textos.21 Não há nenhum tipo de
ce carregado com o peso de uma vida intei- atenção especial, pelo menos daquela que é
ra...”18 Comparativamente, é no Hades, in- exigida genericamente do fotógrafo, que
ferno pagão, que as sombras dos mortos deva ser direcionada às coisas no mesmo
estarão condenadas a repetir infinitamente instante em que elas se apresentam para
captar seja lá o que se deseje. Encontro-me
um gesto, como chave secreta para trazer a
certamente em outro tipo de repetição aqui;
memória de uma existência – apokatastasis.
possivelmente não mais naquela do ato, que
A fotografia tornará possível mais uma e
mesmo repetido se supõe único e original,
outra vez um acontecimento, que será sem- mas já naquela que concerne à reprodução
pre captado em sua perda iminente.19 de uma imagem.
A repetição Quando se refere a seus trabalhos, “simular”
(simulate) é a palavra que Prince prefere e
Se houve num primeiro momento a urgên-
difere de “copiar”. Uma cópia é feita à se-
cia de abordar o corte temporal, nesta altu-
ra não será menos importante introduzir o melhança de outro objeto, dito original, e
problema da repetição, cerzido na constitui- poderia substituí-lo, sendo apreciada em seu
ção deste trabalho e em certos aspectos da lugar. As fotografias de Prince não são cópias
fotografia. Admitindo que a compulsão faça de anúncios nem visam substituí-los, como
parte da própria natureza do ato fotográfi- uma estátua de gesso em relação a um ori-
co, cria-se imediata relação entre a repeti- ginal em mármore. Não se trata também de
ção e a obtenção de uma imagem. Fotogra- falsificação. No entanto, as refotografias, se-
fa-se tudo; a seleção é posterior, afirmará gundo Prince, reivindicam uma relação de
Dubois. Repetição do ato. Não cabe ao fo- frescor, como se fossem vistas pela primeira
tógrafo fazer uma foto, mas uma série delas, vez – possibilidade negada às imagens que
metralhar com a máquina. Não se trata da lhes dão origem; estas estão comprometi-
repetição dos assuntos, mas a ação de foto- das pela própria mídia que as veicula: meio
grafar será sempre a de recomeçar, recupe- dos anúncios de revistas, propagandas; um
rar; uma questão de sucessividade. A foto- universo indistinto de “Cowboys”.