Você está na página 1de 15

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS - PPGAC


DOUTORADO

Seminários Avançados II
Professora Betti Grebler - Salvador, Junho de 2017.

A criação coletiva no Théâtre du Soleil1


por Béatrice Picon-Vallin, na revista L’avant-scène théâtre2

Fichamento do texto por Maria Amélia Gimmler Netto

O presente fichamento de leitura será apresentado em quatro partes. A primeira parte


refere-se à apresentação objetiva da autora Béatrice Picon-Vallin de e das principais idéias do
seu texto “A criação coletiva no Théâtre du Soleil” publicado na revista L’avant-scène théâtre e
disponibilizado no site original da referida companhia. A segunda parte trata de uma elaboração
pessoal sobre a leitura, com parecer e crítica de Maria Amélia Gimmler Netto. A terceira parte
consiste nas referências utilizadas. Por fim, a quarta parte trás a tradução não oficial para o
Português, realizada pela autora do fichamento.

Primeira Parte

Béatrice Picon-Vallin é diretora de pesquisas do CNRS (Centre National de Recherche


Scientifique3 – França). Ela é especializada em teatro russo e interessada em história e teoria da
cena na Europa, bem como nas relações entre teatro e outras artes. Publicou várias obras sobre o
Théâtre du Soleil. Ela aborda neste texto o conceito de criação coletiva, no coração do processo
artístico posto em prática por Ariane Mnouchkine.
Em seu texto “A criação coletiva no Théâtre du Soleil” a autora se concentra em analisar
algumas pistas para possíveis mudanças em termos de escrita textual e corporal, em um teatro de
criação coletiva imaginativo e inventivo. Para tanto a autora aborda questões da historia do
Théâtre du Soleil e de suas montagens em que sucedem-se espetáculos compostos a partir de
peças teatrais já existentes e de criações coletivas de narrativas cênicas.

1
“Teatro do Sol”
2
“O teatro de proscênio”
3
Centro Nacional de Pesquisa Científica
1
Segundo a autora a companhia busca um diálogo com seu público, com o contexto sócio-
político de uma época e com a condição da trupe que como qualquer grupo humano sofre crises
relacionais ou artísticas.Como falar sobre o presente? É a pergunta que se responde, em todos os
casos, a cada escolha pontual, salienta Picon-Vallin a respeito das montagens da companhia e da
postura de Ariane Mnouchkine como encenadora da trupe.
A partir desta contextualização inical seu texto é dividido em três subtitulos, sendo eles,
respectivamente: “O coletivo, uma escolha radical”, “As fontes do espetáculo” e "Você não é
nada sem os outros.

O coletivo, uma escolha radical


Picon-Vallin destaca que o texto contemporâneo, para o Soleil será muitas vezes fruto da
criação coletiva, projetado e testado mesmo a partir de suas restrições, leis, contatos e limites.
Para a ecenadora da trupe, “a opinião de todos os membros da companhia não está mais
interessada no repertório dramático existente. Eu gostaria que houvesse, no Soleil, dramaturgos a
trabalhar inteiramente com a gente... Mas estes dramaturgos desejados são também os atores da
trupe que se tornarão gradualmente os verdadeiros coautores do espetáculo, ao memso tempo a
noção de texto dramático vai aumentar, abrangendo palavra, gesto, imagem, som, ritmo em um
todo difícil de separar” (PICON-VALLIN, 2010). Para Ariane a aprendizagem de seu oficio de
encenadora se deu na Inglaterra e no Japão. Ela iniciou experimentando com um grupo de
amigos, o que considerou um “necessário crisol4 da sua ação” (PICON-VALLIN, 2010). Neste
contexto o grupo desafiava-a a assumir todos os riscos e concordava em desafiá-la a cada nova
criação.
No processo de criação do Soleil a improvisação é a regra, mas aqui se adiciona um
trabalho de coleta de todo histórico e documentação, entrevistas, leituras e palestras, sessões
filmes e pesquisa iconográfica. As improvisações individuais ou em dupla podem evoluir para
improvisações coletivas entre os atores. Nas palavras da encenadora:

As vezes eu quero dizer a alguém ‘Isso não é bom’, mas então eu não digo nada,
porque eu sei que o ator vai perceber rapidamente(...) Na verdade, me é difícil
dizer exatamente o que é meu trabalho: nós trabalhamos de modo totalmente
empírico. Quando o espetáculo está em curso, eu não sou capaz de dizer qual era a
minha ideia de partida. Eu acho que eu tive essa ideia e em seguida vieram os
atores e vice-versa. Eu acho que eu estou aqui para encorajar, para dinamizar.
(PICON-VALLIN, 2010)

4
Lugar ou circunstancia apropriada a evidenciar as melhores qualidades de algo ou de alguém.
www.dicionarioinformal.com.br/crisol - visitado em 01/06/2017
2
O estatuto jurídico da SCOP (Sociedade cooperativa dos trabalhadores de produção)
que é o da fundação do Soleil, conta com cada membro ganhando o mesmo salário e sendo
chamado para cuidar de tudo. Este estatuto deixa ainda mais porosas as fronteiras entre o papel
da diretora e dos atores. “E nas sinergias de criação coletiva, a desregulamentação ocorre
espontaneamente através das disciplinas - cenografia, encenação, técnica, jogo e figurinos”.
(PICON-VALLIN, 2010)
Picon-Vallin destaca que na fase inicial de trabalho da companhia havia dificuldades em
identificar o papel do encenador. Desde a montagem de Les Clowns5 (1969), o nome de
Mnouchkine figura “solto” entre os dos atores que assinam o espetáculo, Mas já nas montagens
de 1789 (1970) e L’Âge d’or6 (1975) isto é reparado e ela passa a figurar como diretora de
cena.
Segundo registra a autora, a “criação coletiva” não é um método milagroso que anula
todas dificuldades; ao contrário, ele as reúne constantemente, cada vez que entra um ator e cada
vez tudo deve ser revisado e reinventado. Pra o ator Philippe Caubère:

O caminho será longo e muitas vezes não terá sucesso. Na idealização ele vai
passar pela estimulação recíproca e maravilhosa mobilização cumplice de
memoria e intuição e pior, pelo confronto, pela minha incapacidade de traduzi-la,
[ aMnouchkine] quer me jogar seu desamparo para acionar a mola que vai levar-
me. Assim, depois de períodos de excitação e uma incrível riqueza de invenção,
de paixão por túneis longos vazios, dúvidas e incertezas, alguns dos nós
desenredados e, até mesmo, desespero. (PICON-VALLIN, 2010)

A presença de texto, alguns traduzidos por Ariane Mnouchkine, não questiona a forma de
trabalho, a sinergia e a mobilidade, e a flexibilidade das interações. Picon-Vallin ressalta que o
que é muito rico nesta forma de trabalhar é que todas as artes e todos os artistas estão juntos e
todos compartilham a responsablidade das coisas que avançam sobre o palco. “É a maneira com
que vamos ‘crescer’ que determina o jogo. E o cenário será realizado porque houve no jogo um
determinado movimento particular. Ele não é um cenário que se colocou e você tem que jogar. É
realmente com ele. Nós avançamos juntos.” (PICON-VALLIN, 2010) A respeito da trilha
sonora a autora sublinha que Ariane Mnouchkine diz:

"A presença de uma tal voz implica a utilização de um tal instrumento. Às vezes
é muito claro. Jean-Jacques [Lemêtre] segue uma voz, ele pega um tom. E já
alguns dias antes este tema correu para ele, ou ele surgiu durante o trabalho, ou é
o contrário, Jean-Jacques disse: 'Olha, não há progresso, vou tentar outra coisa? "
Eu não sei, mas um ator reagiu, agarrou sua proposta – e eu não falo sobre a
dança, eu falo de um tal impulso, tal ritmo, tal emoção, tal violência. Um

5
“Os palhaços”
6
“A idade do Ouro”
3
espectador disse uma vez: "Neste espetáculo, a musica é o segundo pulmão. "
Ele falou sobre o texto como o primeiro lugar. " . (PICON-VALLIN, 2010)

As fontes do espetáculo
A escrita coletiva, a assistência de direção, a criação musical e o cinema são apontados
pela autora como as principais bases dos processos de criação da companhia.O Théâtre du Soleil
voltou a escrita colectiva com o filme Le Dernier Caravansérail7 [O último Caravansérail] em
2003, dado como "criação coletiva em harmonia com Hélène Cixous”. Pois foi dirigido a partir
de improvisos gravados em fita cassete, transcritos no papel e reescritos por Hélène Cixous)
Assim sendo a câmera digital surge uma nova ferramenta surge e transforma a maneira de
trabalhar. “As improviações vão cada vez mais afinando o trabalho de documentação onde
livros, reuniões com pesquisadores, historiadores, pessoas na vida real, os heróis de histórias
transpostas para o palco, filmes, compõe um quadro indispensável” (PICON-VALLIN, 2010)
O assistente da encenadora, Charles-Henri Bradier, também chamado de co-diretor, atua
“tanto o escriba que toma nota do que está acontecendo no ensaio, o bibliotecário que cria pastas
em torno de cada questão abordada e fornece bibliografia e pistas de pesquisa. É o interlocutor
essencial dos atores, que mantém o diário de bordo” A função do assistente é assim dividida,
pois há um segundo posto, que é atendido pelo vídeo. Os DVDs de trabalho (e as fitas de vídeo
de improvisações) são classificados por Charles-Henri Bradier por mundos, famílias, grupos ou
temas. O vídeo fornece um material autêntico onde palavras e entonações não existem sem o
todo do texto teatral - o jogo dos parceiros de cena, os corpos, os objetos, o espaço.
Sempre à escuta dos atores, disponível e atencioso, Lemêtre é informado de alguns dados
que precedem às improvisações. A partir daí ele “captura o resto no vôo, acompanhando-os ao
vivo”. Para a montagem de Naufragés du foil spor8, ele usou um banco de dados preparatório
composto por sete centenas de discos ou CDs (reunidos por época o período de 1880-1914). “De
mixagens feitas em estúdio, onde ele refez o som, os tons, as misturas, e composições pessoais
ele propõe, se adapta, trabalha com o que dita o texto (e não [está] escrito) acrescenta a voz dos
atores, uma vez que existem cenas silenciosas, em ritmo físico” (PICON-VALLIN, 2010)
O Soleil é uma companhia que se dedica também a criação cinematográfica. Nas
produções música e teatro estão a serviço de uma terceira arte, o cinema. “De filmagens de
improvisação a filmagens de espetáculos, da utilização cotidiana do vídeo, dos computadores (...)
era natural, óbvio, mas não se esperava, que o cinema fizesse sua entrada, durante o trabalho no

7
“O último Caravansérail”
8
“Náufragos da Louca Esperança”
4
grande palco do Soleil.” (PICON-VALLIN, 2010) O cinema mudo, independente e arcaico, é
inspiração para Mnouchkine e seus atores.
Mnouchkine admite que quando a situação teatral foi bloqueada, "foi necessário
recuperar a liberdade dada pelo cinema”. Nas criações, grande parte do texto escrito
desaparecerá no set de filmagem e a voz será introduzida no final do trabalho. O que corresponde
à função do benshi9 no antigo cinema japonês. Ele comentará não sobre as cenas filmadas, mas
sim as sequencias sobre a vida da trupe de cinema. Assim como nas montagens de espetáculos
todos da trupe estarão no trabalho, de caráter transportador, onde como sempre algum será mais
"locomotiva" que os outros.

Você não é nada sem os outros


O ator Sava Lolov, no momento do processo criativo de Le Dernier Caravansérail, disse
sobre Ariane Mnouchkine que ela trabalha como um budista para caracterizar sua passividade
ativa antes do processo de proposições, das trocas, da amplificação, da precisão, do abandono de
visões acessórias para criar a visão final. Já nas palavras da própria diretora encontra-se também
uma definição: "Eu sou encenadora, mas eu trabalho coletivamente. Isto não é modéstia. Este é
um método de trabalho que é artisticamente eficaz e politicamente justo. É perguntado a todos o
que podem dar de melhor de si mesmos. E tudo o que está bom neste palco pode ser
encontrado”. (PICON-VALLIN, 2010). A criação coletiva implica também no público e em suas
reações. São trabalhos de associações solicitadas pelas várias camadas da escritura conjunta.

Processos muito ativos estão no trabalho, por exemplo, no Les Naufragés, onde
arranjos musicais sutis de Jean-Jacques Lemètre (Strauss, Chopin, Bruckner,
Smetana, Satie, Dvorák, Brahms, Wagner…) evocam eventos, emoções,
entretenimento, de reuniões privadas, uma memória pessoal ou coletiva. Estas
associações não são redutíveis a comportamentos de identificação, mas inflam a
representação da vibração respiratória dos espectadores atentos. (PICON-
VALLIN, 2010)

Nas montagens do Soleil é frequente que a criação coletiva retrate a vida da trupe. Isso
pode resultar em cenas inteiras que serão assumidas no espetáculo, como em Les Éphémères10
(2006) ou em ocasiões pontuais fragmentadas que serão então redesenhadas e configuradas,
como em Les Naufragés (2010). “É sempre uma aventura sem rede reivindicando longos
períodos de ensaios de risco” (PICON-VALLIN, 2010).

9
Narradores cujas leituras dramáticas acompanhavam o filme e a música, que era, como no Ocidente, tocada ao vivo
(1914). https://pt.wikipedia.org/wiki/Cinema_do_Jap%C3%A3o – visitado em 01/06/2017.
10
“As efeméridas”
5
Segunda Parte

A criação coletiva pode ser considerada um modo de criação que abarca diferentes
métodos de montagens cênicas em grupo. Muitos grupos e companhias teatrais com poéticas
variadas optaram por trabalhar com este registro criativo, principalmente nas décadas de sessenta
e setenta. Este modo de criação serviu como fonte de pesquisa para muitos teóricos que se
dedicaram ao estudo da criação em grupo. Apesar de serem diversos os modos de fazer, existem
características que são comuns à criação coletiva, sendo elas: a experimentação de novas
possibilidades cênicas e a busca de quebras de padrões artísticos vigentes, tanto no âmbito da
poética e da estética, como da ética. “Do ponto de vista da linguagem, há em geral uma ênfase do
corpo e da ação, originada no ponto de partida do processo criativo: o jogo entre os atores e a
improvisação funcionam como alfabeto com que o grupo escreve suas ideias.” (GUINSBURG,
FARIA, LIMA, 2009, p. 110) Ao termo criação coletiva pode-se associar também um
direcionamento comunitário de compartilhamento de vida social de seus membros e um forte
teor político de resistência em épocas políticas repressoras, como foi a ditadura militar no Brasil
e em outros países latino americanos. Um forte legado desta proposta de fazer teatral é o ímpeto
de envolver todos artistas da equipe na criação do espetáculo e nas funções necessárias para dar
concretude à montagem cênica.
Segundo os autores do Dicionário de teatro Brasileiro o termo processo colaborativo de
criação em teatro caracteriza-se por ser um trabalho coletivo de criação em que as funções a
serem exercidas em uma montagem teatral são específicas para cada artista e bem definidas
dentro da equipe. Assim sendo “é comum a presença do dramaturgo na sala de ensaio, permeável
às sugestões do elenco, do diretor e do corpo técnico, sem que as hierarquias sejam anuladas”.
(GUINSBURG, FARIA, LIMA, 2009, p. 311) Firma-se assim uma nova forma de acordo entre
os artistas criadores de uma montagem ou de um grupo com trabalho teatral continuado. As
tarefas como encenação, dramaturgia, atuação, cenografia, entre outras, passam a ser encaradas
como funções da montagem sem que uma seja hierarquicamente superior à outra, seja na
influência para a definição poética da montagem seja na remuneração de seus artistas
responsáveis.
No Brasil, o trabalho coletivo de criação em teatro, seja na forma definida como criação
coletiva, seja nos métodos conhecidos como processo colaborativo de criação em teatro, revela-
se em grupos que são expoentes e cujo trabalho permite refletir sobre os modos coletivos de
criação cênica. São eles: o Teatro da Vertigem, de São Paulo, dirigido por Antônio Araújo, a
Companhia do Latão, de São Paulo, dirigida por Sérgio de Carvalho, o Grupo Galpão, de Belo

6
Horizonte, que opta por variar a função da direção em suas montagens, convidando encenadores
colaboradores, o Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, que assina criação coletiva, O Teatro
Oficina de São Paulo, dirigido por Zé Celso, sobretudo em suas montagens iniciais, bem como
outras companhias e grupos fundados mais recentemente.
Embora a tradução do título do texto fichado acima seja “A criação coletiva no Théâtre
du Soleil”, no contexto brasileiro o termo Processo Colaborativo de criação em teatro é mais
usado por pesquisadores, professores e estudantes para designar práticas criativas em grupo em
que as funções da montagem teatral sejam bem definidas dentro do coletivo e assinadas por
determinados artistas, como é o caso do Soleil.
A pesquisa de Antonio Araújo (encenador do Teatro da Vertigem e professor da USP) é a
pioneira a trazer o termo Processo Colaborativo ao contexto brasileiro. Ele inclusive difere
veementemente o uso das duas terminologias, do ponto de partida do modo. Em seu texto “O
processo colaborativo como modo de criação”, após descrever o processo criativo vivido pelo
Teatro da Vertigem, na montagem da sua Trilogia Bíblica, ele define, ao final que:

(...) é possível perceber que o que está em pauta não é a presença ou não do elemento
dialógico ou participativo, mas de como ele se estabelece. Neste caso, pelo viés do
modo, processo colaborativo criação coletiva não são a mesma coisa, não traduzem a
mesma experiência e a referida distinção entre método e modo é capaz de nos ajudar a
entender a discussão muitas vezes polêmica que será que esses dois conceitos teatrais.

O conceito de Processo Colaborativo para nós no Brasil está ainda bastante calcado nos
escritos de Araujo que, na tentativa de diferir sua prática da de grupos que assinam a criação
teatral como coletiva e de montagens tetarais tradicionais em que há a sequencia de subordinação
definida na montagem - autor, diretor, ator. Já em países da Europa (como França e Portugal, por
exemplo) essa linha de distuinção terminológica entre Criação Coletiva e Processo Colaborativo
encontra-se mais borrada e o texto fichado aqui é um bom exemplo desta afirmação.
Outro motivo a destacar a importância da publicação aqui fichada é a parceria entre
companhia teatral e pesquisadora. Visto que é grande a lista de publicações da autora a respeito
da companhia o que mostra o estreito laço estabelecido entre Picon-Vallin e o Soleil. Ademais a
conjunção de uma produção acadêmica e artística, protagonizada por mulheres, representadas no
texto pela figura da autora – Béatrice – e da encenadora amplamente citada – Ariane – é ainda
um ponto a ser destacado no cenário, ainda e infelizmente predominantemente masculino, da
pesquisa acadêmica e da direção teatral.

7
Terceira Parte

Referência Principal

PICON VALLIN, Béatrice. La création collective au Théâtre du Soleil. L’avant-scène théâtre,


n° 1284-1285 - pp. 86-97 - 1er juillet 2010. Disponível em: http://www.theatre-du-
soleil.fr/thsol/apropos-du-theatre-du-soleil/le-theatre-du-soleil/article/la-creation-
collective-au-theatre?lang=fr. (Visitado em 03/06/2017)

Textos complementares

ARAUJO, Antonio. O processo colaborativo como modo de criação. in: Olhares


ESCH/Revista da Escola Superior de Artes Célia Helena. n° 1. 2009;
GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariângela Alves de (Coord.). Dicionário do
teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Perspectiva: Edições SESC SP, 2009, p.110 – 112; 279-280; 309-313);
HÜHNE, Leda Miranda. Metodologia Científica: cadernos de textos e técnicas. Editora Agir,
1992
PICON-VALLIN, Béatrice. Tradições e inovações nas artes da cena. Volume 9. Revista Sala
Preta. ECA/USP: São Paulo, 2009
PICON-VALLIN, Béatrice. Os mundos íntimos do Soleil. Revista Sala Preta. Volume 7.
ECA/USP: São Paulo, 2007;
PICON-VALLIN, Béatrice. Teatro híbrido, estilhaçado e múltiplo: um enfoque pedagógico
(Entrevista com Béatrice Picon-Vallin). Revista Sala Preta. Volume 11. ECA/USP:
São Paulo, 2011.
Sites

http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/a-propos-du-theatre-du-soleil/

Vídeos no YouToube

https://www.youtube.com/watch?v=oUrBWETg4x0 [Les Naufragés du Fol Espoir]


https://www.youtube.com/watch?v=LRsdNZtBkfg [1789]
https://www.youtube.com/watch?v=0LyrxpDczBo [Lage d’or]
https://www.youtube.com/watch?v=65sPTffOBrw [Lês Ephemères]
https://www.youtube.com/watch?v=BaL7lxFhjZE [Le caravanceral]
https://www.youtube.com/watch?v=vLmRJH3wiDg [Documentário: Ariane M. e o T. de Soleil]

Quarta Parte

Tradução informal do texto original (Anexo)

8
A criação coletiva no Théâtre du Soleil de trabalho onde o teatro impõe suas leis de tempo, e não vice-
por Béatrice Picon-Vallin, na revista L’avant-scène théâtre versa.
Na historia do Soleil sucedem-se espetáculos compostos a
Tradução informal para o Português partir de peças existentes e de criações coletivas. As estreias são
por Maria Amélia Gimmler Netto* constituidas, muitas vezes de ciclos, como “os Shakespeare” e
“Os Atridas”. A questão da ligação que os constitue em
Béatrice Picon-Vallin é diretora de pesquisas do CNRS (Centre repertório, a encenação de peças e espetáculos considerada como
National de Recherche Scientifique – França). Ela é especializada suporte de diálogo com um público deve ser feita em
em teatro russo e publica extensamente. Ela é interessada em comparação tanto com o contexto sócio-político de uma época
história e teoria da cena na Europa, bem como nas relações entre ("Como falar sobre o presente? "É a pergunta que se responde,
teatro e outras artes. Ela dirige três coleções sobre teatro (CNRS em todos os casos, a cada escolha pontual) como com a condição
Éditions, Actes Sud-Papiers e L’Âge d’Homme). Publicou várias da trupe que como qualquer grupo humano sofre crises
obras sobre o Théâtre du Soleil (ver lista no final do artigo). Ela relacionais ou artísticas.
aborda aqui o conceito de criação coletiva, no coração do O Théâtre du Soleil montou peças contemporaneas, além
processo artístico posto em prática por Ariane Mnouchkine. de La Cuisine (A Cozinha) de Arnold Wesker que foi marcada
com seu zelo - afirmando, simbolicamente, na história do teatro, a
"Ao ator, você nunca está melhor do que quando você joga bem. associação entre alimentos e espetáculo, ele nunca vai negar, e
Quando você joga bem, a encenação é boa."[1] Ariane iniciando um trabalho aprofundado sobre a improvisação,
Mnouchkine combinado com um conjunto de cena muito preciso – e aqueles
escritos para a trupe de Hélène Cixous.
"O que é o teatro [...] que pode se orgulhar de um repertório
capaz de tomar a sinceridade áspera das paixões populares, a O coletivo, uma escolha radical
liberdade de julgamento da praça pública, capaz de abandonar o O "texto contemporâneo," para o Soleil será muitas
servilismo, para adquirir uma linguagem acessível ao povo, vezes fruto da criação coletiva, projetado e testado mesmo a partir
adivinhar as paixões do povo, tocar as cordas de seu coração? " de suas restrições (contatos, limites) e suas leis. Esta é a
[2] Vsevolod Meyerhold convicção pessoal de Ariane Mnouchkine que disse, após a
criação coletiva de Les Clowns [Os palhaços] (1969): "Que se
É sobretudo um livro que escreve sobre a questão da haviam criado escapes. Eu creio que à vista deste problema as
criação coletiva no Soleil. Ou mais. Além disso, este estudo se falhas levaram a uma atitude absolutamente violenta e radical.
concentra em evocar e analisar algumas vias/pistas para reportar Isto é também o que empurra, ou faz crescer, pois a opinião de
mudanças em termos de escrita neste teatro coletivo onde as todos os membros da companhia não está mais interessada no
palavras e corpo são chamados juntos, assim como são chamadas repertório dramático existente. Eu gostaria que houvesse, no
a imaginação e a invenção. Tudo no curso de um longo processo
Soleil, dramaturgos a trabalhar inteiramente com a gente. Talvez improvisações correspondentes a vários meses de trabalho. E à
iremos chegar lá.” [3] Este autor parceiro no sentido pleno do Mnouchkine pertence escolha de textos históricos e a montagem
termo um pouco banal hoje será Hélène Cixous que desde 1983 final. Mas ela disse: "Meu papel era encenar as ideias gerais... A
vai colocar a sua escrita para a serviço do teatro e ir para meios única ideia sobre a qual nos propusemos foi: como e onde ele
de escrita de Les Naufragés du Fol Espoir (Os náufragos da tinha que acontecer - em um campo de feira justo e interpretado
louca esperança) apenas com indicações genéricas. Mas estes por malabaristas. Eu nunca tive que fazer a seleção: a seleção fez-
dramaturgos desejados são também os atores da trupe que se se, obviamente. As vezes eu quero dizer a alguém "Isso não é
tornarão gradualmente os verdadeiros coautores do espetáculo, ao bom", mas então eu não digo nada, porque eu sei que o ator vai
memso tempo a noção de texto dramático vai aumentar, perceber rapidamente. Na verdade, me é difícil dizer exatamente
abrangendo palavra, gesto, imagem, som, ritmo em um todo o que é meu trabalho: nós trabalhamos de modo totalmente
difícil de separar. empírico. Quando o espetáculo está em curso, eu não sou capaz
Após Les Clowns houve uma tentativa de criação a de dizer qual era a minha ideia de partida. Eu acho que eu tive
partir de contos populares que jamais tiveram sucesso, este é o essa ideia e em seguida vieram os atores e
choque de 1789 (1970) visto por um imenso público (de 200 000 vice-versa. Eu acho que eu estou aqui para encorajar, para
espectadores em uma temporada). Relacionada ao contexto de dinamizar...” [4]
1968, a criação coletiva parece especialmente fazer parte, no O estatuto jurídico da SCOP (Sociedade cooperativa dos
espírito de Ariane Mnouchkine de cada autêntico processo de trabalhadores de produção) que é o da fundação do teatro (Soleil)
criação teatral. Devo dizer que a aprendizagem de seu oficio de e que foi recentemente reativada, conta com cada membro
encenadora se deu na Inglaterra e no Japão, em seguida ganhando o mesmo salário e sendo chamado para cuidar de tudo,
experimentou com um grupo de amigos, necessário crisol* (lugar ele ainda deixa mais porosas as fronteiras entre o papel do diretor
ou circunstancia apropriada a evidenciar as melhores qualidades e dos atores. E nas sinergias de criação coletiva, a
de algo ou de alguém*) da sua ação, desafiando-a a assumir todos desregulamentação ocorre espontaneamente através das
os riscos e concordando em desafiá-la em cada nova criação. disciplinas - cenografia, encenação, técnica, jogo e figurinos. No
Em 1789, como em Les Clowns, a improvisação é a dispositivo assinado pelo cenógrafo Roberto Moscoso colaborou
regra, mas aqui se adiciona um trabalho de coleta de todo Guy-Claude François, e em seguida, o Diretor Técnico Françoise
histórico e documentação, entrevistas, leituras e palestras, sessões Tournafond, que desenhou os figurinos e declara: "Evoluímos
filmes na Cinemateca, pesquisa iconográfica. A improvisação todos no geral, foi um momento extraordinário. Eu assisti todos
individual de Les Clowns evoluiu para improvisações grupais os ensaios. Meu trabalho era paralelo ao dos atores". A partir de
coletivas de quatro ou cinco atores com temas semelhantes, que um estoque de antigos figurinos de teatro e de cinema, os atores
nos confrontavam resultados diários. Muitas "Impros" são fazem propostas,seguidas por adaptações da figurinista
registradas em fitas magnéticas. Isso é selecionado e colocado em (Rearranjos,cortes, sobreposições, combinações ...). "Se
ordem. Uma sequência de espetáculo pode combinar vinte necessário, recomeçamos sem pausas." [5]
Sem slogans ou ideologia, livre de filiação política, A “criação coletiva” não é um método milagroso que
1789 é uma festa teatral, através da arte, se busca educar, treinar, anula todas dificuldades; ao contrário, ele as reúne
fazer perguntas, iluminar. Em 1969, Mnouchkine constantemente, cada vez que entra um ator e cada vez tudo deve
disse: "Teatro para mim é clareza. O teatro, que deve ser luz feita ser revisado e reinventado(...) “Quando eu começo a improvisar,
na sociedade humana e tudo o que a compõem." [6] E a imagem eu sei que tudo virá de mim e daqueles com quem eu vou jogar ...
da tropa na tempestade, proposta ao final de Naufragés Du Fol ou nada virá ", diz Philippe Caubère que desempenha o imigrante
Espoir (Náufragos da louca esperança), é particularmente Abdullah. E ele acrescenta: "Mas o caminho será longo e muitas
impressionante e tocante para os espectadores que seguiram o vezes não terá sucesso. Na idealização ele vai passar pela
longo percurso radical e coerente do Soleil. estimulação recíproca e maravilhosa mobilização cumplice de
Com L’Âge d’or [a idade do ouro], a escritura coletiva memoria e intuição e pior, pelo confronto, pela minha
que é experimentada através da máscaras e dos tipos da incapacidade de traduzi-la, [Mnouchkine] quer me jogar seu
commedia dell’arte é ainda mais complexa, uma vez que esta fala desamparo para acionar a mola que vai levar-me. Assim, depois
de conflitos do presente: deve não só documentar, mas também de períodos de excitação e uma incrível riqueza de invenção, de
encontrar uma boa distância para tratar-lhes. Mnouchkine paixão por túneis longos vazios, dúvidas e incertezas, alguns dos
começa a trabalhar as estratégias de distancia e de focalização: a nós desenredados e, até mesmo, desespero." [7]
trupe reportará desde o presente á projeção de cinquenta anos no Mephisto é um retorno parcial ao texto uma vez que esta é
futuro, através de formas teatrais do passado revisitadas. O tempo a adaptação de um romance: os atores estão trabalhando em um
de preparação do espetáculo que é também aprendizagem da projeto, sussetivel a mudanças nos ensaios para as suas
historia do teatro e do mundo, bate todos os recordes, dura um improvisações. Mas a criação coletiva, que envolve ao mesmo
ano e meio, entre dificuldades financeiras e pessoais. tempo todos os artistas, também vai convocar a aliança das artes:
L’Âge d’or, teve o primeiro esboço apresentado em música, dança, jogo, texto, espaço, luz em ciclos de
outono de 1975, mas muitos dos personagens enumerados no "Shakespeare" e de “Atridas”. A presença de texto, alguns
programa foram incluídos numa segunda parte que jamais será traduzidos por Ariane Mnouchkine, não questiona a forma de
vista um dia. Modalidades - improvisações, gravações de áudio, trabalho, a sinergia e a mobilidade, e a flexibilidade das
evolução, fixação - dificuldades em identificar o papel do interações. A propósito dos Atridas, a atriz Catherine Schaub diz:
encenador (desde Les Clowns, o nome de Mnouchkine figura "Os atores estão no centro, eles estão na luz. Mas o que é muito
“solto” entre os dos atores que assinam o espetáculo, mas para rico nesta forma de trabalhar é que todas as artes - todos os
1789 e L’Âge d’or isto é reparado e ela aparece como diretora de artistas – estão juntos. Sabemos que todos compartilhamos a
cena) e problemas - a quantidade de material acumulado, escolhas responsablidade das coisas que avançam sobre o palco. É a
e frustrações dos atores com o trabalho, necessárias ao maneira com que vamos "Crescer" que determina o jogo. E o
desenvolvimento do conjunto/grupo, mas que não podem ser cenário será realizado porque houve no jogo um determinado
aprovadas ao final - serão encontrados nas décadas por vir. movimento particular. Ele não é um cenário que se colocou e
você tem que jogar. É realmente com ele. Nós avançamos em resposta ao requisitos do trabalho no palco que “come o
juntos.” texto”[10] são as primicias desse retorno. Uma nova ferramenta
Ariane Mnouchkine diz: "A presença de uma tal voz surge e transforma a maneira de trabalhar: a câmera digital. Em
implica a utilização de um tal instrumento. Às vezes é muito 1968, Ariane Mnouchkine deu-se um programa: "Ir mais longe
claro. Jean-Jacques [Lemêtre] segue uma voz, ele pega um tom. em todos os espetáculos” [11]. E por ultimo os dispositivos
E já alguns dias antes este tema correu para ele, ou ele surgiu empíricamente necessarios para a criação - a tal ponto de
durante o trabalho, ou é o contrário, Jean-Jacques disse: 'Olha, podermos dizer hoje que o Théâtre du Soleil é um laboratório de
não há progresso, vou tentar outra coisa? " Eu não sei, mas um escrita coletiva.
ator reagiu, agarrou sua proposta – e eu não falo sobre a dança, eu As improviações vão cada vez mais afinando o trabalho de
falo de um tal impulso, tal ritmo, tal emoção, tal violência. Um documentação onde livros, reuniões com pesquisadores,
espectador disse uma vez: "Neste espetáculo, a musica é o historiadores, pessoas na vida real, os heróis de histórias
segundo pulmão. " Ele falou sobre o texto como o primeiro lugar. transpostas para o palco, filmes, compõe um quadro
" E Guy-Claude François acrescenta a nota: "Sinto que é uma indispensável. O assistente de ArianeMnouchkine, Charles-Henri
partida de ping-pong para quinze ou mais.”[8] Bradier, chegou ao Soleil em 1995, depois de Tartuffe, e hoje é
co-diretor, é tanto o escriba que toma nota do que está
As fontes do espetáculo acontecendo no ensaio, o bibliotecário que cria pastas em torno
"É como uma divisória. Isto é particularmente difícil, porque de cada questão abordada e fornece bibliografia e pistas de
você é muitos. Estas são nossas leis fundamentais multiplicadas pesquisa. É o interlocutor essencial dos atores, que mantém o
por trinta. Isto é o canto, dança, e tudo anda ao mesmo tempo.” diário de bordo e, em seguida, Ariane Mnouchkine avança no
trabalho porvir e não está sempre disponível. A função do
“Eu olho para o texto e vejo estas terríveis palavras antigas, isto assistente é dividida, porque um segundo posto é atendido pelo
é como mergulhar em um líquido regenerador. Apenas o bate vídeo que permite responder a cruel falta em L’Âge d’or , onde a
coração da música e seus corações, e tudo deve bater fita de vídeo registrou apenas palavras. Isso explica o tempo
ritmicamente."[9] Ariane Mnouchkine necessário para tentar encontrar todo o resto - que foi perdido.Os
DVDs de trabalho, e fitas de vídeo de improvisações, são
O Théâtre du Soleil voltou a escrita colectiva em 2003 classificados por Charles-Henri Bradier por mundos famílias,
com Le Dernier Caravansérail [O último Caravansérail]. De grupos ou temas, como espetáculo fornece, em vez de um
repente mais noites acordada... (Dirigido a partir de improvisos material autêntico e completo onde palavras e entonações não
gravados em fita cassete, transcritos no papel e reescritos por existem sem o todo do texto teatral - o jogo dos parceiros de cena,
Hélène Cixous) dado como "criação coletiva em harmonia com os corpos, os objetos, o espaço. É esse texto, completo, o que
Hélène Cixous" e o longo trabalho de escritura de Tambours no pode, se necessário, retrabalhar, a classificação permitindo visões
dique onde o autor remete constantemente seu livro no trabalho fáceis.
Pulmão do espetáculo a música é o tapete voador dos Le Dernier Caravansérail, era natural, óbvio, mas não se
atores que improvisam. O compositor e fazedor de instrumentos esperava, que o cinema fizesse sua entrada, durante o trabalho no
Jean-Jacques Lemêtre no Soleil depois de Mephisto (1979), é o grande palco Soleil. Mas um cinema independente e arcaico: o
alter ego da encenadora, trabalhando em total cumplicidade com cinema mudo, longa inspiração para Mnouchkine e seus atores.
ela. Na escuta dos atores, disponível e atencioso Lemêtre é Com a chegada do filme, a câmera para a cena é um dispositivo
informado após a combinação/composição do que precede a cada de criação assim como os carrinhos dos espetáculos precedentes.
uma de suas improvisações, e de um certo número de dados, O método poderia evoluir e Mnouchkine admitir que quando a
captura o resto no vôo, acompanhando-os ao vivo. Para situação teatral foi bloqueada, "foi necessário recuperar a
Naufragés, ele usou um banco de dados preparatório composto liberdade dada pelo cinema”[12]. Grande parte do texto escrito
por sete centenas de discos ou CDs (reunidos por época o período desaparecerá no « set de filmagem » que chama para a ação. A
de 1880-1914). De mixagens feitas em estúdio, onde ele refez o voz será introduzida no final do trabalho, que corresponde à
som, os tons, as misturas, e composições pessoais ele propõe, se função do benshi* no antigo cinema japonês, ele comentará não
adapta, trabalha com o que dita o texto (e não [está] escrito) sobre as cenas filmadas, mas as sequencias sobre a vida da trupe
acrescenta a voz dos atores, uma vez que existem cenas de cinema. [*narradores cujas leituras dramáticas acompanhavam
silenciosas, em ritmo físico. A música (constante nas o filme e a música, que era, como no Ocidente, tocada ao vivo
performances) deve não esmagar o ator que deve crescer para a (1914)]
dimensão do que ela propõe. E o impede de ser emocional quando Diferentes instâncias da criação se combinam em uma
ele está "na música". Em generosidade e contenção, Jean-Jacques “folheação” incrível (que também é encontrada nos dispositivos
Lemêtre estrutura a criação dos atores, juntamente com Ariane cenográficos de Naufragés): o autor do passado, Jules Verne, o
Mnouchkine. Às vezes, eles se comunicam sem o conhecimento autor deste, Helene Cixous, que trabalha com a encenadora, um
dos atores usando fones de ouvido. Uma parte do segredo grupo de "escritores" que reúne os atores mais "velhos" em torno
(sussurrado muito em criação coletiva, e os atores não ficam para Mnouchkine, e todos da trupe no trabalho, de caráter
trás), é que o trabalho flui entre o diretor, os atores e o músico, transportador, onde como sempre algum será mais "locomotiva"
entre as propostas e reações um do outro. que os outros.
Aqui, música e teatro estão a serviço de uma terceira arte,
o cinema. Porque, se a dança veio para peças gregas, porque eles "Você não é nada sem os outros"
exigem o conjunto no palco, o filme chegou em Náufragos após O ator Sava Lolov, no momento do Dernier
longos trabalhos de proximidade iniciados pelos filmes 1789 e Caravansérail, disse sobre ’Ariane Mnouchkine que ela trabalha
Molière, seguidos pela entrada discreta da câmera durante os como um budista – neste espetáculo que dá palavra aos
ensaios de Tartuffe. De filmagens de improvisação a filmagens de refugiados que reuniram-se em acampamentos para fazer um
espetáculos, da utilização cotidiana do vídeo, dos computadores, espetáculo – para caracterizar sua passividade ativa antes do
para que da lógica de escritura de cena (Final Draft) de [filme] processo de proposições, das trocas, da amplificação, da precisão,
do abandono de visões acessórias para criar a visão final. Ela todos na encenadora. Charles-Henri Bradier gosta de citar a
mesma é vista como quem dá ferramentas aos atores que criam primeira frase de Ariane Mnouchkine ao início de Les
enquanto ela “desnata, solta, faz crescer, recusa, aceita ou coloca Éphémères: "Eu gostaria de falar", dando o tom da relação
grão de sal na levedura”. "Eu sou encenadora, mas eu trabalho delicada, frágil,atenda e envolvida desta pesquisa.[15]
coletivamente. Isto não é modéstia. Este é um método de trabalho Frequentemente a criação coletiva retrata a vida da trupe (e, de
que é artisticamente eficaz e politicamente justo. É perguntado a repente ... Les Naufragés). Isso pode resultar em cenas inteiras
todos o que podem dar de melhor de si mesmos. E tudo o que está (Os "ovos") que serão assumidos no espetáculo (Les Éphémères)
bom neste palco pode ser encontrado”[13]. Através deste método ou em ocasiões pontuais fragmentarias que serão então
de criação coletiva organizada, e dirigida a escutar tudo de uma redesenhadas e configuradas (Les Naufragés). É sempre uma
vez, é um modelo de sociedade que parece proposto, Ariane aventura sem rede reivindicando longos períodos de ensaios de
Mnouchkine reconhece que ela tem de “Tornar-se menos e menos risco. Uma das provas, se fosse necessário, da vitalidade deste
abertamente diretiva". – o que indica o caminho percorrido desde método em sintonia com os tempos e com os membros da grande
1789, que ela julga “muito violento”[14]. E para Les Naufragés equipe são os encontros inesperados de teatro e de histórias de
du Fol Espoir, Mnouchkine pensou em recuperar neste tempo, vida que o Soleil está repleto...
algumas das criações abandonadas (a terceira parte de Le Dernier
Caravansérail) que sem dúvida constitui uma característica Para ir mais longe: Artigos e livros Beatrice Picon-Vallin no
negativa recorrente - pela a frustração que gera nos atores - deste Théâtre du Soleil
método de criação.
A criação coletiva implica, em fim, o público e suas « Une oeuvre d’art commune », Rencontre avec le Théâtre du
reações, são trabalhos de associações solicitadas pelas várias Soleil, mars 1993, in Théâtre/Public, n° 124-125, 1995 ;
camadas da escritura conjunta. Processos muito ativos estão no « Leaving roomfor the others : from an interview with members
trabalho, por exemplo, no Les Naufragés, onde arranjos musicais of the Théâtre du Soleil», in Collaborative theatre. Le Théâtre du
sutis de Jean-Jacques Lemètre (Strauss, Chopin, Bruckner, Soleil. Source Book, compiled and edited by D. Williams, London
Smetana, Satie, Dvorák, Brahms, Wagner…) evocam eventos, and New York, Routledge, London, 1999 ;
emoções, entretenimento, reuniões de privadas, uma memória « Les longs cheminements du Théâtre du Soleil », in
pessoal ou coletiva. Estas associações não são redutíveis a Théâtre/Public, n° 152, 2000 ;
comportamentos de identificação, mas inflam a representação da « Les Atrides, un opera d’arte collectiva. Incontro di B. Picon-
vibração respiratória dos espectadores atentos. Vallin con il Théâtre du Soleil » (trad.N. Savarese), in Dioniso,
Cada vez é diferente, dependendo do tema e dos materiais Annale della fondazione Inda, Istituto Nazionale del dramma
de partida, a criação coletiva do Soleil implica, assim, uma antico, Palumbo Editore, Roma, 2003, n° 2 ;
enorme quantidade de trabalho, uma cumplicidade « Reflections on forty years of Théâtre du Soleil », trad. T. Sellar,
constantemente renovada entre uns e outros e a confiança de in Theater, volume 36, number 2,New York, 2006 ;
« Os mundos íntimos do Soleil » (trad. M. L. Pupo), in Sala 4. Ariane Mnouchkine, em "Ariane Mnouchkine: outra maneira de ser um
Preta, São Paulo, 2008; diretor", entrevista por Bernadette Bost, em L’Écho de la liberté, Lyon, 20 de
novembro de 1971.
« Les Éphémères au Soleil », in dossier « Pièce démontée », 5. Entrevista de Denis Bablet com Françoise Tournafond 1971.
CRDP de Paris, partie Arts et Culture (http://crdp.ac- 6. Ariane Mnouchkine, em Télérama, 21 de junho de 1969.
paris.fr/piece-demontee/pdf/lesephemeres_apres.pdf) ; 7. Philippe Caubère, "Para nós a liberdade", em L’Âge d’or,, primeiro texto de
« Un regard d’ailleurs sur Les Éphémères. Entretien avec Lev Programa, Paris, Stock de 1975 p. 40-42.
Dodine », in Théâtres, Presses universitaires de Rennes, 8. Béatrice Picon-Vallin, « Um trabalho comum de arte. », Théâtre du
Soleil,mars 1993, in Théâtre/Public, n° 124-125, 1995.
décembre 2007, n° 26 ; 9. Anotações de ensaios de Les Naufragés du Fol Espoir.
« Écrire au présent : un récit intime à trente voix », entretien avec 10. Charles-Henri Bradier, entrevista em 20 junho de 2010, em La
ArianeMnouchkine, in Alternatives théâtrales, n° 93, spécial Cartoucherie.
Avignon, 2007 ; 11. «Um despertar», in Le Théâtre 1968-1, Cadernos dirigidos por Fernando
« Du théâtre au cinéma : le cas de Tambours sur la digue », in Arrabal, Paris, Bourgois, p. 124.
12. Entrevista em 5 junho de 2010, em La Cartoucherie.
ArianeMnouchkine, du théâtre au cinéma, Théâtre au cinéma, 13. Idem.
hors série n° 3, Bobigny, 2006 ; 14. Idem.
« Parler du monde, parler au monde. Le Dernier Caravansérail et 15. Entrevista com C.-H. Bradier, em 20 juho de 2010, em La Cartoucherie.
le « ciné-théâtre » d’ArianeMnouchkine », in De la scène à
l’écran, Théâtre aujourd’hui, n° 11, CNDP, Referência:
2007 ;
« Du Dernier Caravanserail aux Éphémères. Une quête de PICON VALLIN, Béatrice. La création collective au Théâtre
théâtre à travers le cinéma, la vidéo numérique et vice versa », in du Soleil. L’avant-scène théâtre, n° 1284-1285 - pp. 86-
Les Passages entre la scène ET l’écran, Pratiques et formations 97 - 1er juillet 2010. Disponível em: http://www.theatre-
croisées, SCEREN/CRDP, Amiens, 2009 ; Ariane Mnouchkine, du-soleil.fr/thsol/apropos-du-theatre-du-soleil/le-theatre-
Actes Sud-Papiers , coll. « Mettre en scène », 2009. du-soleil/article/la-creation-collective-au-
theatre?lang=fr. (Visitado em 03/06/2017)
Notas:
1. Anotações de ensaios, Les Naufragés du Fol Espoir, 3 de marco de 2010. *Maria Amélia Gimmler Netto é doutoranda do Programa de Pós Graduação
2. Esta é uma citação de Alexandre Pouchkine Vsevolod Meyerhold em em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia-PPGAC/UFBA e
escritos sobre teatro, Volume II, Professora do Curso de Teatro-Licenciatura do Centro de Artes da
L’Âge d’Homme, Lausanne, 1975, p. 57, citado por sua vez Ariane Universidade Federal de Pelotas – CA/UFPel.
Mnouchkine em entrevista neste livro, "Ela nos ajuda a fazer as perguntas
certas", em Le Monde, 4 mar 1976. Salvador, Bahia, junho de 2017.
3.. Entrevista com Jean-Jacques Olivier, in Combat, 11 de fevereiro de 1970.

Você também pode gostar