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Anemia e insuficiência cardíaca

Autores
Nadine Clausell1
Publicação: Mai-2006

1 - A anemia é um problema comum em pacientes com insuficiência cardíaca congestiva


(ICC)?

Sim. A anemia tem uma alta prevalência entre os pacientes com ICC. Os dados de literatura
internacional mostram que a prevalência da anemia varia de 14% a 70% em pacientes com
ICC que estão hospitalizados. Por exemplo, Silverberg e colaboradores estimaram, em uma
revisão com 53 artigos publicados sobre a prevalência da anemia (valores de Hemoglobina
menores que 12g/dL) em pacientes com ICC que ela fique em torno de 30%. Esses valores
variam dessa maneira porque dependem da idade, dos critérios utilizados para definir os
valores de anemia na população estudada e também da gravidade da doença. Pelos
levantamentos realizados no Brasil, temos uma figura bastante semelhante.

2 - A presença de anemia aumenta a morbidade da insuficiência cardíaca congestiva


(ICC)?

Sim. Segundo os dados do estudo VAL-HeFT, no seguimento de três anos, os pacientes que
apresentaram uma queda de 14,2 para 12,8 g/dL (p<0,001) tiveram uma diferença
estatisticamente significante para o primeiro evento mórbido quando comparados aos pacientes
com queda menor nos níveis de hemoglobina, durante o período de seguimento. Esse grupo
de pacientes também apresentou diferença estatisticamente significante para hospitalizações
por insuficiência cardíaca (p<0,014).

3 - A anemia associa-se a maior mortalidade na insuficiência cardíaca congestiva (ICC)?

Sim. Inúmeras publicações apontam nessa direção. Cito novamente os dados publicados por
Anand e colaboradores, no estudo VAL-HeFT, que mostraram que os pacientes que
apresentaram uma queda nos níveis de hemoglobina de 14,2 para 12,8 g/dL (p<0,004) tiveram
uma mortalidade estatisticamente maior em relação ao grupo com queda menor nos níveis de
hemoglobina.

4 - A anemia na insuficiência cardíaca congestiva (ICC) seria somente um reflexo da


hemodiluição presente nesses pacientes?

A hemodiluição é um problema sério nos pacientes com ICC. Androne e colaboradores


avaliaram, em ambulatório, a hemodiluição em 37 pacientes anêmicos, por meio de Iodo 137
marcado para albumina, para medir a massa de células sangüíneas e o volume do plasma.
Neste subgrupo de pacientes anêmicos, 17 pacientes (46%) apresentavam hemodiluição e 20
pacientes (54%) apresentavam anemia verdadeira. Nove pacientes hemodiluídos evoluíram
para óbito ou foram submetidos a transplante de urgência, comparados a 4 pacientes no grupo
de anemia verdadeira (p<0,04). Os pacientes hemodiluídos tenderam a evoluir de forma pior do
que os que apresentavam anemia verdadeira, o que sugere que a sobrecarga de volume pode
ser um mecanismo importante que contribui para um desfecho clínico desfavorável em
pacientes anêmicos com ICC.

5 - Quais são as principais causas da anemia na insuficiência cardíaca congestiva (ICC)?

São elas:

• carência de nutrientes;

1
Professora adjunta da Faculdade de Medicina - UFRGS.

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• hemodiluição;

• papel do estado pró-inflamatório: aumento da PCR e da produção de citocinas (IL-1, IL-


6, IL-18);

• prescrição de inibidores da enzima conversora da angiotensina e de bloqueadores de


receptores da angiotensina II;

• deficiência relativa de eritropoetina;

• deficiência de ferro causada pela administração profilática de aspirina;

• comprometimento da medula óssea e da perfusão renal;

• co-morbidades: anemia em doenças crônicas.

6 - Como se comporta o metabolismo do ferro na anemia associada a insuficiência


cardíaca congestiva (ICC)?

Na ICC, que é uma doença inflamatória, ocorre um aumento na produção de citocinas


inflamatórias (IL-6,IL- 10, IL-1, interferons etc). Esse aumento de citocinas vai levar a uma
maior liberação da glicoproteína hepática chamada hepcidina, responsável pelo controle do
metabolismo do ferro. A hepcidina vai agir inibindo a absorção ativa de ferro na primeira porção
do duodeno, reduzindo, assim, a eritropoese na medula. Essa redução da absorção do ferro
explica porque a suplementação oral de ferro nesse caso é ineficiente.

Além disso, as citocinas também vão agir inibindo a mobilização dos estoques de ferro que se
encontram no interior dos macrófagos (sistema reticulo endotelial – SRE) e que seriam
utilizados pela medula óssea para eritropoiese.

Um outro mecanismo que também é desencadeado pelo aumento das citocinas inflamatórias é
a diminuição da produção de eritropoetina (EPO) nos rins.

7 - Que níveis de hemoglobina e hematócrito devem ser objetivados no tratamento da


anemia associada à insuficiência cardíaca congestiva (ICC)?

Esse tópico ainda é controverso. Alguns estudos recentes demonstraram que o tratamento da
anemia com eritropoetina associa-se a melhorias na fração de ejeção de ventrículo esquerdo
(FEVE), no pico de consumo de oxigênio, na melhora da classe funcional (classificação da New
York Heart Association – NYHA) e na diminuição da utilização de diuréticos. No entanto, os
mecanismos desses efeitos benéficos ainda permanecem desconhecidos e podem envolver
mais que um ajuste dos níveis de hemoglobina.

Os níveis endógenos de eritropoetina (EPO) estão elevados em pacientes com ICC, levantando
questionamentos em relação à resistência relativa a EPO. Além do mais, um aumento na
hemoglobina pelo aumento da EPO pode elevar a resistência vascular periférica e aumentar a
pressão sangüínea, o que não é desejável ocorrer em pacientes com ICC.

Então, quais são os níveis ideais de hemoglobina e hematócrito em pacientes com ICC?
Aparentemente um nível dentro dos parâmetros normais parece ser ideal para reduzir o risco
de morte e morbidade em pacientes com ICC. Além do que, a hemodiluição, a caquexia
precoce (evidenciada através dos baixos níveis de albumina sérica) e a disfunção renal
contribuem sobremaneira para reduzir os níveis de hemoglobina observados nos pacientes
com ICC.

Mais estudos são necessários para entendermos as bases da associação de anemia e ICC,
assim como entender os efeitos na mortalidade e morbidade. Assim, será possível aferir
prospectivamente os benefícios do tratamento da anemia nestes pacientes e avaliar o limiar
ideal no qual a terapia deve ser iniciada e qual a extensão de sua correção. Esses estudos já
estão a caminho.

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8 - Que níveis de ferro e ferritina devem ser objetivados no tratamento da anemia
associada à insuficiência cardíaca congestiva (ICC)?

Os níveis-alvo dos estoques de ferro devem ser:

• Ferritina: 100-500 ng/ml

• Saturação de transferrina: 20-40%

9 - A reposição com ferro oral é eficaz nessa situação clínica de anemia e insuficiência
cardíaca congestiva (ICC)?

Não, por diferentes razões:

• há uma menor absorção intestinal de ferro (ex. citocinas – hepcidina);

• há interferência de outras substâncias na sua absorção (ex. antiácidos, fibras, chás);

• para uma melhor absorção do ferro, ele deve ser administrado em jejum e
concomitante à administração de vitamina C;

• o sulfato ferroso causa inúmeros eventos adversos gastrintestinais, como náuseas,


vômitos, dor abdominal, diarréia e constipação;

Temos que levar em conta, ainda, que as apresentações comumente disponíveis de sulfato
ferroso no mercado tem 40 mg de ferro elementar em cada comprimido de 200 mg de sulfato
ferroso, então seriam necessários cinco comprimidos de 200 mg de sulfato ferroso para que
ocorresse uma administração diária de 200 mg de ferro elementar nesses pacientes.

10 - A correção da anemia na insuficiência cardíaca congestiva (ICC) melhora o


prognóstico desses pacientes?

Em um estudo controlado e randômico, Silverberg e colaboradores avaliaram o efeito da


correção da anemia em 32 pacientes com ICC grave utilizando eritropoetina subcutânea e ferro
endovenoso. As doses de todas as medicações para o tratamento da ICC foram mantidas em
níveis máximos tolerados. Em relação aos resultados após um tempo médio de estudo de oito
meses observou-se que ocorreu uma melhora estatisticamente significante para as seguintes
variáveis clínicas: classe funcional, fração de ejeção de ventrículo esquerdo, creatinina sérica,
diminuição da necessidade do uso de diuréticos e também diminuição dos dias de
hospitalizações.

Os autores concluem que a correção da anemia em pacientes com ICC grave, com
eritropoetina e ferro endovenoso, leva a uma marcante melhora na função cardíaca e no
funcionamento dos pacientes com ICC grave e está relacionada a menos dias de
hospitalização e comprometimento renal, assim como da necessidade de diuréticos.

11 - Como pode ser feita a reposição de ferro por via parenteral?

Recomenda-se o emprego de sacarato de hidróxido de ferro III, única apresentação de ferro


endovenoso disponível no Brasil (Noripurum®). As ampolas são de 5 mL e contêm 100 mg de
ferro elementar. Elas devem ser diluídas exclusivamente em solução fisiológica. Nos pacientes
com deficiência de ferro (TSat <20% e Ferritina <100 ng/mL), recomenda-se:

• infusão de 1 ampola por semana, diluída em 100 mL de solução fisiológica, durante 15


minutos, num total de 10 aplicações ou;

• 2 ampolas em 200 mL de solução fisiológica, durante 30 minutos, a cada 15 dias, num


total de 5 aplicações.

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12 - Quais são as vantagens da reposição parenteral de ferro, em comparação com a via
oral?

A reposição parenteral de ferro é certamente mais eficiente e mais bem tolerada que a
reposição por via oral.

13 - A reposição de ferro por via parenteral é segura?

Sim, a reposição parenteral de sacarato de hidróxido de ferro III é bastante segura e,


diferentemente do ferro dextrana (não disponível no Brasil), não causa reação anafilática.
Deve-se tomar cuidado em não ofertar ferro parenteral para pacientes com saturação de
transferrina elevada, pois neste caso corre-se o risco de desenvolvimento de reação por ferro
livre, caracterizada por hipotensão, cianose, náuseas e vômitos.

14 - Leitura recomendada

Anand IS et al. Anemia and change in hemoglobin over time related to mortality and morbidity in
patients with chronic heart failure: results from Val-HeFT. Circulation 2005;112:1121-1127.

Weiss G, Goodnough LT. Medical progress: anemia of chronic disease. New Engl J Med
2005;352:1011-1023.

Silverberg DS et al. The effect of correction of mild anemia in severe, resistant congestive heart
failure using subcutaneous erythropoietin and intravenous iron: a randomized controlled study.
J Am Coll Cardiol 2001;37:1775-80.

Sales AL et al. Anemia as a prognostic factor in a population hospitalized due to


descompensated heart failure. Arq Bras Cardiol 2005;84:237-240.

Androne AS et al. Hemodilution is common in patients with advanced heart failure. Circulation
2003;107:226-229.

Felker G M et al. Anemia as a risk factor and therapeutic target in heart failure. J Am Coll
Cardiol 2004;44:959-66.

Terrovitis JV et al. Prevalence and prognostic significance of anemia in patients with congestive
heart failure treated with standard vs high doses of enalapril. J Heart Lung
Transplant.2006;25:333-338.

Volpe M et al. Blood levels of erythropoietin in congestive heart failure and correlation with
clinical, hemodynamic, and hormonal profiles. Am J Cardiol 1994;74:468-473.

Ishani A et al. Angiotensin-converting enzyme inhibitor as a risk factor for the development of
anemia, and the impact of incident anemia on mortality in patients with left ventricular
dysfunction. J Am Coll Cardiol 2005;45:391-399

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