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Fur Elise.

Sinceramente, não saberia dizer se minha historia se encaixa como um romance do tipo que
agrada os poetas mais apaixonados ou um se encaixaria como um conto de terror mórbido a gosto
dos amantes de Sthepanie king. Talvez um mero conto sonhador para os fãs de fantasia. Deixarei a
decisão nas mãos do leitor.
Me recordo de estar atrasado para uma palestra importante na universidade federal da região.
Ironicamente, o tema da palestra era ‘’como se preparar para morte’’. Logo percebi que não estava
tão preparado na pratica quanto estava na teoria. Avancei o sinal vermelho. Ouvi uma busina. E
depois… Nada. O mais perfeito escuro. O mais perfeito vazio. O pensamento deste vazio completo,
da inexistência de pensamento ou sensação ainda me atormenta. E como cair num vazio profundo.
Pela mais abençoada das sortes ou o mais avarento dos agouros, eu acordei numa cama de
hospital meses depois. Segundo os médicos, eu morri e voltei a vida varias vezes ate ser
estabilizado, entrei em coma por meses e só acordei agora.
Se eu morri de fato e ainda voltei a vida, e se a morte não é um vazio, eu sinceramente não sei o
que andei fazendo do outro lado. Acabei por despertar algum dom latente. Algum tipo de
mediunidade. Talvez... os mortos se afeiçoaram a mim de alguma forma. Talvez tenha passado tanto
tempo no território deles que decidiram retribuir o favor.
As aparições em minha casa eram breves de inícios. Vultos, vozes, passos, algumas imagens que
duravam frações de segundos, desaparecendo tão rápidas quanto surgiam. Depois se tornaram
sombras que se esgueiravam pela casa, sombras sólidas que duravam um pouco mais.
O primeiro morto que vi claramente foi um garoto de 8 anos. Periodicamente, via um vulto
luminoso azul claro correr pela casa. Era seguida sempre de uma risada infantil. Era rápido de mais
para ver.
Me deixou apavorado de início, mas desejei descobrir o que era por mim mesmo. Após varias
tentativas de me comunicar sem exito algum, usei uma tática ridícula que não esperava que fosse
funcionar: Deixei a Tv ligada em um canal de desenhos animados, acompanhada de refrigerante e
outras guloseimas. Então sai de casa. Quando voltei, lá estava ele! Pude observá-lo pela primeira
vez. O garoto usava uma roupa listrada, rasgada e suja de lama. Suas costas estavam molhadas de
sangue, aparentemente levou uma facada. Me perguntei o que esse garoto havia passado. Quando
me aproximei ele desapareceu. Senti mais simpatia por esta alma do que propriamente medo.
Mesmo depois de morto ainda estava assutado e fugindo das pessoas.
A partir desta ocasião, pude vê-los com mais nitidez (os mortos, quero dizer). Sempre
acompanhados de uma fantasmagórica e cálida luz azul clara. Eles eram levemente transparentes e
suas peles sempre geralmente pareciam porcelana. A maioria não se escondia, pelo contrario,
surpreendentemente estavam dispostos a conversar (provavelmente não tinham alguém para escutá-
los a décadas…).
Claro, nem todos eram amigáveis… terrores também habitam o outro lado. Por muitas vezes
já fui dormir com uma criatura me observando. Ela ficava ao lado da minha cama em pé. As vezes
no canto do quarto. A besta era branca, alta e esguia. Tinha olhos pequenos de peixe. Suas pernas
eram curtas, seus braços longos. Estava sempre nua. Seu corpo era honrosamente desnutrido. Acho
que algo foi feito com ela, pois sua boca havia sido costurada. Não fazia nada, só ficava ali, me
observando, todos os dias. Algumas vezes decidia deitar na cama comigo e eu dava de cara com
esse monstro quando mudava o corpo de posição. Ela desapareceu, me pergunto onde está hoje.

Mas todas essas almas e bestas são irrelevantes. A história que vou contar é sobre uma alma em
especial. Aquela que causou a minha morte, mas justificou minha vida.

Certa vez, entrei numa daquelas lojas de bugigangas que vendem de tudo aleatoriamente. Havia
desde replicas de armas medievais ate figures do Mario. Não deseja comprar nada, apenas satisfazer
as pulsões do olhar. Essas lojas nos despertam isso.
Andando entre os corredores ouvi ao fundo uma canção familiar. Uma melodia simples, mas
que sempre me despertou as mais inexplicáveis emoções e inspirações fantásticas. Se tratava da
belíssima composição do lord bethovem: Fur Elise (Para Elise). Dessa vez tocada pelos humildes
mecanismos de uma caixinha de musica.
A doçura e magia das caixinhas de música sempre me encantaram, desde a infância. Era algo
simples e mágico! Sempre soou como algo saído de um conto de fadas. E como é linda essa musica!
Aquela canção sempre ecoou no inconsciente de minhas fantasias, foi inspiração pra algumas de
minhas obras, foi a trilha sonora de muitos momentos felizes. Mas pela primeira vez em minha
vida, para o estremecer de minha alma, Fur elise tocou em segundo plano.
O que via fez o mundo se calar por um instante. Senti as batidas de meu coração acompanharem
o toque magico de Fur Elise. Aquela pessoa teve toda minha atenção. Aquela imagem de nosso
primeiro encontro foi eternizada em minha memoria para sempre, para esta vida e as proximas.
Era uma jovem de 20 e poucos anos. Ela observava a caixinha de musica com o semblante mais
belo que já vi, um misto de encanto e inocência. Seus olhos brilhavam de fascinação. Seu próprio
rosto era delicado como as orientais. Seu vestido gótico lembrava as princesas da era vitoriana.
Segurando a caixinha de musica, parecia uma boneca de porcelana saída do mundo de Alice.
Meu coração doeu percebendo também outro detalhe: Ela estava morta. A bela jovem brilhavam
no mesmo tom Azul que os espectros que me assombrava. Mas devo admitir, isso ainda a tornava
ainda mais bela! Seu cabelo em longos cachos, uma vez loiro se tornava prateado, e sua pele
brilhava se tornando algo próximo a mármore. O ponto perfeito entre o mórbido e o belo.
Algo em meu corpo reagiu ao perceber que a garota estava morta, possivelmente algum instinto
primitivo, talvez algum traço oculto de minha personalidade, mas algo evocou em mim um desejo
estranho e ilógico, o desejo de protegê-la, de lhe oferecer afeto e conforto. Eu não havia me dado
conta disso na época. Fiz o que fiz sem pensar muito sobre.

Me aproximei. Ela não pareceu notar.

- Gosta da música? - Perguntei ternamente.

A garota balançou a cabeça afirmativamente concentrada na caixinha. Havia respondido no modo


automático. Alguns segundos depois pareceu processar a informação de que alguém havia
conversado com ela. Ela se virou confusa. Quando me viu próximo a ela, se assustou e recuou
imediatamente tropeçando nos próprios pés, caindo sentada.

- Calma, não vou te fazer mal! Tudo bem com você?

Ela fez sim com a cabeça (na verdade era obvio, ela era um fantasma). Ofereci a mão para ajuda-la
se levantar. Ela sorriu. Não teria como tocá-la já que estava morta. Me senti um pouco constrangido
pela garfe sobrenatural, mas aquele sorriso certamente me deixou feliz. Seu sorriso era meigo e
leve.

Observei a caixinha de musica, peguei e mostrei a ela.

- Você gosta? - Ela fez sim com a cabeça novamente – Eu também, é uma das minhas canções
favoritas. Posso comprá-la pra você. Você pode vir a minha casa ouvir quando quiser.

A garota ficou estarrecida por um instante, não parecia acreditar. Outro lindo sorriso se abriu. Ele
colocou as duas mãos sobre o coração e fez duas reverências rápidas. Não tenho certeza, mas
entendi como um ‘’obrigada’’. Ela certamente era de alguns seculos atras.

- Você tem um nome?


A garota pareceu pensar por um momento. Olhou suas mãos por alguns instantes. Começou fazer
gestos incompreensíveis com as mãos. Então ela parou e olhou pra mim, aparentemente esperando
uma reação. Percebeu que eu não havia entendido nada. Ela ergueu uma das mão pedindo para
esperar. A garota estava fazendo uma careta muito adorável devido a concentração, como uma
garotinha tentando fazer o dever de casa. Estava nitidamente pensando em algo. Algo sobre esses
gestos. Sua expressão se desanuviou. Começou a refazê-los mais devagar dessa vez e só então
pude entender do que se tratava. Aquilo era linguagem de sinais. A garota era muda e estava se
esforçando para lembrar o que cada gesto significava. Felizmente eu sabia linguagem de sinais.
Havia aprendido na escola quando era criança.

‘’Não… Lembro… Nome... ’’ - Ela disse em linguem de sinais lentamente sem mudar a expressão
concentrada. Olhou pra mim novamente apreensiva.

- Você não lembra seu nome – Disse

Ela fez sim varias vezes com a cabeça, contente por alguém a ter entendido. A garota devia estar
mais sozinha do que todos os outros fantasmas que conheci. E dificil encontrar um médium, quanto
mais um que falasse libras.

- Seria bom você ter um nome, como devo te chamar?

Ela não respondeu. Ficou me observando com cara de paisagem. Olhei para a caixinha de música. O
brinquedo me deu uma ideia!

- Que tal Elise? E o nome da música. Vai lembrar de como nos conhecemos.

A garota sorriu.
‘’E-l-i-s-e’’ - ela soletrou em gestos de sinais - ‘’bonito’’

- Eu também acho. Combina com você. - Ela desviou o olhar pra baixo… Era bem tímida. - Então,
Elise, onde aprendeu linguagem de sinais?

‘’Igreja… Aulas… escondida...’’ - Fez em gestos - ‘’...morta...’’

- Você assistiu aulas na igreja depois de morta?

Ela fez ‘’sim’’.

Eu ri. Soava bem engraçado pra mim um fantasma frequentar aulas de libras as escondidas.

- Você foi bem inteligente aprendendo isso apenas observando – Elogiei.

-‘’obrigada’’

Meu telefone tocou. Estava atrasado novamente para outra palestra. Estavam me chamando.

- Eu tenho que ir. - Disse a ela olhando a tela do celular.

Senti um toque fresco e agradável sobre minha mão. Ela havia colocado as mãos nas minhas. Olhei
para ela. Ela apontou pra si mesma.
- Você pode vir me visitar e… - Antes de terminar ela já estava balançando a cabeça negativamente.
Fiquei desapontado - Ou se você não quiser…

‘’posso… ficar… com… você?’’ - ela disse em gestos - ‘’Sozinha… não...’’

- Nada me faria mais feliz – Eu sorri.

Desde então, Elise se tornou a assombração particular mais adorável do mundo. Ela me seguia em
todos os lugares. Era demasiadamente curiosa e me perguntava sobre todas as coisas novas do
seculo XXI que não entendia como funcionava. Ela usava poucas palavras e tinha olhos
inexpressivos mas era fácil compreendê-la pela linguagem corporal. Logo descobri que por trás do
rosto inocente, inexpressivo e serio, havia um senso de humor bobo que eu apreciava. Ela me fazia
rir em momentos inapropriados imitando pessoas ou fazendo caretas dentro do elevador. Era
engraçado porque só eu podia ve-la.

Não sabia o porque, mas algo naquela garota morta, fazia com que me sentisse mais vivo que
nunca. Sempre que seu semblante solitário e inexpressivo se convertia em um sorriso terno e afável,
meu mundo interno se transformava, eu me sentia revigorado. Uma felicidade irracional. Aquele
sorriso doce, desejava velo de novo e de novo. Elise me causava isso. De repente, a vida se tornou
bela.

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