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UFMG-UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- LETRAS-

FALE- ESTUDOS TEMÁTICOS DE LIT. BRASILEIRA: POÉTICAS DO


ESTRANHAMENTO. M2. PROFa MYRIAM ÁVILA. ALUNO: TALES
MOREIRA DE CARVALHO

A poesia pelo viés da singularização em Ana


Cristina Cesar.
Escuta , querida, escuta. A
marcha desta noite. Se debruça sobre os anos neste pulso. Belo

belo. Tenho tudo que fere. As alemãs marchando que nem


homem. As cenas mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixe agora, fera.
(CESAR, p. 10, 1999ª)

Ana Cristina Cesar. Ana Cristina. Ana C. Essas três assinaturas


oscilaram constantemente no desenvolvimento da persona até que o sujeito
optou definitivamente por assinar Ana C.. Concomitantemente a
coocorrência dessas três assinaturas desenvolvia-se em paralelo um projeto
poético intensamente elaborado que colocou em perspectiva a criação de
uma intimidade forjada sob o signo do segredo e do nonsense.
Cesar era poeta, tradutora e em alguns momentos de sua vida
exerceu atividade de jornalista, pois redigiu ensaios para diversos jornais
que foram reunidos posteriormente e publicados em edição póstuma sob o
título Crítica e Tradução (1999), em que além de sua crítica, como o
próprio nome sugere, contém sua tradução, que inclui textos de poetas como
Sylvia Plath, Emily Dickinson, Thomas Stearns Eliot e até mesmo o conto
“Bliss”, de Katherine Mansfield, acompanhado do estudo anotado dessa
tradução com o qual obteve o grau de Master of Arts, with distinction na
Universidade de Essex, Inglaterra (1979-1981).
O presente texto tem como objetivo expor genericamente a lírica de
Ana Cristina, bem como alguns detalhes biografemáticos, com o intuito de
alçá-la como um exemplo do que Chklóvski (2013) designou, em seu
manifesto de 1925, “Arte como procedimento”, Ostrannenie, como um
efeito que a arte deve causar: qual seja, o de estranhamento, efeito de
singularização, pois na vida cotidiana os atos repetitivos nos tornam
automatizados; de modo que a existência se tornou opaca.
A arte tem o papel de renovar o ser, de fazê-lo experienciar novas
sensações. Para tanto, deve-se retirar os objetos de seu lugar comum;
provocar um efeito de singularização, de modo a transmitir a sensação de o
estar vendo pela primeira vez; e independentemente de quantas vezes tê-lo
diante de si, experienciar a sensação de uma primeira vez. Inclusive, de ser a
única; interessante aqui é o seu constante devir.
A escritora1 nasceu em 1952 e suicidou-se em 1983, pulando do
apartamento em que morava, no sétimo andar. É reconhecida como um dos
maiores expoentes da geração mimeógrafo da década de 70. A geração
mimeógrafo, denominação geralmente utilizada para se referir a poetas em
plena atividade durante a década de 70 que utilizavam do mimeógrafo para
imprimirem seus livros em edição independente. Esses poetas que
pertenciam a essa geração realizavam uma poética autobiográfica que no
geral utilizava uma linguagem coloquial, sem grandes preocupações
artísticas. “Não importa a elaboração artística, composição é jogo rápido,
pulo, flagra, take, mas sempre a serviço de uma expressividade neo-
romântica, “sincera” e coloquial, desse ego que escreve e que “se escreve”
todo tempo” (SUSSEKIND, Flora. 2004.P117).

Ana C. pertencia a essa geração, entretanto, dela se diferenciava em


vários aspectos. Apesar de a autora supramencionada ter adotado o caráter
autobiográfico dos diários e das cartas, há nela uma ambivalência entre o
real e o literário; aspectos da vida privada inseridos na obra, como que em
um jogo, tentam confundir fatos ficcionais e biográficos. Em suma, há uma
tensão constante entre ficcionalização e confissão. Ana C. possuía
consciência dessa poética autobiográfica dos anos 70 e brinca com isso,
operando em seus escritos uma desmontagem do diário e da carta.

Apesar de alguns autores, poetas, filósofos, artistas, entre outros


terem cometido suicídio, não são maioria. E se notícias assim já não causam

1
Doravante Ana C.
tanto estranhamento, ao menos despertam a curiosidade. Especialmente
nesse caso em particular, em que a poeta em questão trabalhava com esses
gêneros da intimidade de forma tão intensa e desconcertante. Logo após o
ato aconteceu o inevitável: buscou-se explicar a obra pela vida, já que havia
várias menções a esse ato final disseminados em sua poesia. Porém, o mais
significante fora deixado de lado por um momento, o veemente lapidar com
as palavras a fim de atingir o efeito de singularização.

Esse efeito é atingido por seu texto ser impregnado de arestas, de


espaços vazios, conforme a própria autora declarara no curso “Literatura de
mulheres no Brasil”, em 1983,

Eu acho que existe uma palavra não falada [...] Acho que ele (o livro
A teus pés) conta com alguma coisa que não foi dita; conta, mas conta
enquanto questão literária. Na literatura sempre haverá uma coisa que
escapa. Então não dá nem mais pra chorar em cima disso. [...] A
poesia moderna é uma poesia que se lanceta. Ela é toda cheia de
arestas, é angulosa, não tem, digamos, um desenvolvimento coerente,
linear.
CESAR, 1999. P260, 261

Desse modo, Ana C. se filia à poesia moderna e define uma de suas


propriedades. Essa propriedade coaduna perfeitamente com o efeito de
estranhamento que Chklóvski assinala como tendo características
fundamentais: “obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da
percepção (Chklóvski,2013. P.91) ”.
Ana C, além de promover isso, desencadeia sensações ainda mais
profundas pelos biografemas2 que legou. Sem tentar buscar uma ligação
entre o ato final e sua obra, mas apenas apontar como um indício de
biografema o desenho (1998. P.12) sem data da autora, publicado
postumamente em Inéditos e dispersos (1998). Embora esteja sem data, é o
primeiro texto do livro, que fora dividido em quatro períodos: 1961-72;
1975-79; 1979-82; 1982-83. Portanto, o organizador, Armando Freitas
Filho, provavelmente o considerou como um de seus primeiros textos.

2
Segundo a definição de Barthes, biografema “trata-se de uma coleção de objetos parciais <nunca
encerrados numa estrutura> e que favorecem um certo fetichismo neste <Eu> que gosta de saber,
tomando esta mesma coleção <estrutura inventada> como um franco gesto amoroso. Inventada não
porque se ponha de antemão falsear, mas porque, na impossibilidade de resgatar a linha histórica
<haverá de ter uma?>, resta ao biógrafo tentar, à sua maneira. (COSTA, Luciano Bedin. 2010. P.107).
Nesse desenho3, observa-se que a protagonista se chama “Anabela”. Esse
texto se desenrola em uma narrativa que culmina com a personagem se
atirando ao mar. Poderia buscar explicações psicologizantes, tentando
conectar algum elo entre o salto mortal e o desenho da juventude.
Justamente porque ela era tão nova quando o produziu. Mas me contento em
indicá-lo como um biografema que assinala já na produção da menor idade,
senão um fator de estranhamento na obra; ao menos como um caso de
ostranenie na pessoa do ser, por causa da obra, por já ter começado a
produzir uma obra em que uma noite se anuncia em tão terna idade.
Para finalizar, gostaria de expor um de seus poemas-prosa, publicado
postumamente em antigos e soltos (2008. P.1554). Esse poema em prosa
pertence ao gênero da intimidade bastante praticado por Ana C: trata-se do
diário; seu título “13 de setembro de 1977”.
Nele o processo de singularização ocorre primeiramente através de
uma parataxe em “Voltar a escrever enfrentar o fantasma (...)”. Logo em
seguida, uma hipotaxe, entre uma sentença e outra. As sentenças não se
conectam; não há nada que estabeleça uma ligação entre ambas. Inclusive há
uma ocorrência de hipotaxe com parataxe, no mínimo, insólita: “Dia do
parto hora de cagar, não agüento mais de vontade”. Para reforçar esse efeito
uma série de aliterações das letras “p”, “t”, e “r” espalhados pelo poema que
contiguamente com o efeito mencionado produzem ritmo.
Fora referido no início desse texto que o projeto poético
desenvolvido pela poeta se deu sob a égide do signo do segredo e do
nonsense.
Não foi possível explorar a temática do segredo em sua obra, devido
ao tempo restrito. No entanto, é válido apontar que o segredo é produzido na
performance do segredo; no ato de simulá-lo. Ela cria esse aspecto em seus
“diários” e “cartas”. É como se houvesse um segredo a ser desvendado; ao
interlocutor, o eu lírico se dirige como se soubesse qual seria esse mistério.
Contudo, ao leitor resta somente a curiosidade e a eterna dúvida sobre o que
está oculto. Assim, o segredo pode ser uma forma de causar o

3
Ver anexos
4
Idem
estranhamento necessário à arte; pois leva ao leitor a se questionar se a
autora escreve por entrelinhas, como tantas vezes fora questionada.
Já o nonsense foi explorado e se identifica como uma de suas
maneiras de causar o estranhamento; por exemplo, a hipotaxe e a parataxe.

Referencias

CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática. 1999.

______. Inéditos e dispersos. 3.ed. São Paulo: Ática. 1998.

______. Organizado por Viviana Bosi. Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008.
COSTA, Luciano Bedin. Biografema como estratégia biográfica. Porto Alegre:2010.
Tese defendida no programa de pós-graduação da Faculdade do Rio Grande do Sul.
Disponível em:
http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27673/000766488.pdf?sequence=1
Acessado em 25/05/14.
SUSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada: os cadernos, rascunhos e
a poesia em vozes de Ana Cristina Cesar. 2.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

TODOROV, Tzvetan. Tradução de FERREIRA, Roberto Leal. Teoria da Literatura.


São Paulo: Unesp. 2013.

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