Você está na página 1de 36

M A N A 8(1):113-148, 2002

O N ATIVO RELATIVO

E d u a r d o Viv eiros d e C a stro

O ser h u m ano, tal co m o o im agina m os, não e xiste.


N elson Rodrig u es

As p á gin as a se g uir fora m a d a pta d as do arrazoa do introd utório a u m livro


e m p r e p a r a ç ã o, o n d e d e s e n volvo a n ális e s e t n o g r áfic a s a n t e rior m e n t e
esboça d as. A princip al d elas foi u m artigo p u blica do e m M ana, “ Os Pro-
nom es Cosmológicos e o Persp ectivismo Am erín dio” (Viveiros d e C astro
1996), cujos pressu postos m etateóricos, dig a mos assim, são a gora explici-
ta dos. Em bora o prese nte texto possa ser lido se m n e n h u m a fa miliarid a-
d e p r é via co m o a rtig o d e 1996, o leitor d e v e t e r e m m e n t e q u e a s r efe -
rê ncias a noções como ‘p ersp ectiva’ e ‘ponto d e vista’, b e m como à id éia
d e u m ‘p e nsa m e nto in díg e n a’, re m ete m à q u ele tra b alho.

As regras do jogo

O ‘a n tro p ólo g o’ é alg u é m q u e discorr e so b r e o disc u rso d e u m ‘n a tivo’.


O n a tivo n ã o p r e cis a s e r e s p e cialm e n t e s elv a g e m , o u tr a dicio n alist a ,
t a m p o u co n a t u r al d o lu g a r o n d e o a n tro p ólo g o o e n co n tr a; o a n tro p ólo-
g o n ã o c a r e c e s e r e xc e ssiv a m e n t e civiliz a d o, o u m o d e r nist a , s e q u e r
estra n g eiro ao povo sobre o q u al discorre. Os discursos, o do a ntropólo-
g o e so b r e t u d o o d o n a tivo, n ã o s ã o forços a m e n t e t e xtos: s ã o q u ais q u e r
práticas d e se ntido 1 . O esse ncial é q u e o discurso do a ntropólogo (o ‘ob-
serva dor’) esta b eleça u m a certa relação com o discurso do n ativo (o ‘obser-
v a d o’). Ess a r ela ç ã o é u m a r ela ç ã o d e s e n tid o, o u, co m o s e diz q u a n d o
o p rim eiro disc u rso p r e t e n d e à Ciê n cia, u m a r ela ç ã o d e co n h e cim e n to.
M as o con h ecim e nto a ntropológico é im e diata m e nte u m a relação social,
p ois é o efe ito d a s r e l a çõ e s q u e co n stit u e m r e ci p roc a m e n t e o s u j e ito
q u e con h ece e o sujeito q u e ele con h ece, e a ca usa d e u m a tra nsform a-
114 O N ATIVO RELATIVO

ç ã o (to d a r e l a ç ã o é u m a tr a n sfor m a ç ã o) n a co n stit u iç ã o r e l a cio n a l d e


a m bos 2 .
Essa (m eta)relação n ão é d e id e ntid a d e: o a ntropólogo se m pre diz, e
p ort a n to fa z, o u tr a cois a q u e o n a tivo, m e s m o q u e p r e t e n d a n ã o fa z e r
m ais q u e r e diz e r ‘t e xt u alm e n t e’ o disc u rso d e st e, o u q u e t e n t e dialo g a r
— n oç ã o d u vid os a — co m ele. Tal dife r e n ç a é o efeito d e co n h e cim e n to
do discurso do a ntropólogo, a relação e ntre o se ntido d e se u discurso e o
se ntido do discurso do n ativo 3 .
A alt e rid a d e disc u rsiv a s e a p óia, e st á cla ro, e m u m p r e ss u p osto d e
se m elh a nça. O a ntropólogo e o n ativo são e ntid a d es d e m esm a esp écie e
con dição: são a m bos h u m a nos, e estão a m bos instala dos e m su as cultu-
ras resp ectivas, q u e pod e m, eve ntu alm e nte, ser a m esm a. M as é a q ui q u e
o jo g o co m e ç a a fic a r in t e r e ss a n t e, o u m elh or, e str a n h o. Ain d a q u a n d o
a ntropólogo e n ativo com p artilh a m a m esm a cultura, a relação d e se nti-
do e ntre os dois discursos difere ncia tal com u nid a d e: a relação do a ntro-
pólogo com su a cultura e a do n ativo com a d ele n ão é exata m e nte a m es-
m a. O q u e faz do n ativo u m n ativo é a pressu posição, por p arte do a ntro-
p ólo g o, d e q u e a r ela ç ã o d o p rim eiro co m s u a c ult u r a é n a t u r al, isto é,
intrínseca e espontâ n e a, e, se possível, n ão reflexiva; m elhor ain d a se for
inconscie nte. O n ativo exprim e su a cultura e m se u discurso; o a ntropólo-
g o t a m b é m, m a s, s e ele p r e t e n d e s e r o u tr a cois a q u e u m n a tivo, d e v e
pod er exprimir su a cultura culturalm e nte, isto é, reflexiva, con dicion al e
conscie nte m e nte. Su a cultura se ach a contid a, n as d u as ace pções d a p ala-
vra, n a relação d e se ntido q u e se u discurso esta b elece com o discurso do
n ativo. J á o discurso do n ativo, este está contido u nivoca m e nte, e ncerra-
do e m su a própria cultura. O a ntropólogo usa n ecessaria m e nte su a cultu-
ra; o n ativo é suficie nte m e nte usa do p ela su a.
Tal difere nça, é ocioso le m brar, n ão resid e n a assim ch a m a d a n atu-
r e z a d a s cois a s; ela é p ró p ria d o jo g o d e lin g u a g e m q u e v a m os d e scr e -
ve n do, e d efin e as p erson a g e ns d esig n a d as (arbitraria m e nte no m asculi-
no) como ‘o a ntropólogo’ e ‘o n ativo’. Veja mos m ais alg u m as re gras d es-
se jogo.
A id éia a ntropológica d e cultura coloca o a ntropólogo e m posição d e
ig u ald a d e com o n ativo, ao im plicar q u e todo con h ecim e nto a ntropológi-
co d e outra cultura é culturalm e nte m e dia do. Tal ig u ald a d e é, poré m, e m
prim eir a inst â ncia, sim plesm e n t e e m píric a ou d e fa to: ela diz r esp eito à
co n diç ã o c ult u r al co m u m (n o s e n tid o d e g e n é ric a) d o a n tro p ólo g o e d o
n ativo. A relação difere ncial do a ntropólogo e o n ativo com su as culturas
resp ectivas, e porta nto com su as culturas recíprocas, é d e tal ord e m q u e
a ig u ald a d e d e fato n ão im plica u m a ig u ald a d e d e direito — u m a ig u al-
O N ATIVO RELATIVO 115

d a d e n o pla n o d o co n h e cim e n to. O a n tro p ólo g o t e m u s u alm e n t e u m a


v a n t a g e m e pist e mológic a sob r e o n a tivo. O discu rso do p rim eiro n ã o s e
ach a situ a do no m esmo pla no q u e o discurso do se g u n do: o se ntido q u e o
a ntropólogo esta b elece d e p e n d e do se ntido n ativo, m as é ele q u e m d eté m
o se ntido d esse se ntido — ele q u e m e xplic a e inte rpr e ta, tr a d uz e intro-
d uz, textu aliza e contextu aliza, justifica e sig nifica esse se ntido. A m atriz
relacion al do discurso a ntropológico é hile mórfica: o se ntido do a ntropó-
logo é form a; o do n ativo, m atéria. O discurso do n ativo n ão d eté m o se n-
tido d e se u próprio se ntido. De fato, como diria G e ertz, somos todos n ati-
vos; m as d e direito, u ns se m pre são m ais n ativos q u e outros.
Este artigo propõe as p erg u ntas se g uintes. O q u e acontece se recu-
sarmos ao discurso do a ntropólogo su a va nta g e m estraté gica sobre o dis-
c u rso d o n a tivo? O q u e s e p a ss a q u a n d o o disc u rso d o n a tivo fu n cio n a,
d e n tro d o disc u rso d o a n tro p ólo g o, d e m o d o a p ro d u zir r e cip roc a m e n t e
u m efeito d e con h ecim e nto sobre esse discurso? Q u a n do a form a intrín-
s e c a à m a t é ria d o p rim eiro m o dific a a m a t é ria im plícit a n a for m a d o
se g u n do? Tra d utor, traidor, diz-se; m as o q u e acontece se o tra d utor d eci-
dir tr air s u a p ró p ria lín g u a? O q u e s u c e d e s e, in s a tisfeitos co m a m e r a
ig u ald a d e p assiva, ou d e fato, e ntre os sujeitos d esses discursos, reivin di-
c a r m os u m a ig u ald a d e a tiv a, o u d e dir eito, e n tr e os disc u rsos ele s m e s-
mos? Se a disp arid a d e e ntre os se ntidos do a ntropólogo e do n ativo, lon-
g e d e n e utraliza d a por tal e q uivalê ncia, for intern aliza d a, introd uzid a e m
a m bos os discursos, e assim pote ncializa d a? Se, e m lu g ar d e a d mitir com-
place nte m e nte q u e somos todos n ativos, levarmos às últim as, ou d evid as,
conse q ü ê ncias a a posta oposta — q u e somos todos ‘a ntropólogos’ (Wa g-
n er 1981:36), e n ão u ns m ais a ntropólogos q u e os outros, m as a p e n as ca d a
u m a se u modo, isto é, d e modos m uito difere ntes? O q u e m u d a, e m su m a,
q u a n do a a ntropologia é tom a d a como u m a prática d e se ntido e m conti-
n uid a d e e pist ê mic a com as pr á tic as sobr e as q u ais discorr e, como e q ui-
vale nte a elas? Isto é, q u a n do a plica mos a noção d e “ a ntropologia sim é-
tric a ” (La to u r 1991) à a n tro p olo gia ela p ró p ria, n ã o p a r a fulmin á -la p or
colo nialist a, e xorciz a r s e u e xotis m o, min a r s e u c a m p o in t ele ct u al, m a s
p ara fazê-la dizer outra coisa? O utra coisa n ão a p e n as q u e o discurso do
n a tivo, p ois isso é o q u e a a n tro p olo gia n ã o p o d e d eix a r d e fa z e r, m a s
o u tr a q u e o disc u rso, e m g e r al s u ss u rr a d o, q u e o a n tro p ólo g o e n u n cia
sobre si m esmo, ao discorrer sobre o discurso do n ativo?4
Se fizermos tu do isso, e u diria q u e estare mos faze n do o q u e se m pre
se ch a mou propria m e nte d e ‘a ntropologia’, e m vez d e — por exe m plo —
‘sociolo gia’ o u ‘p sicolo gia’. Dig o a p e n a s diria, p or q u e m uito d o q u e s e
fez e faz sob esse nom e su põe, ao contrário, q u e o a ntropólogo é a q u ele
116 O N ATIVO RELATIVO

q u e d eté m a posse e min e nte d as razões q u e a razão do n ativo d escon h e-


ce. Ele te m a ciê ncia d as doses precisas d e u niversalid a d e e p articulari-
d a d e co n tid a n o n a tivo, e d a s ilu sõ e s q u e e st e e n tr e t é m a r e s p eito d e si
próprio — ora m a nifesta n do su a cultura n ativa acre dita n do m a nifestar a
n a t u r e z a h u m a n a (o n a tivo id e olo giz a s e m s a b e r), or a m a nife st a n d o a
n atureza h u m a n a acre dita n do m a nifestar su a cultura n ativa (ele cog niti-
za à revelia) 5 . A relação d e con h ecim e nto é a q ui conce bid a como u nila-
teral, a alterid a d e e ntre o se ntido dos discursos do a ntropólogo e do n ati-
vo r e solv e -s e e m u m e n glo b a m e n to. O a n tro p ólo g o co n h e c e d e jure o
n ativo, ain d a q u e possa d escon h ecê-lo d e facto. Q u a n do se vai do n ativo
ao a ntropólogo, d á-se o contrário: ain d a q u e ele con h eça d e facto o a ntro-
p ólo g o (fr e q ü e n t e m e n t e m elh or d o q u e e st e o co n h e c e), n ã o o co n h e c e
d e jure, p ois o n a tivo n ã o é, ju st a m e n t e, a n tro p ólo g o co m o o a n tro p ólo-
go. A ciê ncia do a ntropólogo é d e outra ord e m q u e a ciê ncia do n ativo, e
precisa sê-lo: a con dição d e possibilid a d e d a prim eira é a d esle gitim ação
d a s p r e t e n sõ e s d a s e g u n d a, s e u “ e pist e m ocídio ”, n o fort e diz e r d e Bo b
Sc h olt e (1984:964). O co n h e cim e n to p or p a rt e d o s ujeito e xig e o d e sco-
n h ecim e nto por p arte do objeto.
M as n ão é re alm e nte preciso fazer u m dra m a a resp eito disso. Como
atesta a história d a disciplin a, esse jogo discursivo, com tais re gras d esi-
g u ais, diss e m uit a cois a in str u tiv a so b r e os n a tivos. A e x p e riê n cia p ro-
posta no prese nte artigo, e ntreta nto, consiste precisa m e nte e m recusá-lo.
N ã o p or q u e t al jo g o p ro d u z a r e s ult a d os o bje tiv a m e n t e falsos, isto é,
re prese nte d e modo errôn eo a n atureza do n ativo; o conceito d e verd a d e
objetiva (como os d e re prese ntação e d e n atureza) é p arte d as re gras d es-
s e jo g o, n ã o d o q u e s e p ro p õ e a q ui. D e r e sto, u m a v e z d a d os os o bje tos
q u e o jogo clássico se d á, se us resulta dos são fre q ü e nte m e nte convince n-
t e s, o u p elo m e n os, co m o g ost a m d e diz e r os a d e p tos d e ss e jo g o,
‘pla u sív eis’ 6 . Re c u s a r e ss e jo g o sig nific a a p e n a s d a r-s e o u tros o bje tos,
com p atíveis com as outras re gras acim a esboça d as.
O q u e e sto u s u g e rin d o, e m p o u c a s p ala vr a s, é a in co m p a tibilid a d e
e ntre d u as conce pções d a a ntropologia, e a n ecessid a d e d e escolh er e ntre
ela s. D e u m la d o, t e m os u m a im a g e m d o co n h e cim e n to a n tro p oló gico
co m o r e s ult a n d o d a a plic a ç ã o d e co n c eitos e xtrín s e cos a o o bje to: s a b e -
mos d e a nte m ão o q u e são as relações sociais, ou a cog nição, o p are ntes-
co, a religião, a política etc., e va mos ver como tais e ntid a d es se re aliza m
n este ou n a q u ele contexto etnográfico — como elas se re aliza m, é claro,
p ela s cost a s d os in t e r e ss a d os. D e o u tro (e e st e é o jo g o a q ui p ro p osto),
está u m a id éia do con h ecim e nto a ntropológico como e nvolve n do a pres-
s u p osiç ã o fu n d a m e n t al d e q u e os p roc e dim e n tos q u e c a r a ct e riz a m a
O N ATIVO RELATIVO 117

investig ação são conceitual m e nte d a m esm a ord e m q u e os proce dim e n-


tos in v e stig a d os 7 . Tal e q uiv alê n cia n o pla n o d os p roc e dim e n tos, s u bli-
n h e -s e, s u p õ e e p ro d u z u m a n ão-e q uiv alê n cia r a dic al d e t u d o o m ais.
Pois, s e a p rim eir a co n c e p ç ã o d e a n tro p olo gia im a gin a c a d a c ult u r a o u
socie d a d e co m o e n c a r n a n d o u m a solu ç ã o e s p e cífic a d e u m p ro ble m a
g e n érico — ou como pre e nch e n do u m a form a u niversal (o conceito a ntro-
p oló gico) co m u m co n t e ú d o p a rtic ula r —, a s e g u n d a, a o co n tr á rio, s u s-
p eita q u e os proble m as eles m esmos são ra dicalm e nte diversos; sobretu-
d o, ela p a rt e d o p rin cípio d e q u e o a n tro p ólo g o n ã o s a b e d e a n t e m ã o
q u ais são eles. O q u e a a ntropologia, n esse caso, põe e m relação são pro-
ble m a s dife r e n t e s, n ã o u m p ro ble m a ú nico (‘n a t u r al’) e s u a s dife r e n t e s
soluções (‘culturais’). A “ arte d a a ntropologia ” (G ell 1999), p e nso e u, é a
arte d e d etermin ar os proble m as postos por ca d a cultura, n ão a d e ach ar
solu çõ e s p a r a os p ro ble m a s p ostos p ela n oss a. E é e x a t a m e n t e p or isso
q u e o p ost ula d o d a co n tin uid a d e d os p roc e dim e n tos é u m im p e r a tivo
e piste mológico 8 .
Dos p roc e dim e n tos, r e pito, n ã o d os q u e os le v a m a c a b o. Pois t a m -
pouco se trata d e con d e n ar o jogo clássico por prod uzir resulta dos su bje-
tiva m e nte false a dos, ao n ão recon h ecer ao n ativo su a con dição d e Sujei-
to: ao mirá-lo com u m olh ar dista ncia do e care nte d e e m p atia, construí-lo
co m o u m o bje to e xótico, dimin uí-lo co m o u m p rimitivo n ã o co e vo a o
o b s e rv a d or, n e g a r-lh e o dir eito h u m a n o à in t e rloc u ç ã o — co n h e c e -s e a
lit a nia. N ã o é n a d a disso. A n t e s p elo co n tr á rio, p e n so. É ju sto p or q u e o
a ntropólogo tom a o n ativo m uito facilm e nte por u m outro sujeito q u e ele
n ão conse g u e vê-lo como u m sujeito outro, como u m a fig ura d e O utre m
q u e, a ntes d e ser sujeito ou objeto, é a expressão d e u m m u n do possível.
É p or n ã o a c eit a r a co n diç ã o d e ‘n ã o-s ujeito’ (n o s e n tid o d e o u tro q u e o
sujeito) do n ativo q u e o a ntropólogo introd uz, sob a ca p a d e u m a procla-
m a d a ig u ald a d e d e fato com este, su a sorrateira va nta g e m d e direito. Ele
sa b e d e m ais sobre o n ativo d esd e a ntes do início d a p artid a; ele pre d efi-
n e e circu nscreve os m u n dos possíveis expressos por esse outre m; a alte-
rid a d e d e outre m foi ra dicalm e nte se p ara d a d e su a ca p acid a d e d e altera-
ção. O a utê ntico a nimista é o a ntropólogo, e a observação p articip a nte é
a verd a d eira (ou seja, falsa) p articip ação primitiva.

N ão se trata, porta nto, d e prop u g n ar u m a form a d e id e alismo intersu bjetivo,


n e m d e fazer valer os direitos d a razão com u nicacion al ou do conse nso dia-
ló gico. M e u p o n to d e a p oio a q ui é o co n c eito a cim a e voc a d o, o d e O u tr e m
como estrutura a priori. Ele está proposto no con h ecido com e ntário d e Gilles
Dele uze ao Ve n dre di d e Mich el Tournier 9 . Le n do o livro d e Tournier como a
118 O N ATIVO RELATIVO

d escrição ficcion al d e u m a exp eriê ncia m etafísica — o q u e é u m m u n do se m


o u tr e m? —, D ele u z e p roc e d e a u m a in d u ç ã o d os efeitos d a p r e s e n ç a d e ss e
o u tr e m a p a rtir d os efeitos c a u s a d os p or s u a a u s ê n cia. O u tr e m a p a r e c e,
a ssim, co m o a co n diç ã o d o c a m p o p e rc e p tivo: o m u n d o for a d o alc a n c e d a
p erce pção atu al te m su a possibilid a d e d e existê ncia g ara ntid a p ela prese n-
ça virtu al d e u m outre m por q u e m ele é p erce bido; o invisível p ara mim su b-
sist e co m o r e al p or s u a visibilid a d e p a r a o u tr e m 10 . A a u s ê n cia d e o u tr e m
a c a rr e t a a d e s a p a riç ã o d a c a t e g oria d o p ossív el; c ain d o e st a, d e s m oro n a o
m u n do, q u e se vê re d uzido à p ura su p erfície do im e diato, e o sujeito se dis-
solv e, p a ss a n d o a coin cidir co m a s cois a s- e m -si (a o m e s m o t e m p o e m q u e
e st a s s e d e s d o b r a m e m d u plos fa n t a s m á ticos). O u tr e m, p or é m, n ã o é nin -
g u é m, n e m sujeito n e m objeto, m as u m a estrutura ou relação, a relação a bso-
luta q u e d etermin a a ocu p ação d as posições relativas d e sujeito e d e objeto
p or p e rso n a g e n s co n cr e tos, b e m co m o s u a alt e r n â n cia: o u tr e m d e sig n a a
mim p ara o outro Eu e o outro e u p ara mim. O utre m n ão é u m ele m e nto do
c a m p o p e rc e p tivo; é o p rin cípio q u e o co n stit ui, a ele e a s e u s co n t e ú d os.
O u tr e m n ã o é, p ort a n to, u m p o n to d e vist a p a rtic ula r, r ela tivo a o s ujeito (o
‘p o n to d e vist a d o o u tro’ e m r ela ç ã o a o m e u p o n to d e vist a o u vic e -v e rs a),
m a s a p ossibilid a d e d e q u e h aja p o n to d e vist a — o u s eja, é o co n c eito d e
p o n to d e vist a. Ele é o p o n to d e vist a q u e p e r mit e q u e o E u e o O u tro a c e -
d a m a u m ponto d e vista 11 .
Dele uze prolon g a a q ui critica m e nte a fa mosa a n álise d e Sartre sobre o
‘olh ar’, afirm a n do a existê ncia d e u m a estrutura a nterior à reciprocid a d e d e
p e rs p e ctiv a s d o re g ard s a rtria n o. O q u e é e ss a e str u t u r a? Ela é a e str u t u r a
do possível: O utre m é a e x pressão d e u m m u n do possív el. Um possível q u e
existe re alm e nte, m as q u e n ã o e xist e a tu alm e n t e for a d e s u a e x p r e ss ã o e m
o u tr e m. O p ossív el e x p rimid o e st á e n volvid o o u im plic a d o n o e x p rim e n t e
(q u e lh e p erm a n ece e ntreta nto h eterog ê n eo), e se ach a efetu a do n a lin g u a-
g e m ou no sig no, q u e é a re alid a d e do possível e n q u a nto tal — o se ntido. O
E u s u r g e e n t ã o co m o e x plic a ç ã o d e ss e im plic a d o, a t u aliz a ç ã o d e ss e p ossí-
vel, ao tom ar o lu g ar q u e lh e ca b e (o d e ‘e u’) no jogo d e lin g u a g e m. O sujei-
to é assim efeito, n ão ca usa; ele é o resulta do d a interiorização d e u m a rela-
ç ã o q u e lh e é e xt e rior — o u a n t e s, d e u m a r ela ç ã o à q u al ele é in t e rior: a s
r ela çõ e s s ã o origin a ria m e n t e e xt e rior e s a os t e r m os, p or q u e os t e r m os s ã o
interiores às relações. “ H á vários sujeitos porq u e h á outre m, e n ão o contrá-
rio” (Dele uze e G u attari 1991:22).

O proble m a n ão está, porta nto, e m ver o n ativo como objeto, e a solu-


ção n ão resid e e m pô-lo como sujeito. Q u e o n ativo seja u m sujeito, n ão
h á a m e n or d ú vid a; m a s o q u e p o d e s er u m s ujeito, eis p r e cis a m e n t e o
O N ATIVO RELATIVO 119

q u e o n a tivo o b rig a o a n tro p ólo g o a p ôr e m d ú vid a. Tal é a ‘co git a ç ã o’


e s p e cific a m e n t e a n tro p oló gic a; só ela p e r mit e à a n tro p olo gia a ss u mir a
pr ese nç a virtu al d e O u tr e m q u e é su a con diç ã o — a con diç ã o d e p assa -
g e m d e u m m u n do possível a outro —, e q u e d etermin a as posições d eri-
va d as e vicárias d e sujeito e d e objeto.
O físico interrog a o n e utrino, e n ão pod e discord ar d ele; o a ntropó-
lo g o r e s p o n d e p elo n a tivo, q u e e n t ã o só p o d e (d e dir eito e, fr e q ü e n t e -
m e nte, d e fato) concord ar com ele. O físico precisa se associar ao n e utri-
no, p e nsar com se u recalcitra nte objeto; o a ntropólogo associa o n ativo a
si m esmo, p e nsa n do q u e se u objeto faz as m esm as associações q u e ele —
isto é, q u e o n ativo p e nsa como ele. O proble m a é q u e o n ativo certa m e n-
te p e nsa, como o a ntropólogo; m as, m uito provavelm e nte, ele n ão p e nsa
co m o o a ntropólogo. O n ativo é, se m d úvid a, u m objeto esp ecial, u m obje-
to p e nsa nte ou u m sujeito. M as se ele é objetiva m e nte u m sujeito, e ntão
o q u e ele p e n s a é u m p e n s a m e n to o bje tivo, a e x p r e ss ã o d e u m m u n d o
possível, ao m esmo título q u e o q u e p e nsa o a ntropólogo. Por isso, a dife-
re nça m alinowskia n a e ntre o q u e o n ativo p e nsa (ou faz) e o q u e ele p e n-
sa q u e p e nsa (ou q u e faz) é u m a difere nça esp úria. É justa m e nte por ali,
por essa bifurcação da nature za do outro, q u e prete n d e e ntrar o a ntropó-
logo (q u e faria o q u e p e nsa)12 . A boa difere nça, ou difere nça re al, é e ntre
o q u e p e nsa (ou faz) o n ativo e o q u e o a ntropólogo p e nsa q u e (e faz com
o q u e) o n a tivo p e nsa, e sã o esses dois p e nsa m e n tos (ou fa z e r es) q u e se
confronta m. Tal confronto n ão precisa se resu mir a u m a m esm a e q uivoci-
d a d e d e p a rt e a p a rt e — o e q uívoco n u n c a é o m e s m o, a s p a rt e s n ã o o
se n do; e d e resto, q u e m d efiniria a a d e q u a d a u nivocid a d e? —, m as ta m-
p o u co p r e cis a s e co n t e n t a r e m s e r u m diálo g o e dific a n t e. O co nfro n to
d eve pod er prod uzir a m útu a im plicação, a com u m alteração dos discur-
sos e m jogo, pois n ão se trata d e ch e g ar ao conse nso, m as ao conceito.
Evoq u ei a distinção criticista e ntre o q uid facti e o q uid juris. Ela m e
p arece u útil porq u e o prim eiro proble m a a resolver consiste n essa avalia-
ção d a prete nsão ao con h ecim e nto im plícita no discurso do a ntropólogo.
Tal proble m a n ão é cog nitivo, ou seja, psicológico; n ão concern e à possi-
bilid a d e e m pírica do con h ecim e nto d e u m a outra cultura 13 . Ele é e piste-
mológico, isto é, político. Ele diz resp eito à q u estão propria m e nte tra ns-
ce n d e ntal d a le gitimid a d e atrib uíd a aos discursos q u e e ntra m e m relação
d e co n h e cim e n to, e, e m p a rtic ula r, à s r ela çõ e s d e or d e m q u e s e d e cid e
estatuir e ntre esses discursos, q u e certa m e nte n ão são in atas, como ta m-
p o u co o s ã o s e u s p ólos d e e n u n cia ç ã o. Nin g u é m n a sc e a n tro p ólo g o, e
m e nos ain d a, por curioso q u e p areça, n ativo.
120 O N ATIVO RELATIVO

No limite

Nos últimos te m pos, os a ntropólogos te mos mostra do gra n d e in q uietação


a resp eito d a id e ntid a d e e d estino d e nossa disciplin a: o q u e ela é, se ela
ain d a é, o q u e ela d eve ser, se ela te m o direito d e ser, q u al é se u objeto
próprio, se u m étodo, su a missão, e por aí afora (ver, por exe m plo, Moore
1999). Fiq u e m os co m a q u e st ã o d o o bje to, q u e im plic a a s d e m ais. S e ria
ele a c ult u r a, co m o n a tr a diç ã o disciplin a r a m e ric a n a? A or g a niz a ç ã o
social, como n a tra dição britâ nica? A n atureza h u m a n a, como n a tra dição
fr a n c e s a? P e n so q u e a r e s p ost a a d e q u a d a é: to d a s a s r e s p ost a s a n t e rio-
res, e n e n h u m a d elas. C ultura, socie d a d e e n atureza d ão n a m esm a; tais
noções n ão d esig n a m o objeto d a a ntropologia, se u assu nto, m as sim se u
proble m a, a q uilo q u e ela justa m e nte n ão pod e assu mir (Latour 1991:109-
110, 130), p or q u a n to h á u m a ‘tr a diç ã o’ a m ais a le v a r e m co n t a, a q u ela
q u e conta m ais: a tra dição do n ativo.
A d mit a m os, p ois s e h á d e co m e ç a r p or alg u m lu g a r, q u e a m a t é ria
privile gia d a d a a ntropologia seja a socialid a d e h u m a n a, isto é, o q u e va-
mos ch a m a n do d e ‘relações sociais’; e aceite mos a pon d eração d e q u e a
‘cultura’, por exe m plo, n ão te m existê ncia in d e p e n d e nte d e su a atu aliza-
ção n essas relações 14 . Resta, ponto im porta nte, q u e tais relações varia m
n o e s p a ço e n o t e m p o; e s e a c ult u r a n ã o e xist e for a d e s u a e x p r e ss ã o
r ela cio n al, e n t ã o a v a ria ç ã o r ela cio n al t a m b é m é v a ria ç ã o c ult u r al, o u,
dito d e outro modo, ‘cultura’ é o nom e q u e a a ntropologia d á à variação
relacion al.
M a s e ss a v a ria ç ã o r ela cio n al — n ã o o b rig a ria ela a s u p or m os u m
sujeito, u m su bstrato invaria nte do q u al ela se pre dica? Q u estão se m pre
la t e n t e, e in sist e n t e e m s u a s u p ost a e vid ê n cia; q u e st ã o, so b r e t u d o, m al
form ula d a. Pois o q u e varia crucialm e nte n ão é o conte ú do d as relações,
m as su a id éia m esm a: o q u e conta como relação n esta ou n a q u ela cultu-
r a. N ão são as relaçõ e s q u e v aria m , são as v ariaçõ e s q u e relacio n a m . E
s e a ssim é, e n t ã o o s u b str a to im a gin a d o d a s v a ria çõ e s, a ‘n a t u r e z a
h u m a n a’ — p a r a p a ss a r m os a o co n c eito c a ro à t e rc eir a g r a n d e tr a diç ã o
a ntropológica —, m u d aria com pleta m e nte d e fu nção, ou m elhor, d eixaria
d e s e r u m a s u bst â n cia e s e tor n a ria u m a v e r d a d eir a fu n ç ã o. A n a t u r e z a
d eixaria d e ser u m a esp écie d e m áximo d e no m inador com u m d as cultu-
r a s (m á xim o q u e é u m mínim o, u m a h u m a nitas m ini m a), u m a sort e d e
fu n d o d e s e m elh a n ç a o b tid o p or c a n c ela m e n to d a s dife r e n ç a s a fim d e
constituir u m sujeito consta nte, u m e missor-refere nte estável dos sig nifi-
ca dos culturais variáveis (como se as difere nças n ão fosse m ig u alm e nte
n aturais!). Ela p assaria a ser algo como u m mínimo m últiplo com u m d as
O N ATIVO RELATIVO 121

difere nças — m aior q u e as culturas, n ão m e nor q u e elas —, ou algo como


a inte gral p arcial d as difere ntes config urações relacion ais q u e ch a m a mos
‘culturas’15 . O ‘mínimo’ é, n esse caso, a m ultiplicid a d e com u m ao h u m a-
n o — h u m a nitas m ultiple x. A dit a n a t u r e z a d eix a ria a ssim d e s e r u m a
su bstâ ncia a uto-se m elh a nte situ a d a e m alg u m lu g ar n atural privile gia do
(o cére bro, por exe m plo), e assu miria ela própria o estatuto d e u m a rela-
ção difere ncial, disposta e ntre os termos q u e ela ‘n aturaliza’: torn ar-se-ia
o conju nto d e tra nsform ações re q u erid as p ara se d escrever as variações
e ntre as difere ntes config urações relacion ais con h ecid as. O u, p ara usar-
mos ain d a u m a outra im a g e m, ela se torn aria a q ui u m p uro limite — m as
n ão no se ntido g eom étrico d e limitação, isto é, d e p erím etro ou termo q u e
constr a n g e e d efin e u m a form a su bst a n cial (r e cord e -s e a id éia, t ã o p r e -
s e n t e n o voc a b ulá rio a n tro p oló gico, d a s e n c ein t e s m e n tale s), e sim n o
s e n tid o m a t e m á tico d e p o n to p a r a o q u al t e n d e u m a s é rie o u u m a r ela -
ção: limite-te nsão, n ão limite-contorno 16 . A n atureza h u m a n a, n esse caso,
seria u m a op eração teórica d e ‘p assa g e m ao limite’, q u e in dica a q uilo d e
q u e os seres h u m a nos são virtu alm e nte ca p azes, e n ão u m a limitação q u e
os d etermin a atu alm e nte a n ão ser outra coisa 17 . Se a cultura é u m siste-
m a d e dife r e n ç a s, co m o g ost a v a m d e diz e r os e str u t u r alist a s, e n t ã o a
n atureza ta m b é m o é: difere nças d e difere nças.

O motivo (caracteristica m e nte k a ntia no, escusa do dizer) do limite-contorno,


tão prese nte no im a gin ário d a disciplin a, é p articularm e nte conspícuo q u a n-
d o o h orizo n t e a ssim d elimit a d o co n sist e n a c h a m a d a n at ure z a h u m a n a,
como é o caso d as orie ntações n atural-u niversalistas tais a sociobiologia ou
a psicologia evolucion ária, e, e m boa m e did a, o próprio estruturalismo. M as
ele está prese nte ta m b é m nos discursos sobre as culturas h u m anas, on d e d á
teste m u n ho d as limitações — se posso m e exprimir assim — d a postura cul-
tural-relativista clássica. Record e-se o te m a consa gra do p ela frase d e Eva ns-
Pritch ard a resp eito d a bruxaria za n d e — “os Aza n d e n ão pod e m p e nsar q u e
se u p e nsa m e nto está erra do”—; ou a im a g e m a ntropológica corre nte d a cul-
t u r a co m o p rót e s e oc ula r (o u crivo cla ssific a tório) q u e só p e r mit e ‘v e r a s
cois a s’ d e u m c e rto m o d o (o u q u e oc ult a c e rtos p e d a ços d a r e alid a d e); o u
ain d a, p a r a cit a r m os u m e x e m plo m ais r e c e n t e, a m e t áfor a d o “b ocal” e m
q u e ca d a é poca histórica estaria e ncerra d a (Veyn e 1983)18 . Seja com resp ei-
to à n atureza, seja às culturas, o motivo m e p arece ig u alm e nte ‘limita do’. Se
q uis é ss e m os s e r p e rv e rsos, diría m os q u e s u a n e u tr alid a d e e str a t é gic a, s u a
co-prese nça nos ca m pos inimigos do u niversalismo e do relativismo, é u m a
p rov a elo q ü e n t e d e q u e a n oç ã o d e e n c ein t e m e n tale é u m a d a s e n c ein t e s
m e n tale s c a r a ct e rístic a s d e n osso co m u m ‘b oc al’ histórico. D e q u alq u e r
122 O N ATIVO RELATIVO

modo, ela mostra b e m q u e a su posta oposição e ntre u niversalismo n aturalis-


t a e r ela tivis m o c ult u r alist a é, n o mínim o, m uito r ela tiv a (e p e rfeit a m e n t e
cultural), pois se resu m e a u m a q u estão d e escolh er as dim e nsões do bocal,
o ta m a n ho do cárcere e m q u e jaze mos prision eiros: a cela incluiria catolica-
m e nte tod a a esp écie h u m a n a, ou seria feita sob m e did a p ara ca d a cultura?
H a v e ria t alv e z u m a só g r a n d e p e nit e n ciá ria ‘n a t u r al’, co m dife r e n t e s ala s
‘cul turais’, u m as com celas talvez u m pouco m ais esp açosas q u e outras?19

O objeto d a a ntropologia, assim, seria a variação d as relações sociais.


N ão d as relações sociais tom a d as como u m a província ontológica distin-
t a, m a s d e to d os os fe n ô m e n os p ossív eis e n q u a n to r ela çõ e s sociais, e n -
q u a nto im plica m relações sociais: d e tod as as relações como sociais. M as
isso d e u m a p ersp ectiva q u e n ão seja totalm e nte domin a d a p ela doutrin a
ocid e ntal d as relações sociais; u m a p ersp ectiva, porta nto, pronta a a d mi-
tir q u e o trata m e nto d e tod as as relações como sociais pod e levar a u m a
reconceitu ação ra dical do q u e seja ‘o social’. Dig a mos e ntão q u e a a ntro-
pologia se distin g a dos outros discursos sobre a socialid a d e h u m a n a n ão
por dispor d e u m a doutrin a p articularm e nte sólid a sobre a n atureza d as
relações sociais, m as, ao contrário, por ter a p e n as u m a vaga id éia inicial
do q u e seja u m a relação. Pois se u proble m a característico consiste m e nos
e m d etermin ar q u ais são as relações sociais q u e constitu e m se u objeto, e
m uito m ais e m s e p e r g u n t a r o q u e s e u o bje to co n stit ui co m o r ela ç ã o
social, o q u e é u m a r ela ç ã o social n os t e r m os d e s e u o bje to, o u m elh or,
nos termos form uláveis p ela relação (social, n aturalm e nte, e constitutiva)
e ntre o ‘a ntropólogo’ e o ‘n ativo’.

Da concepção ao conceito

Isso tu do n ão q u ereria a p e n as dizer q u e o ponto d e vista a q ui d efe n dido,


e e x e m plific a d o e m m e u tr a b alh o so b r e o p e rs p e ctivis m o a m e rín dio
(Viv eiros d e C a stro 1996), é ‘o p o n to d e vist a d o n a tivo’, co m o os a n tro-
pólogos professa m d e lon g a d ata? De fato, n ão h á n a d a d e p articularm e n-
t e origin al n o p o n to d e vist a a d ot a d o; a origin alid a d e q u e co n t a é a d o
ponto d e vista in díg e n a, n ão a do m e u com e ntário. M as, sobre a q u estão
d e o o bje tivo s e r o p o n to d e vist a d o n a tivo — a r e s p ost a é sim, e n ã o.
Sim, e m esmo m ais, porq u e m e u proble m a, no artigo cita do, foi o d e sa b er
o q u e é u m ‘p o n to d e vist a’ p ara o n a tivo, e n t e n d a -s e, q u al é o co n c eito
d e ponto d e vista prese nte n as culturas a m azônicas: q u al o ponto d e vis-
t a n a tivo so b r e o p o n to d e vist a. N ã o, p or o u tro la d o, p or q u e o co n c eito
O N ATIVO RELATIVO 123

n a tivo d e p o n to d e vist a n ã o coin cid e co m o co n c eito d e p o n to d e vist a


d o n a tivo; e p or q u e m e u p o n to d e vist a n ã o p o d e s e r o d o n a tivo, m a s o
d e min h a relação com o ponto d e vista n ativo. O q u e e nvolve u m a dim e n-
são esse ncial d e ficção, pois se tra ta d e pôr e m resson â ncia intern a dois
pontos d e vista com pleta m e nte h eterog ê n eos.
O q u e fiz e m m e u artigo sobre o p ersp ectivismo foi u m a exp eriê ncia
d e p e n s a m e n to e u m e x e rcício d e ficç ã o a n tro p oló gic a. A e x p r e ss ã o
‘e x p e riê n cia d e p e n s a m e n to’ n ã o t e m a q ui o s e n tid o u s u al d e e n tr a d a
im a gin ária n a exp eriê ncia p elo (próprio) p e nsa m e nto, m as o d e e ntra d a
n o (o u tro) p e n s a m e n to p ela e x p e riê n cia r e al: n ã o s e tr a t a d e im a gin a r
u m a e x p e riê n cia, m a s d e e x p e rim e n t a r u m a im a gin a ç ã o 20 . A e x p e riê n -
cia, n o c a so, é a min h a p ró p ria, co m o e t n ó g r afo e co m o leitor d a biblio-
grafia etnológica sobre a Am azônia in díg e n a, e o exp erim e nto, u m a fic-
ç ã o co n trola d a p or e ss a e x p e riê n cia. O u s eja, a ficç ã o é a n tro p oló gic a,
m as su a a ntropologia n ão é fictícia.
E m q u e co n sist e t al ficç ã o? Ela co n sist e e m to m a r a s id éias in díg e -
n as como conceitos, e e m extrair d essa d ecisão su as conse q ü ê ncias: d e-
termin ar o solo pré-conceitu al ou o pla no d e im a n ê ncia q u e tais concei-
tos pressu põe m, os p erson a g e ns conceitu ais q u e eles acion a m, e a m até-
ria do re al q u e eles põe m. Tratar essas id éias co m o conceitos n ão sig nifi-
ca, note-se b e m, q u e elas seja m objetiva m e nte d etermin a d as como outra
coisa, outro tipo d e objeto atu al. Pois tratá-las como cog nições in divid u ais,
re prese ntações coletivas, atitu d es proposicion ais, cre nças cosmológicas,
esq u e m as inconscie ntes, disposições e ncorpora d as e por aí afora — estas
seria m outras ta ntas ficções teóricas q u e a p e n as escolhi n ão acolh er.
Assim, o tipo d e tra b alho q u e a dvogo a q ui n ão é, n e m u m estu do d e
‘m e ntalid a d e primitiva’ (su pon do q u e tal noção ain d a te n h a u m se ntido),
n e m u m a a n álise dos ‘processos cog nitivos’ in díg e n as (su pon do q u e estes
seja m acessíveis, no prese nte esta do do con h ecim e nto psicológico e etno-
gráfico). M e u objeto é m e nos o modo d e p e nsar in díg e n a q u e os objetos
d esse p e nsar, o m u n do possível q u e se us conceitos projeta m. N ão se tra-
ta, ta m pouco, d e re d uzir a a ntropologia a u m a série d e e nsaios etnosso-
ciológicos sobre visões d e m u n do. Prim eiro, porq u e n ão h á m u n do pron-
to p a r a s e r visto, u m m u n d o a n t e s d a vis ã o, o u a n t e s, d a divis ã o e n tr e o
visível (ou p e nsável) e o invisível (ou pressu posto) q u e institui o horizon-
te d e u m p e nsa m e nto. Se g u n do, porq u e tom ar as id éias como conceitos é
r e c u s a r s u a e x plic a ç ã o e m t e r m os d a n oç ã o tr a n sc e n d e n t e d e co n t e x to
(ecológico, econômico, político etc.), e m favor d a noção im a n e nte d e pro-
ble m a, d e c a m p o p ro ble m á tico o n d e a s id éia s e st ã o im plic a d a s. N ã o s e
tr a t a, p or fim, d e p ro p or u m a in t erpre tação d o p e n s a m e n to a m e rín dio,
124 O N ATIVO RELATIVO

m a s d e r e aliz a r u m a e x p eri m e n tação co m ele, e p ort a n to co m o n osso.


No in glês dificilm e nte tra d uzível d e Roy Wa g n er: “ every u n d ersta n din g
of a noth er culture is a n exp erim e nt with on e’s ow n ” (1981:12).
To m a r a s id éia s in díg e n a s co m o co n c eitos é afir m a r u m a in t e n ç ã o
a ntipsicologista, pois o q u e se visa é u m a im a g e m d e jure do p e nsa m e n-
to, irre d utível à cog nição e m pírica, ou à a n álise e m pírica d a cog nição fei-
t a e m t e r m os p sicoló gicos. A ju ris diç ã o d o co n c eito é e xtr a t e rritorial à s
faculd a d es cog nitivas e aos esta dos internos dos sujeitos: os conceitos são
o bje tos o u e v e n tos in t ele ct u ais, n ã o e st a d os o u a trib u tos m e n t ais. Ele s
certa m e nte ‘p assa m p ela ca b eça’ (ou, como se diria e m in glês, ‘cruza m a
m e nte’): m as eles n ão fica m lá, e sobretu do, n ão estão lá prontos — eles
são inve nta dos. Deixe mos as coisas claras. N ão acho q u e os ín dios a m eri-
c a n os ‘co g niz e m’ dife r e n t e m e n t e d e n ós, isto é, q u e s e u s p roc e ssos o u
cate gorias ‘m e ntais’ seja m difere ntes dos d e q u aisq u er outros h u m a nos.
N ão é o caso d e im a gin ar os ín dios como dota dos d e u m a n e urofisiologia
p eculiar, q u e processaria diversa m e nte o diverso. No q u e m e concern e,
p e nso q u e eles p e nsa m exata m e nte ‘como nós’; m as p e nso ta m b é m q u e
o q u e ele s p e n s a m, isto é, os co n c eitos q u e ele s s e d ã o, a s ‘d e scriçõ e s’
q u e eles prod uz e m, sã o m uito dife r e n t es dos nossos — e port a n to q u e o
m u n d o d e scrito p or e ss e s co n c eitos é m uito div e rso d o n osso 21 . N o q u e
concern e aos ín dios, p e nso — se min h as a n álises do p ersp ectivismo estão
corretas — q u e eles p e nsa m q u e todos os h u m a nos, e alé m d estes, m ui-
tos o u tros s ujeitos n ã o- h u m a n os, p e n s a m e x a t a m e n t e ‘co m o ele s’, m a s
q u e isso, lon g e d e prod uzir (ou resultar d e) u m a converg ê ncia refere ncial
u niversal, é exata m e nte a razão d as diverg ê ncias d e p ersp ectiva.
A noção d e conceito su põe u m a im a g e m do p e nsa m e nto como ativi-
d a d e distinta d a cog nição, e como outra coisa q u e u m siste m a d e re pre-
se ntações. O q u e m e interessa no p e nsa m e nto n ativo a m erica no, assim,
n ão é n e m o sa b er local e su as re prese ntações m ais ou m e nos verd a d ei-
ras sobre o re al — o ‘in dig e nous k nowle d g e’ hoje tão disp uta do no m er-
ca do glob al d e re prese ntações —, n e m a cog nição in díg e n a e su as cate-
gorias m e ntais, cuja m aior ou m e nor re prese ntativid a d e, do ponto d e vis-
ta d as faculd a d es d a esp écie, as ciê ncias do espírito prete n d e m explorar.
N e m re pre s e n taçõ e s, in divid u ais o u cole tiv a s, r a cio n ais o u (‘a p a r e n t e -
m e nte’) irracion ais, q u e exprimiria m p arcialm e nte esta dos d e coisas a nte-
riores e exteriores a elas; n e m cate gorias e processos cog nitivos, u niver-
sais ou p articulares, in atos ou a d q uiridos, q u e m a nifestaria m proprie d a-
d es d e u m a coisa do m u n do, seja ela a m e nte ou a socie d a d e. M e u obje-
to s ã o os co n c eitos in díg e n a s, os m u n d os q u e ele s co n stit u e m (m u n d os
q u e a ssim os e x p rim e m), o fu n d o virt u al d e o n d e ele s p roc e d e m e q u e
O N ATIVO RELATIVO 125

eles p r essu põ e m. Os con c eitos, ou s eja, as id éias e os p roble m as d a ‘r a -


zão’ in díg e n a, n ão su as cate gorias do ‘e nte n dim e nto’.
C o m o t e r á fic a d o cla ro, a n oç ã o d e co n c eito t e m a q ui u m s e n tid o
b e m d e t e r min a d o. To m a r a s id éia s in díg e n a s co m o co n c eitos sig nific a
to m á -la s co m o d ot a d a s d e u m a sig nific a ç ã o p ro p ria m e n t e filosófic a, o u
como pote ncialm e nte ca p azes d e u m uso filosófico.
Decisão irresponsável, dir-se-á, ta nto m ais q u e n ão são só os ín dios
q u e n ã o s ã o filósofos, m a s, s u blin h e -s e co m forç a, t a m p o u co o p r e s e n t e
a utor. Como a plicar, por exe m plo, a noção d e conceito a u m p e nsa m e nto
q u e, a p a r e nte m e nte, n u nc a a chou n e c essá rio se d e bruç a r sobr e si m es-
mo, e q u e re m eteria a ntes ao esq u e m atismo flu e nte e varie g a do do sím-
bolo, d a fig ura e d a re prese ntação coletiva q u e à arq uitetura rigorosa d a
razão conceitu al? N ão existe u m b e m con h ecido a bismo histórico e psico-
lógico, u m a “ru ptura d ecisiva ” e ntre a im a gin ação mítica p a n-h u m a n a e
o u niverso d a racion alid a d e h elê nico-ocid e ntal (Vern a nt 1996:229)? Entre
a b ricola g e m d o sig n o e a e n g e n h a ria d o co n c eito (Lé vi-Str a u ss 1962)?
E n tr e a tr a n sc e n d ê n cia p a r a dig m á tic a d a Fig u r a e a im a n ê n cia sin t a g -
m ática do Conceito (Dele uze e G u attari 1991)? Entre u m a economia inte-
le ct u al d e tip o im a gístico- m ostr a tiv a e o u tr a d e tip o d o u trin al- d e m o n s-
tr a tiv a (W hit e h o u s e 2000)? E nfim, q u a n to a t u d o isso, q u e é c a u d a t á rio
m ais o u m e n os dir e to d e H e g el, t e n h o alg u m a s d ú vid a s. E a n t e s disso,
te n ho m e us motivos p ara falar e m conceito. Vou-m e ater a q ui a p e n as ao
p rim eiro d ele s, q u e d e corr e d a d e cis ã o d e to m a r a s id éia s n a tiv a s co m o
situ a d as no m esmo pla no q u e as id éias a ntropológicas.
A e x p e riê n cia p ro p ost a a q ui, dizia e u a cim a, co m e ç a p or afir m a r a
e q uiv alê n cia d e dir eito e n tr e os disc u rsos d o a n tro p ólo g o e d o n a tivo,
b e m como a con dição m utu a m e nte constituinte d esses discursos, q u e só
ace d e m co m o tais à existê ncia ao e ntrare m e m relação d e con h ecim e nto.
Os conceitos a ntropológicos atu aliza m tal relação, e são por isso com ple-
ta m e nte relacion ais, ta nto e m su a expressão como e m se u conte ú do. Eles
n ão são, n e m reflexos verídicos d a cultura do n ativo (o son ho positivista),
n e m p roje çõ e s ilu sória s d a c ult u r a d o a n tro p ólo g o (o p e s a d elo co n str u -
cionista). O q u e eles reflete m é u m a certa relação d e inteligibilid a d e e ntre
a s d u a s c ult u r a s, e o q u e ele s p roje t a m s ã o a s d u as c ult u r a s co m o s e u s
p r essu p ostos im a gin a d os. Eles o p e r a m, com isso, u m d u plo d es e n r aiz a -
m e n to: s ã o co mo v e tor e s s e m p r e a a p o n t a r p a r a o o u tro la d o, in t e rfa c e s
tra nscontextu ais cuja fu nção é re prese ntar, no se ntido diplom ático do ter-
mo, o outro no seio do m esmo, lá como cá.
Os conceitos a ntropológicos, e m su m a, são relativos porq u e são rela-
cio n ais — e s ã o r ela cio n ais p or q u e s ã o r ela tor e s. Tais orig e m e fu n ç ã o
126 O N ATIVO RELATIVO

cost u m a m vir m a rc a d a s n a ‘a ssin a t u r a’ c a r a ct e rístic a d e ss e s co n c eitos


por u m a p alavra estra n h a: m a n a, tote m, k ula, potlatch, ta b u, g u msa / g u m-
lao… O utros conceitos, n ão m e nos a utê nticos, porta m u m a assin atura eti-
mológica q u e evoca a ntes as a n alogias e ntre a tra dição cultural d e on d e
e m e r giu a disciplin a e a s tr a diçõ e s q u e s ã o s e u o bje to: d o m, s a crifício,
p are ntesco, p essoa… O utros, e nfim, ig u alm e nte le gítimos, são inve nções
voca b ulares q u e procura m g e n eralizar dispositivos conceitu ais dos povos
e st u d a d os — a nimis m o, o p osiç ã o s e g m e n t a r, troc a r e strit a, cis m o g ê n e -
s e… —, o u, in v e rs a m e n t e, e m ais p ro ble m a tic a m e n t e, d e svia m p a r a o
interior d e u m a economia teórica esp ecífica certas noções difusas d e nos-
s a tr a diç ã o — p roibiç ã o d o in c e sto, g ê n e ro, sím b olo, c ult u r a… —, b u s-
ca n do u niversalizá-las 22 .
Ve m os e n t ã o q u e n u m e rosos co n c eitos, p ro ble m a s, e n tid a d e s e
a g e ntes propostos p elas teorias a ntropológicas tê m su a orig e m no esfor-
ço im a gin ativo d as socie d a d es m esm as q u e elas prete n d e m explicar. N ão
e st a ria aí a origin alid a d e d a a n tro p olo gia, n e ss a sin e r gia e n tr e a s co n -
c e p çõ e s e p r á tic a s p rov e nie n t e s d os m u n d os d o ‘s ujeito’ e d o ‘o bje to’?
Recon h ecer isso aju d aria, e ntre outras coisas, a mitig ar nosso com plexo
d e inferiorid a d e dia nte d as “ciê ncias n aturais”. Como observa Latour:

“A d escrição do k ula e q uip ara-se à d escrição dos b uracos n e gros. Os com ple-
xos siste m as d e alia nça são tão im a gin ativos como os com plexos ce n ários evo-
lutivos propostos p ara os g e n es e goístas. Com pre e n d er a teologia dos a borí-
gin es a ustralia nos é tão im porta nte q u a nto cartografar as gra n d es falh as su b-
m arin as. O siste m a d e posse d a terra n as Trobria n d é u m objetivo cie ntífico
tão interessa nte como a son d a g e m do g elo d as calotas polares. Se a q u estão é
sa b er o q u e im porta n a d efinição d e u m a ciê ncia — a ca p acid a d e d e inovação
no qu e diz resp eito às a g ê ncias qu e povoam nosso mundo —, e ntão a a ntropo-
logia estaria b e m próxim a do topo d a hierarq uia disciplin ar […]” (1996a:5)23 .

A a n alogia feita n essa p assa g e m é e ntre as conce pções in díg e n as e


os objetos d as ciê ncias ditas n aturais. Esta é u m a p ersp ectiva possível, e
m esmo n ecessária: d eve-se pod er prod uzir u m a d escrição cie ntífica d as
id éias e práticas in díg e n as, como se fosse m objetos do m u n do, ou m elhor,
p ara q u e seja m objetos do m u n do. (É preciso n ão esq u ecer q u e os obje-
tos cie n tíficos d e La to u r s ã o t u d o m e n os e n tid a d e s ‘o bje tiv a s’ e in dife -
re ntes, p acie nte m e nte à esp era d e u m a d escrição.) O utra estraté gia pos-
sível é a d e com p arar as conce pções in díg e n as às teorias cie ntíficas, como
o fa z H orto n, s e g u n d o s u a “ t e s e d a simila rid a d e ” (1993:348-354), q u e
a ntecip a alg u ns asp ectos d a a ntropologia sim étrica d e Latour. O utra ain-
O N ATIVO RELATIVO 127

d a é a estraté gia a q ui a dvog a d a. C uido q u e a a ntropologia se m pre a n dou


d e m asia do obceca d a com a ‘Ciê ncia’, n ão só e m relação a si m esm a — se
ela é ou n ã o, pod e ou n ã o, d e v e ou n ã o se r u m a ciê ncia —, como sobr e -
tu do, e este é o re al proble m a, e m relação às conce pções dos povos q u e
estu d a: seja p ara d esq u alificá-las como erro, son ho, ilusão, e e m se g uid a
e x plic a r cie n tific a m e n t e co mo e p or q u e os ‘o u tros’ n ã o co ns e g u e m (s e)
e x plic a r cie n tific a m e n t e; s eja p a r a p ro m ov ê -la s co m o m ais o u m e n os
homog ê n e as à ciê ncia, frutos d e u m a m esm a vonta d e d e sa b er consu bs-
t a n cial à h u m a nid a d e. Assim a simila rid a d e d e H orto n, a ssim a ciê n cia
do concreto d e Lévi-Stra uss (Latour 1991:133-134). A im a g e m d a ciê ncia,
essa esp écie d e p a drão-ouro do p e nsa m e nto, n ão é poré m o ú nico terre-
no, n e m n ecessaria m e nte o m elhor, e m q u e pod e mos nos relacion ar com
a ativid a d e intelectu al dos povos estra n g eiros à tra dição ocid e ntal.
Im a gin e-se u m a outra a n alogia q u e a d e Latour, ou u m a outra simi-
larid a d e q u e a d e Horton. Um a a n alogia on d e, e m lu g ar d e tom ar as con-
ce pções in díg e n as como e ntid a d es se m elh a ntes aos b uracos n e gros ou às
falh a s t e ctô nic a s, to m e m o-la s co m o alg o d e m e s m a or d e m q u e o co gito
o u a m ô n a d a. Diría m os e n t ã o, p a r afr a s e a n d o a cit a ç ã o a n t e rior, q u e o
conceito m ela n ésio d a p essoa como “ divíd uo” (Strath ern 1988) é tão im a-
gin ativo como o in divid u alismo possessivo d e Lock e; q u e com pre e n d er a
“filosofia d a c h efia a m e rín dia ” (Cla str e s 1974) é t ã o im p ort a n t e q u a n to
co m e n t a r a d o u trin a h e g elia n a d o Est a d o; q u e a cos m o g o nia m a ori s e
e q uip a r a a os p a r a d oxos ele á ticos e à s a n tin o mia s k a n tia n a s (Sc h r e m p p
1992); q u e o p ersp ectivismo a m azônico é u m objetivo filosófico tão inte-
ressa nte como com pre e n d er o siste m a d e Leib niz… E se a q u estão é sa b er
o q u e im p ort a n a a v alia ç ã o d e u m a filosofia — s u a c a p a cid a d e d e cria r
novos conceitos —, e ntão a a ntropologia, se m prete n d er su bstituir a filo-
sofia, n ã o d eix a d e s e r u m p o d e roso in stru m e n to filosófico, c a p a z d e
a m pliar u m pouco os horizontes tão etnocê ntricos d e nossa filosofia, e d e
n os livr a r, d e p a ss a g e m, d a a n tro p olo gia dit a ‘filosófic a’. N a d efiniç ã o
vig oros a d e Tim In g old (1992:696), q u e é m elh or d eix a r n o origin al:
“ a n t h ro p olo g y is p hiloso p h y wit h t h e p e o ple in ”. Por ‘p e o ple’, In g old
e nte n d e a q ui os “ordinary p eople”, as p essoas com u ns (In gold 1992:696);
m as ele está ta m b é m jog a n do com o sig nifica do d e ‘p eople’ como ‘povo’,
e m ais ain d a, como ‘povos’. Um a filosofia com outros povos d e ntro, e ntão:
a p ossibilid a d e d e u m a a tivid a d e filosófic a q u e m a n t e n h a u m a r ela ç ã o
com a n ão-filosofia — a vid a — d e outros povos do pla n eta, alé m d e com
a n oss a p ró p ria 24 . N ã o só a s p e sso a s co m u n s, e n t ã o, m a s so b r e t u d o os
povos incom u ns, a q u eles q u e estão fora d e nossa esfera d e ‘com u nicação’.
Se a filosofia ‘re al’ a b u n d a e m selva g e ns im a gin ários, a g eofilosofia visa-
128 O N ATIVO RELATIVO

d a p ela a ntropologia faz u m a filosofia ‘im a gin ária’ com selva g e ns re ais.
Real toads in im aginary gard e ns, como disse a poeta M aria n n e Moore.
Note-se, n a p aráfrase q u e fize mos m ais acim a, o d esloca m e nto q u e
im porta. Agora n ão se trataria m ais, ou a p e n as, d a d escrição antropológi-
ca d o k ula (e n q u a n to for m a m ela n é sia d e socialid a d e), m a s d o k ula
e n q u a nto d escrição m elan ésia (d a ‘socialid a d e’ como form a a ntropológi-
ca); ou ain d a, seria preciso contin u ar a com pre e n d er a “teologia a ustra-
lia n a ”, m as a gora como constituin do ela própria u m dispositivo d e co m -
pre e nsão; do m esmo modo, os com plexos siste m as d e alia nça ou d e pos-
se d a terra d everia m ser vistos como im a gin ações sociológicas in díg e nas.
É cla ro q u e s e r á s e m p r e n e c e ss á rio d e scr e v e r o k ula co m o u m a d e scri-
ç ã o, co m p r e e n d e r a r eligiã o a b orígin e co m o u m co m p r e e n d e r, e im a gi-
n a r a im a gin a ç ã o in díg e n a: é p r e ciso s a b e r tr a n sfor m a r a s co n c e p çõ e s
e m conceitos, extraí-los d elas e d evolvê-los a elas. E u m conceito é u m a
relação com plexa e ntre conce pções, u m a g e ncia m e nto d e intuições pré-
conceitu ais; no caso d a a ntropologia, as conce pções e m relação inclu e m,
a ntes d e m ais n a d a, as do a ntropólogo e as do n ativo — relação d e rela-
ções. Os conceitos n ativos são os conceitos do a ntropólogo. Por hipótese.

Não explicar, nem interpretar: multiplicar, e experimentar

Roy Wa g n e r, d e s d e s e u T h e I n v e n tio n of C ult ure, foi u m d os p rim eiros


a n tro p ólo g os q u e so u b e r a dic aliz a r a co n st a t a ç ã o d e u m a e q uiv alê n cia
e ntre o a ntropólogo e o n ativo d ecorre nte d e su a com u m con dição cultural.
Do fato d e qu e a a proximação a uma outra cultura só pod e se fazer nos ter-
mos d a q u ela do a ntropólogo, Wa g n er conclui q u e o con h ecim e nto a ntro-
pológico se d efin e por su a “objetividad e relativa” (1981:2). Isto n ão sig ni-
fica uma objetivid a d e d eficie nte, isto é, subjetiva ou p arcial, mas uma obje-
tivid a d e intrinseca m e nte relacional, como se d e pre e n d e do q u e se se g u e:

“A id éia d e cultura […] coloca o p esq uisa dor e m posição d e ig u ald a d e com
a q u ele q u e ele p esq uisa: a m bos ‘p erte nce m a u m a cultura’. Como ca d a cul-
t u r a p o d e s e r vist a co m o u m a m a nife st a ç ã o e s p e cífic a […] d o fe n ô m e n o
h u m a no, e como ja m ais se d escobriu u m m étodo infalível d e ‘gra d u ar’ dife-
re ntes culturas e arra njá-las e m tipos n aturais, assu mimos q u e ca d a cultura,
como t al, é e q uiv ale n t e a q u alq u e r ou tr a. Tal postula do ch a m a -se ‘r ela tivi-
d a d e cultural’. […] A com bin ação d essas d u as im plicações d a id éia d e cultu-
ra, isto é, o fato d e q u e os a ntropólogos p erte nce mos a u m a cultura (objetivi-
d a d e r ela tiv a) e q u e so m os o b rig a d os a p ost ula r q u e to d a s a s c ult u r a s s e
O N ATIVO RELATIVO 129

e q uivale m (relativid a d e cultural), leva-nos a u m a proposição g eral a resp ei-


to d o e st u d o d a c ult u r a. C o m o a t e st a a r e p e tiç ã o d a id éia d e ‘r ela tivo’, a
a p r e e n s ã o d e o u tr a c ult u r a e n volv e o r ela cio n a m e n to [relatio n s hip] e n tr e
d u a s v a rie d a d e s d o fe n ô m e n o h u m a n o; ela vis a a cria ç ã o d e u m a r ela ç ã o
intelectu al e ntre elas, u m a com pre e nsão q u e inclu a a a m b as. A id éia d e ‘re-
lacion a m e nto’ é im porta nte a q ui porq u e é m ais a propria d a a essa a proxim a-
ç ã o d e d u a s e n tid a d e s (o u p o n tos d e vist a) e q uiv ale n t e s q u e n oçõ e s co m o
‘a n ális e’ ou ‘e x a m e’, q u e tr a e m u m a p r e t e ns ã o a u m a obje tivid a d e a bsolu -
ta ” (Wa g n er 1981:2-3).

O u, como diria Dele uze: n ão se trata d e afirm ar a relativid a d e do ver-


d a d eiro, m as sim a verd a d e do relativo. É dig no d e nota q u e Wa g n er asso-
cie a noção d e relação à d e ponto d e vista (os termos relacion a dos são pon-
tos d e vist a), e q u e e ss a id éia d e u m a v e r d a d e d o r ela tivo d efin a ju st a -
m e nte o q u e Dele uze ch a m a d e “ p ersp ectivismo”. Pois o p ersp ectivismo
— o d e Leib niz e Nie tzsc h e co m o o d os Tu k a n o o u J u r u n a — n ã o é u m
relativismo, isto é, afirm ação d e u m a relativid a d e do verd a d eiro, m as u m
relacion alismo, p elo q u al se afirm a q u e a v erdad e do relativo é a relação.
In d a g u ei o q u e aconteceria se recusásse mos a va nta g e m e piste mo-
lógica do discurso do a ntropólogo sobre o do n ativo; se e nte n d êsse mos a
relação d e con h ecim e nto como suscita n do u m a modificação, n ecessaria-
m e nte recíproca, nos termos por ela relacion a dos, isto é, atu aliza dos. Isso
é o m esmo q u e p erg u ntar: o q u e acontece q u a n do se leva o p e nsa m e nto
n ativo a sério? Q u a n do o propósito do a ntropólogo d eixa d e ser o d e expli-
c a r, in t e r p r e t a r, co n t e xt u aliz a r, r a cio n aliz a r e ss e p e ns a m e n to, e p a ss a a
s e r o d e o u tiliz a r, tir a r s u a s co n s e q ü ê n cia s, v e rific a r os efeitos q u e ele
p o d e p ro d u zir n o n osso? O q u e é p e n s a r o p e n s a m e n to n a tivo? P e n s a r,
digo, se m p e nsar se a q uilo q u e p e nsa mos (o outro p e nsa m e nto) é “ a p a-
r e n t e m e n t e irr a cio n al” 25 , o u pior ain d a, n a t u r alm e n t e r a cio n al 26 , m a s
p e nsá-lo como algo q u e n ão se p e nsa nos termos d essa altern ativa, algo
inteira m e nte alh eio a esse jogo?
Le v a r a s é rio é, p a r a co m e ç a r, n ã o n e u tr aliz a r. É, p or e x e m plo, p ôr
e ntre p arê nteses a q u estão d e sa b er se e como tal p e nsa m e nto ilustra u ni-
v e rs ais co g nitivos d a e s p é cie h u m a n a, e x plic a -s e p or c e rtos m o d os d e
tra nsmissão social do con h ecim e nto, exprim e u m a visão d e m u n do cultu-
ralm e nte p articular, valid a fu ncion alm e nte a distrib uição do pod er políti-
co, e o u tr a s t a n t a s for m a s d e n e u tr aliz a ç ã o d o p e n s a m e n to alh eio. S u s-
p e n d e r t al q u e st ã o o u, p elo m e n os, e vit a r e n c e rr a r a a n tro p olo gia n ela;
d ecidir, por exe m plo, p e nsar o outro p e nsa m e nto a p e n as (dig a mos assim)
como u m a atu alização d e virtu alid a d es insusp eitas do p e nsar.
130 O N ATIVO RELATIVO

Levar a sério sig nificaria, e ntão, ‘acre ditar’ no q u e dize m os ín dios,


to m a r s e u p e n s a m e n to co m o e x p rimin d o u m a v e r d a d e so b r e o m u n d o?
D e for m a alg u m a; e st a é o u tr a q u e st ã o m al coloc a d a. P a r a cr e r o u n ã o
crer e m u m p e nsa m e nto, é preciso prim eiro im a gin á-lo como u m siste m a
d e cr e n ç a s. M a s os p ro ble m a s a u t e n tic a m e n t e a n tro p oló gicos n ã o s e
põe m ja m ais nos termos psicologistas d a cre nça, n e m nos termos logicis-
tas do valor d e verd a d e, pois n ão se trata d e tom ar o p e nsa m e nto alh eio
como u m a opinião, ú nico objeto possível d e cre nça ou d escre nça, ou como
u m co nju n to d e p ro p osiçõ e s, ú nicos o bje tos p ossív eis d os juízos d e v e r-
d a d e. S a b e -s e o e str a g o c a u s a d o p ela a n tro p olo gia a o d efinir a r ela ç ã o
dos n ativos com se u discurso e m termos d e cre nça — a cultura vira u m a
esp écie d e teologia dog m ática (Viveiros d e C astro 1993) —, ou ao tratar
esse discurso como u m a opinião ou como u m conju nto d e proposições —
a c ult u r a vir a u m a t e r a tolo gia e pist ê mic a: e rro, ilu s ã o, lo u c u r a, id e olo-
gia…27 . Como observa Latour (1996b:15), “ a cre nça n ão é u m esta do m e n-
tal, m as u m efeito d a relação e ntre os povos” — e o tipo m esmo do efeito
q u e não prete n do prod uzir.
O a nimismo, por exe m plo, sobre o q u al já escrevi a ntes (Viveiros d e
C astro 1996). O Vocab ulário d e Lala n d e, q u e n ão se mostra, q u a nto a isso,
m uito d estoa nte e m face d e estu dos psico-a ntropológicos rece ntes sobre
o tópico, d efin e “ a nimismo” n estes exatos termos: como u m “ esta do m e n-
t al”. M a s o a nimis m o a m e rín dio p o d e s e r t u d o, m e n os isso. Ele é u m a
i m ag e m do p e nsa m e nto, q u e re p arte o fato e o direito, o q u e ca b e d e di-
reito ao p e nsa m e nto e o q u e re m ete contin g e nte m e nte aos esta dos d e coi-
sas; é, m ais esp ecifica m e nte, u m a con v e nção d e interpretação (Strath ern
1999 a:239) q u e p r e ss u p õ e a p e rso nit u d e for m al d o q u e h á a co n h e c e r,
faze n do assim do p e nsa m e nto u m a ativid a d e e u m efeito d a relação (‘so-
cial’) e ntre o p e nsa dor e o p e nsa do. Seria a propria do dizer q u e, por exe m-
plo, o p ositivis m o o u o ju s n a t u r alis m o s ã o e st a d os m e n t ais? O m e s m o
(n ã o) s e dig a d o a nimis m o a m a zô nico: ele n ã o é u m e st a d o m e n t al d os
sujeitos in divid u ais, m as u m dispositivo intelectu al tra nsin divid u al, q u e
to m a, aliá s, os ‘e st a d os m e n t ais’ d os s e r e s d o m u n d o co m o u m d e s e u s
objetos. Ele n ão é u m a con dição d a m e nte do n ativo, m as u m a ‘teoria d a
m e nte’ a plica d a p elo n ativo, u m modo d e resolver, aliás — ou m elhor, d e
dissolver —, o proble m a e min e nte m e nte filosófico d as ‘outras m e ntes’.
Se n ão se trata d e d escrever o p e nsa m e nto in díg e n a a m erica no e m
t e r m os d e cr e n ç a, t a m p o u co e n t ã o é o c a so d e r ela cio n a r-s e a ele so b o
m o d o d a cr e n ç a — s eja s u g e rin d o co m b e n e volê n cia s e u ‘fu n d o d e
verd a d e’ ale górico (u m a ale goria social, como p ara os d urk h eimia nos, ou
n atural, como p ara os m aterialistas culturais), seja, pior ain d a, im a gin a n-
O N ATIVO RELATIVO 131

d o q u e ele d a ria a c e sso à e ss ê n cia ín tim a e últim a d a s cois a s, d e t e n tor


q u e s e ria d e u m a ciê n cia e sot é ric a infu s a. “ U m a a n tro p olo gia q u e […]
r e d u z o s e n tid o [ m e a nin g] à cr e n ç a, a o d o g m a e à c e rt e z a c ai forços a -
m e n t e n a a r m a dilh a d e t e r d e a cr e dit a r o u n os s e n tid os n a tivos, o u e m
nossos próprios” (Wa g n er 1981:30). M as o pla no do se ntido n ão é povoa-
d o p or cr e n ç a s p sicoló gic a s o u p ro p osiçõ e s ló gic a s, e o ‘fu n d o’ co n t é m
o u tr a cois a q u e v e r d a d e s. N e m u m a for m a d a d o x a, n e m u m a fig u r a d a
ló gic a — n e m o piniã o, n e m p ro p osiç ã o —, o p e n s a m e n to n a tivo é a q ui
tom a do como ativid a d e d e sim bolização ou prática d e se ntido: como dis-
positivo a uto-refere ncial ou ta ute górico d e prod ução d e conceitos, isto é,
d e “sím bolos q u e re prese nta m a si m esmos” (Wa g n er 1986).
Recusar-se a pôr a q u estão e m termos d e cre nça p arece-m e u m tra-
ço cr u cial d a d e cis ã o a n tro p oló gic a. P a r a m a rc á -lo, r e e vo q u e mos o O u -
tre m d ele uzia no. O utre m é a expressão d e u m m u n do possível; m as este
m u n do d eve se m pre, no curso usu al d as interações sociais, ser atu aliza do
por u m Eu: a im plicação do possível e m outre m é explica d a por mim. Isto
sig nifica q u e o possível p assa por u m processo d e v erificação q u e dissip a
e n tro pic a m e n t e s u a e str u t u r a. Q u a n d o d e s e n volvo o m u n d o e x p rimid o
p or o u tr e m, é p a r a v alid á -lo co m o r e al e in g r e ss a r n ele, o u e n t ã o p a r a
d e s m e n ti-lo co m o irr e al: a ‘e x plic a ç ã o’ in tro d u z, a ssim, o ele m e n to d a
cr e n ç a. D e scr e v e n d o t al p roc e sso, D ele u z e in dic a v a a co n diç ã o-limit e
q u e lh e p ermitiu a d etermin ação do conceito d e O utre m:

“[E]ssas relações d e d ese nvolvim e nto, q u e form a m ta nto nossas com u nid a-
d es como nossas contestações com outre m, dissolve m su a estrutura, e a re d u-
ze m, e m u m caso, ao esta do d e objeto, e, no outro, ao esta do d e sujeito. Eis
por qu e, p ara a pre e nd er outrem como tal, se ntimo-nos no direito d e exigir con-
dições esp eciais d e exp eriê ncia, por mais artificiais qu e fossem elas: o mome n-
to e m q u e o exprimido ain d a n ão possui (p ara nós) existê ncia fora do q u e o
exprime — O utrem como expressão d e um mundo possível” (1969a:335).

E co n cluía r e cor d a n d o u m a m á xim a fu n d a m e n t al d e s u a r efle x ã o:


“A re gra q u e invocáva mos a nteriorm e nte: n ão se explicar d e m ais, sig ni-
fic a v a, a n t e s d e t u d o, n ã o s e e x plic a r d e m ais co m o u tr e m, n ã o e x plic a r
outre m d e m ais, m a nter se us valores im plícitos, m ultiplicar nosso m u n do
p ovo a n d o-o d e to d os e ss e s e x p rimid os q u e n ã o e xist e m for a d e s u a s
expressões” (Dele uze 1969a:335).
A liç ã o p o d e s e r a p rov eit a d a p ela a n tro p olo gia. M a n t e r os v alor e s
d e outre m im plícitos n ão sig nifica cele brar alg u m mistério n u minoso q u e
eles e ncerre m; sig nifica a recusa d e atu alizar os possíveis expressos p elo
132 O N ATIVO RELATIVO

p e nsa m e nto in díg e n a, a d elib eração d e g u ard á-los in d efinida m e nte como
possíveis — n e m d esre aliza n do-os como fa ntasias dos outros, n e m fa nta-
sia n do-os como atu ais p ara nós. A exp eriê ncia a ntropológica, n esse caso,
d e p e n d e d a interiorização form al d as “con dições esp eciais e artificiais” d e
q u e fala Dele uze: o mom e nto e m q u e o m u n do d e outre m n ão existe fora
d e su a expressão tra nsform a-se e m u m a con dição etern a, isto é, intern a à
relação a ntropológica, q u e re aliza esse possível co m o virtual28 . Se h á algo
q u e ca b e d e direito à a ntropologia, n ão é certa m e nte a tarefa d e e x plicar
o m u n do d e outre m , m as a d e m ultiplicar nosso m u n do, “ povoa n do-o d e
todos esses exprimidos q u e n ão existe m fora d e su as expressões”.

De porcos e corpos

Re alizar os possíveis n ativos como virtu alid a d es é o m esmo q u e tratar as


id éias n ativas como conceitos. Dois exe m plos.
1. Os porcos dos índios. É co m u m e n co n tr a r-s e n a e t n o g r afia a m e ri-
ca n a a id éia d e q u e, p ara os ín dios, os a nim ais são h u m a nos. Tal form u-
la ç ã o co n d e n s a u m a n e b ulos a d e co n c e p çõ e s s u tilm e n t e v a ria d a s, q u e
n ão ca b e a q ui ela borar: n ão são todos os a nim ais q u e são h u m a nos, e n ão
s ã o só ele s q u e o s ã o; os a nim ais n ã o s ã o h u m a n os o t e m p o to d o; ele s
fora m h u m a nos m as n ão o são m ais; eles torn a m-se h u m a nos q u a n do se
ach a m fora d e nossas vistas; eles a p e n as p e nsa m q u e são h u m a nos; eles
v ê e m-s e como h u m a n os; eles t ê m u m a alm a h u m a n a so b u m cor p o a ni-
m al; eles são g e nte assim como os h u m a nos, m as n ão são h u m a nos exa-
ta m e nte como a g e nte; e assim por dia nte. Alé m disso, ‘a nim al’ e ‘h u m a-
no’ são tra d uções e q uívocas d e certas p alavras in díg e n as — e n ão esq u e-
ç a m os q u e e st a m os dia n t e d e c e n t e n as d e lín g u a s distin t a s, n a m aioria
d a s q u ais, aliá s, a có p ula n ã o cost u m a vir m a rc a d a p or u m v e r b o. M a s
n ã o im p ort a, n o m o m e n to. S u p o n h a m os q u e e n u n cia d os co m o “ os a ni-
m ais são h u m a nos” ou “certos a nim ais são g e nte ” faça m alg u m se ntido,
e u m se ntido q u e n a d a te n h a d e ‘m etafórico’, p ara u m d a do gru po in dí-
g e n a. Ta nto se ntido, dig a mos (m as n ão exata m e nte o m esmo tipo d e se n-
tido), q u a nto o q u e a afirm ação a p are nte m e nte inversa, e hoje tão pouco
esca n d alosa — “os h u m a nos são a nim ais” —, faz p ara nós. Su pon h a mos,
e ntão, q u e o prim eiro e n u ncia do faça se ntido p ara, por exe m plo, os Ese
Eja d a Am azônia bolivia n a: “A afirm ação, q u e e u fre q ü e nte m e nte ouvi,
d e q u e ‘todos os a nim ais são Ese Eja’ […]” (Alexia d es 1999:179)29 .
Pois b e m. Isa b ella Le pri, estu d a nte d e a ntropologia q u e hoje tra b a-
lh a, por coincid ê ncia, ju nto a esses m esmos Ese Eja, p erg u ntou-m e, p e n-
O N ATIVO RELATIVO 133

so q u e e m m aio d e 1998, s e e u a cr e dit a v a q u e os p e c a ris s ã o h u m a n os,


como dize m os ín dios. Respon di q u e n ão — e o fiz porq u e susp eitei (se m
n e n h u m a r a z ã o) q u e ela a cr e dit a v a q u e, s e os ín dios dizia m t al cois a,
e n t ã o d e via s e r v e r d a d e. Acr e sc e n t ei, p e rv e rs a e alg o m e n tiros a m e n t e,
q u e só ‘acre ditava’ e m átomos e g e n es, n a teoria d a relativid a d e e n a evo-
lução d as esp écies, n a luta d e classes e n a lógica do ca pital, e nfim, n esse
tipo d e coisa; m as q u e, como a ntropólogo, tom ava p erfeita m e nte a sério
a id éia d e q u e os p e c a ris s ã o h u m a n os. Ela m e co n t e sto u: “ C o m o voc ê
p o d e s u st e n t a r q u e le v a o q u e os ín dios diz e m a s é rio? Isso n ã o é só u m
m o d o d e s e r p olid o co m s e u s infor m a n t e s? C o m o voc ê p o d e le v á -los a
sério se só fin g e acre ditar no q u e eles dize m?”
Ess a in tim a ç ã o d e hip ocrisia m e o b rig o u, é cla ro, a r efle tir. Esto u
conve ncido d e q u e a q u estão d e Isa b ella é a bsoluta m e nte crucial, d e q u e
tod a a ntropologia dig n a d esse nom e precisa respon d ê-la, e d e q u e n ão é
n a d a fácil respon d ê-la b e m.
U m a r e s p ost a p ossív el, n a t u r alm e n t e, é a q u ela co n tid a e m u m a
ré plica corta nte d e Lévi-Stra uss ao h erm e n e utismo mí(s)tico d e Ric œ ur:
“É preciso escolh er o la do e m q u e se está. Os mitos n ão dize m n a d a ca p az
d e nos instruir sobre a ord e m do m u n do, a n atureza do re al, a orig e m do
h o m e m o u o s e u d e stin o ” (1971:571). E m troc a, p ross e g u e o a u tor, os
mitos nos e nsin a m m uito sobre as socie dad es d e on d e provê m, e, sobre-
t u d o, so b r e c e rtos m o d os fu n d a m e n t ais (e u niv e rs ais) d e o p e r a ç ã o d o
e s pírito h u m a n o (Lé vi-Str a u ss 1971:571). O p õ e -s e, a ssim, à v a c uid a d e
r efe r e n cial d o mito, s u a ple nit u d e dia g n óstic a: diz e r q u e os p e c a ris s ã o
h u m a nos n ão nos ‘diz’ n a d a sobre os p ecaris, m as m uito sobre os h u m a-
nos q u e o dize m.
A solução n a d a te m d e esp ecifica m e nte lévi-stra ussia n a; ela é a pos-
tura ca nônica d a a ntropologia, d e Durk h eim ou dos intelectu alistas vito-
ria n os a os dia s d e h oje. M uito d a a n tro p olo gia c h a m a d a co g nitiv a, p or
exe m plo, pod e ser vista como u m a ela boração siste m ática d e tal atitu d e,
q u e co n sist e e m r e d u zir o disc u rso in díg e n a a u m co nju n to d e p ro p osi-
ções, selecion ar a q u elas q u e são falsas (altern ativa m e nte, ‘vazias’) e pro-
d uzir u m a e x plicação d e por q u e os h u m a nos acre dita m n elas, visto q u e
s ã o fals a s o u v a zia s. U m a e x plic a ç ã o, t a m b é m p or e x e m plo, p o d e s e r
a q u ela q u e conclui q u e tais proposições são objeto d e u m e m b utim e nto
ou asp e a m e nto por p arte d e se us e n u ncia dores (Sp erb er 1974; 1982); elas
re m ete m, porta nto, n ão ao m u n do, m as à relação dos e n u ncia dores com
s e u p ró p rio disc u rso. Tal r ela ç ã o é ig u alm e n t e o t e m a p rivile gia d o d a s
a ntropologias ditas ‘sim bolistas’, d e tipo se m â ntico ou pra g m ático: e n u n-
cia d os co m o e ss e so b r e os p e c a ris fala m (o u fa z e m), ‘n a v e r d a d e’, alg o
134 O N ATIVO RELATIVO

sobre a socie d a d e, n ão sobre o q u e fala m. Eles n ão e nsin aria m n a d a sobre


a ord e m do m u n do e a n atureza do re al, porta nto, n e m p ara nós, n e m para
os ín dios. Le v a r a sé rio u m a afirm a ç ã o como “ os p e c a ris sã o h u m a nos”,
n esse caso, consistiria e m mostrar como certos h u m a nos pod e m levá-la a
sério, e m esmo acre ditar n ela, se m q u e se mostre m, com isso, irracion ais
— e, n a t u r alm e n t e, s e m q u e os p e c a ris s e m ostr e m, p or isso, h u m a n os.
Salva-se o m u n do: salva m-se os p ecaris, salva m-se os n ativos, e salva-se,
sobretu do, o a ntropólogo.
Essa solução n ão m e satisfaz. Ao contrário, ela m e incomod a profu n-
d a m e n t e. Ela p a r e c e im plic a r q u e, p a r a le v a r os ín dios a s é rio, q u a n d o
afirm a m coisas como “ os p e c a ris sã o h u m a nos”, é pr e ciso não a cr e dita r
no q u e eles dize m, visto q u e, se o fizésse mos, n ão estaría mos nos leva n-
d o a s é rio. É p r e ciso a c h a r o u tr a s aíd a. C o m o n ã o t e n h o e s p a ço n e m,
sobretu do e evid e nte m e nte, com p etê ncia p ara re p assar a vasta literatura
filosófica sobre a gra m ática d a cre nça, a certeza, as atitu d es proposicio-
n ais etc., a prese nto a q ui a p e n as certas consid erações suscita d as, intuiti-
va m ais q u e reflexiva m e nte, por min h a exp eriê ncia d e etnógrafo.
Sou a ntropólogo, n ão suinólogo. Os p ecaris (ou, como disse u m outro
a ntropólogo a propósito dos N u er, as vacas) n ão m e interessa m e norm e-
m e nte, os h u m a nos sim. M as os p ecaris interessa m e norm e m e nte à q u e-
le s h u m a n os q u e diz e m q u e ele s s ã o h u m a n os. Port a n to, a id éia d e q u e
os p e c a ris s ã o h u m a n os m e in t e r e ss a, a mim t a m b é m, p or q u e ‘diz’ alg o
so b r e os h u m a n os q u e diz e m isso. M a s n ão p or q u e ela dig a alg o q u e
e ss e s h u m a n os n ã o s ã o c a p a z e s d e diz e r sozin h os, e sim p or q u e, n ela,
esses h u m a nos estão dize n do algo n ão só sobre os p ecaris, m as ta m b é m
so b r e o q u e é s e r ‘h u m a n o’. (Por q u e os N u e r, a o co n tr á rio e p or e x e m -
plo, n ão dize m q u e o g a do é h u m a no?) O e n u ncia do sobre a h u m a nid a d e
dos p ecaris, se certa m e nte re v ela — ao a ntropólogo — algo sobre o espí-
rito h u m a no, faz m ais q u e isso — p ara os ín dios: ele afirm a algo sobre o
co n c eito d e h u m a n o. Ele afir m a, in t er alia, q u e a n oç ã o d e ‘e s pírito
h u m a no’, e o conceito in díg e n a d e socialid a d e, inclu e m e m su a exte nsão
os p e c a ris — e isso m o dific a r a dic alm e n t e a in t e n s ã o d e ss e s co n c eitos
relativa m e nte aos nossos.
A cr e n ç a d o n a tivo o u a d e scr e n ç a d o a n tro p ólo g o n ã o t ê m n a d a a
fazer a q ui. Perg u ntar(-se) se o a ntropólogo d eve acre ditar no n ativo é u m
cate gory mistak e e q uivale nte a in d a g ar se o n ú m ero dois é alto ou verd e.
Eis os p rim eiros ele m e n tos d e min h a r e s p ost a a Is a b ella. Q u a n d o u m
a ntropólogo ouve d e u m interlocutor in díg e n a (ou lê n a etnografia d e u m
cole g a) alg o co m o “ os p e c a ris s ã o h u m a n os ”, a afir m a ç ã o, s e m d ú vid a,
interessa-lh e porq u e ele ‘sa b e’ q u e os p ecaris n ão são h u m a nos. M as esse
O N ATIVO RELATIVO 135

sa b er — u m sa b er esse ncialm e nte arbitrário, p ara n ão dizermos b urro —


d eve p arar aí: se u ú nico interesse consiste e m ter d esp erta do o interesse
d o a n tro p ólo g o. N ã o s e d e v e p e dir m ais a ele. N ã o s e p o d e, a cim a d e
tu do, incorporá-lo im plicita m e nte n a economia do com e ntário a ntropoló-
gico, como se fosse n ecessário explicar (como se o esse ncial fosse expli-
car) por q u e os ín dios crê e m q u e os p ecaris são h u m a nos q u a n do d e fato
eles n ão o são. É in útil p erg u ntar-se se os ín dios tê m ou n ão razão a esse
resp eito: pois já n ão o ‘sa b e mos’? M as o q u e é preciso sa b er é justa m e nte
o q u e não se sa b e — a sa b er, o q u e os ín dios estão dize n do, q u a n do dize m
q u e os p ecaris são h u m a nos.
Um a id éia como esta está lon g e d e ser evid e nte. O proble m a q u e ela
coloc a n ã o r esid e n a có p ula d a p ro p osiç ã o, como s e ‘p e c a ri’ e ‘h u m a n o’
fosse m noções com u ns p artilh a d as p elo a ntropólogo e p elo n ativo, e a ú ni-
ca difere nça residisse n a e q u ação bizarra e ntre os dois termos. É p erfeita-
m e nte possível, dig a-se d e p assa g e m, q u e o sig nifica do lexical ou a inter-
pretação se m â ntica d e ‘p ecari’ e ‘h u m a no’ seja m m ais ou m e nos os m es-
mos p ara os dois interlocutores; n ão se trata d e u m proble m a d e tra d ução,
o u d e d e cidir s e os ín dios e n ós t e m os os m e s m os n at ural kin d s (t alv e z,
talvez). O proble m a é q u e a id éia d e q u e os p ecaris são h u m a nos é p arte
d o s e n tid o d os ‘co n c eitos’ d e p e c a ri e d e h u m a n o n a q u ela c ult u r a, o u
m elhor, é essa id éia q u e é o verd a d eiro conceito e m potê ncia — o concei-
to q u e d etermin a o modo como as id éias d e p ecari e d e h u m a no se rela-
cion a m. Pois n ão h á ‘prim eiro’ os p ecaris e os h u m a nos, ca d a q u al d e se u
la do, e ‘d e pois’ sobrevé m a id éia d e q u e os p ecaris são h u m a nos: ao con-
trário, os p ecaris, os h u m a nos e su a relação são d a dos sim ultan ea m e nte 30.
A e str eit e z a in t ele ct u al q u e ro n d a a a n tro p olo gia, e m c a sos co m o
e ss e, co n sist e n a r e d u ç ã o d a s n oçõ e s d e p e c a ri e d e h u m a n o e xclu siv a -
m e nte a variáveis in d e p e n d e ntes d e u m a proposição, q u a n do elas d eve m
ser vistas — se q u ere mos levar os ín dios a sério — como variações inse-
p a r á v eis d e u m co n c eito. Diz e r q u e os p e c a ris s ã o h u m a n os, co m o já
observei, n ão é dizer algo a p e n as sobre os p ecaris, como se ‘h u m a no’ fos-
s e u m p r e dic a d o p a ssivo e p a cífico (p or e x e m plo, o g ê n e ro e m q u e s e
inclui a esp écie p ecari); ta m pouco é d ar u m a sim ples d efinição verb al d e
‘p ecari’, do tipo “‘suru bim’ é (o nom e d e) u m p eixe ”. Dizer q u e os p eca-
ris são h u m a nos é dizer algo sobre os p ecaris e sobre os h u m anos, é dizer
algo sobre o q u e pod e ser o h u m a no: se os p ecaris tê m a h u m a nid a d e e m
p ot ê n cia, e n t ã o os h u m a n os t e ria m, t alv e z, u m a p ot ê n cia - p e c a ri? C o m
efeito, s e os p e c a ris p o d e m s e r co n c e bid os co m o h u m a n os, e n t ã o d e v e
s e r p ossív el co n c e b e r os h u m a n os co m o p e c a ris: o q u e é s e r h u m a n o,
q u a n do se é ‘p ecari’, e o q u e é ser p ecari, q u a n do se é ‘h u m a no’? Q uais as
136 O N ATIVO RELATIVO

conse q ü ê ncias disto? Q u e conceito se pod e extrair d e u m e n u ncia do como


“os p ecaris são h u m a nos”? Como tra nsform ar a conce pção expressa por
u m a proposição d esse tipo e m u m conceito? Esta é a verd a d eira q u estão.
Assim, q u a n do se us interlocutores in díg e n as lh e dize m (sob con di-
ções, como se m pre, q u e ca b e esp ecificar) q u e os p ecaris são h u m a nos, o
q u e o a n tro p ólo g o d e v e s e p e r g u n t a r n ã o é s e ‘a cr e dit a o u n ã o’ q u e os
p ecaris seja m h u m a nos, m as o q u e u m a id éia como essa lh e e nsin a sobre
as noções in díg e n as d e h u m a nid a d e e d e ‘p ecaritu d e’. O q u e u m a id éia
como essa, note-se, e nsin a-lh e sobre essas noções e sobre outras coisas:
so b r e a s r ela çõ e s e n tr e ele e s e u in t e rloc u tor, a s sit u a çõ e s e m q u e t al
e n u n cia d o é p ro d u zid o ‘e s p o n t a n e a m e n t e’, os g ê n e ros d e fala e o jo g o
d e lin g u a g e m e m q u e ele ca b e etc. Essas outras coisas, poré m — e gosta-
ria d e insistir sobre o ponto — estão m uito lon g e d e esgotar o se ntido do
e n u ncia do. Re d uzi-lo a u m discurso q u e ‘fala’ a p e n as d e se u e n u ncia dor
é n e g ar a este su a inte ncion alid a d e, e, d e q u e bra, é obrig á-lo a trocar se u
p e c a ri p or n osso h u m a n o. O q u e é u m p é ssim o n e g ócio p a r a o c a ç a d or
do p ecari.
E n esses termos, é óbvio q u e o etnógrafo te m d e acre ditar (no se nti-
d o d e co nfia r) e m s e u in t e rloc u tor: p ois s e e st e n ã o e st á a lh e d a r u m a
opinião, m as a e nsin ar-lh e o q u e são os p ecaris e os h u m a nos, a explicar
co m o o h u m a n o e st á im plic a d o n o p e c a ri… A p e r g u n t a, m ais u m a v e z,
d e v e s e r: p a r a q u e s e rv e e ss a id éia? E m q u e a g e n cia m e n tos ela p o d e
e ntrar? Q u ais su as conse q ü ê ncias? Por exe m plo: o q u e se com e, q u a n do
se com e u m p ecari, se os p ecaris são h u m a nos?
E m ais: c a r e c e v e r s e o co n c eito co n str uív el a p a rtir d e e n u n cia d os
como esse se exprim e d e modo re alm e nte a d e q u a do p ela form a “X é Y”.
Pois n ão se trata ta nto d e u m proble m a d e pre dicação ou atrib uição, m as
d e d efinir u m co nju n to virt u al d e e v e n tos e d e s é rie s e m q u e e n tr a m os
p orcos s elv a g e n s d e n osso e x e m plo: os p e c a ris a n d a m e m b a n d o… t ê m
u m ch efe… são b arulh e ntos e a gressivos… su a a p arição é sú bita e im pre-
visív el… s ã o m a u s c u n h a d os… co m e m a ç aí… viv e m so b a t e rr a… s ã o
e n c a r n a çõ e s d os m ortos… e a ssim p or dia n t e. N ã o s e tr a t a co m isso d e
id e ntificar os atrib utos dos p ecaris a atrib utos dos h u m a nos, m as d e algo
m uito difere nte. Os p ecaris são p ecaris e h u m a nos, são h u m a nos n a q uilo
q u e os h u m a nos não são p ecaris; os p ecaris im plica m os h u m a nos, como
id éia, e m s u a distâ n cia m e s m a dia n t e d os h u m a n os. Assim, q u a n d o s e
diz q u e os p e c a ris s ã o h u m a n os, n ã o é p a r a id e n tific á -los a os h u m a n os,
m as p ara difere nciá-los d e si m esmos — e a nós d e nós m esmos.
Disse a nteriorm e nte q u e a id éia d e q u e os p ecaris são h u m a nos está
lon g e d e ser evid e nte. Por certo: n e n h u m a id éia interessa nte é evid e nte.
O N ATIVO RELATIVO 137

Esta, e m p articular, n ão é n ão-evid e nte porq u e seja falsa ou inverificável


(os ín dios dis p õ e m d e v á rios m o d os d e v erificá-la), m a s p or q u e diz alg o
n ã o- e vid e n t e so b r e o m u n d o. O s p e c a ris n ã o s ã o e vid e n t e m e n t e h u m a -
nos, eles o são n ão-evid e nte m e nte. Isto q u ereria dizer q u e tal id éia é ‘sim-
b ólic a’, n o s e n tid o q u e S p e r b e r d e u a e st e a dje tivo? E n t e n d o q u e n ã o.
Sp erb er conce b e os conceitos in díg e n as como proposições, e pior, como
proposições d e se g u n d a classe, “re prese ntações se miproposicion ais” q u e
prolon g a m o “sa b er e nciclop é dico” sob u m modo n ão-refere ncializável:
confusão do a utopositivo com o refere ncialm e nte vazio, do virtu al com o
fictício, d a im a n ê ncia com a cla usura… M as é possível ver o ‘sim bolismo’
d e o u tro mo d o q u e e ss e d e Sp e r b e r, q u e o to m a co mo alg o ló gic a e cro-
nologica m e nte posterior à e nciclop é dia ou à se m â ntica, algo q u e m arca
os limites do con h ecim e nto verd a d eiro ou verificável, o ponto on d e ele se
tra nsform a e m ilusão. Os conceitos in díg e n as pod e m ser ditos sim bólicos,
m a s e m s e n tid o m uito dife r e n t e; n ã o s ã o s u b p ro p osicio n ais, s ã o s u p er-
proposicion ais, pois su põe m as proposições e nciclop é dicas m as d efin e m
su a sig nificação vital, se u se ntido ou valor. As proposições e nciclop é di-
cas é q u e são se miconceitu ais ou su bsim bólicas, n ão o contrário. O sim-
bólico n ão é o se miverd a d eiro, m as o pré-verd a d eiro, isto é, o im porta nte
o u r ele v a n t e: ele diz r e s p eito n ã o a o q u e ‘é o c a so’, m a s a o q u e im p ort a
no q u e é o caso, ao q u e interessa p ara a vid a no q u e é o caso. O q u e vale
u m p ecari? Essa é a q u estão, literalm e nte, interessante 31 .
“ Profu n d o: o u tr a p ala vr a p a r a s e mip ro p osicio n al”, iro nizo u, c e rt a
vez, Sp erb er (1982:173). M as e ntão ca b eria re plicar — b a n al: outra p ala-
vra p ara proposicion al. Profu n dos, com efeito, os conceitos in díg e n as cer-
ta m e nte o são, pois projeta m u m fu n do, u m pla no d e im a n ê ncia povoa do
d e inte nsid a d es, ou, se o leitor prefere a lin g u a g e m d e Wittg e nstein, u m
W elt bild q u a d rilh a d o p or “ p s e u d o p ro p osiçõ e s ” d e b a s e q u e ig n or a m e
prece d e m a p artilh a e ntre o verd a d eiro e o falso, “tece n do u m a re d e q u e,
la n ç a d a so b r e o c a os, p o d e lh e d a r alg u m a co n sist ê n cia ” (Pr a d o J r.
1998:317). Esse fu n do é a “ b ase se m fu n d a m e nto” q u e n ão é n e m racio-
n al/razoável n e m irracion al/inse nsata, m as q u e “sim plesm e nte está lá —
como nossa vid a ” (Pra do Jr. 1998:319).
2. Os corpos dos índios. M e u cole g a Peter Gow n arrou-m e, certa fei-
ta, a se g uinte ce n a, prese ncia d a e m u m a d e su as esta d as e ntre os Piro d a
Am azônia p eru a n a:
Um a professora d a missão [n a ald eia d e] Sa nta Clara estava te nta n-
do conve ncer u m a m ulh er piro a pre p arar a comid a d e se u filho p e q u e no
co m á g u a fe rvid a. A m ulh e r r e plico u: “ S e b e b e m os á g u a fe rvid a, co n -
tr aím os dia rr éia ”. A p rofe ssor a, rin d o co m zo m b a ria d a r e s p ost a, e x pli-
138 O N ATIVO RELATIVO

cou q u e a diarréia infa ntil com u m é ca usa d a justa m e nte p ela in g estão d e
á g u a n ão-fervid a. Se m se a b alar, a m ulh er piro respon d e u: “Talvez p ara
o p ovo d e Lim a isso s eja v e r d a d e. M a s p a r a n ós, g e n t e n a tiv a d a q ui, a
á g u a fe rvid a d á dia rr éia. N ossos cor p os s ã o dife r e n t e s d os cor p os d e
vocês” (Gow, com u nicação p essoal, 12/10/00).
O q u e pod e o a ntropólogo fazer com essa resposta d a m ulh er ín dia?
Várias coisas. Gow, por exe m plo, tece u com e ntários arg utos sobre a a n e-
dota, e m u m artigo e m pre p aração:

“Este e n u ncia do sim ples [“ nossos corpos são difere ntes”] ca ptura com ele-
g â ncia o q u e Viveiros d e C astro (1996) ch a mou d e p ersp ectivismo cosmoló-
gico, o u m ultin a t u r alis m o: o q u e distin g u e os dife r e n t e s tip os d e g e n t e s ã o
se us corpos, n ão su as culturas. Deve-se notar, e ntreta nto, q u e esse exe m plo
d e cosmologia p ersp ectivista n ão foi obtido no curso d e u m a discussão eso-
térica sobre o m u n do oculto dos espíritos, m as e m u m a conversação e m tor-
no d e preocu p ações e min e nte m e nte prá ticas: o q u e ca usa a diarréia infa n-
til? Seria te nta dor ver as posições d a professora e d a m ulh er piro como re pre-
se nta n do d u as cosmologias distintas, o m ulticulturalismo e o m ultin aturalis-
mo, e im a gin ar a conversa como u m choq u e d e cosmologias ou culturas. Isto
s e ria, p e n so, u m e n g a n o. As d u a s cos m olo gia s / c ult u r a s, n o c a so, e st ã o e m
co n t a to já h á m uito t e m p o, s u a im b ric a ç ã o p r e c e d e d e m uito os p roc e ssos
ontog e n éticos através dos q u ais a professora e essa m ulh er piro viera m a for-
m ulá-las como a uto-evid e ntes. M as sobretu do, tal interpretação estaria tra-
d uzin do o diálogo nos termos g erais d e u m a d e su as p artes, a sa b er, o m ulti-
culturalismo. As coord e n a d as d a posição d a m ulh er piro estaria m se n do sis-
t e m a tic a m e n t e viola d a s p ela a n ális e. Isso n ã o q u e r diz e r, é cla ro, q u e e u
cr eia q u e a s cria n ç a s d e v e m b e b e r á g u a n ã o-fe rvid a. M a s isso q u er diz e r
q u e a a n álise etnográfica n ão pod e ir a dia nte se já se d ecidiu d e a nte m ão o
se ntido g eral d e u m e ncontro como esse ”.

Concordo com m uito do arg u m e nto acim a. A a n e dota re porta d a por


Go w é d e fa to u m a esplê n did a ilustr a ç ã o, esp e cialm e n t e por d e riv a r d e
u m in cid e n t e b a n alm e n t e cotidia n o, d a div e r g ê n cia irr e d u tív el e n tr e o
q u e ch a m ei d e “ m ulticulturalismo” e d e “ m ultin aturalismo”. M as a a n á-
lise su g erid a por ele n ão m e p arece a ú nica possível. Assim, sobre a q u es-
t ã o d a tr a d u ç ã o d a co n v e rs a n os t e r m os g e r ais d e u m a d a s p a rt e s — n o
caso, a professora: n ão seria ig u alm e nte possível, e sobretu do n ecessário,
tra d uzi-la nos termos g erais d a outra p arte? Pois n ão h á terceira posição,
u m a p osiç ã o a b solu ta d e so b r e vôo q u e m ostr a ss e o c a r á t e r relativ o d a s
d u as outras. É preciso tom ar p artido.
O N ATIVO RELATIVO 139

Será q u e se pod eria dizer, por exe m plo, q u e ca d a m ulh er está ‘cul-
turaliza n do’ a outra n essa conversa, isto é, atrib uin do a tolice d a outra à
‘cultura’ d esta, ao p asso q u e ‘interpreta’ a su a própria posição como ‘n atu-
r al’? S e ria o c a so d e s e diz e r q u e o a r g u m e n to so b r e o ‘cor p o’ a v a n ç a d o
p ela m ulh er piro já é u m a esp écie d e concessão aos pressu postos d a pro-
fessora? Talvez; m as n ão houve concessão recíproca. A m ulh er piro con-
cor d o u e m discor d a r, m a s a p rofe ssor a, d e mo d o alg u m. A p rim eir a n ã o
co n t e sto u o fa to d e q u e a s p e sso a s d a cid a d e d e Lim a (“ t alv e z ”) d e v a m
b e b er á g u a fervid a, ao p asso q u e a se g u n d a recusou p ere m ptoria m e nte
a id éia d e q u e as p essoas d a ald eia d e Sa nta Clara n ão o d eva m.
O ‘relativismo’ d a m ulh er piro — u m relativismo ‘n atural’, n ão ‘cul-
tural’, note-se — pod eria ser interpreta do se g u n do certas hipóteses a res-
p eito d a economia cog nitiva d as socie d a d es n ão-mod ern as, ou se m escrita,
ou tra dicion ais etc. Nos termos d a teoria d e Robin Horton (1993:379-ss.),
p or e x e m plo. H orto n dia g n ostic a o q u e c h a m o u d e “ p a ro q uialis m o d e
visão d e m u n do” (world-vie w parochialis m) como algo característico d es-
sas socie d a d es: contraria m e nte à exig ê ncia im plícita d e u niversalização
co n tid a n a s cos m olo gia s r a cio n aliz a d a s d a m o d e r nid a d e ocid e n t al, a s
cosmologias dos povos tra dicion ais p arece m m arca d as por u m espírito d e
gra n d e tolerâ ncia, m as q u e é n a verd a d e u m a in difere nça à concorrê ncia
d e visõ e s d e m u n d o discr e p a n t e s. O r ela tivis m o a p a r e n t e d os Piro n ã o
m a nifestaria, assim, su a larg u eza d e vistas, m as, m uito ao contrário, su a
miopia: eles pouco se im porta m como as coisas são alh ures 32 .
H á vários motivos p ara se recusar u m a leitura como essa d e Horton;
e ntre outros, o d e q u e o dito relativismo primitivo n ão é a p e n as intercul-
tural, m as intracultural e ‘a utocultural’, e q u e ele n ão exprim e n e m tole-
r â n cia, n e m in dife r e n ç a, m a s sim e xt e riorid a d e a b solu t a à id éia crip to-
t e oló gic a d e ‘c ult u r a’ co m o co nju n to d e cr e n ç a s (Too k e r 1992; Viv eiros
d e C astro 1993). O motivo princip al, e ntreta nto, está p erfeita m e nte prefi-
g ura do nos com e ntários d e Gow, a sa b er, q u e essa id éia do “ p aroq uialis-
mo” tra d uz o d e b ate d e Sa nta Clara nos termos d a posição d a professora,
com se u u niversalismo n atural e se u difere ncialismo (m ais ou m e nos tole-
r a n t e) c ult u r al. H á v á ria s visõ e s d e m u n d o, m a s h á u m só m u n d o — u m
m u n do on d e tod as as cria nças d eve m b e b er á g u a fervid a (se, é claro, se
e n co n tr a r e m e m u m a p a rt e d o m e s m o o n d e a dia rr éia infa n til s eja u m a
a m e aça).
Em lu g ar d essa leitura, propon ho u m a outra. A a n e dota dos corpos
dife r e n t e s co n vid a a u m e sforço d e d e t e r min a ç ã o d o m u n d o p ossív el
expresso no juízo d a m ulh er piro. Um m u n do possív el no q u al os corpos
h u m a n os s eja m dife r e n t e s e m Lim a e e m S a n t a Cla r a — n o q u al s eja
140 O N ATIVO RELATIVO

n ecessário q u e os corpos dos bra ncos e dos ín dios seja m difere ntes. Ora,
d etermin ar esse m u n do n ão é inve ntar u m m u n do im a gin ário, u m m u n do
d ot a d o, dig a m os, d e o u tr a físic a o u o u tr a biolo gia, o n d e o u niv e rso n ã o
seria isotrópico e os corpos se com portaria m se g u n do leis difere ntes e m
lu g a r e s distin tos. Isso s e ria (m á) ficç ã o cie n tífic a. O q u e s e tr a t a é d e
e ncontrar o proble m a re al q u e torn a possível o m u n do im plica do n a ré pli-
c a d a m ulh e r piro. O a r g u m e n to d e q u e “ n ossos cor p os s ã o dife r e n t e s ”
n ão exprim e u m a teoria biológica altern ativa, e, n aturalm e nte, e q uivoca-
d a, o u u m a biolo gia o bje tiv a im a gin a ria m e n t e n ã o-sta n d ard 33 . O q u e o
arg u m e nto piro m a nifesta é u m a id éia não-biológica d e corpo, id éia q u e
faz com q u e q u estões como a diarréia infa ntil n ão seja m trata d as e n q u a n-
to objetos d e u m a teoria biológica. O arg u m e nto afirm a q u e nossos ‘cor-
p os’ r e s p e ctivos s ã o dife r e n t e s, e n t e n d a -s e, q u e os co n c eitos piro e oci-
d e ntal d e corpo são diverg e ntes, n ão q u e nossas ‘biologias’ são diversas.
A a n e dota d a á g u a piro n ão reflete u m a outra visão d e u m m es m o corpo,
m as u m outro conc eito d e corpo, cuja disson â ncia su bja c e nte à su a ‘ho-
monímia’ com o nosso é, justa m e nte, o proble m a. Assim, por exe m plo, o
co n c eito piro d e cor p o p o d e n ã o e st a r, t al o n osso, n a alm a, isto é, n a
‘m e n t e’, so b o m o d o d e u m a r e p r e s e n t a ç ã o d e u m cor p o for a d ela; ele
p o d e e st a r, a o co n tr á rio, in scrito n o pró prio corp o co m o p e rs p e ctiv a
(Viveiros d e C astro 1996). N ão, e ntão, o conceito como re prese ntação d e
u m corpo extraconceitu al, m as o corpo como p ersp ectiva intern a do con-
ceito: o corpo como im plica do no conceito d e p ersp ectiva. E se, como dizia
Spinoza, n ão sa b e mos o q u e pod e u m corpo, q u a nto m e nos sa b ería mos o
q u e pod e esse corpo. Para n ão falar d e su a alm a.

Rece bido e m 15 d e ja n eiro d e 2002


Aprova do e m 18 d e fevereiro d e 2002

E d u a r d o Viv eiros d e C a stro é p rofe ssor d e e t n olo gia n o M u s e u N a cio n al/


UFRJ, e m e m b ro d a E q uip e d e Re c h e rc h e e n Et h n olo gie A m é rin die n n e
(Paris).
O N ATIVO RELATIVO 141

Notas

1 O fa to d e o disc u rso d o a n tro p ólo g o co n sistir c a n ô nic a e lit e r alm e n t e e m

u m texto te m m uitas im plicações, q u e n ão ca b e d ese nvolver a q ui. Elas fora m obje-


to d e ate nção exa ustiva por p arte d e corre ntes rece ntes d e reflexão a uto-a ntropo-
lógica. O m esmo se dig a do fato d e o discurso do n ativo n ão ser, g eralm e nte, u m
texto, e do fato d e ele ser fre q ü e nte m e nte trata do como se o fosse.

2 “ O con h ecim e nto n ão é u m a con exão e ntre u m a su bstâ ncia-sujeito e u m a


s u b st â n cia -o bje to, m a s u m a r ela ç ã o e n tr e d u a s r ela çõ e s, d a s q u ais u m a e st á n o
domínio do objeto, e a outra no domínio do sujeito; […] a relação e ntre d u as rela-
ções é ela própria u m a relação” (Simon don 1995:81, ê nfases re movid as). Tra d uzi
por ‘con exão’ a p alavra rap port, q u e Gilb ert Simon don distin g u e d e relation, ‘re-
la ç ã o’: “ p o d e m os c h a m a r d e r ela ç ã o a dis p osiç ã o d os ele m e n tos d e u m sist e m a
q u e e st á alé m d e u m a sim ple s vis a d a a r bitr á ria d o e s pírito, e r e s e rv a r o t e r m o
co n e x ã o p a r a u m a r ela ç ã o a r bitr á ria e fort uit a […] a r ela ç ã o s e ria u m a co n e x ã o
tão re al e im porta nte como os próprios termos; pod er-se-ia dizer, por conse g uinte,
q u e u m a v e r d a d eir a r ela ç ã o e n tr e d ois t e r m os e q uiv ale, d e fa to, a u m a co n e x ã o
e ntre três termos” (Simon don 1995:66).

3 Veja -s e M. Str a t h e r n (1987), p a r a u m a a n ális e d os p r e ss u p ostos r ela cio-

n ais d e ss e efeito d e co n h e cim e n to. A a u tor a a r g u m e n t a q u e a r ela ç ã o d o n a tivo


com se u discurso n ão é, e m princípio, a m esm a q u e a do a ntropólogo com o se u, e
q u e tal difere nça ao m esmo te m po con dicion a a relação e ntre os dois discursos e
im põe limites a tod a e m presa d e a uto-a ntropologia.

4 Somos todos n a tivos, m as nin g u é m é nativo o te m po todo. Como r e cord a

La m b e k (1998:113) e m u m com e ntário à noção d e habitus e con g ê n eres, “ as prá-


tic a s e n cor p or a d a s s ã o r e aliz a d a s p or a g e n t e s c a p a z e s t a m b é m d e p e n s a r co n -
te m plativa m e nte: n a d a do q u e ‘n ão é preciso dizer’ [goes without sayin g] p erm a-
n ece n ão-dito p ara se m pre ”. Pe nsar conte m plativa m e nte, su blin h e-se, n ão sig ni-
fica p e nsar como p e nsa m os a ntropólogos: as técnicas d e reflexão varia m crucial-
m e n t e. A a n tro p olo gia r e v e rs a d o n a tivo (o carg o c ult m ela n é sio, p or e x e m plo;
Wa g n er 1981:31-34) n ão é a a uto-a ntropologia do a ntropólogo (Strath ern 1987:30-
31): u m a a ntropologia sim étrica feita do interior d a tra dição q u e g erou a a ntropo-
logia n ão é sim étrica a u m a a ntropologia sim étrica feita fora d ela. A sim etria n ão
ca ncela a difere nça, pois a reciprocid a d e virtu al d e p ersp ectivas e m q u e se p e nsa
a q ui n ã o é n e n h u m a ‘fus ã o d e h orizo n t es’. Em su m a, somos to d os a n tro p ólo g os,
m as nin g u é m é antropólogo do m es m o jeito: “ está m uito b e m q u e Gid d e ns afirm e
q u e ‘todos os atores sociais […] são teóricos sociais’, m as a frase é vazia se as téc-
nicas d e teorização tê m pouca coisa e m com u m ” (Strath ern 1987:30-31).

5 Via d e re gra, su põe-se q u e o n ativo faz, se m sa b er o q u e faz, as d u as coi-

sas — a raciocin ação n atural e a racion alização cultural —, e m fases, re gistros ou


situ ações difere ntes d e su a vid a. As ilusões do n ativo são, acresce nte-se, tid as por
142 O N ATIVO RELATIVO

n ecessárias, no d u plo se ntido d e in evitáveis e úteis (são, dirão outros, evolucion a-


ria m e n t e a d a p t a tiv a s). É t al n e c e ssid a d e q u e d efin e o ‘n a tivo’, e o distin g u e d o
‘a ntropólogo’: este pod e errar, m as a q u ele precisa ilu dir-se.

6 A ‘im pla usibilid a d e’ é u m a acusação fre q ü e nte m e nte leva nta d a p elos pra-

tic a n t e s d o jo g o clá ssico co n tr a os q u e p r efe r e m o u tr a s r e g r a s. M a s e ss a n oç ã o


p erte nce às salas d e interrog atório policial: é lá q u e d eve mos tom ar o m áximo cui-
d a do p ara q u e nossas histórias seja m ‘pla usíveis’.

7É a ssim q u e in t e r p r e to a d e cla r a ç ã o d e Wa g n e r (1981:35): “ Est u d a m os a


cultura através d a cultura, e porta nto as op erações, seja m q u ais fore m, q u e carac-
teriza m nossa investig ação d eve m ser ta m b é m proprie d a d es g erais d a cultura.”

8 Ve r, so b r e isso, J ullie n (1989:312). O s p ro ble m a s r e ais d e o u tr a s c ult u r a s

são proble m as a p e n as possíveis p ara a nossa; o p a p el d a a ntropologia é o d e d ar


a essa possibilid a d e (lógica) o estatuto d e virtu alid a d e (ontológica), d etermin a n do
— ou seja, construin do — su a op eração late nte e m nossa própria cultura.

9 P u blic a d o e m a p ê n dic e à Lo giq u e d u S e n s (D ele u z e 1969 a:350-372; v e r


t a m b é m D ele u z e 1969 b:333-335, 360). Ele é r e to m a d o, e m t e r m os p r a tic a m e n t e
id ê n ticos, e m s e u q u a s e - últim o t e xto, Q u’e st-c e q u e la Philoso p hie? (D ele u z e e
G u attari 1991:21-24, 49).

10 “[O]utre m p ara mim introd uz o sig no do n ão-p erce bido n a q uilo q u e p er-

c e b o, d e t e r min a n d o- m e a a p r e e n d e r o q u e n ã o p e rc e b o co m o p e rc e p tív el p a r a
outre m ” (Dele uze 1969a:355).

11 Esse ‘ele’ q u e é O utre m n ão é u m a p essoa, u m a terceira p essoa diversa do

e u e do tu, à esp era d e su a vez no diálogo, m as ta m b é m n ão é u m a coisa, u m ‘isso’


d e q u e se fala. O utre m seria m ais b e m a “ q u arta p essoa do sin g ular” — situ a d a,
dig a mos assim, n a terceira m arg e m do rio —, a nterior ao jogo p ersp ectivo dos pro-
nom es p essoais (Dele uze 1995:79).

12 Q u e fa ria o q u e p e n s a p or q u e a bifu rc a ç ã o d e s u a n a t u r e z a, ain d a q u e


a d mitid a p or u m a q u e st ã o d e p rin cípio, distin g u e, n a p e sso a d o a n tro p ólo g o, o
‘a n tro p ólo g o’ d o ‘n a tivo’, e p ort a n to v ê -s e e x p uls a d e c a m p o a n t e s d o jo g o. A
e x p r e ss ã o “ bifu rc a ç ã o d a n a t u r e z a ” é d e W hit e h e a d (1964: c a p. II); ela p rot e st a
contra a divisão do re al e m q u alid a d es prim árias, in ere ntes ao objeto, e q u alid a-
d e s s e c u n d á ria s, a trib uíd a s a o o bje to p elo s ujeito. As p rim eir a s s ã o a m e t a p ró-
p ria d a ciê n cia, m a s a o m e s m o t e m p o s e ria m, e m últim a in st â n cia, in a c e ssív eis;
as se g u n d as são su bjetivas e, e m últim a instâ ncia, ilusórias. Isto prod uz d u as n atu-
rezas, “ d as q u ais u m a seria conjetura e a outra, son ho” (White h e a d 1964:30; ver a
citação e se u com e ntário e m Latour 1999:62-76, 315 n. 49 e n. 58). Tal bifurcação
é a m esm a prese nte n a oposição a ntropológica e ntre n atureza e cultura. E q u a n-
d o o o bje to é a o m e s m o t e m p o u m s ujeito, co m o n o c a so d o n a tivo, a bifu rc a ç ã o
d e sua n atureza tra nsform a-se n a distinção e ntre a conjetura do a ntropólogo e o
so n h o d o n a tivo: co g niç ã o vs. id e olo gia (Bloc h), t e oria p rim á ria vs. s e c u n d á ria
O N ATIVO RELATIVO 143

(Horton), mod elo inconscie nte vs. conscie nte (Lévi-Stra uss), re prese ntações pro-
posicion ais vs. se miproposicion ais (Sp erb er), e assim por dia nte.

13 Ve r M. Str a t h e r n (1999 b:172), so b r e os t e r m os d a r ela ç ã o p ossív el d e

co n h e cim e n to e n tr e, p or e x e m plo, os a n tro p ólo g os ocid e n t ais e os m ela n é sios:


“Isto n a d a te m a ver com com pre e nsão, ou com estruturas cog nitivas; n ão se trata
d e sa b er se e u posso e nte n d er u m m ela n ésio, se posso intera gir com ele, com por-
tar-m e a d e q u a d a m e nte etc. Estas coisas n ão são proble m áticas. O proble m a com e-
ça q u a n do com eça mos a prod uzir d escrições do m u n do”.

14A p o n d e r a ç ã o é d e Alfr e d G ell (1998:4); ela p o d e ria, é cla ro, a plic a r-s e
ig u alm e nte à ‘n atureza h u m a n a’.

15 Ess e a r g u m e n to é a p e n a s a p a r e n t e m e n t e s e m elh a n t e a o q u e S p e r b e r

(1982: c a p. 2) a v a n ç a co n tr a o r ela tivismo. Pois ess e a u tor n ã o cr ê q u e a div e rsi-


d a d e c ult u r al s eja u m p ro ble m a p olítico- e pist e m oló gico irre d u tív el. P a r a ele, a s
culturas são exe m plares contin g e ntes d e u m a m esm a n atureza h u m a n a su bsta nti-
va. O m áximo d e Sp erb er é u m d e nomin a dor com u m, ja m ais u m m últiplo — ver a
crítica d e In gold (2000:164) a Sp erb er, feita d e outro ponto d e vista, m as com p atí-
vel com o a q ui a dota do.

16 Sobre estas d u as id éias d e limite, u m a d e orig e m platônica e e uclidia n a, a

o u tr a d e orig e m a r q uim e dia n a e e stóic a (q u e r e a p a r e c e n o c álc ulo infinit e sim al


do século XVII), ver Dele uze (1981).

Ver, no m esmo se ntido, a d e nsa arg u m e ntação fe nom e nológica d e Mimica


17

(1991:34-38).

18 Veyn e p arafraseia in a dvertid a m e nte Eva ns-Pritch ard, ao escrever, sobre

e ss a co n diç ã o (u niv e rs al) d e p risio n eiro d e u m b oc al histórico (p a rtic ula r), q u e


“ q u a n d o n ã o s e v ê o q u e n ã o s e v ê, n ã o s e v ê s e q u e r q u e n ã o s e v ê ” (Ve y n e
1983:127, ê nfases min h as, p ara m aior clareza).

19Esto u a q ui, o b via m e n t e, in t e r p r e t a n d o o e n s aio d e Ve y n e co m u m t a n to


d e m á vonta d e. Ele é b e m m ais rico (porq u e m ais a m bíg uo) do q u e isso, extrava-
sa n do o bocal d a infeliz im a g e m do ‘bocal’.

20 Essa leitura d a noção d e G e dan k e n e x p erim e nt é a plica d a por T. M arch ais-

se à obra d e F. J ullie n sobre o p e nsa m e nto chin ês (J ullie n e M arch aisse 2000:71).
Ver ta m b é m J ullie n (1989:311-312), sobre as ‘ficções’ com p arativas.

21 Respon d e n do aos críticos d e su a a n álise d a socialid a d e m ela n ésia, q u e a


a c u s a m d e n e g a r a e xist ê n cia d e u m a ‘n a t u r e z a h u m a n a’ in clu siv a d os p ovos
d a q u ela re gião, M arilyn Strath ern (1999b:172) esclarece u: “[A] difere nça q u e exis-
te está no fato d e q u e os modos p elos q u ais os m ela n ésios d escreve m, d ão conta
d a n a t u r e z a h u m a n a, s ã o r a dic alm e n t e dife r e n t e s d os n ossos — e o p o n to é q u e
só te mos acesso a d escrições e explicações, só pod e mos tra b alh ar com isso. N ão h á
144 O N ATIVO RELATIVO

m eio d e elu dir essa difere nça. Então, n ão se pod e dizer: m uito b e m, a gora e nte n di,
é só u m a q u estão d e d escrições difere ntes, e ntão p asse mos aos pontos e m com u m
e n tr e n ós e ele s… p ois a p a rtir d o m o m e n to e m q u e e n tr a m os e m co m u nic a ç ã o,
n ós o fa z e m os a tr a v é s d e ss a s a u to d e scriçõ e s. É e ss e n cial d a r-s e co n t a disso ”. O
ponto, com efeito, é esse ncial. Ver ta m b é m o q u e diz F. J ullie n, sobre a difere nça
e ntre se afirm ar a existê ncia d e difere ntes “ modos d e orie ntação no p e nsa m e nto”
e se afirm ar a op eração d e “outras lógicas” (J ullie n e M arch aisse 2000:205-207).

So b r e a ‘a ssin a t u r a’ d a s id éia s filosófic a s e cie n tífic a s e o ‘b a tis m o’ d os


22

conceitos, ver Dele uze e G u attari (1991:13, 28-29).

23 A cit a ç ã o, e o p a r á g r afo q u e a p r e c e d e, for a m c a nib aliz a d os d e Viv eiros

d e C astro (1999:153).

24 Sobre a ‘n ão-filosofia’ — o pla no d e im a n ê ncia ou a vid a —, ver Dele uze e

G u attari (1991:43-44, 89, 105, 205-206), b e m como o brilh a nte com e ntário d e Pra-
do Jr. (1998).

25A expressão “ a p are nte m e nte irracion al” é u m clich ê secular d a a ntropolo-
gia, d e An dre w La n g e m 1883 (cf. Detie n n e 1981:28) a Da n Sp erb er e m 1982.

26 Como professa m as q u e pod ería mos ch a m ar “ a ntropologias do bom se n-

so”, no d u plo se ntido do g e nitivo, como a d e O b eyese k ere (1992) contra Sa hlins e
a d e LiPu m a (1998) contra Strath ern.

27 As o b s e rv a çõ e s d e Witt g e n st ein so b r e o G old e n Bo u g h p e r m a n e c e m, a


esse título, com pleta m e nte p ertin e ntes. Entre outras: “Um sím bolo religioso n ão
se fu n d a sobre n e n h u m a opinião. E é som e nte e m relação à opinião q u e se pod e
falar e m erro”; “ Creio q u e o q u e caracteriza o hom e m primitivo é q u e ele n ão a g e
a p a rtir d e o piniõ e s (a o co n tr á rio, Fr a z e r)”; “ O a b s u r d o co n sist e a q ui n o fa to d e
q u e Frazer a prese nta tais id éias [sobre os ritos d a ch uva etc.] como se esses povos
tiv esse m u m a r e pr ese nta ç ão com ple ta m e nte falsa (e m esmo inse nsa ta) do curso
d a n atureza, q u a n do eles possu e m a p e n as u m a interpretação estra n h a dos fe nô-
m e nos. Isto é, se eles p usesse m por escrito se u con h ecim e nto d a n atureza, ele n ão
s e distin g uiria f u n d a m e n tal m e n t e d o n osso. A p e n a s s u a m a gia é o u tr a ” (Witt-
g e nstein 1982:15, 24, 27). Su a m a gia, ou, pod ería mos dizer, se us conceitos.

28 A exteriorização d essa con dição esp ecial e artificial, isto é, su a g e n eraliza-

ção e n aturalização, g era o e q uívoco clássico d a a ntropologia: a eternid a d e form al


d o p ossív el é fa n t a s m a d a so b o m o d o d e u m a n ã o-co n t e m p or a n eid a d e históric a
e n tr e o a n tro p ólo g o e o n a tivo — t e m -s e e n t ã o a p rimitiviz a ç ã o d e O u tr e m, s e u
con g ela m e nto como objeto (do) p assa do a bsoluto.

29 Ale xia d e s cit a s e u in t e rloc u tor e m e s p a n h ol — “ To d os los a nim ale s so n

Ese Eja ”. Note-se já a q ui u m a torção: ‘todos’ os a nim ais (o etnógrafo mostra q u e


h á n u m e ros a s e xc e çõ e s) n ã o s ã o ‘h u m a n os’, e sim ‘Es e Eja’, e t n ô nim o q u e p o d e
ser tra d uzido como ‘p essoas h u m a n as’, e m oposição a ‘espíritos’ e a ‘estra n g eiros’.
O N ATIVO RELATIVO 145

30 N ã o e sto u a q ui m e r efe rin d o a o p ro ble m a d a a q uisiç ã o o n to g e n é tic a d e


‘conceitos’ ou ‘cate gorias’, no se ntido q u e a psicologia cog nitiva d á a estas p ala-
vras. A sim ulta n eid a d e d as id éias d e p ecari, h u m a no e d e su a id e ntid a d e (con di-
cio n al e co n t e xt u al) é, d o p o n to d e vist a e m pírico, u m a c a r a ct e rístic a d o p e n s a -
m e n to d os a d ultos d e ss a c ult u r a. Ain d a q u e s e a d mitiss e q u e a s cria n ç a s co m e -
ç a m p or a d q uirir o u m a nife st a r os ‘co n c eitos’ d e p e c a ri e d e h u m a n o a n t e s d e
s e r e m e n sin a d a s q u e “ os p e c a ris s ã o h u m a n os ”, r e st a q u e os a d ultos, q u a n d o
a g e m ou arg u m e nta m com b ase n esta id éia, n ão re e nce n a m e m su as ca b eças tal
s u p ost a s e q ü ê n cia cro n oló gic a, p rim eiro p e n s a n d o n os h u m a n os e n os p e c a ris,
d e pois e m su a associação. Alé m disso e sobretu do, tal sim ulta n eid a d e n ão é e m pí-
rica, m as tra nsce n d e ntal: ela sig nifica q u e a h u m a nid a d e dos p ecaris é u m com-
pon e nte a priori d a id éia d e p ecari (e d a id éia d e h u m a no).

31 “ As n oçõ e s d e im p ort â n cia, d e n e c e ssid a d e, d e in t e r e ss e s ã o mil v e z e s

m ais d etermin a ntes q u e a noção d e verd a d e. N ão, d e form a alg u m a, porq u e elas
a s u b stit u a m , m as p orq u e m e d e m a v erd a d e d o q u e dig o ” (D ele u z e 1990:177,
ê nfases min h as).

32 E co m efeito, a r é plic a d a m ulh e r piro é id ê n tic a a u m a o b s e rv a ç ã o d os


Za n d e, consig n a d a no livro q u e é a bíblia dos a ntropólogos d a p ersu asão d e Hor-
to n: “ U m a v e z, o u vi u m z a n d e diz e r d e n ós: ‘Talv e z lá n o p aís d ele s a s p e sso a s
n ão seja m assassin a d as por bruxos, m as a q ui elas são” (Eva ns-Pritch ard 1978:274).
Agra d eço a In grid We b er a le m bra nça.

33 Como a dvertia G ell (1998:101) e m u m contexto se m elh a nte, a m a gia n ão


é u m a físic a e q uivoc a d a, m a s u m a ‘m e t a -físic a’: “ O e n g a n o d e Fr a z e r foi, p or
assim dizer, o d e im a gin ar q u e os pratica ntes d a m a gia disp u n h a m d e u m a teoria
física n ão-stan dard, q u a n do, n a verd a d e, ‘m a gia’ é a q uilo q u e se te m q u a n do se
disp e nsa u m a teoria física e m vista d e su a re d u n d â ncia, e q u a n do se b usca a poio
n a id éia, e m si m esm a p erfeita m e nte praticável, d e q u e a explicação d e q u alq u er
eve nto d a do […] é q u e ele é ca usa do inte ncion alm e nte ”.
146 O N ATIVO RELATIVO

Referências bibliográficas

ALEXIADES , Mig u el. 1999. Eth nobota ny D w ellin g a n d S kill. Lo n d o n: Ro u t-


of t h e Es e Eja: Pla n ts, H e alt h, a n d le d g e.
C h a n g e in a n A m a zo nia n Socie ty. JULLIEN , François. 1989. Procès ou Créa-
Tese d e Doutora do, City University tio n: U n e I n tro d u ctio n à la Pe n s é e
of N e w York. Chinoise. Paris: Se uil.
CLASTRES , Pierre. 1974 [1962]. “Éch a n- ___ e MARC HAISSE , Thierry. 2000. Pe n-
g e e t Po u voir: P hiloso p hie d e la ser d’u n De hors (la Chin e). Entreti-
C h efferie In die n n e ”. In: La Société ens d’Extrê m e Occid e nt. Paris: Se uil.
contre l’État: Rech erch es d’A nthro- LA MBEK , Mic h a el. 1998. “Bo d y a n d
pologie Politiq u e. Paris: Min uit. p p. Min d in Min d, Bo d y a n d Min d in
25-42. Body: Som e Anthropological Inter-
DELEUZE , Gille s. 1969 a. Lo giq u e d u v e n tio n s in a Lo n g C o n v e rs a tio n ”.
S e ns. Paris: Min uit. In: A. Strath ern e M. Lamb e k (orgs.),
___ . 1969 b. Diff ére n c e e t R é p é titio n. Bo die s a n d Perso n s: Co m p arativ e
Paris: PUF. Persp ectiv es fro m A frica an d M ela-
___ . 1981. A ula so b r e S pin oz a, 17 d e n esia. C a m brid g e: C a m brid g e Uni-
fevereiro. versity Press. p p. 103-122.
___ . 1990. Pourparlers. Paris: Min uit. LATOUR, Bru no. 1991. N ous n’Avons Ja-
___ . 1995 [1979]. Dialo g u e s. P a ris: m ais Ét é M o d ern e s. P a ris: D é co u -
Fla m m arion. verte.
___ e GUATTARI, Félix. 1991. Q u’est-ce ___ . 1996a. “Not the Question”. A nthro-
q u e la Philosop hie? Paris: Min uit. polog y N e wsletter, 37(3):1-5.
DETIE N N E , M a rc el. 1981. L’I n v e n tio n ___ . 1996b. Petite Reflé xion sur le Cul-
d e la M ythologie. Paris: G allim ard. te M od ern e d es Die u x Faîtich es. Le
EVANS-PRITCHARD, Edward. 1978 [1937]. Ple ssis /Ro bin so n: In stit u t Sy n t h é -
Bru xaria, Oráculos e M agia e ntre os la bo.
A z a n d e (e diç ã o r e s u mid a p or Ev a ___ . 1999. Politiq u e s d e la N at ure:
Gillies). Rio d e J a n eiro: Za h ar Edi- Co m m e nt Faire e ntrer les Scie nces
tores (tra d. E. Viveiros d e C astro). e n Dé m ocratie. Paris: Découverte.
GELL, Alfre d. 1998. Art an d A g e ncy: A n LÉVI-STRAUSS , Cla u d e. 1962. La Pe nsé e
A n t hro p olo gical T h e ory. O xfor d: Sau vag e. Paris: Plon.
Clare n don. ___ . 1971. L’Ho m m e N u. Paris: Plon.
___ . 1999. The Art of A nthropology: Es- LIPUMA , Ed w ard. 1998. “ Mod ernity a n d
says and Diagrams. London: Athlone. Forms of Person hood in M ela n esia ”.
H ORT O N , Ro bin. 1993. Patt ern s of In: A. Strath ern e M. Lamb e k (orgs.),
Thou g ht in A frica an d th e W est: Es- Bo die s a n d Perso n s: Co m p arativ e
sa y s o n M a gic, R eligio n a n d S ci- Persp ectiv es fro m A frica an d M ela-
e nce. C a m brid g e: C a m brid g e Uni- n esia. C a m brid g e: C a m brid g e Uni-
versity Press. versity Press. p p. 53-79.
IN G OLD , Tim. 1992. “ E ditorial”. M a n, MIMICA , J a dra n. 1991. “Th e Incest Pas-
27(1):694-697. sio n s: A n O u tlin e of t h e Lo gic of
___ . 2000. T h e Perc e p tio n of t h e En- Iq w a y e Social O r g a niz a tio n (p a rt
viro n m e n t. Essa y s o n Liv elih oo d, 1)”. Oceania, 62(1):34-58.
O N ATIVO RELATIVO 147

M O ORE , H e n rie tt a. 1999. “ A n t h ro p o- TO OKER, De bora h. 1992. “Id e ntity Sys-


lo gic al T h e ory a t t h e Tu r n of t h e t e m s of Hig hla n d Bu r m a: ‘Belief’,
C e n t u ry ”. In: H. M oor e (or g.), A n- Ak h a zan, a n d a Critiq u e of Interi-
t hro p olo gical T h e ory To d a y. Lo n - oriz e d N otio n s of Et h n o-Religio u s
don: Polity Press. p p. 1-23. Id e ntity”. M an, 27(4):799-819.
OBEYESEKERE , G a n a n a t h. 1992. T h e VERN A N T , J e a n -Pie rr e. 1996 [1966].
A p ot h e osis of Ca p tain Coo k: Euro- “Raisons d’Hier et d’Aujourd h’ui”.
p e a n M y t h m a kin g in t h e Pacific. In: Entre M yth e et Politiq u e. Pa ris:
Princeton: Princeton University Press. Se uil. p p. 229-236.
PRAD O JR., Be n to. 1998. “ S u r le ‘Pla n VEYNE , Pa ul. 1983. Les Grecs O ut-Ils
d’Im m a n e nce’”. In: E. Alliez (org.), Cru à Le urs M yth es? Paris: Se uil.
Gilles Dele u z e: Un e Vie Philosop hi- VIVEIRO S DE C ASTRO , E d u a r d o. 1993.
q u e. Le Ple ssis /Ro bin so n: In stit u t “Le M arbre et le Myrte: De l’Incons-
Synth éla bo. p p. 305-324. t a n c e d e l’Â m e S a u v a g e ”. In: A.
SC H OLTE , Bob. 1984. “Re ason a n d C ul- Becq u elin e A. Molinié (orgs.), M é-
ture: Th e Universal a n d th e Particu- m oire d e la Tradition. N a nterre: So-
lar Revisite d ”. A m erican A nthropol- ciété d’Eth nologie. p p. 365-431.
ogist, 86(4):960-965. ___ . 1996. “ O s Pro n o m e s C os m oló gi-
SC HREMPP , Gre gory. 1992. M agical Ar- cos e o Persp ectivismo Am erín dio”.
rows: The Maori, the Greeks, and th e M ana, 2(2):115-144.
Folklore of th e Univ erse. M a dison: ___ . 1999. “Etnologia Brasileira ”. In: S.
University of Wisconsin Press. Miceli (org.), O q u e Ler na Ciê ncia
SIM O NDO N , Gilb ert. 1995 [1964]. L’In- Social Brasileira (1970–1995) – Volu-
divid u et sa G e n èse Ph ysico-Biolo- m e I: A ntropologia. São Pa ulo: Ed.
giq u e. Paris: Millon. Su m aré / ANPO CS . p p. 109-223.
SPERBER, Da n. 1974. Le S y m bolis m e e n WA G N ER , Roy. 1981. T h e I n v e n tio n of
G é n éral. Paris: H erm a n n. Culture (2ª e d.). C hica go: University
___ . 1982. L e S a v oir d e s A n t hro p olo- of C hica go Press.
g u es. Paris: H erm a n n. ___ . 1986. S y m b ols t h a n S ta n d for
STRATHERN , M arilyn. 1987. “Th e Lim- Th e m selv es. C hica go: University of
its of A u to-A n t h ro p olo g y ”. In: A. C hica go Press.
J a c k so n (or g.), A n t hro p olo g y at W HITE H EAD , Alfr e d N. 1964 [1920].
Home. London: Tavistock. pp. 16-37. Co n c e p t of N at ure. C a m b rid g e:
___ . 1988. Th e G e n d er of th e Gift: Pro- C a m brid g e University Press.
ble m s wit h Wo m e n a n d Pro ble m s WHITEHOUSE, Harvey. 2000. Argu m e nts
wit h S ocie t y in M ela n e sia. Be r k e - an d Icons: Div erg e nt M od es of Reli-
ley: University of C alifornia Press. giosit y. O xfor d: O xfor d U niv e rsity
___ . 1999 a. Pro p ert y, S u b sta n c e a n d Press.
Effect: A nthropological Essays on Per- WITT G E N STEIN , Lu d wig. 1982 [1930-
sons an d Thin gs. Lon don: Athlon e. 48]. Re m arq u es sur le Ra m eau d’Or
___ . 1999 b. “ N o Limit e d e u m a C e rt a d e Fra z er. P a ris: L’A g e d’H o m m e
Lin g u a g e m: Entrevista com M arilyn (tra d. J. Bouveresse).
Strath ern ”. M ana, 5(2):157-175.
148 O N ATIVO RELATIVO

Resumo Abstract

Este artigo te nta extrair as im plicações This article atte m pts to extract th e th e-
t e óric a s d o fa to d e q u e a a n tro p olo gia or e tic al im plic a tio n s a risin g fro m t h e
n ão a p e n as estu d a relações, m as q u e o fact th at a nthropology not only stu dies
co n h e cim e n to a ssim p ro d u zid o é ele relations, b ut th at th e k nowle d g e it pro-
próprio u m a relação. Propõe-se, assim, d uces in th e process is itself a relation.
u m a im a g e m d a ativid a d e a ntropológi- It t h e r efor e p ro p os e s a n im a g e of a n -
ca como fu n d a d a no pressu posto d e q u e t h ro p olo g y a s a n a ctivity fo u n d e d o n
os proce dim e ntos característicos d a dis- t h e p r e mis e t h a t t h e p roc e d u r e s c h a r-
ciplin a são conceitu alm e nte d e m esm a acteristic of th e disciplin e are conce p-
ord e m q u e os proce dim e ntos investig a- tu ally of th e sa m e ord er as those it in-
dos. Entre tais im plicações, está a recu- vestig ates. Amon g th ese im plications is
sa d a noção corre nte d e q u e ca d a cultu- t h e r eje ctio n of t h e co n t e m p or a ry n o-
r a o u socie d a d e e n c a r n a u m a solu ç ã o tio n t h a t e a c h c ult u r e or socie ty e m -
e s p e cífic a d e u m p ro ble m a g e n é rico, b o die s a s p e cific solu tio n to a g e n e ric
p r e e n c h e n d o u m a for m a u niv e rs al (o p ro ble m, fillin g a u niv e rs al for m (t h e
co n c eito a n tro p oló gico) co m u m co n - a nthropological conce pt) with a p artic-
t e ú d o p a rtic ula r (a s co n c e p çõ e s n a ti- ula r co n t e n t (t h e n a tiv e co n c e p tio n s).
vas). Ao contrário, a im a g e m a q ui pro- M uch th e op posite: th e im a g e propose d
posta sugere que os problemas eles m es- h ere su g g ests th at th e proble ms th e m-
mos são ra dicalm e nte diversos, e q u e o s elv e s a r e r a dic ally h e t e ro g e nic, a n d
a ntropólogo n ão sa b e d e a nte m ão q u ais t h a t t h e a n t h ro p olo gist c a n n ot k n o w
são eles. b efore h a n d w h at th ese will b e.
Palavras-chave Con h ecim e nto Antropo- Key words Anthropological Knowle d g e,
lógico, Im a gin ação Conceitu al, C ultura, Conce ptu al Im a gin ation, C ulture, Rela-
Relação, Persp ectivismo tion; Persp ectivism

Você também pode gostar