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a natureza, com implicações significativas para as prio modo de existir, pois as espécies vivas, como

sociedades ocidentais e para o sistema de conheci- plantas e animais, se revestem de características da


mento científico moderno. vida social e simbólica, e são considerados, neste
Evidencia-se, assim, no interior desses povos contexto, indistintamente como sujeitos e objetos.
– mesmo que diferenciados entre si – um amplo e Assim, diferentemente da racionalidade ins-
vasto conhecimento sobre as dinâmicas naturais em trumental regida pelo Ocidente, tais povos não
que se inscrevem, especialmente na forma como encerram a natureza numa esfera à parte comanda-
sujeitos sociais históricos concebem, representam e da pela tecnociência, considerando-a meramente
interagem com a natureza em múltiplas dimensões. como objeto, matéria-prima inerte, a ser explorada
Mesmo que invisibilizados na dinâmica da extensiva e intensivamente, sem limites, tal como
história, ou não reconhecidos em sua significação a lógica moderna empreende, historicamente, a
própria, tais saberes se expressam de modo específi- busca incessante de domínio do mundo natural – na
co na cultura dos povos da terra, dos povos do mar, economização do mundo.
dos povos dos rios, dos povos da floresta (indígenas, A importância desse rico sistema cognitivo
seringueiros, pescadores artesanais, quilombolas, em respeito à vida se manifesta tanto no interior da
pequenos agricultores, ribeirinhos, faxinalenses), própria dinâmica socioambiental singular de cada
que interagem secular e milenarmente com o mundo um desses povos, em sua ancestralidade, quanto
natural, produzindo e acumulando vasto conheci- na busca de sua permanência e revigoramento na
mento e práticas, muitas vezes desconhecidos ou história, mesmo em momentos posteriores ao con-
desconsiderados pela própria ciência ocidental. tato com o ocidente ou com a chamada “civilização
Sabe-se, mediante vários registros etnológicos, moderna”; entende-se, assim, que tais expressões de
derivados de múltiplas pesquisas empreendidas ao saber recriados e atualizados em contextos específi-
longo do tempo, de convivência direta com esses cos, em termos concretos e imaginários, constituem
povos, e de expressão de suas próprias e múltiplas verdadeiro patrimônio para os desafios do mundo
vozes identitárias, que a relevância desses saberes contemporâneo.
é indissociável dos modos de vida plurais, tanto Muitos dos procedimentos da tecnociência
em sua materialidade como em suas representações moderna consideram esses saberes meramente
simbólicas. como derivação da experiência sem admitir-se, to-
Integra esse modo de saber patrimonial um davia, que tais povos elaboram, formulam, selecio-
conjunto de ideias, valores, crenças, visões de nam, em suas estruturas mentais e imaginárias – em
mundo, práticas, (re)-vivências, ricas cosmogonias suas próprias cosmovisões – hipóteses decorrentes
e matrizes de pensamento, dotado de racionalidade de rigorosas observações e ações sobre a natureza
própria, em que não se pronuncia a cisão cultura em seus processos histórico-culturais de vida.
e natureza, tão característica da lógica moderna. Se por um lado a colonialidade do Poder e do
Para os povos indígenas ‘natureza’ e ‘cultura’ não Outro tem destruído e desarticulado muitas dessas
se cindem, não consistem em esferas separadas e culturas milenares e seculares, por outro tem ense-
ao se conjugarem, se interpenetram em seu pró- jado movimentos de resistência ou de (re)existência

2 Editorial
protagonizados por esses povos. Disto resulta uma contribuindo de modo fecundo para a abertura e
forte capacidade de resiliência que associa formas aprofundamento da reflexão.
de saber e a coexistência de distintas temporalida- Na grande aventura do caminho das ciências e
des, saberes e práticas materiais e imateriais. As dos saberes, de seus atalhos e de suas rupturas são,
lições podem ser inúmeras, se os seres humanos pois, apresentados nessa seção especial – em termos
conseguirem extrair suas consequências para a epistemológicos, científicos e filosóficos – novos e
garantia e reprodução da vida. grandes desafios para o conhecimento. Tais artigos
Essas lições podem atuar para revitalizar es- abordam a trajetória e os limites do conhecimento
ses povos na história, além de um contributo para científico e a necessidade de ir além dele, dentro de
a emergência de novos paradigmas de conheci- uma nova racionalidade ambiental, o que implica
mento que conjuguem, a um só tempo, sociedade considerar outros modos de existência, ao focali-
e natureza em bases sustentáveis. Dessa maneira, zarem os saberes e as experiências em contextos
o pensamento socioambiental contemporâneo tem específicos, pautadas na busca de diálogo.
um grande desafio cognitivo, imaginativo e político Assim, a valorização ou recriação de saberes
diante do resgate e sobrevivência dos saberes patri- ambientais inscritos nesses saberes culturais impli-
moniais e da biossociodiversidade planetária. Para ca, necessariamente, no revigoramento histórico e
tanto, exige-se uma ética do respeito e da simetria ontológico de modos de (re)existência e na deco-
entre sujeitos sociais que portam distintas formas lonialidade epistêmica desses sujeitos históricos.
de coexistência entre mundo social e natural. Isso coloca como desafio, conjuntamente ao diálogo
Pautada em tais delineamentos, é que a pre- de saberes, a produção de alertas cruciais para a
sente edição foi concebida: visa tecer a abertura de sobrevivência de sujeitos socioambientais em nova
diálogo de saberes, com a perspectiva de valorizar, conexão com o mundo natural e social, para ensejar
visibilizar, ressignificar e restaurar saberes ambien- outras possibilidades para o bem viver.
tais patrimoniais – de povos circunscritos às mar-
gens da história; e, por outro lado, visa à produção Lucia Helena de Oliveira Cunha
de conhecimentos norteados por outros olhares, Dimas Floriani
por novos paradigmas científicos e filosóficos (e Organizadores
por aqueles classicamente revisitados), na produção
de encontros interculturais para gestar-se, em novas
sínteses, novas possibilidades de interações entre
sociedade e natureza.
Nesta direção, os artigos contemplados por
essa edição abordam, a partir de distintos olhares,
campos do conhecimento e aportes teóricos e em-
píricos, a relevância de estabelecimento da dialogia
entre saberes distintos, entre matrizes culturais e
lógicas de pensamento e modos de sentir diversos,

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 50, Diálogos de Saberes Socioambientais: desafios para epistemologias do Sul, p. 1-3, abril 2019. 3

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