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Universidade de Brasília (UnB)

Departamento de Filosofia
Introdução a Prática da Filosofia
Professor: Fabio Nolasco
Aluno: Artur Souza Della Nina - 190127392

The Outer Worlds e Perspectivas do Outro

The Outer Worlds é um jogo de 2019 que se passa no futuro de uma


realidade alternativa na qual o presidente dos Estado Unidos William McKinley
não foi assassinado, logo Theodore Roosevelt nunca virou presidente e por
consequência suas políticas anti-monopolistas jamais foram implementadas.
Nesse futuro então temos dez grandes monopólios de empresas que se
unificaram para comprar o sistema solar de Halcyon e viraram o conglomerado
“Halcyon Holdings Corporate Board” (o Conselho, ou governo, de aqui em
diante). O Conselho expandiu as suas operações além da terra, eventualmente
expandindo seu poder a ponto de se colocar também como o governo.
No sistema solar de Halcyon temos Monarch, previamente Terra 1, uma
lua que foi terra-formada para ter um habitat semelhante a terra, mas que falhou
espetacularmente e a fauna se tornou muito mais perigosa. Com isso, o
Conselho decidiu abandonar o planeta e focar seus esforços em Terra 2. Uma
das companhias, Monarch Stellar Industries, situada em Stellar Bay, decidiu
comprar o planeta em vez de abandoná-lo, e instituir leis trabalhistas melhores.
Como retaliação o governo botou um embargo por tempo indeterminado neles,

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fazendo com que todas suas operações fossem consideradas ilegais. Uma outra
cidade, Amber Heights, onde os trabalhadores da Monarch moravam, foi
massacrada logo após as companhias saírem do planeta. Depois de um tempo,
ela foi ocupada pelos Iconoclastas, um grupo de adeptos à religião Filosofista,
contraposta à Ordem de Inquéritos Científicos (OIS ou Cientificismo), que é
oficialmente adotada pelo Conselho como a religião oficial.
Em Terra 2 temos a sede do Conselho e da OIS, que fica em Byzantium,
uma cidade moderna, bonita, e voltada praticamente apenas ao lazer por via do
consumo. É habitada quase que exclusivamente por burgueses, e é
completamente fechada para qualquer um que não tenha uma chave para
entrar. Também em Terra 2 se encontra Edgewater, uma cidade corporativa que
enlata carne de peixe produzida num laboratório, mas que depois se descobre
que nos últimos tempos tem passado a enlatar ratos já que boa parte de sua
força trabalhadora os abandonou. Em Edgewater se vê a real distopia
corporativa do Conselho. A região da cidade é sujeita a pestes, e somente os
trabalhadores “merecedores” recebem medicina. Os outros são confinados a
uma estrutura pequena e cheia onde esperam morrer.
Me proponho então a analisar algumas destas relações, começando pela
OIS e os Filosofistas. Estas duas ‘religiões’ no jogo são diametralmente opostas
em suas crenças. Digo ‘religiões’ em aspas pois se concretizam mais como
duas ideologias opostas. Ambas focam principalmente em modos de viver e não
em deidades ou veneração, mas ambas tentam entender o mundo. Acho
interessante a nomenclatura escolhida para estas religiões, como refletem os
tempos atuais. O Conselho se alia ao Cientificismo, e os dissidentes tendem ao
Filosofismo. Hoje em dia se pode ver também uma dualidade entre as ciências
naturais e as ciências humanas expressa de forma comparável; às naturais
tendem à direita, ao capitalismo, já as naturais tendem a se aliar com a
esquerda e a classe trabalhadora. Em fundir estas tendências em duas teorias
do todo, vemos uma reflexão dos autores, e talvez da própria sociedade, sobre
o rumo que o pensamento da sociedade leva. A dicotomia esquerda-direita
começa a penetrar em todas as esferas da sociedade, e cada esfera tende a um

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ou a outro. Há um medo presente no que pode acontecer se houver uma ruptura
sólida entre estes. Isso é evidenciado também pelo fato de que essas religiões
no jogo não são apenas uma dicotomia exatas vs. humanas, mas sim cada um
engloba várias áreas do pensamento. Os Cientificistas são uma mistura entre
catolicismo, capitalismo (em suas piores horas, fascismo), e as ciências
naturais; os Filosofistas entre anarquismo, marxismo, as ciências naturais, e é
mais associável a religiões orientais como o Taoísmo. O ocidente vs o oriente, o
capitalismo vs comunismo, exatas vs humanas; todos estes conceitos são,
respectivamente, juntados em duas esferas diametralmente opostas, uma a
negação da outra, incapazes de enxergarem-se concomitantemente, cada uma
o Outro total.
Stellar Bay e o Conselho, por outro lado, tem uma relação um tanto
diferente. O Conselho nega Stellar Bay absolutamente, além do embargo,
apagam Stellar Bay do mapa e negam sua existência para a maioria da
população. Já Stellar Bay não nega o Conselho, pelo contrário, querem voltar a
ser parte do Conselho para poder expandir suas operações e voltar a operar na
legalidade. Na verdade, Stellar Bay ainda se vê como parte do Conselho, uma
parte de um todo que foi temporariamente negado, mas que logo voltará a ser
aceito. Eles se aliam ao Conselho, mas o Conselho considera suas reformas
trabalhistas um afronto, e os vê como vê os Filosofistas, em total oposição às
suas crenças. O Um que era o Conselho rompeu com parte de si mesmo e
passou a entendê-lo como o Outro, enquanto Stellar Bay jamais deixou de se
entender como parte do Um. Stellar Bay, portanto, se encontra subserviente aos
caprichos do Conselho, visto que é este o que domina completamente a
determinação da relação entre os dois. Se o Conselho nega Stellar Bay, Stellar
Bay tem que, por sua própria visão, tomar então um posicionamento ilógico
sobre sua relação ao Um, como sendo ao mesmo tempo parte de e excluído por
este, enquanto o Conselho pode se entender e entender Stellar Bay como
separados, que condiz com a realidade material.
Para finalizar, temos a dicotomia entre Byzantium e Edgewater, a cidade
burguesa e a cidade proletária. Edgewater é completamente subserviente a

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Byzantium, e se encontra em uma relação de exploração extrema para suprir
riquezas a Byzantium. Os moradores de Byzantium não carecem de nada;
comida, dinheiro, medicina, moradia, lazer; tudo eles têm ao seu alcance. Os
moradores de Edgewater no entanto carecem de tudo exceto trabalho. Para
eles, nem trabalhar as 12 horas obrigatórias é o suficiente para se manter vivos;
se não vão muito além do mínimo há chances de não serem considerados
dignos de medicina, um enterro, e o pior de tudo nos olhos de um cidadão de
Edgewater, um emprego. O cidadão de Edgewater se concebe como Um por ter
um emprego, e concebe o Outro como o desempregado, os bárbaros que
sequer fazem parte de sua sociedade e lhes é frequentemente negada sua
existência, apesar de todos entenderem que é uma possibilidade. Já Byzantium
vê Edgewater como o Outro, mas um Outro que lhe é subserviente, e não
diametralmente oposto. Byzantium impõe, então, em Edgewater uma cultura
meritocrática extrema que faz com que Edgewater se associe a Byzantium em
seu imaginário, no sentido que se veem e ve os de Byzantium como
merecedores, e aqueles que não trabalham como os não-merecedores. Ou seja,
o Um ao querer usufruir do Outro tenta mudar a concepção deste Outro para
deixá-lo dissituado em sua concepção do Um.
Estas propostas das relações entre o Um e o Outro da maneira que as
vemos hoje em dia são encontradas pelo jogo todo, e mostram perspectivas
sobre nossa sociedade atual e como nos relacionamos. Para concluir, gostaria
de pensar então sobre o que o jogo nos fala sobre essa maneira de ver as
relações. O jogo, sendo um RPG, te deixa escolher com que visão, amplamente
falando, você quer se alinhar. O jogador pode tratar os personagens no jogo
como o Outro, ou então concebendo todos como parte de um único Um.
Tratando os personagens como um Um se consegue resolver a maioria das
tensões fundamentais no jogo, até certo ponto. Já se estes são tratados como o
Outro, o jogo te faz confrontar a conclusão lógica disso, ou seja, você tem que
ativamente prejudicar os outros, até mesmo massacrar cidades, para se ter
como o Um. O jogador se sente sujo, desconfortável, e imoral fazendo estas
coisas, pois o jogo as enquadra como inequivocavelmente erradas. Jogando

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estas duas versões do mesmo jogo se pode entender a mensagem de The
Outer Worlds: considerar um outro como Outro, desumaniza-lo, também tira a
sua própria humanidade.
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Referencia: Obsidian Entertainment, The Outer Worlds, Private Division, 2019

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