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Notas iniciais
O ensaio em questão busca fazer uma análise a respeito da perspectiva de
subjetividade a partir do pensamento de Gilles Deleuze e Feliz Guattari. Para isso, ele
inicia-se com algumas notas sobre o sentido de subjetividade e a crítica que ambos
constroem sobre a subjetividade centrada. Esses pensadores provocam com seus escritos
novos modos de singularização e subjetivação para além da lógica da identificação. Para
eles, a subjetivação está longe dos modos representacionais, sendo mostrada como uma
eterna construção e reconstrução de si mesma, incansável e transbordante em fluxos que
permeiam a constituição do indivíduo. Segundo Deleuze e Guattari, a subjetivação e a
singularização estão em conexões entre fluxos heterogêneos, sendo que o indivíduo e o
seu entorno seriam apenas algo resultante. As imagens da subjetividade são efêmeras e
transitórias, por isso serão usadas como reforço interpretativo algumas imagens 3 de
Escher 4 e René Magritte 5 para explicitar o que Deleuze e Guattari pressupõem para a
1
De modo especial, agradeço à inspiração de Débora Rodrigues Paes pela indicação do uso da imagem
do pintor René Magritte, o que me levou a fazer uso de outras imagens para dar suporte analítico ao
tema em questão.
2
Professora da Universidade Federal do Pará. Dra. em “Filosofia da Educação”. Trabalha com a
disciplina “Filosofia da Educação”, atualmente desenvolve estudos na filosofia da diferença, tomando
como intercessores Nietzsche, Deleuze e Guattari. Email: mrb@ufpa.br
3
A intenção é usar imagens como um texto, escritura para auxiliar a interpretação, a construção textual.
4
Maurits Cornelis Escher (1898-1972) é um artísta gráfico Holandes conhecido no mundo artístico por
suas xilogravuras, litografias e meios-tons, que representam construções impossíveis que exploram o
infinito. Sua obra produz um efeito de movimento, transformações, que sai do padão usal geométrico ao
olhar infinito de deslocamentos.(Cf: o seu site oficial: www.mcescher.com)
sua constituição como um alargamento de agenciamentos coletivos e impessoais. Por
isso, Guatarri faz uma crítica severa à subjetividade subordinada a modelos
representacionais. Há uma cartografia conceitual em Deleuze e Guattari altamente
complexa para se pensar a subjetividade na atualidade, cartografia essa que ainda está
para ser explorada na formação contemporânea. Com essa nota, o trabalho que se segue
visa mobilizar alguns elementos para o debate.
5
René Magritte (1898-1912) é considerado surrealista. Sua arte é pintada com nitidez, apresentando
outras organizações distintas da realidade. Seu objetivo é destacar uma arte reveladora e crítica que se
opõe efetivamente à ordem estabelecida consagrada e faz, sem dúvida, uma libertação do espírito rumo a
uma quebra da rotina, das certezas, promovendo dobras, o paradoxo visual, e mostrando que as
diferenças coexistem, mesmo naquilo que seja estranho. (Cf: René Magritte. Rio de Janeiro. Ed.
Civilização Brasileira, 1995)
6
O termo representação “é um vocabulário de origem medieval que ainda indica a imagem ou a idéia (ou
ambas as coisas) de um objeto de conhecimento qualquer. Num certo sentido, representar é pôr sob os
olhos alguma coisa, mas é também tornar presente ao espírito algo que já esteve presente aos nossos
sentidos. Para Leibniz, no entanto, as mônadas também têm uma “natureza representativa” – já exprimem
naturalmente todo o universo (....). Podemos também dizer que em Descartes a “idéia”, como quadro ou
imagem da coisa, tem um sentido de similitude absoluta. (Cf: Schöpke. R, Por uma filosofia da Diferença,
p. 39)
7
O termo remete a uma longa história da tradição. Ele é colocado como um dos princípios lógicos ou
ontológico ao lado dos princípios de contradição e do terceiro excluído. Pode-se dizer que a palavra
identidade do latim clássico significa Identitas. Para a tradição, o termo diz respeito aquilo que é em
sentido essencial, ou seja, as coisas são idênticas, unas, portanto, de algum modo ele revela a unidade, de
outro modo, as coisas só são idênticas. A unidade da substância é a definição que a expressa. A identidade
quer dizer aquilo que é, como verdades idênticas e afirmativas. (Cf: Nicola Abbagnano. Dicionário de
Filosofia)
se pretende abordar: “subjetividade desterritorializada”, emite uma perspectiva para
fora daquilo é perenizado e unívoco.
Para esses pensadores a subjetividade 8 é uma trama que não está dada, mas que
está em composição contínua com diferentes arranjos, sendo assim, ela não está na
ordem do “identificado” como uma espécie de moldura formatada e fixada que leva à
padronização do indivíduo ser conhecida e reconhecida. Com isso, sem dúvida, é
possível dizer que não há algo invariante na subjetividade para ser preenchido
independente das variações e ocorrências do mundo histórico, econômico, cultural e
social. Assim, ela não é um “tesouro”, também não pode ser vista como algo “secreto”
que faz parte do interior do indivíduo, nem está intacta, inata, nem está lá somente para
ser desvelada ou descoberta. Sendo assim, não há nenhum “eu” que sendo pensante
detenha o critério de tudo o que seja verdade, certeza, que leva a transformar o “eu” em
subjectum, em um fundamento de toda a representação da coisa, que seja a unidade, o
centro, o limite fundador, como sugere o pensamento moderno.
Contra esse privilégio de uma lógica da verdade, Deleuze e Guattari trazem à
tona as noções de “identidade”, “unidade”, “fundamento”, pois para eles esses conceitos
são traços predominantes da filosofia metafísica e representacional e, assim, fazem um
elogia ao devir, ao transitório, A multiplicidade, ao diverso, à diferença, como
elementos capazes de mostrar um outro sentido para a compreensão da vida. Por isso,
Guattari, em seu livro “Caosmose”, afirma que a subjetividade é polifônica, é plural,
pois não há nenhuma instância estruturante e dominante que a determine segundo uma
causalidade unívoca (GUATTARI, F. 1992, p. 11). A subjetividade interage, sofre
também agenciamentos, produz sentidos, contra-sentidos, opera agenciamentos
coletivos e individuais. Ela é heterogênea, diz Guattari. Cito-o:
A subjetividade está sendo agenciada por vários componentes que não permitem
mais um entendimento simplista e estruturalista de suas dimensões e composições. Na
era atual, com o advento tecnológico avançado, que força a considerar uma tendência à
homogeneização, à universalização, e assim a uma espécie de reducionismo da
subjetividade, há também, uma tensão que leva a se pensar na heterogeneidade. Assim,
é preciso considerar essas tensões que são reais em uma sociedade que tende à
globalização a partir das tecnologias avançadas e da própria expansão do capitalismo e
de seus meios de produção.
Guattari também alerta para o caráter trans-subjetivo da subjetividade, pois
entende que a “subjetividade em estado nascente que não cessaremos de encontrar no
sonho, no delírio, na exaltação criadora, no sentimento amoroso...” (GUATTARI, F.
1992, p. 16), ou seja, ela está sempre em fluxos, sempre interagindo, conectando-se,
transversalizando sentidos. Para esse autor, seria empobrecedor se a subjetividade fosse
vista apenas por partes separadas, sem conexões e sem fluxos. Guattari sugere que a
“subjetividade” não pode escapar da invenção criadora e nega uma subjetivação
melancólica e reconhecedora, reprodutora e subordinada aos valores vigentes, sem força
para produzir a si mesma. Com isso, a subjetivação não pode ser vista pela lógica
estruturante, condicionante e recognitiva, ao contrário, para Deleuze e Guattari a
subjetividade está em movimentos, não existe um a priori. Ela é composta por
complexos de subjetivação,
Diz ainda,
Nessa obra, Magritte mostra uma jovem mulher que vê a sua sombra como um
pássaro. A perspectiva da mulher é completamente alterada, levando a se pensar que há
tantas imagens em cada pessoa, há tantos modos de ser, tantos despatriamentos, como
uma espécie de coletivo em cada indivíduo, o que proporciona outros olhares, sem
rigidez, sem espanto e horror. Por isso, dizem Deleuze e Guattari,
Sem dúvida a subjetividade heterogênea também sofre o devir, que não é “uma
correspondência de relações, nem tampouco “é ele uma semelhança, uma imaginação e,
em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo
uma série” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 2007, p. 18). Ele não é uma evolução, não é
uma continuidade, da mesma forma, a subjetivação não pode ser vista como uma linha
progressiva, uma evolução, tal como o devir ela é da ordem da aliança, da involução,
antes, é efetivamente criadora. Com isso, a subjetividade não deixa de promover uma
perspecriva rizomática 9 . Ela sem dúvida está na ordem da legião, pois como dizem
Deleuze e Guattari, “não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos
modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou
legião” (DELEUZE, G; GUATTARI, F. 1997, p. 20). E dizem ainda, “Essas
multiplicidades de termos heterogêneos, e de co-funcionamento de contágio, entram em
certos agenciamentos e é neles que o homem opera seus devires..” (DELEUZE, G;
GUATTARI, F. 1997, p. 23), como se pode observar na obra de Escher.
Sem dúvida a arte soube promover essa subjetividade sem fronteiras. Nessa
imagem, observa-se uma paisagem-corpo ou corpo-paisagem em multiplicidade, em
devires, mostrando deslocamentos, ilusões, obrigando o indivíduo a sair da matriz, da
fixidade, convidando o observador a fissurar as estruturas e exaltar os paradoxos, as
diferenças, as metamorfoses. Esse jogo plástico produzido por Escher remete ao
questionamento de quem seja o sujeito, há algum? E se há, qual a sua matriz? Aqui ele é
posto em questionamento e vibração, pois Escher quebra com as hierarquias, com as
dominações e promove novos jogos de subjetivação em que não se pode dizer onde é o
começo e o fim. Os corpos, as imagens, sofrem deslocamentos contínuos. Em que o
suposto “sujeito em si” parece desaparecer. Na imagem III, ninguém conseguirá dizer
9
Cf: DELEUZE, G. e GUATTARI, F, Mil Platôs, v. 1. Nesse volume os autores mostram o que
entendem pelo termo.
onde ela começa e termina, o que leva a indagar: onde começa a subjetividade e onde
ela pode ir? Há um fim em si?
II
Essa imagem opera um corpo que não aceita ser mais mumificado. Observam-se
rostos, cabeças, que se misturam aleatoriamente, que dançam com suas vizinhanças e
interagem mutuamente. A subjetividade em interação que deslizam entre si, sem saber
onde inicia o si e o para si. Então, pode-se dizer que Deleuze e Guattari sugerem uma
subjetividade que cria a sua intensidade em um Corpo sem órgão- CsO 11 . Assim, essa
questão parece ser fundamental para uma nova subjetivação nesses autores. Um
exercício de uma nova perspectiva de corpo.
III
Rumo a um corpo sem órgão, assim deseja a subjetividade desterritorializada,
pois, com isso, descodificam-se os corpos e os conduzem ao encontro com a
embriaguez do vir-se-ser, que rejeita a consciência repressora, o juízo dado e, em fim,
explora uma subjetividade desejante da experimentação, que não receia o outro, o
contato com o divergente, o diferente, ao contrário, o outro é uma prodigiosa
intensidade. Sendo assim, será necessário negar o organismo para poder encontrar a
potência e a vitalidade do mundo e da vida com toda a sua força trágica e transgressora.
O Corpo sem órgão é uma transgressão à subjetivação edificante.
O Corpo sem órgão se desfaz da consciência, do eu totalitário, guardião dos
sentidos e das verdades, e libera as multiplicidade, os acontecimentos e multiplica
rostos, cabeças, personagens, tornando-se uma povoação, porém isso não é feito sem
sofrimento, sem rupturas, sem dor. Esse é o paradoxo: encontrar na doença, no
sofrimento, a grande saúde; encontrar na dor a alegria, pois, segundo Deleuze, sofrer é
exatamente se expor, estar fora, ser afetado, já que o corpo não deixa de se submeter ao
sofrer dos encontros e desencontros, dos acertos e desacertos, das pátrias e dos
despatriamentos. O tempo está sendo fissurado, transversalizado pelo mundo e pelos
acontecimentos da vida. Diz Lapoujade,
11
Sigla criada por Deleuze e Guattari para representar o nome “corpo sem órgão”. Para um maior
esclarecimento do termo é interessante conferir os seguintes textos: LINS, Daniel. A metafísica da carne:
que pode o corpo. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio
de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.67-80; LAPOUJADE, David. O corpo que não agüenta mais. In:
Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere
Dumará, 2002, p.81-90; GIL, José. O corpo paradoxal. In: Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Daniel
Lins e Sylvio Gadelha (orgs), Rio de Janeiro: Relumere Dumará, 2002, p.131-147.
O corpo deve primeiramente suportar o insuportável, viver o
inevitável. É o sentido do corpo sem órgãos em Deleuze: que o
corpo passe por estados de torção, de desdobramentos que um
organismo desenvolvido não suportaria. Todos os textos sobre o
Corpo-sem-órgãos são, no fundo, textos de embriologia. Há em
Deleuze uma verdadeira embriologia transcendental: o corpo ovo.
Como suportar, então, o insuportável, como viver o inevitável
(Como criar para si um Corpo-sem órgãos?) (LAPOUJADE, D.
2002, p. 87)
A questão é o que pode o corpo, como deve manter seus mecanismos de defesa,
como suportar certas inferências para depois encontrar sua resistência, sua força. Os
seus agenciamentos não são sem dor e sem conflitos. Esse corpo que é um povoamento
precisa também construir mecanismos de resistência. Porém, construir um processo de
defesa do sofrimento, da dor, não é se manter distante e receoso ao seu enfrentamento,
pois é na sua exposição com o fora que o corpo aumenta sua potência. É na altura do
mais sutil, do mais baixo, que pode estar presente a fortaleza do corpo sem órgão,
assim, dizem Deleuze e Guattari, o corpo sem órgão “Não é uma noção, um conceito,
mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega,
não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE, G;
GRUATTARRI, F. 2006, p.9). Ele é um exercício de força, de interação com o mundo e
só pode exercitar a sua potência quando deseja a vitalidade. Diz Daniel Lins que,
IV
Para além da culpa e do ressentimento, isso cabe também para ensinar a
formação, e constituir-se no seu grande desafio para configurar uma existência sem o
peso.
Os saberes e as práticas educativas padronizaram modelos, construíram
autoridades representativas, hierarquias educativas, para forjar um tipo de educação que
perpassa pela linearidade, pelo ajustamento individual e coletivo. Máquina de controle
de rostidade, assim tem sido a Educação; uma educação baseada na reprodução de
modelos, de identidades, que nega aos educandos o desafio de fazer seus próprios
traçados experimentais e formativos. A pedagogia e a educação, por mais rupturas que
fizeram em sua prática e teoria, ainda não conseguiram constituir intensidades para
ouvir o diferente, sentir a vida selvagem atravessar por seus meandros.
A Filosofia da Educação pode ser uma via de análise e de reflexão para se pensar
uma outra forma de ação no fazer educativo por entender que tal setor do conhecimento
pode ser o canal de interpretação, discussão e criação de novos conceitos. Dessa forma,
a Filosofia da Educação deve estar para além de uma postura de reprodução dos
conceitos filosóficos na educação e começar a pensar a partir de seus próprios
acontecimentos. Sem fundamentações, é o que se deseja para a Filosofia da Educação,
pois ela é que deve pensar sobre si mesma, sobre suas necessidades, suas angústias e
promover o salto diante da imanência do seu fazer cotidiano, pois se espera que a crítica
ao modelo identitário de subjetivação desafie a Educação e a formação no sentido de
demolir a lógica do ajustamento individual e promova um olhar sem preconceito sobre a
subjetividade nômade, que dobra sobre seu entre e desterritorializa a prática, as ações e
os conceitos para reterritorializar o divergente, compreendendo o homem como um
experimentador de si mesmo, de suas individualidades e singularidades,
proporcionando-lhe travessias e transversalidades em suas experimentações, num jogo
jogado com suas vivências, com seus acontecimentos, que recorre sempre a uma
imagem esgotada para dar mobilidade a outra imagem-movimento.
Sem receio de exercitar o devir, inventam-se outras formas de ser, como bem
potencializou a arte de Magritte, de Escher, que em suas telas produzem a dobra, que
contestam a representação, a lei, a linearidade, desterritorializando e promovendo uma
desindentificação que renúncia a fixidade, como faz a filosofia de Deleuze e Guattari.
Espera-se que essa reflexão possa tensionar a formação e promova a ideia de
abandono da identidade, de unidade do ser, para navegar em um mar formativo de
subjetividade em devires, em subjetividades dobradas, em multiplicidades clandestinas,
para traçar um mundo possível de potências afirmativas e mais alegres no fazer
pedagógico. Sem dúvida, isso pode ser uma nova linha de fuga para que a formação a
partir de si mesma pense uma além-formação, mais condizente com o humano e com a
vida.
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