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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

A EXPERIÊNCIA ESPACIAL DE CAMINHAR EM PEREGRINAÇÃO

JOSÉ ARILSON XAVIER DE SOUZA1

Resumo
O texto aborda a geografia como um saber relacionado com a experiência que os homens têm dos
seus espaços vividos. Nessa perspectiva, entende-se que a prática de caminhar em peregrinação
funda uma experiência espacial significativa, multívoca. Tal experiência é compreendida a partir de
duas dimensões: física e simbólica. Para refletir sobre a geograficidade da caminhada em
peregrinação, elementos naturais e as noções de homem religioso e fé são considerados como
expressões da experiência.
Palavras-chave: Experiência espacial; Geografia; Caminhar; Peregrinação.

Abstract
The text treat with geography as knowledge related to the experience that people have of their lived
spaces. From this perspective, it is understood that the practice of walking on pilgrimage founded a
significant spatial experience, multi-valued. This experience is understood from two dimensions:
physical and symbolic. To reflect on the geographicity walk on pilgrimage, natural elements and
religious man notions and faith are considered as expressions of experience.
Keywords: spatial experience; geography; walk; Pilgrimage.

1. INTRODUÇÃO

A geografia é um saber situado nas práticas e experiências que os homens


desenvolvem com os espaços e lugares, sejam familiares aos seus cotidianos ou
não. Antes de ser uma ciência, assim entendida pelo geógrafo Eric Dardel (2011), a
geografia está no anseio do homem em explorar e conhecer a terra. Nesta
perspectiva, a geografia pode ser traduzida por meio da relação entre homem e
terra. Um saber que se reporta ao material, ou seja, responde por uma base física
de reflexão, mas também se refere a um saber simbólico, de valorização dos
significados que o homem cria com o seu mundo. Com efeito, viver para o homem é
um ato eminentemente geográfico (CLAVAL, 2010).
No que toca aos aspectos espirituais e religiosos, o homem desenvolve sua
experiência na terra por diversos modos, dada sua crença e criatividade. Para a

1
Doutorando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura (NEPEC). E-mail:
arilsonxavier@yahoo.com.br

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geografia enquanto ciência, essa experiência é interessante em sua dimensão


espacial. As atividades e as práticas do homem religioso acontecem no espaço, e
seus saberes fazem referências a determinadas parcelas do espaço consideradas
qualitativamente distintas – refere-se à sacralidade do espaço. Em nome da fé, os
homens, individualmente ou agregados em instituições religiosas, (re)organizam
seus espaços de vida, redefinindo territórios, reconfigurando lugares e marcando
paisagens.
Dentre as experiências espaciais que o homem religioso desenvolve, a
caminhada em peregrinação chama a atenção, e é aqui “objeto” de reflexão
geográfica. Interessamo-nos pela cultura de peregrinos a pé no que concerne aos
seus depoimentos de vida com relação as suas motivações e relações com o
espaço em termos de experiência física e simbólica. Ao se pôr a caminho, o
peregrino a pé experimenta a gravidade do terreno, sente o sol e o vento no rosto,
aproveita das sombras das árvores, refresca-se com a água dos riachos
encontrados no percurso e dorme sob um céu de estrelas. A experiência ainda é
composta por encontros com outros que buscam o espaço sagrado.
As reflexões que se seguem dão continuidade aos nossos estudos sobre
peregrinações a pé (SOUZA, 2015, 2015a), quando tomamos como base empírica a
Romaria de Nosso Senhor do Bonfim, Natividade-TO – área de análise em nível de
doutoramento em Geografia (UERJ). Apresenta-se, pois, o texto em duas seções:
1ª) a experiência do espaço: sobre a religião; 2ª) caminhar em peregrinação:
experiência espacial física e simbólica. A primeira de caráter teórico; a segunda,
desdobrada em subseções, destaca depoimentos de peregrinos somados com um
ensaio de análise científico-poético.

2. A EXPERIÊNCIA DO ESPAÇO: SOBRE A RELIGIÃO

Há tantas experiências espaciais quanto variadas forem as condições de


relação do homem com o meio em suas múltiplas feições. Neste sentido, a ideia de
habitar é relevante para entender a experiência do espaço, uma vez que
compreende o morar, o trabalhar, o visitar, enfim, o estar presente. Para além de
dispor de um lugar para se resguardar da sociedade, habitar é também encontrar

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pessoas, levar uma vida social. Assim, a casa, a vizinhança, o comércio, a escola, a
paróquia, são espaços de habitação com os quais se tece fortes experiências
espaciais (CLAVAL, 2010).
Diante da sensibilidade humana, os espaços jamais são neutros. Os espaços
transmitem mensagens que cada indivíduo e grupo social os compreendem de
acordo com seus modos de pensar. A maior ou menor compreensão do conteúdo
das mensagens, seja por quaisquer motivos, definirá o grau de relação e experiência
com espaço. Então, a relação com o espaço é carregada de subjetividades.
Atentemos para as palavras de Paul Claval (2010, p. 39):
Viver é evoluir entre paredes ou se encontrar ao ar livre. Viver é estar em
contato com o meio ambiente em todos os sentidos: com a visão, a audição,
o olfato, o tato. É se mover em um ambiente selvagem, cultivado ou
urbanizado, é percebê-lo enquanto paisagem. As pessoas têm uma reação
emotiva diante dos lugares em que vivem, que percorrem regularmente ou
que visitam eventualmente.

Ainda segundo Claval, as paisagens, os lugares, tanto podem agradar pela


beleza, por relações de identidade, ou por emanarem emoções que cativam e
trazem segurança, como também podem ser repulsivos. Para o nosso estudo, é de
interesse os primeiros tipos de paisagens e lugares mencionados: atração que o
espaço sagrado exerce na vida do homem religioso.
O tema da atração do espaço foi revalorizado na geografia pelo geógrafo Yi-
Fu Tuan, a partir de 1960, com base na noção de topofilia (o amor aos lugares),
contribuindo com as análises de cunho geográfico e de outras ciências sociais. Na
obra “Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente”, Tuan
(1980, p. 288), reconhece a complexidade do estudo sobre a experiência do homem
com o espaço e, nas suas palavras finais, dispensa tal ponderação:
Os seres humanos persistentemente têm procurado um meio ambiente
ideal. Como ele se apresenta, varia de cultura para outra, mas em essência
parece acarretar duas imagens antípodas: o jardim da inocência e o cosmo.
Os frutos da terra fornecem segurança, como também a harmonia das
estrelas, que além do mais, fornecem grandiosidade. Deste modo nos
movemos de um para outro: de sob a sombra do boabá para o círculo
mágico sob o céu; do lar para a praça pública, do subúrbio para a cidade;
dos feriados praianos para o deleite das artes sofisticadas; procurando um
ponto de equilíbrio que não é deste mundo.

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Embora estivesse discorrendo sobre o homem de modo geral,


compreendemos uma riqueza nas palavras de Tuan no que concerne ao imperativo
do homem religioso, válido, de modo mais particular, para os peregrinos a pé.
Pontuamos, assim, dois níveis de interpretação que se apresentam inter-
relacionados: 1) o homem religioso procura um ambiente ideal, o que pode explicar,
em parte, porque se coloca na condição de viajante a fim de visitar um santuário em
específico e, nesse caso, a relevância da igrejinha de seu bairro não lhe é suficiente;
2) o homem religioso, em meio aos transtornos vividos socialmente, movimenta-se
no espaço procurando um ponto de equilíbrio que não é desse mundo, reporta-se a
“outros mundos” e valoriza-se o futuro como tempo de vida2.
A prática da religião está associada à experiência que os homens têm da terra
como base da existência humana (DARDEL, 2011), de como constroem suas
identidades e se realizam no espaço e no tempo sagrado (ROSENDAHL, 2006). A
religião é ainda um modo de pensar o espaço, especialmente visível quando se trata
de grandes sistemas religiosos que, enquanto fatos sociais e culturais, oferecem aos
crentes uma explicação da ordem do universo (SANTOS, 2006). Em termos
simbólicos, considerando o elemento fé, o nível de experiência no espaço religioso
(poder-se-ia aqui dizer espaço sagrado) é ainda definido pela relação do homem
com as formas arquitetônicas ali dispostas e pelo caráter de festividade.
A experiência do espaço para o homem religioso nasce com vistas em
emoções e sentimentos que superam as questões produtivas da vida. “Ao nível da
experiência, os fenômenos sagrados são aqueles que se destacam do comum e
interrompem a rotina [...] A palavra “sagrado” significa separação e definição; sugere
também ordem, integridade e poder” (TUAN, 1978, p. 84). Mircea Eliade destaca
que o homem toma conhecimento do sagrado porque ele se manifesta – hierofania –
, qualificando o espaço, deste modo, “a experiência religiosa de não-homogeneidade
do espaço constitui a uma „fundação do mundo‟” (ELIADE, 2008, p. 25).

2
O geógrafo Paul Claval (2008) fala de “outros mundos” como um problema epistemológico da
geografia. A essa noção, o autor refere-se à idealização por parte do homem religioso de um céu,
paraíso, a ser habitado na vida eterna como recompensa por uma vida espiritual de providências.
Ver: CLAVAL, Paul. Uma, ou Algumas, Abordagem(ns) Cultural(is) na Geografia Humana? In:
Espaços culturais: vivências, imaginações e representações. SERPA, Angelo (Org). Salvador:
EDUFBA, 2008. Para a geografia, interessa o quão o homem guia suas ações por essa crença e,
assim, desenvolve arranjos espaciais pensados para facilitar os seus objetivos.

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Reconhecendo a peregrinação como um tema topofílico, ao darmos


sequência com as reflexões sobre a experiência da caminhada em peregrinação,
segue uma sutil citação que pode servir de nexo entre as seções:
Os homens são ao mesmo tempo sedentários e nômades: eles ficam felizes
em ter um cantinho seu, mas não hesitam em deixá-lo. Alguns só se
decidem a fazê-lo raramente; outros só se sentem bem na estrada
(CLAVAL, 2010, p.45).

3. CAMINHAR EM PEREGRINAÇÃO: EXPERIÊNCIA ESPACIAL FÍSICA E


SIMBÓLICA

Os problemas fundamentais da cultura humana têm interesse humano e


devem se tornar acessíveis em termos de saberes ao público geral (CASSIRER,
2012). Os antropólogos Turner e Turner (1978), ao analisarem peregrinações na
Europa e no México durante a década de 1970, defenderam a tese de que o estudo
das peregrinações permite certo aprofundamento na compreensão da dinâmica da
vida social. Seguindo tais apontamentos, entendemos que uma leitura cultural dos
significados direcionados pelos peregrinos à sua prática religiosa e ao espaço
sinalizará para uma inteligibilidade das sociedades em questão.
A peregrinação a pé configura-se como objeto de estudo desafiador ao
geógrafo. É preciso saber que as espacialidades das peregrinações não estão
dadas, dependem do método adotado e dos objetivos do pesquisador. A análise
empírica será sempre essencial para a evolução dos estudos. Rosendahl assinala
que “a palavra peregrino não aparece nos dicionários básicos de geografia, embora
se refira a uma experiência humana repleta de significados e de nítida dimensão
espacial” (2006, p. 119). Dentre as maneiras possíveis de peregrinar, as
peregrinações a pé – conhecidas como “autênticas peregrinações” – exprimem uma
geograficidade3 extraordinária. Conservar os pés na terra, como o faz o peregrino a
pé, torna-o um agente religioso espacial singular, fazendo desses espaços “textos”
que merecem decodificação dos geógrafos4.

3
Refere-se a uma dimensão espacial da existência humana. Para Eric Dardel, “amor ao solo natal ou
busca por novos ambientes, uma relação concreta liga o homem à Terra, uma geograficidade
(géographicité) do homem como modo de uma existência e de seu destino” (DARDEL, 2011, p.1).
4
“A linha interpretativa dentro da geografia cultural recente desenvolve a metáfora da paisagem como
„texto‟ a ser lido e interpretado como documento social” (COSGROVE e JACKSON, 2007, p. 137).

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O caminho da peregrinação, para além de seus aspectos físicos, solicita do


pesquisador a consideração de questões fundamentais da vida do homem.
Caminha-se sempre dentro de um contexto natural e social (LABUCCI, 2013),
representando um elevado modo de (r)e(s)xistência5 na terra. A vida tem pulsão no
instante da peregrinação. “Caminhar é uma modalidade do pensamento”
(LABBUCCI, 2013, p.9), que embora possa representar fuga do homem religioso ao
mundo da técnica, é uma afirmação direta e explícita da condição de ser humano.
Caminhamos com o nosso corpo. Esse simples fato nos remete à vida nua,
aos seus elementos e às suas necessidades mais elementares: comer,
beber e dormir, frio e calor, cansaço e repouso, dor e prazer; a vida na qual
os nossos sentidos estão todos trabalhando com uma potência e uma
capacidade maravilhosas, que não experimentamos normalmente. Por isso,
quem caminha volta logo sabendo que algo se perdeu, do qual não temos
mais consciência: as estações, o clima. Estes são os protagonistas,
frequentemente incômodos, das narrativas de viagem a pé. (LABBUCCI,
2013, p. 23-24).

Ao caminhar em peregrinação o homem religioso idealiza se colocar numa


situação de engrandecimento espiritual. Ele busca o sagrado que está concentrado
nos templos, e se faz do sagrado que o acompanha passo a passo. Por este ponto
de vista, entende-se que o sagrado se dá ao ver e ao sentir do homem religioso;
sagrado que encontra qualificação em rituais e formas espaciais religiosas não só
encontradas, mas também reconhecidas pelo peregrino.
Para Sandra de Sá Carneiro (2013) o conceito de peregrinação deve ser
compreendido a partir da percepção do peregrino. Ninguém melhor do que ele para
definir o que é a experiência de caminhar em peregrinação. Assim,
metodologicamente, os estudos devem perceber e valorizar a pluralidade das
experiências e narrativas desses agentes espaciais, pois o sentido da experiência é
constituído e elaborado de diferentes universos de significado. As percepções sobre
o local, a paisagem e a mobilidade ganham destaque na concepção da autora
acima. Após analisar um conjunto de narrativas de peregrinos sobre o Caminho de
Santiago de Compostela, vejamos a reflexão de Carneiro (2013, p.136):

Ver: COSGROVE, Denis; JACKSON, Peter. Novos rumos da geografia cultural. In: CORRÊA,
Roberto Lobato; ROSENDHAL, Zeny (Org). Introdução à geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2007.
5
Labucci compreende a arte de caminhar (incluímos a caminhada em peregrinação) como uma
revolução. Para este autor, “não existe nada mais subversivo, mais alternativo em relação ao modo
de pensar dominante, que o caminhar” (LABUCCI, 2013, p. 9).

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[...] as peregrinações são descritas como experiências que podem


proporcionar aos peregrinos “conhecimento de si mesmos”, “introspecção”,
“despojamento material” em uma dimensão mais subjetiva. Mas também
pode favorecer o contato dos peregrinos com “paisagens”, com uma
“natureza exuberante” e com “belos quadros da natureza”. Além disso,
valoriza-se a possibilidade de se conhecerem, durante o percurso,
“patrimônios nacionais”, “sítios históricos e arqueológicos”, ruínas etc. Ao
mesmo tempo aponta-se uma dimensão da experiência de se realizar esses
caminhos que pode significar também uma peregrinação “mística” ou
“religiosa”, por meio da qual podemos ter “aproximação de Deus”, contato
com o “Criador” e “fervor religioso”.

Salvaguardando as “(im)possibilidades” de se projetar como peregrino a pé e


imaginar o que possa significar tal experiência, a tarefa de gerar interpretações
sobre os depoimentos dos que caminham em peregrinação, mesmo que não de
modo intencional, parece forjar ao pesquisador um exercício de alteridade.
Pensando na experiência de peregrinos, desenvolvemos, assim, uma sequência de
três tópicos para essa seção que coloca em destaque elementos e expressões
psicológicas, fisiológicas e naturais que visam rememorar a condição de ser humano
do peregrino e nos servirão de fios condutores para uma reflexão geográfico-poética.
A saber, a divisão das subseções: a gravidade e o corpo, o sol e o vento; a
árvore, o riacho e um céu de estrelas; o encontro com o espaço sagrado. Esses
tópicos apresentam breves descrições da experiência de peregrinos investigados em
2014 e reconhece a peregrinação a pé como fundadora de uma experiência única,
mas multívoca em referência às paisagens percorridas e horizontes formulados6.

3.1. A Gravidade e o Corpo, o Sol e o Vento

Eu tinha que pagar minha promessa a pé mesmo. De outro jeito eu não queria. O
negócio de meter o pé na estrada, ter fé e acreditar que tudo vai dar certo. Não dá
pra pensar nas dificuldades [...] O corpo se acostuma e você só tem que ir em frente
(Junior, 14/08/2014).

6
Ver: SOUZA, José Arilson Xavier de. Peregrinações a pé: experiências e a expressão espacial do
horizonte. In: 33º CONGRESSO DA CONF. OF LATIN AMERICANIST GEOGRAPHERS (CLAG) –
“Interfaces do Espaço Latino Americano”. Anais eletrônicos... Fortaleza-CE: UFC, 2015. Disponível
em: http://media.wix.com/ugd/ccfc55_5a4a3e684c334060b256e4d8748d3e70.pdf. Acesso em 06 jul.,
2015.

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A decisão de se colocar num caminho de peregrinação acontecera meses


atrás, em virtude de um problema de saúde na família. Valeu-se da graça de Nosso
Senhor do Bonfim no que concerne ao pedido de cura, e ali nascia a promessa:
peregrinar por um trajeto de 245 km em sinal de agradecimento. Para a realização
da “façanha” – para utilizar um termo pronunciado pelo próprio peregrino –, ganhou
a companhia do amigo e compadre, que já fizera a caminhada em outras
oportunidades.
De outro jeito, a não ser a pé, “teria graça”. O religioso se achava tão devedor
e, concomitantemente, grato, que só a caminhada lhe satisfaria a alma. Pra começar
dar tudo certo, de fato, uma coisa lhe parecia clara: tenho fé, mas precisava
manifestar isso com os pés. Era preciso sentir a gravidade que lhe ligava a terra,
sentir o “peso” do terreno por meio do corpo, sentir o sol castigar, deixando as
maçãs do rosto numa cor encarnada7. Peregrinar, inclusive, para sentir o atrito do
vento e depois de alguns dias de caminhada, deixar o corpo ser levado à frente.
O astro-rei não só castiga. Ele abre os caminhos e descortina paisagens.
Todos os dias, dois espetáculos são certos lá do horizonte: o nascer, anunciado pela
aurora, e o pôr do sol, dando início ao crepúsculo. Durante esses dois movimentos,
na caminhada em peregrinação, são quase certas as lembranças da bondade de
Deus. As paisagens da terra mudam de coloração e percebe-se que algo de novo
chega e algo vai embora. O movimento de renovação se mostra natural. Reza-se
com mais firmeza logo ao acordar, tendo como tela à frente um horizonte que
encandece a visão e preenche os corações de sentimentos que brotam de dentro de
cada ser – um sujeito que, diante da experiência, se compreende renovado em seus
pensamentos.

3.2. A Árvore, o Riacho e um Céu de estrelas

Depois de algumas horas caminhando, a chegada junto àquela árvore, vista


agora antes lá no horizonte, inaugura uma parada. Para-se nesse local a fim,
sobretudo, de aproveitar da sombra ofertada pela copa. Momento de descansar as

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Na entrevista, o religioso referiu-se a cor vermelha. Encarnada é uma expressão que lembra a cor
da carne (vermelha).

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pernas, encostar o cajado, tirar o tênis velho para que os pés respirem, e sacar da
mochila algo para comer. Faz-se uma refeição sem mesa, nem cadeira. Os
peregrinos que passavam na estrada agora ganham espaço na roda e contam das
suas experiências e proezas no caminho. A roda ganha em prosa e os jogos dão o
tom. Ali, os finos colchões também podem ser desdobrados e as redes armadas
sobre os galhos da árvore. Contudo, logo que “o sol esfria”8, lembra-se que o
caminho é o que há para ser vivido e experienciado.

A caminhada não é fácil, mas o Senhor do Bonfim está com a gente. É uma
experiência pra quem está disposto a descansar pouco, mas, por outro lado, manter
contato com a natureza e, quem sabe, até se encontrar aqui (Fátima, 14/08/2014).

A persistência física do peregrino é sustentada pela “companhia” do Santo.


Peregrinar é colocar o corpo em exaustão, não tem como não ser assim. Por outro
lado, é estabelecer uma experiência com a natureza que poucas práticas humanas
permitem. Qual o mal em acompanhar os passarinhos com os olhos e imaginar para
onde vão? Por que não se colocar em cima daquela montanha e de lá pensar na
vida? Como é bom sentir o cheiro de mato... Por ocasião, vale até falar com a
natureza e pedir licença para passear. Pois bem, é preciso caminhar... A paisagem
tem no seu horizonte a imagem de um riacho. A paisagem ganha o som da água em
corrente pela vegetação. Caminha-se para lavar o rosto, banhar-se e abastecer os
reservatórios de água.
Com o anoitecer, sob um céu de estrelas, na areia branca do rio, armam-se
as barracas de camping, enquanto outros se responsabilizam por apanhar a lenha e
acender a fogueira. A paisagem é outra; o horizonte causa medo. A fogueira serve
para esquentar os corpos, afugentar os animais, e em volta dela é bom de ficar
“jogando conversa fora”.

3.3. O Encontro com o Espaço sagrado

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Essa é uma expressão comum ao homem do campo no Brasil. Quer sê-a dizer que os raios solares
já não atingem a terra com tanta intensidade.

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Se a peregrinação pudesse ser equiparada à escalada de uma montanha, o


encontro com o espaço sagrado seria a chegada ao seu cume. Todo o esforço físico
e a fé no objetivo da caminhada, escalada, teria valido a pena. A alma teria
passeado por muitas paisagens9 e horizontes antes de se juntar ao corpo diante do
altar – refere-se a altar como a visão que se tem do cume da montanha, bem como
ao altar da igreja buscada; enquanto objetos de culto, os dois são considerados
santuários: o primeiro natural, o segundo construído. No espaço sagrado, como em
geral dizem os peregrinos, sente-se que o dever foi cumprido. A divindade é sentida
de modo mais intenso ali. A promessa é paga nesse encontro entre homem e
espaço sagrado.
Na experiência do peregrino a pé, ao contrário da experiência do escalador de
montanhas, o encontro com o espaço sagrado minimiza a persistência do horizonte.
Enquanto aquele que escala a montanha encontra-se em estado de graça diante da
imensidão do horizonte, se deixando imbuir de devaneios, o peregrino que chega ao
santuário do santo já não tem tamanha preocupação com o horizonte. A cada curva
ultrapassada, a cada monte deixado pra trás, o sol e a lua que vieram e se foram
algumas vezes, sabia-se que o santuário estava além dos horizontes que não
permitiam sua visualização. Com efeito, a paisagem mais buscada pelo peregrino
tem a forma do santuário no horizonte. Não se caminha em peregrinação por acaso.

Chegar ao Santuário do Bonfim depois de toda essa caminhada é uma recompensa


que só os peregrinos de verdade sabem o que é (Marcondes, 15/08/2014).

Só sabe o que é peregrinar quem peregrina. Só sabe o que é imaginar a


experiência de um peregrino quem tem a iniciativa de imaginar. O peregrino
imagina-se a caminho e no caminho, imagina-se chegando ao espaço sagrado e
pronto pra cumprir um ritual. A chegada faz com que as batidas do coração se
acelerem e os olhos sejam marejados. É uma etapa especial da peregrinação, o que
requer uma espécie de ritual individual de celebração: vai-se direto ao santuário, e lá
se curva diante da imagem do santo; fica-se em silêncio e se realiza uma rápida

9
Recomenda-se a leitura de: BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a
geografia. Tradução de Vladimir Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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oração de agradecimento, o que pode ser feito ainda com o cajado em mãos e a
mochila nas costas; assiste-se a missa do peregrino, inclusive na companhia de
familiares que esperavam ansiosos; busca-se o velário, para assim se acender uma
vela e pedir intercessão, aliás, já pensando na caminhada em peregrinação do ano
seguinte.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A religião, a religiosidade, universo no qual se inclui a fé e as expressões de


sua manifestação, em práticas, comportamentos e saberes, apresenta uma
perspectiva a partir da qual se tem algo a dizer sobre o conjunto da experiência
humana na terra (GEERTZ, 1978), apresentando-se como tema de discussão
geográfica, como saber cotidiano ou enquanto sistematização científica
(ROSENDAHL, 1996). Sobre a prática religiosa da caminhada em peregrinação,
geograficamente, a análise deve compreender a experiência em suas dimensões
física e simbólica.
A identidade do peregrino a pé se constrói no tempo e no espaço da
caminhada. A experiência espacial da peregrinação a pé traz consigo um saber
geográfico, de paisagens e de lugares, que outra maneira de peregrinar não é capaz
de proporcionar. Mesmo que de modo efêmero, o homem em peregrinação habita o
espaço da terra e desenvolve relações, seja com as pessoas ou com os elementos
naturais encontrados no percurso. Mais do que o desempenho físico, o viço das
paisagens é o que mais conta para aqueles que buscam contato com a natureza e
um reencontro consigo. Com efeito, existem laços sensíveis do homem religioso
com o espaço da peregrinação. Caminha-se em peregrinação para tornar a vida
mais significativa. O peregrino a pé só o é quando tem a experiência de caminhar.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia.


Tradução de Vladimir Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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CARNEIRO, Sandra de Sá. As peregrinações como atrações turísticas. In:


ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org). Geografia cultural: uma
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CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura


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São Paulo: Contexto, 2010.

DARDEL, Eric. O homem e a terra: a natureza da realidade geográfica. São Paulo:


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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

LABBUCCI, Adriano. Caminhar, uma revolução. Tradução de Sérgio Maduro. São


Paulo: Martins Fontes -- selo Martins, 2013.

ROSENDAHL, Zeny. O sagrado e o espaço. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES,
Paulo César da Costa (Org). Explorações geográficas: percursos no fim do
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SANTOS, Maria da Graça Mouga Poças. Espiritualidade, Turismo e Território:


Estudo Geográfico de Fátima. Estoril: Principia, 2006.

SOUZA, José Arilson Xavier de. A paisagem de peregrinos a pé: o horizonte é logo
ali. Espaço e Cultura (UERJ), 2015a. No prelo.

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Dimension of human geography. Chicago: The University of
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TURNER, Victor; TURNER, Edith. Image and pilgrimage in Christian culture. New
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