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FACULDADE INTEGRADA DE PERNAMBUCO – FACIPE

Mirla Regina da Silva Lopes

As causas cíveis de menor complexidade ou pequeno


valor contra a União, Estados, Distrito Federal e
Municípios

Uma perspectiva constitucional

Rio Branco - Acre


Agosto de 2004
2

Mirla Regina da Silva Lopes

As causas cíveis de menor complexidade ou pequeno valor


contra a União, Estados, Distrito Federal e Municípios

Uma perspectiva constitucional

Monografia submetida à Faculdade Integrada de


Recife com a finalidade de obtenção do Título de
Especialista em Direito Público.
Orientador: Professor Doutor Sérgio Torres Teixeira

Rio Branco - Acre


Agosto de 2004
3

FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: Mirla Regina da Silva Lopes


Título: As causas cíveis de menor complexidade ou pequeno valor contra a
União, Estados, Distrito Federal e Municípios: Uma perspectiva constitucional
Trabalho Acadêmico: Monografia final de curso
Objetivo: Obtenção do Título de Especialista em Direito Público
IES: Faculdade Integrada de Pernambuco – FACIPE
Área de Concentração: Direito Público

Esta Monografia foi julgada adequada para a obtenção do Título


de Especialista em Direito Público e aprovada em sua forma final pela
Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Integrada do
Recife, na área de Direito Público.

Data de aprovação:

_______________________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Torres Teixeira

_______________________________________________________________
Membro

_______________________________________________________________
Membro

_______________________________________________________________
Membro
4

Dedicatória

Quanto mais me desenvolvo e aprendo,


mais percebo a importância de minha família.

Às minhas filhas, Sammily e Sibelle,


que me alimentam todos os dias com
seu amor muito especial e sua alegria vibrante.

À dona Maria Rita Cardoso da Silva,


pelas valiosas lições de vida, não registradas em obra escrita,
mas gravadas na alma e no coração de seus filhos e netos.
5

Agradecimentos

Agradeço a Deus e aos meus pais,


Professores José Fernandes e Apolônia,
que me concederam o privilégio de viver este momento,
e ao Marcos, pelo amor e incentivo
a novas possibilidades de mudança e crescimento.
6

“Vivendo se aprende. Mas o que se aprende mais,


é só a fazer outras maiores perguntas.”
(Guimarães Rosa)
7

RESUMO:

Esta monografia analisa a coerência do ordenamento jurídico processual e o


microssistema dos Juizados Especiais Cíveis frente às normas e princípios
constitucionais que o orientam. Examina a Lei nº 10.259/01 - Lei dos Juizados
Especiais Federais, quanto ao rito processual das causas de menor complexidade
contra a União, confrontando-o com o sistema previsto para os Juizados
Especiais Estaduais e com a legislação ordinária, que ainda remanesce para as
causas da mesma espécie contra Estados e Municípios. Destaca, a partir da
compreensão das diretrizes do direito constitucional processual, que a partir da
Lei nº. 10.259/01 foi instaurado tratamento diferenciado aos litigantes, em
afronta aos direitos fundamentais da igualdade e do acesso à justiça, e salienta,
como forma de solução da antinomia, a necessidade de legislação para
ampliação do acesso aos juizados especiais cíveis estaduais, permitindo-se
que os Estados e Municípios, suas autarquias, fundações e empresas públicas
sejam ali acionados.
Palavras chave: Juizados Especiais Cíveis, Fazenda Pública, Acesso à Justiça.
8

ABSTRACT:

It analyses the cohesion between processual law and the Brazilian Civil Special
Judgeships microssystem, according 1988 Federal Constitution principles. It
studies the Law nº 10.259/01 – Federal Special Judgeships, about the procedural
law of small causes against Union, comparing them with the system established
to the States Special Judgeships and the ordinary law that is in use to the same
causes against States and municipality. It emphasizes, by comprehension of
processual constitutional law directions, that by the Law nº. 10.259/01 was started
a differential treatment to litigants, in affront of fundamental rights of equality
and justice access, and accentuates, as form for a just solution of the antinomy,
the need of legislation to increase access to Civil States Special Judgeships,
admitting of States, Federal District and municipality, theirs autarchies,
foundations e public companies be actioned there.
Keywords: Civil States Special Judgeships, Public Treasure, Justice access.
9

A aprovação da presente Monografia não


significará o endosso do Professor
Orientador, da Banca Examinadora e da
Faculdade Integrada do Recife à ideologia
que nela é exposta.
10

SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................................11

Capítulo I. Marco Teórico


1.1. A coerência do ordenamento jurídico ...................................................... 14
1.2. A hierarquia do ordenamento jurídico ..................................................... 17
1.3. A supremacia da Constituição ................................................................. 20
1.4. A prevalência dos direitos fundamentais ................................................. 26
1.5. Os direitos fundamentais e o processo civil ............................................ 30

Capítulo II. O direito processual civil contemporâneo e os juizados especiais


2.1. O modelo processual civil brasileiro ........................................................ 36
2.2. O novo paradigma para o direito processual ........................................... 39
2.3. A criação dos juizados especiais cíveis e criminais ................................ 43
2.4. O direito processual e as demandas contra o Estado ............................ 48
2.5. As obrigações de pequeno valor ............................................................. 53
2.6. As causas cíveis de menor complexidade contra a União ...................... 56

Capítulo III. A incoerência no rito processual para as causas cíveis de menor


complexidade contra entes públicos
3.1. A vedação de causas cíveis de menor complexidade contra o Estado na
Lei n° 9.099/95 ...................................................................................... 60
3.2. A admissão de causas cíveis de menor complexidade contra a União na
Lei n° 10.259/01 .................................................................................... 63
3.3. O tratamento diferenciado entre a União e os Estados Membros, o
Distrito Federal e os Municípios – O problema da federação ............... 66
3.4. As normas processuais diferenciadas para a Justiça Federal e a Justiça
Estadual – O problema da jurisdição .................................................... 74
3.5. O problema da tipificação legislativa – Lei nacional e Lei federal ........ 80
11

3.6. O problema da natureza normativa – Normas de processo e Normas de


procedimento ........................................................................................ 84
3.7. O problema da efetividade dos direitos fundamentais – A ofensa aos
direitos da igualdade e do acesso à justiça ........................................... 88

Capítulo IV. A insuficiência dos critérios para solução da antinomia entre as leis
n° 9.099/95 e n° 10.259/01
4.1. A antinomia no procedimento para as causas cíveis de menor
complexidade contra entes públicos ............................................................. 102
4.2. Critérios gerais para a solução de antinomias – Revisitando os
ensinamentos de Norberto Bobbio ............................................................... 107
4.3. Antinomias entre normas de natureza processual............................... 114
4.4. Solução da antinomia entre as Leis n° 9.099/95 e n° 10.259/01 –
Insuficiência dos critérios ............................................................................. 118
4.5. O Projeto de Lei n° 3.763, de 2000 ....................................................... 122

Conclusão .......................................................................................................... 126


Bibliografia ......................................................................................................... 129
12

INTRODUÇÃO

No direito constitucional, a busca da efetividade dos direitos

fundamentais é o fenômeno mais marcante do final do século XX. Para tornar

mais efetivo o direito fundamental de acesso à justiça, foram concebidos os

Juizados Especiais, possibilitando que o cidadão, lesado em direitos de menor

complexidade e de reduzido valor econômico, não se desestimule na busca da

proteção jurisdicional do Estado.

O êxito oriundo da criação dos Juizados de Pequenas

Causas instituídos pela Lei n°. 7.244/84, como resultado do amplo movimento

direcionado ao efetivo acesso à justiça, induziu a inserção, no texto da

Constituição da República Federativa do Brasil, de norma dispondo sobre a

criação obrigatória dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, proporcionando

uma forma diferenciada de prestação da tutela jurisdicional, voltada à pacificação

social.

Em decorrência do mandamento constitucional, foram criados e

instalados inicialmente os juizados especiais estaduais, e após um lustro, os

juizados especiais federais, cada um regido por legislação própria.

No entanto, o modelo inaugurado pela Lei n°. 10.259/01 que

criou os Juizados Especiais Federais estabeleceu uma diferença entre o

tratamento processual dado às partes que litigam contra Estados, Distrito

Federal e Municípios, e o conferido às partes que demandam em face da União,

com maior benefício processual para estas últimas, em detrimento das primeiras.
13

Assim, o objeto deste estudo consiste na análise da coerência do

ordenamento jurídico processual, notadamente quanto ao microssistema dos

juizados especiais, frente às normas e princípios constitucionais que o orientam.

Para tanto, é necessário o exame da Lei nº 10.259/01 - Lei dos Juizados

Especiais Federais, tangente ao rito processual das causas de menor

complexidade contra a União, confrontando-o com o sistema previsto para os

Juizados Especiais Estaduais e com a legislação ordinária, que ainda

remanesce para as causas contra Estados, Distrito Federal e Municípios, não

obstante a semelhança de vários tipos de demandas nas duas esferas da

Justiça.

Mediante a identificação dos critérios gerais para solução de

antinomias, busca-se avaliar qual dentre eles afigura-se como o mais adequado

a ser adotado para uma possível solução da incompatibilidade normativa

detectada no tratamento diferenciado aos litigantes, em afronta aos direitos

fundamentais da igualdade e do acesso à justiça.

A partir da compreensão das diretrizes do direito constitucional

processual, destaca-se a necessidade de ampliação do acesso aos juizados

estaduais, permitindo-se que os Estados, Distrito Federal, Municípios, suas

autarquias, fundações e empresas públicas sejam ali acionados.


14

CAPÍTULO I

MARCO TEÓRICO:

A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO

E A PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


15

1.1. A coerência do ordenamento jurídico

Longe de ser um mero amontoado de leis escritas, o direito é um

conjunto bem estruturado de normas que ocupam seus lugares próprios no

ordenamento. Uma norma jurídica existe sempre em um contexto maior de

outras normas, que guardam relações particulares entre si, de coordenação e

subordinação. Tais normas não subsistem isoladamente em si mesmas, quando

vistas sob a ótica desse conjunto estruturado, constituindo um ordenamento

jurídico. Precisa, a esse respeito, é a lição de Norberto Bobbio, cuja

transcrição é oportuna:

“Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que
a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo,
mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos
perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos
perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento
1
de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação”.

A legislação escrita não é criação da modernidade, mas foi

esse período – surgimento do Estado Moderno - que lhe conferiu maior

relevância, em busca de certeza e segurança jurídica. Com efeito, havia na

Roma antiga, uma legislação ordenada, no entanto, somente no século XIX surgiu

a concepção do ordenamento como “sistema”.

Assim, não se pode compreender adequadamente um

ordenamento jurídico sem conhecer a sua sistematização e seus fundamentos.

1
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1990. p. 71.
16

O termo “sistema” possui muitos significados. Não há na doutrina

unanimidade a respeito de sua conceituação no plano jurídico. O eminente

tributarista Geraldo Ataliba assim leciona:

"O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos


cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a
abordar as realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de
alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa de
reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos
elementos em um todo unitário, integrado em uma realidade maior. A
esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina
sistema".2

Uadi Lâmmego Bulos, em comentário ao artigo primeiro da

Constituição Federal, compreende sistema como método de análise técnica para

exame da realidade circundante. Através dele, ordena-se, de modo analítico, uma

dada esfera do saber, compreendendo-a lógica e coerentemente. O autor

assevera que:

“O direito positivo (corpo de normas vertidas na linguagem prescritiva do


legislador) não é um sistema, nem tampouco o é a ciência do direito
(corpo de enunciados provenientes da linguagem descritiva do
estudioso). Ambos, porém, consignam realidades que podem ser
estudadas sistemicamente, facilitando-lhes o conhecimento e o manejo.
Numa palavra, sistema é instrumento de análise, aparelho teórico por
meio do qual vemos, logicamente, a realidade que, por sua vez, não é
sistematizada. Todo sistema é um nexo, uma suma, lídima reunião de
elementos predispostos em inter-relação e interdependência, dotados de
um repertório (reunião de objetos e seus atributos) e de uma estrutura
(confere coerência ao sistema).” 3

Cândido Rangel Dinamarco aclara a noção de sistema, como

“conjunto fechado de elementos interligados em vista de objetivos externos

comuns, de modo que um atua sobre os demais e assim reciprocamente, numa

interação funcional para a qual é indispensável a coerência entre todos” 4.

2
ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1966, p. 4. apud BULOS, Uadi Lâmmego. Constituição Federal Anotada. Obra eletrônica
disponível em: <www.saraivajur.com.br>. Acesso em 11.08.2004.
3
Op.cit.
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 171.
17

O conceito elaborado por Dinamarco é o que melhor expressa a

idéia de sistema, pois para serem consideradas válidas dentro do arcabouço

maior do ordenamento jurídico, as normas pressupõem uma relação de

interação e de coexistência harmônica, com vistas a evitar o caos na

decidibilidade dos conflitos.

Corroborando esse entendimento, o jurista italiano Perassi, citado

por Bobbio, afirma que:

“As normas, que entram para constituir um ordenamento, não ficam


isoladas, mas tornam-se parte de um sistema, uma vez que certos
princípios agem como ligações, pelas quais as normas são mantidas
juntas de maneira a constituir um bloco sistemático". 5

Disso decorre que um ordenamento jurídico constitui um sistema

porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Significa dizer que as

normas de um ordenamento têm um relacionamento de compatibilidade entre si,

que implica a exclusão da incompatibilidade. Então, a expressão "sistema"

corresponde à afirmação do princípio que exclui a indesejável antinomia entre

essas normas.

A idéia de que o ordenamento constitui um sistema coerente

pode-se exprimir dizendo, em coro com Bobbio, que “o direito não tolera

antinomias”. Segundo ele, as relações de incompatibilidade normativa podem

ocorrer em três hipóteses:

“1) entre uma norma que ordena fazer algo e uma norma que proíbe
fazê-lo (contrariedade);
2) entre uma norma que ordena fazer e uma que permite não fazer
(contraditoriedade);
3) entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer
(contraditoriedade).” 6

5
PERASSI, T. Introduzione alle scienze giuridiche, 1953, p. 32, apud BOBBIO, Norberto. Teoria
do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1990. p. 75.
6
Op. cit., p. 85.
18

É justamente para evitar essas antinomias que a coerência

traduz em si uma norma de estruturação do ordenamento jurídico. O fato de

não ser literalmente expressa não significa que ela não exista. Ao contrário, ela

está subentendida na própria idéia de ordem do sistema.

O pressuposto da coerência aplica-se não apenas à ciência

jurídica, mas dirige-se a todas as ciências. Todo conhecimento precisa ter

conceitos coerentes, sem o que perderá segurança quanto à legitimidade de

seus resultados.

De fato, no âmbito do direito, não haveria como avaliar a certeza

da aplicabilidade de um comando legal, se o repertório de normas existentes

contivesse disposições contraditórias que regulassem uma mesma situação.

Isso porque o direito tende a regular de modo uniforme as relações que se

formam sob o seu império. Tais normas portanto, se dispostas em

descompasso, constituiriam apenas um amontoado, e não um sistema

ordenado.

Consistindo o sistema jurídico no conjunto coerente de normas, a

existência de incompatibilidade normativa implodiria o sistema, violando a

finalidade do direito de conferir segurança às relações jurídicas.


19

1.2. A hierarquia do ordenamento jurídico

Sendo o ordenamento jurídico um sistema, além de conter uma

pluralidade de normas coerentes entre si, exige que possua também uma

função ordenadora, visando conferir ao universo normativo uma unidade

sistemática. Assim, além da coerência, que organiza e mantém o conjunto

como um todo homogêneo, o ordenamento jurídico possui também uma

hierarquia, que o estrutura em normas superiores e inferiores.

As normas, por sua vez, estão dentro de um processo de contínua

transformação. É o fenômeno da positivação, que assegura a mutabilidade do

direito. Com efeito, constantemente normas são promulgadas, subsistem no

tempo, perdem sua atualidade e são substituídas por outras. Tércio Sampaio

Ferraz Júnior adverte que, nessa dinâmica do ordenamento jurídico, a integração

de novas normas deve obedecer limites que “autorizam a identificar o que está

dentro, o que entra, o que sai e o que permanece fora do sistema”.7

A dinâmica na positivação do direito, conquanto atinja, em certos

momentos, até mesmo a lei maior do ordenamento, ocorre com maior freqüência

nas normas infraconstitucionais, as quais não estão no mesmo plano da

Constituição, mas construídas e dispostas hierarquicamente a partir dela, de

forma escalonada, formando uma estrutura semelhante a uma pirâmide.

7
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Edição. São Paulo:
Editora Atlas, 2003, p. 178.
20

Elas se encontram, conforme a concepção da Escola de Viena,

na chamada “compatibilidade vertical” 8, onde a norma de grau inferior tem que

se adequar àquela de grau superior, mantendo-se assim, a coerência do

ordenamento.

Configurada a antinomia entre a Constituição e uma lei que lhe é

hierarquicamente inferior – incompatibilidade vertical – ameaça-se a

manutenção do próprio sistema constitucional, atingido em sua unidade,

decorrendo, assim, o problema da aplicabilidade das normas em contradição.

Por isso, havendo incompatibilidade vertical, avulta o princípio da

hierarquia, pelo qual deve-se dar primazia às normas constitucionais que se

encontram no ápice e emanam para todo o ordenamento jurídico, sendo

detentoras da mais alta hierarquia, às quais nenhuma norma infraconstitucional

pode afrontar.

Ao conceituar o princípio da hierarquia, o Professor da Faculdade

de Direito de Coimbra, José Joaquim Gomes Canotilho faz a seguinte afirmação:

“Os actos normativos (leis, decretos-leis, tratados, decretos legislativos


regionais, regulamentos) não têm todos a mesma hierarquia, isto é, não
se situam num plano de horizontalidade uns em relação aos outros, mas
sim num plano de verticalidade, à semelhança de uma pirâmide
9
jurídica.”

Oportuno lembrar que na estrutura de normas organizada pela

forma hierárquica, o poder normativo sofre limitações, ficando mais restrito à

medida que avança de cima para baixo.

8
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a. ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p.49
9
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed.
Coimbra: Ed. Almedina, 1998. p. 611.
21

Isso significa dizer, por exemplo, que quando uma norma

superior atribui o direito de igualdade, nenhuma norma inferior poderá, sem

justificativa plausível, estabelecer preceitos que contrariem esse dispositivo, pois

o sistema jurídico não admite a coexistência de normas incompatíveis (item 1.1,

supra).

Conquanto haja entendimento de que o sistema jurídico possua

uma estrutura circular10 em termos de coerência e coesão, entende-se que, em

termos de hierarquia, sua estrutura é mesmo piramidal.

Por outro lado, o ordenamento jurídico pode ser considerado

não apenas como sistema unitário e estático, quando visto como um todo

homogêneo, mas também, como sistema dinâmico, em razão do fenômeno da

positivação, que resulta na mutabilidade de suas normas.

Para analisá-lo com essas duas características, é necessário

lançar mão da teoria da validade da norma, tema profundamente abordado por

Tércio Sampaio Ferraz Júnior11, segundo o qual, “a validade da norma não é

uma qualidade intrínseca, isto é, normas não são válidas em si: dependem do

contexto, isto é, dependem da relação da norma com as demais normas do

contexto”12.

Portanto, a relação de validade das normas integradas em um

ordenamento é regulada pela estrutura hierárquica do sistema e pela relação

global de autoridade dessas mesmas normas na pirâmide jurídica.

10
Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Edição. São Paulo:
Editora Atlas, 2003, p. 190.
11
Op.cit. pp. 181-203.
12
Idem. p.175.
22

1.3. A supremacia da Constituição

É a Constituição que, como lei máxima que concretiza a

soberania do Estado e como norma hierarquicamente superior, legitima toda a

ordem jurídica. Nesse sentido, o professor José Joaquim Gomes Canotilho

leciona que:

“A ordem jurídica estrutura-se em termos verticais, de forma escalonada,


situando-se a constituição no vértice da pirâmide. Em virtude dessa
posição hierárquica ela atua como fonte de outras normas. No seu
conjunto, a ordem jurídica é uma “derivação normativa” a partir da norma
hierarquicamente superior, mesmo que se admita algum espaço criador
às instâncias hierarquicamente inferiores quando concretizam as normas
superiores”.13

Na Constituição se encontram elevadas as declarações de

direitos fundamentais do homem, afirmando a prioridade de valores

substanciais, como a liberdade, a igualdade, a dignidade, a democracia, a justiça,

dentre outros, sinalizando a obrigação dos poderes de dar efetividade a esses

direitos.

Contém ela, igualmente, um conjunto de princípios imperativos e

normas supremas, que traçam as diretrizes do ordenamento jurídico inferior e

devem ser observadas por todas as pessoas e poderes, inclusive pelo Poder

Legislativo. Por isso, deve alcançar todas as demais normas, submetendo

todos os cidadãos e os poderes estatais ao seu império.

13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed.
Coimbra: Editora Almedina, 1998, p. 1026.
23

Consolidando a idéia da coerência e hierarquia do ordenamento,

exsurge o princípio da supremacia da Constituição, segundo o qual todas as

situações jurídicas devem se conformar com os princípios e preceitos da Lei

Maior.

Disso decorre que os poderes estatais (federal, estadual,

municipal ou do Distrito Federal) são limitados pelas normas da Lei fundamental

e suprema do Estado.

Tal entendimento é confortado pela doutrina de Teori Albino

Zavascki, que afirma que:

“Em nosso direito, caracterizado pela supremacia da Constituição e pela


viabilidade ampla de controle difuso dessa supremacia, todo e qualquer
preceito normativo sofre inafastável relação de coordenação e de
subordinação para com os preceitos constitucionalizados. É a
Constituição que dá unidade ao sistema, que estabelece seus princípios
basilares, que fixa as diretrizes e os limites do conteúdo da legislação
ordinária.” 14

É importante lembrar o conceito jurídico de princípio, ilustrado

por Celso Antônio Bandeira de Mello como:

“mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,


disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá
sentido harmônico.”15

Os princípios são postulados gerais que inspiram os sistemas

jurídicos positivos. Não são elementos do repertório do sistema, mas dizem

respeito à relação entre as normas no sistema ao qual conferem coesão.

14
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da Tutela – São Paulo - Saraiva, 1997, pág. 58.
15
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p.807.
24

Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior16, são responsáveis pela

imperatividade total do sistema, neles repousando a obrigatoriedade jurídica de

todo o repertório normativo.

Como bem assinala José Afonso da Silva, os princípios

diferenciam-se das normas, pois estas

“são preceitos que tutelam situações subjetivas de vantagem ou de


vínculo, ou seja, reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a
faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou exigindo a ação
ou abstenção de outrem, e, por outro lado, vinculam pessoas ou
entidades à obrigação de submeter-se às exigências de realizar uma
prestação, ação ou abstenção em favor de outrem.”17

Há, no entanto, na doutrina, quem conceitue princípios e regras

como duas espécies de normas, o que vem a exigir uma investigação profunda

acerca da distinção entre normas, princípios e regras, a ser objeto de pesquisa

mais acautelada, específica e distinta desta investigação.

Outrossim, os princípios que servem de base às normas jurídicas

são, eles mesmos, muitas das vezes, incorporados ao sistema positivo, e

transformam-se, assim, em normas-princípio, o que pode ser exemplificado pelo

artigo 3° da Constituição da República Federativa do Brasil.

Desse modo, a legislação positivada só se torna inteligível quando

colocada em relação aos princípios dos quais decorre, ainda que estes princípios

não estejam expressamente formulados.

16
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 4ª Edição. São Paulo:
Editora Atlas, 2003, p. 248.
17
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a. Ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 95.
25

Corrobora esse entendimento o valioso ensinamento do mestre

Vicente Ráo18, no sentido de que os princípios constam ora explicitamente, ora

implicitamente das leis políticas e das disposições de caráter geral.

Quanto aos princípios constitucionais, são os fundamentos que

definem e caracterizam a orientação política do Estado, estabelecendo sua forma,

estrutura, regime político, organização e elementos caracterizadores.

São também normas matrizes, relacionadas a valores políticos e

sociais do Estado, explicitadas pelo legislador constituinte originário.

Os princípios constitucionais sobrepairam aos demais princípios

e regras do ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação dos

mandamentos constitucionais, dando estrutura e coesão ao ordenamento.

Funcionam como limitações impostas às normas inferiores, cujo conteúdo fica

adstrito ao quanto expresso e elaborado constitucionalmente.

A sua obrigatoriedade vincula os poderes e órgãos encarregados

do processo legislativo, aplicação e execução, merecendo, portanto, cada ato

legislativo inferior receber interpretação e aplicação que esteja em harmonia com

a Constituição, de modo que possa representar a mais fiel concretização dos

valores ali expressos ou dela decorrentes.

O que se quer dizer é que o menoscabo a um princípio

constitucional importa na quebra da coerência do ordenamento jurídico.

Uma lei pode ser inconstitucional ou inválida não apenas por

ferir um texto expresso da constituição, mas também por contrariar um princípio

ali implícito.

18
RAO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999, p. 277.
26

Celso Antônio Bandeira de Mello adverte com propriedade que:

“violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A


desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais
grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão
do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o
sistema, subversão de seus valores fundamentais.” 19

Como o ordenamento jurídico constitui-se num sistema complexo,

existem problemas relacionados com a unidade desse sistema, e que surgem

quando se procura articular as várias normas nele existentes. Essa articulação

oferece inúmeras dificuldades, sobretudo quando se depara com a disputa de

aplicação preferente de algumas normas ou princípios, gerando a necessidade de

interpretação e integração das normas do sistema (ver item 4.2 infra).

O princípio da supremacia impõe que todas as situações jurídicas

estejam conformadas aos princípios e preceitos da Constituição. Tal

conformidade requer a atuação positiva de acordo com a Constituição, de

forma que a produção de atos legislativos não a contrariem nem a ofendam, sob

pena de cometerem inconstitucionalidade.

O fundamento dessa inconstitucionalidade reside no fato de que,

do princípio da supremacia da constituição, decorre o da compatibilidade vertical

(ver item 1.2 supra), segundo o qual as normas de grau inferior somente terão

validade se forem compatíveis com as normas de grau superior. Os casos de

inconstitucionalidade se resolverão em favor das normas de grau mais elevado.

Uma dada incompatibilidade normativa não pode, assim,

permanecer insolúvel, eis que contrasta com a coerência e harmonia entre as

normas que compõem o ordenamento jurídico.

19
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p.807.
27

O ideal é que o sistema se mantenha harmônico em toda a sua

estrutura. Relativamente às normas infraconstitucionais, deve-se buscar um

critério seguro para aquilatar o valor de seus preceitos face ao sistema

normativo, mantendo a coerência deste. Assegurar a coerência do ordenamento

jurídico significa garantir a autoridade e efetividade da própria Constituição.


28

1.4. A prevalência dos direitos fundamentais

Universalmente reconhecidos e afirmados a partir da Declaração

dos Direitos do Homem de 1789 e da Declaração Universal dos Direitos do

Homem de 1948, os direitos fundamentais são conceituados como aqueles

inerentes à própria noção dos direitos básicos da pessoa, servindo como

pressupostos essenciais para uma vida na liberdade e na dignidade.

Não há, na doutrina, unanimidade a respeito da terminologia a

ser utilizada quanto a esses direitos. Classificam-nos em direitos naturais, direitos

humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos,

liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.

Consoante ensinamento de José Afonso da Silva, a expressão

mais adequada é a de “direitos fundamentais do homem” porque:

“além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e


informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada
para designar no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna,
livre e igual de todas as pessoas”20.

Constituem eles não apenas a base jurídica da vida humana,

mas expressam também o sentimento coletivo e a concepção dominante da idéia

de justiça, daí o seu destaque e importância.

20
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a. Ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 182 .
29

São fundamentais, porque expressam necessidades humanas.

Sem eles a pessoa humana não se realiza, não convive dignamente, nem sequer

têm amparo legal sólido para ver realizados, no plano concreto, seus direitos

impostergáveis, tais como a igualdade, a legalidade, a liberdade, o respeito à

dignidade, dentre outros.

No último século, os direitos fundamentais foram colocados num

grau mais elevado de juridicidade, positividade e eficácia, passando-se a exigir,

mais recentemente, sua maior proteção, não mais de forma teórica ou ilusória,

mas de forma concreta e efetiva. Tais direitos têm sido incorporados nos

ordenamentos constitucionais positivos e vigentes de todo o mundo.

O processo de constitucionalização e positivação dos direitos

fundamentais destacou o indivíduo como centro da titularidade de direitos

caracterizados como direitos humanos, e portanto, direitos de todos. No

sistema jurídico brasileiro, a Constituição de 1988 positivou de forma expressa os

direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração.

Os direitos de primeira geração são os direitos da liberdade, a

saber, os direitos civis e políticos assegurados no plano constitucional; os da

segunda geração dizem respeito aos direitos sociais, culturais e econômicos, bem

como aos direitos coletivos. A terceira geração compreende os direitos da

fraternidade, ultrapassando os limites dos direitos individuais ou mesmo coletivos:

o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito

de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de

comunicação.
30

Há inclusive julgado esclarecedor nesse sentido:

"EMENTA: Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e


políticos) — que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou
formais — realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda
geração (direitos econômicos, sociais e culturais) — que se identificam
com as liberdades positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio
da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes
de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações
sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um
momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e
reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores
fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade"21

Os dispositivos constitucionais que enunciam direitos

fundamentais constituem expressão da dignidade da pessoa humana, tornando

fundamento e fim da sociedade e do Estado.

Em virtude de sua importância no ordenamento jurídico, os

direitos fundamentais assumem cunho eminentemente principiológico. Além

disso, encerram normas que outorgam direitos subjetivos, impondo ao Poder

Público a adoção de condutas no sentido de proteger e promover tais direitos.

Sendo reflexos da dignidade da pessoa humana, a observância

desses direitos é obrigatória para a interpretação de qualquer norma

constitucional.

Em estudo acerca da relação entre o princípio da dignidade da

pessoa humana e os direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet acentua que:

“A íntima e indissociável vinculação entre a dignidade da pessoa


humana e os direitos fundamentais constitui, atualmente, um dos
postulados nos quais se assenta o direito constitucional – o que vale
inclusive nas ordens constitucionais onde a dignidade não foi
expressamente reconhecida no âmbito do direito positivo”22

21
STF, Pleno, MS 22164/SP, relator Ministro Celso de Mello, Diário da Justiça 1, de 17-11-1995,
p. 39206.
22
SARLET, Ingo Wolfgang et alii. Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 198.
31

Além de conciliar a relação dos indivíduos com a sociedade e com

o Estado, os direitos fundamentais cumprem também algumas funções. A

primeira delas é a de defesa dos cidadãos contra agressões lesivas pelos

poderes públicos. A segunda é a de obter bens sociais através do Estado, tais

como a segurança, a saúde e a educação. A terceira é a de exigir a proteção

perante atos praticados por terceiros, como por exemplo, a inviolabilidade do

domicílio e a proteção de informações, impondo ao Estado adoção de medidas

para proteger esses direitos. Por último, uma das funções dos direitos

fundamentais que assume maior relevância é a função de não discriminação.

A função antidiscriminatória dos direitos fundamentais é bem

expressa por Canotilho, quando afirma que:

“a partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade


específicos consagrados na constituição, a doutrina deriva essa função
primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Estado
trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. Esta
função de não discriminação alarga-se a todos os direitos.”23

O respeito aos direitos fundamentais funciona como

pressuposto de todo o sistema jurídico, pois tem como conseqüência o direito de

exigir dos poderes públicos a respectiva proteção, bem como a instituição de

meios processuais para esta finalidade, criando espaço para evitar até mesmo

as discriminações e os abusos do próprio Estado.

Na Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias

fundamentais abrangem os direitos individuais e coletivos (art. 5º), os direitos

sociais (arts. 6º e 193 e seguintes), os direitos da nacionalidade (art. 12) e os

direitos políticos (arts. 14 a 17).

23
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed.
Coimbra: Ed. Almedina, 1998. p. 375.
32

Essa classificação contudo, não é taxativa. Apenas enuncia as

categorias genéricas, mediante as quais foram organizados os direitos e garantias

fundamentais na Constituição.

Os direitos fundamentais consubstanciam expressão idônea dos

princípios informadores de toda a ordem jurídica, espelhando diretrizes

interpretativas para a resolução de problemas constitucionais e

infraconstitucionais. Cabendo ao Poder Judiciário a defesa dos direitos

fundamentais constitucionalmente protegidos, sua atuação através dos meios

processuais existentes e cabíveis deve estar igualmente vinculada à observância

desses direitos.
33

1.5. Os direitos fundamentais e o processo civil

O direito processual civil é profundamente influenciado pela

Constituição. É regulado por normas localizadas na Constituição Federal e na

legislação infraconstitucional federal e estadual, o que vem a demonstrar a forte

relação entre direito constitucional e o direito processual. A Constituição Federal

cerca o processo de princípios e garantias, dos quais não se pode desvincular,

para atuação de seus preceitos.

A propósito, Nélson Nery Júnior ensina que:

“mesmo que se reconheça essa unidade processual, é comum dizer-se


didaticamente que existe um Direito Constitucional Processual, para
significar o conjunto das normas de direito processual que se encontram
na Constituição Federal, ao lado de um Direito Processual
Constitucional, que seria a reunião de princípios para o fim de regular a
denominada jurisdição constitucional.24

O direito processual constitucional inclui o estudo das relações

existentes entre Constituição e processo e no papel deste como meio de

efetividade dos preceitos e garantias constitucionais de toda ordem.

Com efeito, o texto fundamental traça as linhas essenciais do

sistema processual consagrado pelo Estado, estabelecendo os princípios básicos

do processo. Esse ramo do direito compõe um sistema uniforme e coerente,

apto a viabilizar a solução das ameaças e lesões a direitos postas à jurisdição

estatal.

24
JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5ª ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p.20.
34

O processo é o meio obrigatório previsto no ordenamento

jurídico para a proteção dos direitos violados ou ameaçados de violação. Nisto

reside a sua natureza instrumental. Dele se deve extrair maior efetividade,

outorgando-se ao interessado uma prestação jurisdicional justa, jurídica e

tempestiva.

Na medida em que garante os direitos fundamentais, o processo

arraiga seus fundamentos na Constituição. Cada ato do processo “deve ser

considerado meio, não só para chegar ao fim próximo, que é o julgamento, como

ao fim remoto, que é a segurança constitucional dos direitos.”25. Nisso reside a

indissociável vinculação entre a jurisdição, o processo e a proteção dos direitos

fundamentais assegurados na Constituição.

Vertendo sua condição de meio indispensável para a realização

da justiça e da pacificação social, o processo não pode, nos dias atuais, ser

compreendido como mera técnica mas sim como instrumento de realização de

valores e especialmente de valores constitucionais.

A modernidade enfatiza o estudo das normas processuais a

partir dos princípios, garantias e direitos fundamentais protegidos pela

Constituição. É o que se denomina de tutela constitucional do processo.

A observância desses traços fundamentais é imperativa, de

modo a propiciar a perfeita adequação do sistema processual à ordem

constitucional.

25
JÚNIOR, João Mendes. A Nova Fase da Doutrina e das Leis do Processo Brasileiro, in Revista
da Faculdade de Direito de São Paulo, 1899, p. 120, apud José Frederico Marques, Ensaio sobre
a Jurisdição Voluntária, São Paulo, Saraiva, 1959, p. 23, apud OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro
de. O processo Civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Disponível em:
<http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto275.htm>. Acesso em 29 de julho
de 2004.
35

Para o presente trabalho importa destacar, então, o direito

constitucional processual, buscando delinear na Constituição os traços

fundamentais do processo, seus princípios e garantias que não podem, de forma

alguma, ser desrespeitados pelas leis hierarquicamente inferiores, sejam elas

federais, nacionais ou estaduais.

Importante observar que os postulados referentes ao processo

localizam-se mais especificamente dentro do Título II da Constituição Federal,

que cuida dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. O capítulo I,

referente aos direitos e garantias fundamentais consolida, especialmente no art.

5°, caput e incisos, os princípios do devido processo legal, da isonomia, do juiz

natural, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório, da proibição da prova

ilícita, dentre outros.

Repara-se que as normas constitucionais acima exemplificadas

são inegavelmente normas processuais. Sobre a natureza dessas normas,

obtempera Arruda Alvim que:

“a inserção de normas processuais no corpo da Constituição dá


margem a uma observação. Há, no caso, uma ampliação significativa do
texto constitucional, abrangendo também matérias que, sendo
substancialmente processuais, são, porém, formalmente constitucionais.
A razão é evidente. Deseja-se conferir a essas matérias uma rigidez
idêntica à das normas substancialmente constitucionais. Assim, apesar
de tais matérias não serem intrinsecamente constitucionais, mas como
integram o texto da Constituição, aproveitam-se das virtudes das normas
formalmente constitucionais.” 26

Isso significa dizer que os princípios e normas constitucionais do

processo indicam situações jurídicas objetivas e subjetivas, definidas no direito

positivo em prol da dignidade, igualdade e liberdade, valores sem os quais a

pessoa humana não se realiza.

26
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, v. 1 – Parte Geral. 6ª Edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais,1997, p. 129.
36

Trata-se, portanto, de direitos humanos fundamentais, cuja

origem remonta à busca de mecanismos de proteção individual contra abusos do

Estado. Esses direitos e garantias fundamentais atingem diretamente o processo

civil, ficando a legislação infraconstitucional a eles vinculada.

Cuidando-se mais especificamente ao ordenamento jurídico

processual infraconstitucional, é oportuno lembrar que as normas de direito

processual visam tornar eficaz uma norma de direito material fora do processo.

Por isso, a norma processual é norma de natureza instrumental,

expressando um interesse secundário que nasce de uma lesão, ou seja, deriva de

um obstáculo ao gozo de um direito substancial. Cintra, Grinover e Dinamarco

distinguem as normas processuais em três classes:

“a) normas de organização judiciária, que tratam primordialmente da


criação e estrutura dos órgãos judiciários e seus auxiliares;
b) normas processuais em sentido restrito, que cuidam do processo
como tal, atribuindo poderes e deveres processuais;
c) normas procedimentais, que dizem respeito apenas ao modus
procedendi, inclusive a estrutura e coordenação dos atos processuais
que compõem o processo.”27
No entanto, advertem os mesmos autores que:

“teoricamente, tal distinção esbarra no conceito moderno de processo,


que é definido como entidade complexa da qual fazem parte o
procedimento e a relação jurídica processual: assim, as normas sobre
procedimento são também, logicamente, normas processuais.”28

O Código de Processo Civil é a lei geral ou macrossistema, que

disciplina a função jurisdicional desenvolvida pelos juízes e tribunais, regulando

os procedimentos nele contidos. As leis extravagantes, por sua vez,

normatizam procedimentos especiais tendo suas lacunas preenchidas, em

caráter subsidiário, pela lei geral.

27
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo et alii. Teoria Geral do Processo. 16ª edição. São Paulo:
Malheiros Editores, 2000, p. 89.
28
Idem.
37

Toda a legislação processual deve ser compreendida,

interpretada e aplicada em conformidade com os princípios e valores

constitucionais aos quais se destinam e para cuja concretização devem

colaborar.

Assim, para assegurar a coerência do ordenamento, afigura-se

imprescindível que os institutos de direito processual recebam interpretação

adequada ao nosso sistema constitucional, valorizando e homenageando,

notadamente, os princípios e direitos fundamentais.


38

CAPÍTULO II

O DIREITO PROCESSUAL CIVIL CONTEMPORÂNEO

E OS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS


39

2.1. O modelo processual civil brasileiro

Permaneceu viva por muito tempo no senso comum teórico dos

juristas a noção de que o processo era um mero instrumento técnico ligado ao

direito material, destituído de escopos éticos, sociais, políticos e econômicos.

Somente após o decurso de um século, a doutrina processual superou essa

idéia e começou a vislumbrar o processo, como instrumento de pacificação

social, não necessariamente desvinculado de valores éticos e sociais, mas

privilegiando o valor maior do acesso à justiça.

No Brasil, esses novos pilares, lançados basicamente pela

doutrina européia na metade do século XIX, ainda tardaram a se estabelecer, em

razão do apego dos processualistas ao estudo puramente técnico do processo.

Contribuição significativa para a mudança de visão foi o fenômeno do

constitucionalismo. Segundo afirma Dinamarco, “um significativo fator de abertura

para as preocupações éticas em relação à ordem processual foi o crescimento do

interesse de parte da doutrina pelos temas constitucionais do processo.”29

O direito processual civil brasileiro é resultado do sistema de

normas constitucionais e infraconstitucionais com modelos europeus e norte-

americanos, atinentes às técnicas processuais estabelecidas para a solução

de conflitos.

29
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 281.
40

De um lado, tem-se o sistema das normas constitucionais, que é

inspirado pelo modelo norte-americano, mais desapegado ao formalismo e mais

satisfativo. Por outro lado, nas normas infraconstitucionais, é notória a influência

alemã e italiana, de caráter mais tecnicista. Como resultado, o pensamento

jurídico processual assimilado pelo direito positivo brasileiro é diversificado por

várias influências, em seus conceitos e técnicas processuais.

As incessantes alterações na legislação, durante três décadas,

transformaram o modelo processual brasileiro em um modelo empenhado na

universalização da tutela jurisdicional. Contudo, ao cabo de tantas reformas por

que tem passado e anda passa, resta ainda a preocupação dos juristas com

a unidade e coerência do ordenamento processual.

Apesar das reformas e influências positivas indicadoras de

grandes avanços, o Código de Processo Civil em vigor, promulgado em 1973,

ainda é notadamente marcado por um excesso de formalismo, valorizando a

forma em detrimento do fim. É nesse formalismo que se radica o problema

da morosidade da Justiça, pois o processo tradicional não tem como escopo

essencial a solução rápida de litígios. Prepondera no Brasil um modelo que

privilegia o instituto da garantia constitucional da ação, confrontando-se com os

demais institutos fundamentais do processo civil.

Como se verá a seguir (item 2.2 infra), a doutrina processual

brasileira atual já está a voltar-se em direção às ondas renovatórias que

procuram afastar as barreiras ao acesso à justiça, criando novos paradigmas para

o processo, de forma que a jurisdição alcance a maior abrangência possível de

cidadãos.
41

2.2. O novo paradigma para o direito processual

No decorrer do último século, as normas jurídicas evoluíram,

passando a tutelar direitos antes não previstos no ordenamento, chamados

direitos de primeira, segunda e terceira gerações (item 1.4 supra). A evolução

do direito é constante e necessária. O novo século que se iniciou já prenuncia

alterações na vida e no comportamento dos homens. Nesse contexto, os direitos

sociais das minorias, os direitos econômicos, os coletivos, os difusos, os

individuais homogêneos conviverão com outros de notória importância e

envergadura. São os chamados direitos de quarta geração, que abordam

questões relativas à informática, bioética, eutanásia, alimentos transgênicos,

sucessão dos filhos gerados por inseminação artificial, clonagens de seres vivos,

dentre outros.

Associado a esse fato, a crescente conscientização dos

indivíduos sobre os seus direitos resultou no aumento da litigiosidade social e,

conseqüentemente, num crescimento considerável das demandas judiciais.

Assim, “o esforço de criar sociedades mais justas e igualitárias

centrou as atenções sobre as pessoas comuns que se encontravam isoladas e


30
impotentes” , provendo-lhes novos direitos substantivos e acarretando uma

evolução no estudo do processo civil, que passou a recair, mais recentemente,

no enfoque do acesso à justiça como requisito fundamental de um sistema

jurídico moderno que pretenda garantir o direito de todos.

30
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor: 1988, p. 91.
42

As questões relativas à idéia de ampliação do acesso à Justiça

e à igualdade material de oportunidades não foram destacadas pelo legislador,

à época da elaboração e promulgação do Código de Processo Civil de 1973,

que se tornou uma obra monumental em homenagem ao princípio do

contraditório e da ampla defesa.

O modelo formal adotado pelo processo comum ordinário em

vigor impõe diversos obstáculos à acessibilidade das pessoas comuns que têm

pretensões de pequeno valor econômico e não se mostra como instrumento

adequado a uma Justiça que faça valer o direito da grande massa da

população.

As causas que envolvem somas relativamente pequenas

restaram prejudicadas pela barreira existente na justiça comum ordinária, pois

as despesas e as formalidades exigidas (custas, contratação de advogado,

privilégios processuais) comumente excedem o montante da controvérsia,

chegando a absorver o conteúdo do pedido a ponto de tornar a demanda uma

futilidade, pressionando os economicamente fracos a desistirem de lutar pelo

reconhecimento de seus direitos.

Tanto o aspecto formal quanto o econômico acabaram por inibir

os interessados a procurarem os seus direitos, fazendo com que deixassem de

exercer plenamente a cidadania. Esse sistema processual fomentou, por outro

lado, a sensação de impotência e o descrédito na justiça, resultando no

surgimento de uma demanda reprimida, diante da falta de uma solução efetiva

dos problemas dos jurisdicionados no tocante ao acesso ao Poder Judiciário.


43

Diante desse quadro, a nova atitude em relação à justiça passou

a refletir uma mudança radical na hierarquia de valores servida pelo processo

civil. No Brasil, sob o pálio do acesso à justiça, o ordenamento jurídico

estabeleceu novas normas de processo, com técnicas diversificadas (juizados

especiais de pequenas causas, juízo arbitral, etc), visando solucionar as causas

de uma maneira mais rápida e menos dispendiosa, ao mesmo tempo em que

intencionava aliviar o congestionamento e a morosidade dos tribunais.

Mauro Capelletti detectou e registrou a mesma situação em

diversos países do mundo:

“a violação dos direitos recentemente obtidos pelas pessoas comuns,


tais como aqueles referentes às relações de consumo ou de locação,
tendem a dar lugar a um grande número de causas relativamente
pequenas contra (entre outros) empresas e locadores. A preocupação
crescente por tornar esses direitos efetivos, no entanto, leva à criação
de procedimentos especiais para solucionar essas ‘pequenas injustiças’
de grande importância social”.31

A grande transformação do pensamento processual repercutiu em

um novo paradigma para as normas processuais, passando a constituir,

também, imposição da ordem constitucional sobrevinda em 1988, que explicitou

princípios e garantias constitucionais do processo, instituindo formas de oferecer

à população canais eficientes para o acesso à justiça.

Importância tal assumiu a matéria, que foi elevada ao âmbito

constitucional. O capítulo referente aos direitos e garantias fundamentais

consolida, especialmente no art. 5°, inciso XXXV , da Constituição da República

Federativa do Brasil, o direito de acesso à justiça, conferindo a esse tema a

característica de direito fundamental do cidadão.

31
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor: 1988, p. 94.
44

Corroborando essa constatação sobre a transformação do

pensamento processual, Dinamarco registra que:

“No Brasil, esses movimentos de ruptura com o conformismo do


processo civil tradicional fazem-se sentir de maneira
extraordinariamente significativa, nestas últimas duas décadas. A
implantação dos juizados especiais de pequenas causas (hoje, juizados
especiais cíveis), a instituição da ação civil pública e da ação coletiva
para a tutela de valores ambientais e do consumidor, o mandado de
segurança coletivo, a prática mais reiterada desse notável instrumento
político que é a ação popular, a atuação vigilante do Ministério Público
em juízo, mais a evolução da mentalidade dos juízes, agora voltados
aos valores subjacentes a toda essa realidade – eis o quadro desse
movimento vivido no Brasil com intensidade maior do que em qualquer
outro quadrante do mundo civilizado e que, quando bem compreendido
e corretamente conduzido, poderá constituir-se em fator de adaptação do
sistema processual à realidade das necessidades da população.
Augura-se que o exagero com que às vezes alguns desses mecanismos
são manipulados não conduza a uma retração e retrocesso em relação
32
aos progressos que eles significam.”

Foi a mudança de paradigmas do direito processual que iniciou,

portanto, o movimento a passos lentos para a reforma do processo e dos

procedimentos, buscando maior efetividade na atuação do Poder Judiciário.

Um dos primeiros passos foi a criação dos Juizados Especiais de

Pequenas Causas, antecessores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais,

como se verá a seguir.

32
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 113.
45

2.3. A criação dos juizados especiais cíveis e criminais

No Brasil, mesmo anteriormente à Constituição Federal de 1988,

o sistema processual implementou os Juizados Especiais de Pequenas

Causas, instituídos por legislação ordinária, a saber, a Lei n° 7.244/84, com

vistas a colaborar para o descongestionamento do Poder Judiciário.

A orientação normativa firmada naquela lei direcionava para o fim

maior da realização da justiça de forma simples e objetiva. Aqueles Juizados

foram os precursores que anunciaram os novos paradigmas para o processo civil,

tendo como meta a simplificação do processo, a ausência de custos e a

distribuição célere da justiça, através da brevidade na conclusão das causas.

Apesar do êxito daqueles Juizados, era apenas facultativa a sua

criação e instalação em todo o país, o que motivou, após esse marco inicial,

determinação de que passasse a ser obrigatória a adoção do novo microssistema

dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, que foi criado a partindo da própria

Constituição da República de 1988, em cujo artigo 98, inciso I, dispõe:

“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados


criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados ou togados e
leigos, competentes para a conciliação e o julgamento e a execução de
causas cíveis de menor complexidade e de infrações penais de menor
potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo,
permitido nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de
recursos por turmas de juízes de primeiro grau.”33

33
BRASIL, Constituição da República Federativa. Art. 98.
46

A norma assimilou e prestigiou a idéia fundamental defendida

pelo jurista italiano Mauro Capelletti34, conducente à maior atuação do cidadão na

resolução dos problemas do grupo social, mediante a adoção de técnicas

simplificadoras dos procedimentos e a previsão de formas alternativas de

resolução dos conflitos, convocando o povo (conciliadores, árbitros, juízes leigos)

para participar da administração da Justiça.

Passando a ser obrigatória em todos os estados da federação, a

determinação constitucional foi lastreada no princípio do amplo acesso à

justiça, estabelecendo a criação dos Juizados como mecanismos aptos a

propiciarem a rápida e efetiva atuação do direito voltado à satisfação dos

jurisdicionados e à pacificação social. Essa concepção do sistema representa

muito mais do que uma simples mudança de rito. Dentre os vários meios

possíveis de acesso célere e efetivo à justiça, hodiernamente os Juizados

Especiais, sejam estaduais ou federais, representam o que de mais concreto o

Estado brasileiro tem posto à disposição dos cidadãos.

O novo modelo de prestação jurisdicional, considerado como o

ideal para resolver, em parte, a crise de credibilidade vivenciada pelo Poder

Judiciário ante a excessiva morosidade na tramitação dos processos, representou

a constatação de que os meios tradicionais de se efetuar a composição dos

litígios através da intervenção estatal, se não estão totalmente ultrapassados,

demandam ajustes em sua essência, de forma a tornarem-se portadores da

celeridade e efetividade típicas da atual sociedade.

34
CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor: 1988, p. 94.
47

Ora, se a proposta da criação dos Juizados Especiais era

simplificar o processo e o procedimento para “causas cíveis de menor

complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo”, a conclusão é de

que tal medida deveria efetivar-se não apenas na Justiça Estadual, mas

em todos os órgãos onde tramitassem tais causas.

Todavia, ao limitar a criação de Juizados apenas nos Estados, no

Distrito Federal e territórios, o inc. I do art. 98 inviabilizou a criação do novo

sistema no âmbito da Justiça Federal, pois não previu a competência legislativa

para dispor sobre esta parte.

Tal omissão motivou a edição de Emenda Constitucional n. 22 de

1999, com a inserção do Parágrafo Único no citado art. 98 da Constituição

Federal, com a seguinte redação:

“Parágrafo Único. Lei federal disporá sobre a criação de juizados


35
especiais no âmbito da Justiça Federal.”

O dispositivo constitucional acima destacado reservou para a

legislação infraconstitucional federal a tarefa da criação dos Juizados Especiais

Federais.

Registra-se que o motivo da separação topográfica entre os dois

preceitos deu-se pelo fato de que a redação anterior previu apenas a criação

de juizados no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, deixando de incluir ali a

esfera da Justiça Federal.

35
BRASIL, Constituição da República Federativa. Art. 98.
48

O significado da atribuição dessa tarefa à legislação

infraconstitucional federal, traduz a ampliação do acesso aos Juizados Especiais

para as demandas processadas perante a Justiça Federal. Assim, o art. 98

passou a disciplinar duas prescrições: a criação de juizados estaduais (art. 98, I)

e de juizados federais (art. 98, Parágrafo único).

Não obstante estarem topograficamente separadas dentro do

mesmo artigo, a criação e regulamentação dos juizados especiais, tanto na

esfera estadual, quanto na esfera federal, ficou reservada à edição de

legislação federal, incumbida de definir as disposições gerais do procedimento

oral e sumaríssimo, elencando inclusive as hipóteses de cabimento desse

procedimento, consoante o dispositivo constitucional.

A legislação federal resultante foi a Lei nº 9.099/95 - Lei dos

Juizados Especiais Cíveis e Criminais – norma de caráter geral que se aplica a

todas as causas cíveis de menor complexidade ou pequeno valor, exceto aquelas

que são regidas pela legislação processual especial. Frise-se ainda que apesar

do artigo 98 não fazer qualquer restrição a tipos de demandas, tem-se por

subentendido que estão excluídas todas as demandas de maior complexidade.

O desiderato constitucional de criação obrigatória dos juizados

especiais é incompatível com o excesso de tecnicismo e o rigor das formas. Por

isso, eles refletem o princípio da instrumentalidade, pelo qual se busca um

processo de resultados, em nome da efetividade da prestação jurisdicional,

exigindo uma mudança de mentalidade, incentivadora da informalização do

processo, bem como da simplificação dos conceitos e institutos processuais, que

devem acompanhar as exigências da rapidez dos tempos modernos.


49

Com a criação dos juizados especiais, tanto na esfera estadual

quanto na esfera federal, podem ser identificados e resumidos os seus

objetivos principais: O primeiro consiste em ampliar o acesso à justiça,

possibilitando aos cidadãos o ingresso em juízo, sem ônus pelas custas ou

responsabilidade por honorários judiciais, em primeira instância, naquelas

demandas de pouca complexidade ou pequeno valor. O segundo objetivo é o de

conferir ao processo o máximo de efetividade, garantindo a almejada celeridade,

mediante a simplificação dos atos processuais, adotando-se como princípio

norteador a oralidade em grau máximo, com vistas à redução do lapso temporal

entre a propositura da ação e a manifestação final do Poder Judiciário. Por fim, o

terceiro e não menos importante objetivo, consiste em consolidar-se no âmbito do

Poder Judiciário a conciliação como forma de efetuar a composição dos conflitos

individuais postos sob a sua apreciação, distinta da sentença impositiva, que por

vezes soluciona o conflito jurídico mas não encerra a lide sociológica. Tal prática,

conquanto já prevista no processo comum ordinário, adquire caracteres

específicos nos Juizados Especiais, pois visa a solução pacífica de controvérsias

mediante a instituição de conciliadores, colocar sempre como última alternativa a

clássica e tradicional, porém, nem sempre efetiva, sentença de procedência ou

improcedência.

O sistema dos Juizados Especiais Cíveis tem por fonte a própria

Constituição Federal e em conseqüência da mudança de paradigmas do processo

civil, consagra princípios próprios que visam ampliar e não restringir as

alternativas de busca da satisfação de direitos.


50

2.4. O direito processual e as demandas contra o Estado

É grande o número de demandas contra o Estado, com vistas ao

reparo das lesões, a cargo do Poder Judiciário. Tais demandas são geradas

pela gama de relações jurídicas travadas entre o particular e os entes públicos,

seja por responsabilidade civil objetiva, seja por direitos pecuniários de seus

servidores, repetições de indébito, créditos oriundos de desapropriação,

benefícios sociais, dentre outras.

É igualmente considerável a quantidade de privilégios que goza o

Estado quando é parte no processo civil. O ordenamento constitucional e

processual ora em vigor atribui às pessoas jurídicas de direito público

tratamento especial quando litigam em juízo. A justificativa para tal tratamento

recai na defesa do interesse público, a evitar a malversação ou a omissão

lesiva pelos agentes estatais. Tal zelo, embora seja compreensível, excede a

esfera do razoável, ante a quebra da igualdade e a inferiorização das partes

adversas, ofendendo os pilares do justo processo.

Para os efeitos práticos, a normatização processual para as

demandas contra entes públicos não alcança a efetividade almejada pelos

litigantes/administrados, visto que os mecanismos existentes colaboram mais

para a eternização das demandas e menos para a efetividade da justiça, ficando

a concretização dos direitos reconhecidos sujeita, por diversas vezes, à vontade

do Administrador Público.
51

Com efeito, diversos dispositivos do Código de Processo Civil

conferem à Fazenda Pública privilégios processuais, diferenciando-a em relação

aos demais litigantes. Cita-se, como exemplo, as disposições do Código de

Processo Civil que estabelecem critério próprio para cálculo dos honorários

advocatícios arbitrados em níveis inferiores (art. 20, § 4º), pagamento de

despesas processuais ao final do processo (art. 27), a competência do foro da

Capital do Estado para as causas que a União for autora, ré ou interveniente (art.

99), prazos processuais diferenciados para contestar e para recorrer (arts. 188 e

277), ciência dos atos processuais mediante vista dos autos e não por

publicação pela imprensa oficial (art. 236, Parágrafo único) o reexame necessário

de suas condenações (art. 475), exceção da regra da competência para o foro,

quando a Fazenda Pública for exeqüente (art. 578, § 1º, CPC), proibição de

concessão liminar de imissão em reintegração ou manutenção de posse, sem

oitiva prévia do representante da Fazenda Pública, quando for ela interessada

(art. 928, parágrafo único), bem como a execução diferenciada (art. 730).

Além destes, existem outros privilégios previstos em legislação

extravagante, como a faculdade de substituir os bens penhorados por outros,

independentemente da ordem enumerada no art. 11 da Lei 6.830/90 (art. 15,

inciso II) dispensa de preparo recursal (art. 39, da supracitada lei), a exigência

prévia oitiva da entidade pública em alguns casos de tutela de urgência contra si

requerida (art. 1° da Lei 8.437/92), o prazo prescricional diferenciado (art. 1º do

Decreto 20.910/32), a suspensão dos efeitos da sentença em ação rescisória,

exclusivamente em benefício da Fazenda Pública (art. 7° da MP n. 1.774/98), etc.


52

Para a ação e a execução contra a Fazenda Pública, o sistema

jurídico brasileiro estabeleceu regramento próprio tanto na Constituição Federal

quanto no Código de Processo Civil. Esse regramento, conquanto longe da

perfeição, vinha e vem sendo adotado como garantia contra os abusos do

Estado, propiciando o exame das demandas e forçando, pela via executiva

especial do precatório, os entes públicos a pagarem obrigações reconhecidas por

sentença.

O precatório é criação nacional, que por motivos ideológicos

intenta preservar o Estado, evitando que os entes públicos se assujeitem ao

processo ordinário de execução. Por esse sistema, o juízo executório emite ao

presidente do tribunal uma ordem para que o Poder Público pague as quantias

devidas. Essas quantias são incluídas no orçamento do exercício seguinte,

ocasião em que a verba necessária ao adimplemento dos precatórios

apresentados até 1º de julho do ano anterior estará disponível para o credor.

No entanto, a excessiva demora nesses pagamentos demonstra

que o instituto do precatório enseja na verdade a inadimplência do Estado, que

paga os seus credores quando quer e do modo como for melhor aos seus

interesses.

É abissal a diferença de tratamento conferido às partes nas

demandas que envolvem o Estado. Quando credor, o Estado aplica ao seu

devedor sanções severas como a inclusão de nomes em cadastros de

inadimplentes, a proibição de consigo contratar, a submissão à execução forçada

judicial, com prazo exíguo de cinco dias para pagamento.


53

Mas quando está na posição de devedor, o Estado não paga no

mesmo exíguo prazo em que cobra suas dívidas. Apesar de dispor de prazo

muito mais alargado para tanto, sua omissão não acarreta sanção alguma.

Com tais regalias, os processos contra a Fazenda Pública tendem

a eternizar-se, ante o permissivo do elastecimento de prazos e a indesejável

delonga na fase de execução.

Não obstante a justificativa para a manutenção de tais privilégios

recaia sobre a natureza jurídica do Estado, a indisponibilidade do interesse

público, a impenhorabilidade de seus bens, a doutrina há muito vem discutindo a

questão, eis que não mais reputa como justa, nos dias atuais, a diferenciação

feita aos entes públicos. Predomina o entendimento de que, no momento atual,

deve ser outra a forma de equilíbrio entre a autoridade do Estado e os direitos e

a liberdade dos cidadãos.

O próprio Estado é o primeiro a se beneficiar com a dificuldade

de acesso ao Judiciário. Observa com propriedade Wanderley José Federighi

que:

“A enorme burocratização do Estado brasileiro, aqui considerado


lato sensu, deitou raízes profundas em diversas áreas, inclusive no
que toca às relações do Poder Executivo com o Poder Judiciário.
As dificuldades enfrentadas pelos particulares que ousam
aventurar-se a litigar contra a Fazenda vão desde os privilégios
processuais que esta possui até o completo descaso de muitos
funcionários burocráticos (pertencentes, às vezes, ao terceiro e
quarto escalões...) da Administração, no acatamento de ordens
judiciais.”36

36
FEDERIGHI, Wanderley José. A execução contra a Fazenda Pública. São Paulo: Editora
Saraiva, 1996, p. 3.
54

É certo que a Administração Pública está sujeita a rígido controle

orçamentário no que diz respeito à aplicação de sua receita, resultando na

necessidade de tempo razoável para que o Estado proceda à liquidação de

seus pagamentos, inclusive dos débitos oriundos de decisão judicial.

Por outro lado, não é menos certo que o procedimento especial

para execução contra a Fazenda Pública, em não se submetendo à natureza

própria das execuções em geral, torna para o administrado ainda mais penoso o

litígio, desnaturando a efetividade das decisões judiciais e relegando princípios

basilares do processo, dentre os quais o princípio lógico, o jurídico e o político.

As eventuais limitações econômicas dos Estados e Municípios,

decorrentes de opção política e administrativa dos administradores públicos, não

podem servir ao desrespeito à ordem jurídica e muito menos fundamentar o

descumprimento de obrigações públicas, reconhecidas por meio de decisão

judicial livremente transitada em julgado, especialmente quando tais obrigações

ostentam cunho alimentar.

O exagero na proteção do Estado em juízo termina por vedar

aos cidadãos o direito constitucional de ação contra os entes públicos. Essas

dificuldades de acesso à justiça geram um quadro desanimador para qualquer

administrado que pretenda demandar em juízo, notadamente nas causas de

pequeno valor, que muito pouco chegam ao Judiciário, uma vez que não há

sentido em litigar sem mecanismos que permitam a efetivação dos direitos. Tal

situação acarreta uma demanda reprimida, sem meios adequados de efetivo

acesso à justiça.
55

A ausência de vias judiciais que atendam a essa demanda deixa

de fora do Judiciário grande número de cidadãos, e requer a adoção de medidas

para a satisfação de direitos e para a prestação eficiente da tutela jurisdicional.

Observe-se, por fim, que mesmo em se tratando de demanda

contra o Estado, a conciliação é possível. No mais das vezes, é de interesse

do ente estatal, e já é praticada administrativamente em alguns órgãos.

Realizada com as devidas cautelas, por ser benéfica ao ente público, inclusive

para mitigar o valor da condenação, nas hipóteses em que esta for praticamente

certa, reduzindo trabalho, tempo, e em alguns casos, até mesmo a

condenação em honorários.
56

2.5. As obrigações de pequeno valor

De há muito, vem o legislador preocupado com a situação do

credor em face da excessiva proteção processual ao devedor, capaz de

inviabilizar o cumprimento da obrigação inadimplida, desvirtuando o conceito da

ampla defesa e do devido processo legal, a ponto de impedir a efetividade da

sentença transitada em julgado.

Notadamente o Estado, quando é devedor, dispõe de execução

diferenciada para as obrigações contra si reconhecidas, que devem submeter-

se, via de regra, ao regime dos precatórios judiciais.

É neste campo de idéias que se apresenta o novo tratamento

processual definido na Lei n° 10.259/01, quanto ao pagamento dos créditos

oriundos de sentença judicial, coberta pela coisa julgada, privilegiando, com

acerto, as dividas definidas como de pequeno valor.

Oportuno lembrar que a rigidez do uso do precatório como única

modalidade de cumprimento das sentenças apanhadas pelo trânsito em julgado,

já vinha sendo flexibilizada desde a Lei 8.213 de 1991, que regulava, em seu

artigo 128, o pagamento de dívidas previdenciárias de pequeno valor, oriundas

de demandas judiciais, dentro do prazo de até sessenta dias após a intimação do

trânsito em julgado da decisão, sem necessidade da expedição de precatório.


57

Da leitura do art. 100 e parágrafos da Constituição Federal se

extrai que, conforme a natureza da dívida, três procedimentos podem ser

adotados na realização do pagamento das execuções contra a Fazenda Pública,

a saber: a) para as dívidas de qualquer natureza a regra geral é a expedição de

precatório, com a observância da ordem cronológica da apresentação; b) para as

dívidas de natureza alimentícia é concedido o privilégio da preferência,

quebrando a ordem dos precatórios; e c) para as dívidas definidas como de

pequeno valor exclui-se o sistema de precatório.

No sistema do Precatório geral, a dívida é incluída no orçamento

da entidade pública, por determinação da Presidência do Tribunal respectivo, para

ser pago no exercício seguinte. Já no sistema das Requisições de Pequeno

Valor, o pagamento deve ser feito diretamente no próprio exercício.

O artigo 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

define como sendo dívidas de pequeno valor, até que se dê a publicação oficial

das respectivas leis pelos entes da Federação, aquelas que sejam igual ou

inferior a quarenta salários mínimos para as Fazendas dos Estados e do Distrito

Federal e, de trinta salários mínimos, para a Fazenda dos Municípios, para efeito

de dispensa da cobrança por meio de precatório.

Desse modo, uma condenação judicial contra a Fazenda Pública

Estadual e valor menor do que o correspondente a quarenta salários mínimos

ou um débito contra Fazenda Pública Municipal menor do que trinta salários

mínimos devem ser considerados de pequeno valor, portanto, fora da execução

pelo sistema dos precatórios.


58

As obrigações de pequeno valor poderão ser fixadas com valores

diferenciados, em conformidade com as diferentes capacidades financeiras dos

entes de direito público, por expressa permissão do § 5° do art. 100 da

Constituição Federal.

No tocante às dívidas da Fazenda Federal, o legislador omitiu-se

propositadamente em fixar o valor, eis que, anteriormente a essa alteração

constitucional, a Lei nº 10.259, de 12.07.01, que instituiu os Juizados Especiais

Federais, já havia definido para as pessoas jurídicas de Direito Público Federal

como dívida de pequeno valor, o teto de sessenta salários mínimos,

estabelecendo o mesmo valor para a competência daqueles Juizados, em

conformidade com o § 1º do art. 17 do referido diploma.

Portanto, todas as dívidas judiciais, de natureza alimentar ou não,

com trânsito em julgado, da Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal,

consideradas de pequeno valor nos termos definidos no art. 87 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, estão dispensadas do precatório.

O dispositivo constitucional conferiu maior celeridade nos

pagamentos devidos pela Fazenda Pública, com a finalidade de promover um

esvaziamento dos precatórios acumulados nas fileiras dos Tribunais. Apesar de

louvável essa medida, ao privilegiar o pagamento das dívidas definidas como de

pequeno valor, com a dispensa do precatório, facilitando a fase de execução,

a nova sistemática não facilitou, por si só, o acesso à justiça pelos cidadãos

que demandam contra os Estados, Municípios e Distrito Federal, pois mesmo

litigando por obrigações de pequeno valor, necessitam ainda submeter-se ao rito

processual tradicional, cumprindo formalidades excessivas, sem auferirem os

benefícios atualmente existentes nos Juizados Especiais Federais.


59

2.6. As causas cíveis de menor complexidade contra a União

Com o advento da Lei nº 10.259, de 10 de julho de 2001, que

“dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Cíveis e

Criminais no âmbito da Justiça Federal”, mais de um lustro após a Lei n°

9.099/95, passou-se a admitir as demandas contra a União e seus entes, no

âmbito dos Juizados Especiais.

Na Exposição de Motivos E.M./M.J./N° 009 de 11 de janeiro de

200137, asseverou o senhor Ministro José Gregori que:

“A Comissão constituída pelos senhores Ministros do Superior Tribunal


de Justiça pretendeu, com o anteprojeto apresentado, simplificar o
exame dos processos de menor expressão econômica, ‘facilitando o
acesso à justiça e o ressarcimento das partes menos favorecidas nas
disputas contra a União, autarquias, fundações e empresas públicas
federais, pois a solução de tais litígios dar-se-á rapidamente, e sem a
necessidade de precatórios para a quitação dos eventuais débitos’ e,
no que concerne ao âmbito penal, destaca que serão julgadas as
infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, os crimes a que a lei
comina pena máxima privativa de liberdade não superior a dois anos, ou
pena de multa.”38

A “ratio legis” que inspirou a criação dos Juizados Especiais

Federais é a mesma dos Juizados Especiais, a saber, a facilitação do acesso à

justiça.

Tem-se atualmente duas realidades distintas, oriundas do

movimento de efetivo acesso à justiça: os Juizados Especiais Estaduais e os

Juizados Especiais Federais.

37
BRASIL, Diário da Câmara dos Deputados nº 00358, que circulou em 02 de fevereiro de 2001.
38
Extraído do site: www.camara.gov.br, em 11 de dezembro de 2003.
60

Ambos possuem os mesmos objetivos (conciliação, julgamento e

a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de

menor potencial ofensivo) e mesmos princípios informadores (oralidade,

simplicidade, informalidade, economia e celeridade processual).

Na esfera cível, houve um considerável avanço no rito

processual. Os Juizados Especiais Federais vieram a ter competência para

processar, conciliar e julgar as causas de competência da Justiça Federal no valor

de até sessenta salários mínimos, bem como para executar suas sentenças.

Foram excluídas as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional

e Município ou pessoa domiciliada ou residente no Brasil; fundadas em tratado ou

contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; referentes

a disputa sobre direitos indígenas; as ações de mandado de segurança, de

desapropriação, de divisão e demarcação, populares, execuções fiscais e por

improbidade administrativa e as demandas sobre direitos ou interesses difusos,

coletivos ou individuais homogêneos; sobre bens imóveis da União, autarquias e

fundações públicas federais; para anulação ou cancelamento de ato

administrativo federal, salvo o de natureza previdenciária e o de lançamento

fiscal; e que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a

servidores públicos civis ou de sanções disciplinares aplicadas a militares.

Podem ser partes no Juizado Especial Federal Cível, como

autores, as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte.

Nessa parte, tem-se grande diferença em relação à Lei n. 9.099/95, já que o novo

diploma não exige que a pessoa física seja capaz e insere as empresas de

pequeno porte no rol das partes.


61

Admite-se a propositura de demandas contra a União, as

autarquias, as fundações e as empresas públicas federais, com maiores

benefícios processuais aos litigantes/administrados, que tiveram ampliado o

acesso à justiça, em busca da almejada efetividade das decisões judiciais.

O novo rito processual instaura isonomia entre as partes,

excluindo os até então consagrados privilégios da União em ter prazos dilatados

para atuar nas causas judiciais. Não há prazo diferenciado para a prática de

qualquer ato processual pelas pessoas jurídicas de direito público, inclusive a

interposição de recursos. Outro importante ponto a ser destacado, inclusive

porque sem essa determinação cairia por terra a disposição de conferir celeridade

à Justiça Federal, é a desnecessidade de precatórios, motivo constante de

retardo no cumprimento da obrigação quando o Estado é derrotado nos Tribunais.

A Lei n° 10.259/01 também mitigou consideravelmente o

excessivo formalismo a que tinham que se submeter aqueles quem pretendiam

litigar contra a Fazenda Pública Federal. Em seu art. 17, a referida lei

estabelece, na fase executiva, para as decisões apanhadas pela coisa julgada,

a requisição dirigida à autoridade pelo Juiz da causa, para que proceda ao

efetivo pagamento da obrigação no prazo de sessenta dias, contados da entrega

da requisição, na agência mais próxima da Caixa Econômica ou do Banco do

Brasil, independente de precatório. Não sendo atendida a requisição, o juiz

determinará o seqüestro do numerário suficiente ao cumprimento da decisão.


62

De outra banda, em vigor há mais de dois anos, apesar dos

avanços, a Lei nº 10.259/01 tem causado várias discussões polêmicas,

concernentes à sua aplicação e constitucionalidade. Veja-se, de passagem, a

questão das infrações penais de menor potencial ofensivo, que inicialmente

obteve tratamento diferenciado na esfera federal e estadual. A Lei 9.099/1995

considerava de menor potencial os delitos com pena máxima até 1 ano, enquanto

a Lei 10.259/2001 como infrações penais de menor potencial ofensivo os crimes

com pena máxima até 2 anos.

A respeito destas alterações, em especial no que diz respeito aos

crimes de menor potencial ofensivo, a maioria dos doutrinadores posicionou-se no

sentido de que o parágrafo único do artigo 2º da Lei n° 10.259/01 também deveria

ser aplicado à Justiça Estadual, por força do princípio da isonomia. Após muitas

discussões, chegou-se ao entendimento doutrinário e jurisprudencial de que

com o advento da Lei n° 10.259/01 foi ampliada a competência dos Juizados

Especiais Criminais dos Estados e Distrito Federal, permitindo o julgamento de

crimes com pena máxima cominada até dois anos.

A outra conclusão não se poderia chegar, sendo inaceitável o fato

de que uma infração de menor potencial ofensivo perca essa qualidade pela só

alteração da competência para seu processo e julgamento, circunstância externa,

de cunho processual, que nada afeta o delito. Ou seja, com a ampliação do

conceito de infração de menor potencial ofensivo, esse novo modelo passou a

ser aplicado tanto à Justiça Federal quanto à Estadual.

Outra questão surgida com o advento da Lei n° 10.259/01 é a

incoerência no rito processual para as causas cíveis de menor complexidade

contra entes públicos, como se verá a seguir.


63

CAPÍTULO III

A INCOERÊNCIA NO RITO PROCESSUAL

PARA AS CAUSAS CÍVEIS DE MENOR COMPLEXIDADE

CONTRA ENTES PÚBLICOS


64

3.1. A vedação de causas cíveis de menor complexidade contra

o Estado na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995

A Lei n° 9.099 de 26 de setembro de 1995, que “dispõe sobre os

Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências”, veio a traçar as

linhas mestras gerais para o procedimento oral e sumaríssimo previsto no art. 98,

inciso I, da Constituição Federal, consolidando a promessa constitucional de

promover maior celeridade sem violação do princípio da segurança jurídica.

Na parte atinente aos juizados especiais cíveis, a sobredita lei

incorporou, com algumas alterações, o procedimento constante dos dispositivos

da antiga Lei nº 7.244/84, ampliando o valor da alçada de vinte para quarenta

salários mínimos.

Trata-se, segundo o Juiz de Direito Ricardo Cunha Chimenti, “de

um sistema ágil e simplificado de distribuição da Justiça pelo Estado. Cuidando

das causas do cotidiano de todas as pessoas (relações de consumo, cobranças

em geral, direito de vizinhança, etc.), independentemente da condição econômica

de cada uma delas, os Juizados Especiais Cíveis aproximam a Justiça e o

cidadão comum, combatendo o clima de impunidade e descontrole que hoje a

todos preocupa.”39

39
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos Juizados Especiais Cíveis. 5ª Edição. São
Paulo: Editora Saraiva,2003, p. 5.
65

Referida lei estabeleceu normas gerais de caráter nacional

para a competência e o procedimento dos Juizados Especiais Cíveis, na

condição de órgãos da Justiça Comum Ordinária. Nesse sentido Araken de

Assis leciona:

“Tem a Lei n° 9.099/95, outrossim, análoga abrangência nacional,


ou seja, vigora em todo território brasileiro, ‘vinculando todos os
sujeitos à sua soberania’, mercê da qualidade geral de suas
normas”.40

Contudo, ressalvada a hipótese das empresas públicas estaduais

e municipais, a referida lei não previu a admissão de entes públicos nas

demandas a serem ajuizadas perante os juizados.

De acordo com o § 2° do art. 3° da Lei 9.099/95, foram

excluídas da competência do Juizado Especial dos Estados e do Distrito Federal,

dentre outras, as causas de interesse da Fazenda Pública. O art. 8° da mesma

Lei vedou expressamente a atuação de pessoas jurídicas de direito público no

procedimento dos Juizados:

“Art. 8º Não poderão ser partes, no processo instituído por esta


Lei, o incapaz, o preso, as pessoas jurídicas de direito público, as
empresas públicas da União, a massa falida e o insolvente civil.”

Em conseqüência, as pessoas jurídicas de direito público – a

União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios, as autarquias ou fundações

de todos os níveis – não podem ser partes nas demandas ajuizadas perante os

Juizados Especiais.

40
ASSIS, Araken. Execução Civil nos Juizados Especiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996,
p. 19.
66

Além das pessoas jurídicas de direito público, a Lei n° 9.099/95

também vedou especificamente as empresas públicas da União, de modo que,

ao tempo de sua edição, quando ainda inexistente normatização aos juizados

federais, evitasse que tais empresas fossem demandadas em sede dos juizados

especiais cíveis estaduais. A vedação específica é explicada pelo fato de que tais

empresas federais não podem ser demandadas na justiça estadual comum,

quanto mais nos juizados especiais estaduais.

Assim, emerge da Lei n° 9.099/95 que nos Juizados Especiais

Cíveis estaduais, somente podem figurar no pólo passivo as sociedades de

economia mista e as empresas públicas dos estados, municípios e do Distrito

Federal.

Nessa mesma linha, é o entendimento do renomado autor e Juiz

Ricardo Cunha Chimenti, ao afirmar que “até que seja alterada a Lei n° 9.099/95,

os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias não podem

figurar no pólo passivo das ações propostas nos Juizados Especiais”.41

A norma proibitiva foi pacificamente acolhida, e não sofreu

questionamento até a edição da Lei n° 10.259/2001, a qual passou a admitir o

procedimento dos juizados especiais contra as pessoas jurídicas de direito público

da União.

41
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos Juizados Especiais Cíveis. 5ª Edição. São
Paulo: Editora Saraiva,2003, p. 95.
67

3.2. A admissão de causas cíveis de menor complexidade


contra a União na Lei nº 10.259, de 10 de julho de 2001

Conquanto o sistema dos Juizados Especiais já vinha sendo

utilizado na Justiça Estadual desde 1995, somente em 2001, com a edição da

Lei n° 10.259, se estabeleceu um novo modelo processual de acesso à

Jurisdição Federal, sumaríssimo e completamente distinto do modelo tradicional

pelo qual tramitam as ações contra a Fazenda Pública (item 2.6 supra).

Dentre os aspectos positivos da Lei n° 10.259/01 podem ser

destacados os seguintes: “a possibilidade de o juiz deferir medida cautelar de

ofício para evitar dano de difícil reparação (art. 4°); os representantes, judiciais ou

não, das pessoas jurídicas de direito público federal ficam autorizados pela

própria lei a conciliarem, transigirem ou desistirem (art. 10 e 11, parágrafos

únicos); o comando para a entidade ré fornecer todos os documentos que

possibilitem o esclarecimento da causa (art. 11); os honorários de técnicos

periciais serão antecipados pelo próprio tribunal tornando o processo mais

célere (art. 12, § 1°); implantação do ofício requisitório (art. 16); o pagamento em

pecúnia deverá ocorrer no prazo de 60 (sessenta) dias contados da entrega do

ofício (art. 17); quantias no valor de até 60 (sessenta) salários mínimos deverão

ser pagas independentemente de precatório (art. 17, § 1°); o seqüestro de

numerário no caso de desobediência à requisição judicial (art. 17, § 2°)”.42

42
MIRANDA, Maydano Fernandes de. Alguns comentários sobre o novo paradigma processual
instituído pelas Leis n°s 9.099/95 e 10.259/01. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 58, ago. 2002.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3072>. Acesso em: 22 jul. 2004.
68

Assevera Cândido Rangel Dinamarco que:

“no tocante aos juizados especiais federais, vigem regras em parte


diferentes, porque é natural que as entidades integrantes da
Administração Federal (direta e indireta) possam ser partes perante a
Justiça Federal (Const., art. 109, inc. I), não devendo pois, ser excluídas
– e, afinal, foi justamente para processar litígios envolvendo entes
federais que tais juizados vieram a ser criados. Por isso a Lei dos
Juizados Federais, admite expressamente como partes perante tais
juizados (mas exclusivamente na condição de rés) ‘a União, autarquias,
fundações e empresas públicas federais’ (Lei n° 10.259, de 16.7.01, art.
6°, inc. II).”43

Realmente, com o advento da referida Lei, passaram a viger

regras diferentes, que adotaram novo procedimento: deixou-se de prever o

sistema do precatório para satisfação de seus julgados, observado o limite de

60 salários mínimos, facilitando a vida daqueles que foram forçados a litigar

contra o poder público e, mais ainda, a executar a sentença, caso se sagrem

vencedores.

Observa-se que legislador, descortinando os novos paradigmas

e tendências do processo civil, buscou reequilibrar o tratamento na relação

processual entre os litigantes, mitigando o rigor em relação aos privilégios

da Fazenda Pública, e abrandou, em nome da instrumentalização dos litígios,

o dogma de sua indisponibilidade, cujo valor merece nova consideração, quando

o direito não for de relevância mais profunda para o grupo social.

Cuida-se de considerável marco evolutivo do direito processual

civil, notadamente no diz respeito às ações contra a Fazenda Pública,

prestigiando a efetividade da Justiça e o fortalecimento da cidadania (item 2.2).

43
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 476.
69

As modificações e avanços inaugurados pela Lei n° 10.259/01

são bem-vindas e arejam os mecanismos tradicionais de realização compulsória

de direitos, conferindo um novo e tão desejado rito processual endereçado aos

entes públicos da esfera federal. Todavia, geraram indesejável problema no

tratamento processual entre os litigantes da esfera federal e da esfera estadual e

distrital, no que diz respeito às causas cíveis de menor complexidade e pequeno

valor, exigindo acautelado exame da questão.


70

3.3. O tratamento legislativo diferenciado entre a União e os

Estados Membros - O problema da federação

A definição de um novo tratamento processual à União, a partir

da Lei 10.259/01 suscita algumas questões relevantes dentro do sistema de

tratamento dos entes federativos. Assim, um exame dos princípios

constitucionais que informam o nosso ordenamento jurídico se faz necessário

para a compreensão desse problema.

A Constituição vigente estabelece que o Brasil é uma República

Federativa, cuja organização político-administrativa é formada pelo vínculo

indissolúvel entre a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os

Municípios (Arts.1º e 18 da Constituição Federal). O pacto federal tem por

objetivo a ordenação permanente do sistema político, econômico e jurídico.

Conceitua-se a Federação como uma união permanente de

Estados-Membros, em vista de um fim comum. Segundo José Afonso da Silva,

ela baseia-se na “união de coletividades políticas autônomas”. 44 A liberdade das

unidades federadas é alicerçada, no entanto, pelos limites constitucionais que

disciplinam a repartição de competências a cada um dos seus entes.

44
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a. Ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 103.
71

O princípio federativo, consagrado como valor fundamental,

constitui-se em cláusula pétrea do sistema constitucional brasileiro (CF., art.1º;

art. 60, §4º, inciso I).

Irradia-se por toda a organização esquemática do Estado

brasileiro, moldando o exercício soberano do poder político em suas diversas

manifestações funcionais: a função executiva, a função legislativa e a função

jurisdicional. Além isso, ele serve como diretriz interpretativa, devendo o

legislador a ele se conformar, como primeiro intérprete da Constituição Federal.

O primeiro aspecto a se ressaltar, no tema em exame é que, a

despeito da superioridade política e econômico-financeira da União, não

existe superioridade jurídica entre ela e os Estados-membros. Para Roque

Carrazza, “a União e os Estados-membros ocupam, juridicamente, o mesmo

plano hierárquico. Daí por que devem receber tratamento jurídico-formal

isonômico.”45

Com efeito, não obstante a repartição de competências decorra

do sistema federativo, tendo como fundamento de validade as disposições

constitucionais, o modelo federal se caracteriza pela paridade jurídico-

constitucional das pessoas jurídicas que lhe são integrantes, todas autônomas.

Aqui vinculada ao princípio federativo, vê-se que a igualdade não

se confina apenas aos direitos e garantias individuais, mas espraia-se pelo

ordenamento jurídico, atingindo até mesmo as relações mantidas entre as

pessoas constitucionais.

45
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19a. Ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 127.
72

Nessa linha de entendimento, importa concluir que, sendo a

União e os Estados juridicamente iguais, em decorrência do princípio federativo,

a eles também se aplica o princípio da igualdade, mandamento nuclear do

nosso sistema constitucional.

Não é, contudo, a mera igualdade aritmética que os textos

constitucionais visam preservar. A igualdade jurídica não significa identidade de

atribuições constitucionalmente fixadas para a União, Estados-membros e

Municípios. Significa sim, e tão somente, que essas atribuições, embora diversas,

correspondem todas a enunciados de competência, postos em atuação mediante

princípios e normas estabelecidos na própria Constituição Federal. Significa a

rejeição de qualquer privilégio desarrazoado para qualquer um dos entes

públicos, em detrimento dos demais.

O notável publicista José Souto Maior Borges, uma das

referências intelectuais da Escola de Direito do Recife, ilustra com propriedade

o sentido do princípio da isonomia das pessoas jurídicas de direito público:

“É um princípio que informa toda a estrutura da Constituição brasileira, a


isonomia das pessoas constitucionais. Não há desníveis hierárquicos
entre as pessoas constitucionais, que juridicamente são iguais entre si,
posto sociológica, econômica e politicamente não o sejam.

A diversidade das atribuições, a sua maior ou menor complexidade, não


interferem com a radical igualdade no regime jurídico das pessoas
constitucionais e sobretudo no seu mútuo relacionamento” 46.

O princípio de isonomia entre as pessoas constitucionais é

considerado como princípio estrutural ao modelo organizatório brasileiro.

46
BORGES, Souto Maior. Eficácia e Hierarquia da Lei Complementar. In: Revista de Direito
Público, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1973, nº 25, p.94, apud REIS, Fernando
Antônio Fagundes. Apontamentos sobre a proposta do subteto estadual. Disponível em:
<http://www.sindimp.com.br>. Acesso em 27.07.2004.
73

Nesse sentido, destaca ainda o mesmo professor que na

Federação brasileira, essa igualdade trata-se “de um princípio implícito, que

decorre do nosso sistema federal de governo e do mecanismo constitucional de

repartição de competências legislativas. Deflui do princípio expresso da

competência dessas entidades constitucionais.”47

Certo é que a igualdade jurídica entre os entes federados

evidencia-se à medida que cada qual atua no âmbito da competência que lhe

está definida na Constituição Federal. Contudo, ela vai mais além, eis que

também a legislação infraconstitucional desses entes, decorrente da

competência atribuída pela Carta Magna deverá estar em igual sintonia com o

princípio federativo. Essa harmonia entre os entes federados é a base do pacto

federativo.

Por isso, é fundamental a compreensão do princípio federativo,

nesta parte da igualdade jurídica entre os entes federados, para uma correta

interpretação da questão decorrente do tratamento processual dado aos entes da

Federação.

É que a igualdade entre a União e Estados tem relação direta

com a igualdade constitucional entre os litigantes, uma vez que aqueles

também podem ser partes em processo judicial.

47
Idem.
74

Como pessoa jurídica de direito público interno, a União é titular

de direitos e sujeito de obrigações, como qualquer pessoa, e pode ser submetida

aos órgãos jurisdicionais do Estado, sendo todavia, detentora de foro especial,

conforme o art. 109 da Constituição Federal.

Os Estados, Distrito Federal e Municípios, por sua vez, podem

igualmente demandar e ser demandados em Juízo, hipótese em que as Leis de

Organização Judiciária estabelecem varas privativas para as causas de interesse

da Fazenda Pública. Em não havendo varas privativas, como sói acontecer

nas comarcas do interior, as demandas são processadas perante as varas

cíveis de competência genérica.

Nesse sentido é que Constituição Federal de 1988 estabelece

qual o juízo competente para o julgamento de demandas envolvendo

interesse da União (Justiça Federal), bem como para as demandas que

envolvam interesse dos Estados e Municípios (Justiça Estadual).

Ora, como já dito, é certo que entre União, Estados, Distrito

Federal e Municípios há diferenças evidentes, as quais, entretanto, não podem

ser erigidas validamente como critério justificador de tratamento jurídico

diferenciado.

Por outro lado, surge aqui um paradoxo, pois se afigura

igualmente intolerável impor a eles os mesmos direitos, sem fazer distinção

alguma.

É preciso pois verificar, dentro do sistema, quais as

discriminações possíveis e quais as que se mostram inaceitáveis.


75

Importa saber se há critério legítimo que permita distinguir,

sem ofensa ao princípio da isonomia, a pessoa jurídica da União para fins de

tratamento jurídico e processual diverso dos demais entes de direito público.

Somente então serão aclarados os fatores que permitem a perfeita compreensão

da isonomia, norteando o deslinde do problema aqui destacado.

No processo legislativo, quando a lei atribui tratamento especial a

uma pessoa, embasa-se em algum ponto de diferença, ao qual atribui relevância

para a adoção da situação discriminadora. Em decorrência, tem-se que algumas

discriminações podem ser compatíveis com o princípio da igualdade, sem

ofendê-lo. Para tanto, esses pontos de diferença, ou fatores de discriminação não

podem ser escolhidos de forma aleatória, sem guardar razoabilidade ou

correlação lógica com o tratamento conferido. A ordem jurídica visa, assim,

evitar aqueles tratamentos desiguais que sejam injustificados. Qualquer

discrímen não fundamentado, não arrazoado, constituirá portanto, ofensa à

isonomia.

Por isso, no sistema federativo, a edição de leis nacionais, com

caráter geral, busca unificar o quanto possível os atos normativos de modo

que as normas editadas complementarmente no âmbito de cada ente federado

observem os parâmetros constitucionais.

Por força do princípio da simetria, o modelo federativo impõe aos

demais níveis dos poderes estaduais e municipais o paralelismo das formas, em

decorrência da necessidade de rigoroso cumprimento das regras constitucionais.


76

Isso significa dizer que a autonomia do ente federal, no que diz

respeito ao processo legislativo, encontra seu limite na Constituição, e não

serve como justificativa para exacerbações, instituindo privilégios ou retirando

proibições a que estão sujeitos em regime de igualdade, todos os entes estatais.

A aplicação do princípio da simetria pressupõe identificação

total entre as situações tuteladas pela Constituição Federal de um lado, e pela

norma específica do ente federativo, do outro lado. Assim, havendo lei

nacional que discipline determinada matéria de raiz constitucional, se algum

ente federativo (União, Distrito Federal, Estados ou Municípios) pretender editar

norma com aplicação restrita à sua respectiva esfera de atuação, deve

observar o princípio da simetria, para que se cumpra a igualdade de tratamento

entre situações semelhantes no âmbito federal e no estadual.

Ora, na atual sistemática, nos juizados estaduais são proibidas

reclamações contra o Estado, os Municípios e o Distrito Federal, ao passo que

nos juizados federais admite-se demandas contra a União, com tratamento

processual especial diferenciado em detrimento do tratamento que remanesce

para os Estados, Distrito Federal e Municípios. Como se verá adiante, nos itens

3.4 e 3.5, o discrímen processual se mostra como inidôneo a servir juridicamente

como critério de desequiparação.

Portanto, a regra inovadora da Lei n° 10.259/01 ofende o

princípio federativo por desequiparar as pessoas constitucionalmente isonômicas,

incumbidas, ambas (União e Estados-membros), da mesma função (jurisdicional),

que é tecnicamente repartida apenas mediante a adoção de critérios materiais e

subjetivos na prestação da justiça.


77

3.4. As normas processuais diferenciadas para a Justiça

Federal e a Justiça Estadual - O problema da jurisdição

A Lei nº 10.259/2001 regula situação específica de ordem federal,

delimitando um microssistema regido por normas processuais próprias, com

dispositivos que lhe são próprios, por que dirigidos à Justiça Federal.

Assim, a segunda questão a expurgar na presente investigação

diz respeito à possibilidade de existirem normas processuais diferenciadas para

a Justiça Federal e a Justiça Estadual.

Para compreender o funcionamento do sistema processual, é

importante compreender também o funcionamento das instituições judiciárias,

cuja organização deixa de ser um mero aspecto administrativo para vincular-se

diretamente ao estudo do direito processual, isso em razão das funções de

caráter processual exercidas pelos órgãos judiciários.

O Poder Judiciário é um poder nacional, e sua jurisdição é una.

A divisão em várias jurisdições é acarretada imperiosamente pela necessidade

de se organizar o exercício da função jurisdicional, o que se faz pelas leis de

organização judiciária.

Apesar de sua natureza administrativa, a organização judiciária

serve como pano de fundo para o exercício da jurisdição, daí a sua ligação à

dinâmica do processo.
78

Por isso, ela é tutelada pela Constituição, que define as linhas

mestras que balizam a organização os órgãos responsáveis pela prestação da

jurisdição, de modo adequado e seguro. O processualista Cândido Rangel

Dinamarco adverte com propriedade que:

“de envolta com a matéria puramente organizacional do Poder Judiciário,


entre essas normas acham-se disposições que, ou são
preponderantemente de direito processual e não de organização
judiciária, ou ao menos situam-se numa zona cinzenta e participam de
igual modo, de ambas as naturezas. As normas sobre competência
estão nessa situação, porque é natural que o mesmo poder legiferante
(no caso, o Estado federado), ao instituir um órgão judiciário (os juízos e
os tribunais), delimite, desde logo, o campo de atuação de cada um, ou
seja, a sua competência.”48

Importa lembrar que, após a instituição da Justiça Federal no

Brasil, estabeleceu-se uma aparente dualidade de jurisdição na Justiça

comum, a saber: a) a Justiça estadual, existente nos Estados federados e b) a

Justiça Federal, com jurisdição em todo o território nacional.

Essa divisão atende a razões relacionadas com o regime

federativo brasileiro, atribuindo à Justiça Federal a competência para as causas

em que figure como parte a União, suas autarquias ou empresas públicas, de

modo a impedir que os juizes das unidades federadas possam decidir sobre

questões de interesse maior da Federação que os congrega. Dinamarco

oportunamente destaca que “constitui erro, cometido às vezes até pela lei ou

pelos tribunais mais qualificados, a indicação somente das justiças estaduais

como justiça comum, em oposição à Justiça Federal – como se esta fosse uma

Justiça especial.”49

48
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 357.
49
Op. cit. P. 464.
79

Tendo em vista um critério histórico-orgânico, Arruda Alvim50

leciona que a Justiça Federal pode ser considerada, em relação à Estadual,

como uma Justiça, conquanto ordinária, de índole especializada.

Todavia, tendo em vista o critério das normas por ela aplicadas,

a Justiça Federal é Justiça comum. Em outras palavras, tanto na Justiça

Estadual quanto na Justiça Federal, as normas de processo são as mesmas, seja

para o procedimento comum ordinário, seja para os procedimentos especiais.

É elemento característico do Estado Federal a previsão de

instrumentos que assegurem a integridade nacional do poder político, como por

exemplo, um ordenamento jurídico federal incidente sobre todo o território

nacional, a condição de superposição estrutural da Corte Suprema e a

intervenção da União nos Estados-membros.

A jurisdição una ou a existência de um Poder Judiciário Nacional

integrado por órgãos federais e estaduais, no modelo perfilhado pelo legislador

constituinte (art.92 da Constituição Federal), traz o equilíbrio seguro à resolução

dos conflitos, consagrando a unidade necessária na distribuição da justiça.

A só enumeração dos tribunais e juízes federais e dos tribunais

e juízes dos estados entre os órgãos do Poder Judiciário, no artigo 92 da

Constituição Federal, ressai como sinal evidente da jurisdição una. O caráter

federal ou estadual desses órgãos referem-se exclusivamente à organização

judiciária da União ou dos Estados.

50
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, v. 1 – Parte Geral. 6ª Edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 308.
80

Consagrando o princípio da jurisdição una, o Poder Judiciário dos

Estados se integra com o Poder Judiciário da União na harmonização da

legislação federal visando aplicá-la uniformemente em todo o território nacional,

diferentemente dos outros dois poderes estaduais (Executivo e Legislativo) que

são, nitidamente, poderes das unidades parcelares, expressivos do exercício da

autonomia constitucionalmente assegurada aos Estados-membros.

Embora a jurisdição seja una, a organização judiciária brasileira é

dual, por conta da opção federativa consagrada constitucionalmente. Isso não

compromete o Judiciário enquanto Poder Nacional. A jurisdição una e nacional é

reconhecida expressamente pelo legislador constituinte de 1988 ao fixar os

exatos contornos do estatuto da magistratura (art. 93 da Constituição Federal),

estabelecendo um sistema unificado de normas relativas à organização e ao

funcionamento.

A distinção, portanto, é apenas organizacional, visto que tanto

os Juízes e Tribunais Federais quanto os Juízes e Tribunais Estaduais aplicam,

predominantemente, a mesma legislação federal em suas decisões.

A título de argumentação, observa-se que a legislação que regula

o processo ordinário, o de execução, o cautelar, bem como os procedimentos

especiais para a execução fiscal, a desapropriação, a ação civil pública, a ação

popular, dentre outros, são os mesmos para ambas as esferas da Justiça

(Estadual e Federal).

De fato, não se justifica a existência de normas de processo

diferenciadas para um ou outro âmbito da Justiça, notadamente se ambas

pertencem à classificação de Justiça comum.


81

É justamente na noção equivocada de jurisdição, atinente à

organização do Poder Judiciário, que se vislumbra o conflito entre os

procedimentos estabelecidos para as causas cíveis de menor complexidade

contra os entes públicos da União e o procedimento de remanesce para os entes

públicos estaduais, municipais e distritais.

Considerando a idêntica origem das normas, é difícil conceber

diferença de superioridade apenas pela simples competência em razão da

pessoa (União), que a nosso ver não serve como critério diferenciador

autorizativo de um procedimento especial em prejuízo da igualdade de

situações encontradas nas esferas da federação.

No acatamento do principio da jurisdição una, a novidade surgida

na Lei 10.259/01, desequipara o tratamento processual das partes que litigam

nos os órgãos judiciários federais e estaduais, fraturando os predicamentos do

Poder Judiciário enquanto poder nacional.


82

3.5. O problema da tipificação legislativa - Lei nacional e lei

federal

Vozes na doutrina e na jurisprudência se levantam para

sustentar que a diferença de procedimentos é admissível pelo fato da Lei

10.259/01 ser uma lei federal endereçada unicamente à União, diferente da Lei

nº 9.099/95 que é uma lei nacional endereçada aos Estados.

Ocorre que a Lei n° 10.259/01 embora originada na esfera

legislativa federal, com a denominação de lei federal, tem conteúdo de interesse

específico a um único ente público, agindo a União, neste caso, com a mesma

qualidade com que agem os Estados na realização de semelhante atividade

legislativa.

Oportuno lembrar que a Constituição Federal, ao ditar normas de

direito processual, estabeleceu para tal regramento, mediante edição de lei

nacional, a competência exclusiva da União, consoante se observa do art. 22,

inciso I.

Contudo, ao traçar a estrutura dos procedimentos em matéria

processual, bem como a criação, funcionamento e processo dos juizados de

pequenas causas, estabeleceu que a União, os Estados e o Distrito Federal

possuem competência legislativa concorrente, a teor do art. 24, inciso XI.


83

Nesse caso, a competência da União limitar-se-á a estabelecer

normas gerais, das quais não podem se afastar as unidades federadas quando

da legiferação concorrente de normas de procedimentos em matéria processual.

A competência da União na definição de procedimentos afetos

especificamente à jurisdição federal tem conteúdo idêntico à competência dos

Estados quando estes editam suas leis locais. Sendo assim, a Lei n° 10.259/01,

por ter conteúdo equiparável ao das leis locais de procedimentos dos Estados, há

de estar submetida à lei processual geral, que tem conteúdo de interesse

nacional.

Para a perfeita compreensão do sistema, urge então enfrentar a

distinção entre lei federal e lei nacional. Não há vasta produção científica na

doutrina acerca do assunto. O autor Uadi Lâmmego Bulos esclarece que

"Qualifica-se lei federal a lei criada por iniciativa da União. Ela disciplina

interesses federais, diferentemente da lei nacional, que dispõe não só sobre

interesses federais, mas também a respeito dos interesses estaduais e locais."51

O conceito acima ainda está vago, necessitando de

complementação. Em nosso entender, a lei federal pode ser subdividida em

duas espécies, classificadas em lei nacional e lei federal “stricto sensu”.

A lei nacional é também lei federal porque editada pela

União, promanada do poder legislativo federal.

51
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2ª ed.,2001, p. 858.
84

Veiculadora de regras gerais, a lei nacional vincula e subordina

todas as pessoas políticas de direito constitucional interno, ou seja, os entes da

federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios).

Por sua vez, a lei federal “stricto sensu”, pode ser assim

denominada, porque apesar de também ser editada pela União, disciplina

matéria unicamente no âmbito de sua competência, à semelhança das leis

estaduais, distritais e municipais.

Disso decorre que a lei federal “stricto sensu” deve ser

necessariamente preordenada por uma lei nacional hierarquicamente superior

que estabeleça previamente as normas gerais.

Observa-se que, no caso do presente estudo, a lei nacional é a

Lei n° 9.099/95, que preordenou as normas gerais de direito processual

atinentes ao sistema dos Juizados Especiais, a serem observadas pelos

legisladores das três ordens da federação.

A Lei n° 10.259/01 é a lei federal “stricto sensu” decorrente da lei

nacional preordenada, porque destina-se a complementar as normas gerais

previamente editadas, e a disciplinar o procedimento para o âmbito da

competência jurisdicional de um dos entes federativos - a União, exercida

através da Justiça Federal. Igual pensamento é extensivo às leis estaduais e

distritais disciplinadoras, em caráter complementar, dos procedimentos em

matéria de juizados especiais.


85

Existindo lei nacional disciplinando as normas gerais sobre

procedimentos em matéria processual, a edição de atos normativos

específicos pelos entes federativos (leis federais “stricto sensu”, leis distritais

e leis estaduais) não pode, neste ponto, ser com ela incompatível ou

assimétrica. Sendo a Lei 9.099/95 uma lei nacional, suas disposições

ultrapassam os limites que diferenciam a União, Estados, Distrito Federal e

Municípios. É lei de aplicação geral a todos os entes federativos.

Em decorrência, nenhuma legislação concorrente e específica

desses entes (inclusive a União) pode contrariá-la. Diversamente, deve ser

observado o princípio da simetria, de modo que haja compatibilidade entre as

normas dentro do ordenamento jurídico, mantendo a almejada coerência do

sistema (item 1.1 supra).

É oportuno lembrar, nesta oportunidade, a observação de Carlos

Mário da Silva Velloso:

“Na competência legislativa de normas gerais, diretrizes ou princípios,


não poderá a União legislar sobre questões específicas, sobre
52
particularidades. Se o fizer, cometerá inconstitucionalidade.”

Portanto, sendo a Lei n° 10.259/01 uma lei federal “stricto

sensu” endereçada unicamente à União, conclui-se pela sua

inconstitucionalidade, por afronta ao princípio da simetria, eis que a lei

nacional que preordena normas gerais veda a participação de entes públicos no

sistema dos Juizados Especiais.

52
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. Temas de Direito Público. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p.
375.
86

3.6. O problema da natureza normativa – normas de processo

e de procedimento

Há que se superar também a visão inadequada do processo e

do procedimento, vez que não se tratam de fenômenos independentes e

autônomos. Não há como distinguir, de forma clara, as normas relativas a um e

a outro, pois o procedimento é norma processual e integra o conceito de

processo.

Urge lembrar que, a teor do art. 22, I da Constituição Federal, as

normas gerais de processo são de exclusiva competência da União.

Nessa linha de raciocínio, as normas “não gerais”, a saber, de

procedimentos em matéria processual que ficam ao critério da legislação

específica dos entes federativos, em razão da competência concorrente (art.

24, XI da Constituição Federal) não podem, igualmente, manter incoerência com

as normas gerais.

Abordando a competência para legislar sobre normas de

processo, Arruda Alvim, depois de tratar da compreensão do direito processual

e dos limites entre as normas processuais e os procedimentos, aclara:

“Para se identificar com alguma nitidez o traço divisório entre as normas


procedimentais e processuais, é necessário que se levem em conta,
fundamentalmente, dois parâmetros: 1º) a estreita conexão que têm
certas regras de processo com o direito material, v.g., regras atinentes à
legitimidade, à capacidade, às provas, o que, por si só, afasta a
possibilidade de os Estados federados legislarem acerca dessas
matérias, que consistem, pois, em normas processuais, e não
procedimentais;
87

2°) o princípio segundo o qual todos são iguais perante a lei, pelo que as
normas procedimentais não podem gerar direitos diferentes, v.g., no
Acre e em Santa Catarina” 53

E acrescenta:

“A nosso ver, de acordo com estas balizas, normas procedimentais não


gerais seriam as que estabelecessem novas formas de citação ou
intimação, normas respeitantes a cartas precatórias, as cartas de ordem,
etc.”54

Na presente investigação, é oportuno destacar que ambas as

leis - Lei n° 9.099/95, de caráter nacional e Lei n° 10.259/01, lei federal “stricto

sensu” regulam matéria verdadeiramente processual (competência, valor da

causa, procedimento, execução, recursos) e não de procedimento.

Como já destacado no item 3.5 supra, a Lei n° 10.259/01 embora

originada na esfera legislativa federal, tem conteúdo de interesse específico a um

único ente público, agindo a União, neste caso, com a mesma qualidade com que

agem os Estados na realização de semelhante atividade legislativa. Possui

conteúdo equiparável ao das leis locais de procedimentos dos Estados, cuja

edição é autorizada pela Constituição Federal apenas de forma complementar,

por isso há de estar submetida à lei processual geral, que tem conteúdo de

interesse nacional.

É justamente aí onde a igualdade e a simetria são mais

exigidas. E assim deve ser porque o sistema jurídico tem sua unidade baseada

em uma “norma maior”, com a qual todas as demais normas inferiores se

relacionam direta ou indiretamente (itens 1.2 e 1.3 supra).

53
ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, v. 1 – Parte Geral. 6ª Edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais,1997, p. 124.
54
Idem, p. 125.
88

Nesse sentido, é curial destacar ainda o ensinamento de Arruda

Alvim, quando aborda a competência para a legislação de matéria processual,

traçando um limite ao espectro das regras procedimentais atinentes ao

disciplinamento das provas no processo:

“As situações de direito material devem, necessariamente, ter


uniformidade, em relação às situações iguais; e quando o legislador
federal entender que não devem ter uniformidade, a ausência de
uniformidade deve decorrer da lei material federal e, ainda aqui, haverá,
certamente, de ser compatível com o princípio da igualdade de todos
perante a lei, tendo em vista a gama de assuntos exclusivamente
adjudicados à competência legislativa da União.” 55

Não se quer dizer que o legislador não possa estabelecer normas

procedimentais, nos casos cabíveis, em razão da pessoa (União ou Estados),

e sim que estas normas deverão guardar perfeita consonância com o

sistema jurídico em que estão inseridas, cuidando para que não se crie

situação de desigualdade, em detrimento da Constituição e de seus valores.

E essa coerência deve partir, acima de tudo, do plano

principiológico e constitucional. Se por um lado a Constituição conferiu à União e

aos Estados a criação dos Juizados Especiais, por outro estabeleceu critérios e

princípios maiores aos quais essa criação, para ser harmônica com o sistema

jurídico, deve observar, a saber, o princípio federativo, o princípio da

isonomia, o princípio da simetria, dentre outros.

Se assim não fosse, restaria permitido à União e aos Estados

tratar, em seus respectivos âmbitos de jurisdição, de forma diferenciada

qualquer instituto de direito processual, o que é inaceitável em nosso sistema.

55
Ibidem, p. 113.
89

Poder-se-ia até mesmo alterar, desordenamente, nas unidades

federativas, o conteúdo de qualquer outra lei processual superior, sem que

idêntico tratamento tivesse a matéria nos demais entes constitucionais. Evidente o

prejuízo que se imporia à unidade do direito processual.


90

3.7. O problema dos direitos fundamentais - A ofensa aos

direitos da igualdade e do acesso à justiça

Um dos aspectos essenciais dos direitos fundamentais é o de

que são norteadores da definição e regulação das normas de processo. Um

deles é a igualdade que, além de ser vista como princípio nuclear do

ordenamento jurídico, consiste em direito humano fundamental, com posição

proeminente no contexto da Constituição Federal. Está presente nos artigos 3º e

5º da Lei Maior, vedando diferenciações arbitrárias, no sentido de que todos

têm direito a tratamento idêntico perante a lei.

O princípio da igualdade tem como destinatários não só o

aplicador da lei, mas também o particular e muito notadamente o legislador.

Quanto ao primeiro, cuja função jurisdicional é aplicar o direito ao caso concreto,

impõe-se observar o respeito às normas constitucionais, processuais e demais

princípios do direito, sob pena de incidir em arbitrariedade. Quanto ao segundo,

impõe-se não praticar condutas discriminatórias, sob pena de recair sobre ele

responsabilidade penal e civil previstas na legislação. Quanto ao terceiro e último,

impõe-se a limitação na sua função de editar normas, onde não poderá, sob

nenhum pretexto, afastar-se do princípio da igualdade, assujeitando-se ao dever

de dispensar tratamento equânime às pessoas, sob pena de, não o fazendo,

cometer inconstitucionalidade.
91

Nessa linha de raciocínio, para a efetividade do referido direito

fundamental, toda situação de injustificada desigualdade, que não demonstrar

compatibilidade com os valores proclamados na norma suprema, deve ser

considerada inconstitucional.

Tal circunstância se manifesta, segundo José Afonso da Silva,

“quando a lei cria situações de desigualdade em confronto concreto com outras,

que lhes sejam iguais, como o dispositivo que trata de forma desigual a entes que

devam litigar em igualdade de condições”.56

Assim, para que haja violação do princípio constitucional da

igualdade no domínio da desigualdade de tratamento, cumpre que: existam

situações iguais que estejam sendo tratadas de forma desigual sob o ponto de

vista jurídico-constitucional; não exista para essa desigualdade uma razão

suficiente; exista uma regulação concreta discriminatória, violadora da Lei Maior.

Aplicado ao processo, o princípio constitucional da isonomia quer

significar que autor e réu não poderão ter tratamento desigual. Não apenas isto,

porém mais ainda: implica em que todos os autores sejam igualmente tratados

(igualdade formal), e não propriamente com o significado necessário de que o

autor seja igual ao réu (igualdade substancial).

Na seara processual, exsurge então o princípio da igualdade

jurisdicional, para evitar a distinção entre situações iguais ao aplicador da lei e

como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamento desigual a

situações iguais por parte do Poder Judiciário.

56
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18a. Ed. São Paulo: Malheiros,
2000, p. 222.
92

Por conseguinte, situações de igual direito material reclamam,

pela regra de coerência do ordenamento, igual tratamento processual.

Abordando a proposta de ampliação dos Juizados Especiais à

Justiça do Trabalho, o Juiz Ricardo Cunha Chimenti destaca com propriedade

tema que, a exemplo de argumentação, pode ser trazido à colação neste

trabalho:

“Questão para nós inexplicável é a relativa a exclusão das pessoas


jurídicas de direito público. Não se trata de instituir, aqui, competência
especial, e, ainda que assim o fosse, o art. 114 da Constituição Federal
submete à Justiça do Trabalho às questões relacionadas às pessoas
jurídicas de direito público interno e externo. Portanto, outra não pode
ser a conclusão que não a manobra governamental para procrastinar
feitos em que a pessoa pública é ré. A norma criou uma profunda
discriminação, o que, para nós, fere as disposições constitucionais
relativas à não-discriminação e tratamento igualitário.”57

Com efeito, são inconstitucionais as situações discriminadoras

não autorizadas pela Constituição. No tema em exame, esse direito fundamental

assume particular destaque, porquanto, como já visto, comparam-se institutos

de natureza processual que afrontam a igualdade de tratamento das partes.

Confrontam-se aqui, de um lado, as causas cíveis de menor

complexidade contra a União e de outro, as mesmas causas, contra Estados,

Distrito Federal e Municípios.

Insta lembrar que os Juizados estaduais e os Juizados federais

possuem objetivos gerais idênticos, a saber, a conciliação, julgamento e a

execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor

potencial ofensivo.

57
CHIMENTI, Ricardo Cunha. Teoria e prática dos Juizados Especiais Cíveis. 5ª Edição. São
Paulo: Editora Saraiva,2003, p. 336.
93

Possuem também os mesmos princípios informadores, quais

sejam, oralidade, simplicidade, informalidade, economia e celeridade processual.

Dentre os principais caracteres desse novo sistema, destaca-se o

de possibilitar a ampliação do ingresso em juízo, com a dispensa do

pagamento das custas e honorários judiciais, em primeira instância, nas

demandas de pequeno valor econômico. Alem disso, o rito especial previsto para

os Juizados visa reduzir a tão combatida morosidade da justiça, mediante a

simplificação dos atos processuais, conferindo o máximo de efetividade ao

processo. Por fim, dá especial valor à conciliação, como forma de composição

dos conflitos individuais apresentados ao Poder Judiciário.

As semelhanças de objetivos encontradas nas Leis 9.099/95 e

10.259/01 são condizentes com o princípio da igualdade jurisdicional,

aplicado ao direito processual, segundo o qual as partes devem receber

tratamento isonômico, não apenas dentro do processo, mediante a igualdade

das partes, mas também quanto à igualdade de procedimentos a serem

adotados em situações similares.

Contudo, as similitudes entre as duas leis se esgotam nos

princípios e objetivos. Começam então as diferenças no rito processual. Uma

causa cível de menor complexidade contra Estados, Distrito Federal ou

Municípios não irá tramitar no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, à

semelhança de uma causa da mesma natureza que tramita nos Juizados

Especiais Federais.
94

A título de argumentação, veja-se a hipótese de um acidente de

trânsito. Dois cidadãos têm, no mesmo dia, seus veículos abalroados, o

primeiro por um veículo de entidade federal e o segundo por um veículo de

entidade estadual, ambos com prejuízos de pequena monta.

Conquanto a situação fática seja igual para ambos – acidente

de trânsito com danos materiais, o tratamento processual para o deslinde do

conflito de interesses será diferenciado, senão vejamos.

Aquele que litigar no Juizado Especial Federal terá acesso à

justiça livre do pagamento das custas processuais. Não precisará arcar,

igualmente com pagamento de advogado, pois poderá formular o pedido

oralmente. O processo não terá prazos diferenciados para a Fazenda Pública. A

execução da sentença será mais célere, mediante simples ofício expedido pelo

juiz, para pagamento no prazo de sessenta dias.

Aquele outro terá que litigar no Juízo comum estadual – Vara da

Fazenda Pública da Capital ou não havendo esta, em vara genérica – arcando

com o pagamento das custas processuais. Terá que custear advogado para a

formulação do pedido. Terá que suportar prazos diferenciados para a Fazenda

Pública. Terá que se submeter a uma execução mais demorada.

É evidente a diferença de tratamento processual para situações

idênticas. Os procedimentos distintos acima destacados ferem frontalmente o

direito fundamental de igualdade dos litigantes – aqui não a igualdade entre autor

e réu – mas entre os autores, notadamente aqueles que litigam contra entes

públicos no âmbito dos Estados e Municípios e suas entidades, em detrimento

daquelas que litigam contra a União e suas entidades.


95

Não se pode admitir que uma causa de menor complexidade

contra a União tramite perante os juizados especiais, com todos os benefícios

respectivos, e a mesma causa perante os Estados e Municípios não o seja. Não

existe diferença valorativa dos bens jurídicos envolvidos. O valor do bem é o

mesmo. Fatos iguais, tratamento isonômico.

Alterando o rito processual para atender às peculiaridades da

jurisdição federal, a Lei n° 10.259/01 criou uma situação de desigualdade de

tratamento para situações iguais, pois é imperioso reconhecer que, tanto na

Justiça Federal quanto na Estadual, existem causas cíveis de menor

complexidade envolvendo o Estado e seus entes.

Como destacado no item 2.4 supra, seja no âmbito da Justiça

Federal, seja no âmbito da Justiça Estadual, nas varas especializadas da

Fazenda Pública, afloram causas cíveis de menor complexidade contra entes

públicos, e que ainda se submetem ao rito do processo comum, ainda muito

demorado e incapaz de resolver tais lides com a celeridade e efetividade

almejada. Não se diga que o procedimento sumário atende com presteza a tais

demandas, porquanto ainda assim exigem alto custo das partes com as

formalidades do processo e demandam tempo muito maior do que o previsto

para os juizados especiais.

Ademais, no processo comum, os pagamentos devidos pela

Fazenda Federal, Estadual ou Municipal (e suas autarquias e fundações públicas)

em virtude de sentença judicial transitada em julgado fazem-se exclusivamente

na ordem cronológica de apresentação de precatórios e da conta dos créditos

respectivos.
96

Como já dito no item 3.5 deste Capítulo, o elemento tomado como

fator de desigualação nos procedimentos refere-se ao fato de ser a Lei n°

10.259/01 dirigida unicamente à Justiça da União, reguladora de situação

específica de ordem federal.

Contudo, diante dos valores consagrados constitucionalmente,

tem-se que a simples competência em razão da pessoa (União) não serve como

critério diferenciador que legitime ou autorize um procedimento especial em

prejuízo de situações idênticas encontradas nas várias esferas da Federação.

Não há uma razão suficientemente justificável para o discrímen

processual entre os litigantes – aqui os autores, com maior facilidade de acesso

à justiça para um e mais dificuldades para outro, pelo simples fato de litigar

contra a União ou contra o Estado.

Não se vislumbra correlação lógica entre o fator acima erigido e a

disparidade estabelecida no tratamento processual diversificado.

Nem se diga que se trata de norma de procedimento, pois como

já visto no item 3.6 supra, a Lei n° 10.259/01 foi muito além do que deveria, ao

estabelecer verdadeiras normas de processo (competência, valor da causa,

procedimento, execução, recursos) e não apenas de procedimento.

Não se constata, igualmente, correlação lógica entre o fator de

discrímen – competência em razão da pessoa constitucional da União – de um

lado, e de outro, os valores e interesses absorvidos e prestigiados pelo sistema

constitucional (princípio federativo, princípio da jurisdição una, princípio da

simetria, princípio da isonomia ou direito fundamental de igualdade, princípio da

inafastabilidade do controle jurisdicional ou direito fundamental de igual acesso à

justiça).
97

É mais do que oportuna a lição do professor Celso Antônio

Bandeira de Mello, que ao abordar a correlação lógica entre o fator de discrímen e

a desequiparação, destaca que:

“Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da


juridicidade de uma norma diferençadora quando é perceptível a
congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade
de situações correspondentes.
De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao
apartar situações, para fins de regula-las diversamente, calça-se em
fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento
jurídico dispensado.
Tem-se, pois, que é o vínculo de conexão lógica entre os elementos
diferenciais colecionados e a disparidade das disciplinas estabelecidas
em vista deles, o quid determinante da validade ou invalidade de uma
regra perante a isonomia.” 58

Prossegue ainda o renomado autor afirmando que:

“Não é qualquer diferença, conquanto real e logicamente explicável, que


possui suficiência para discriminações legais. Não basta, pois, poder-se
estabelecer racionalmente um nexo entre a diferença e um conseqüente
tratamento diferençado.

Requer-se, demais disso, que o vínculo demonstrável seja


constitucionalmente pertinente. É dizer: as vantagens calçadas em
alguma peculiaridade distintiva hão de ser conferidas prestigiando
situações conotadas positivamente ou, quando menos, compatíveis com
os interesses acolhidos no sistema constitucional.”59

Obviamente, é possível haver discrímen. Entretanto, deve ser

justificado. Veja-se, por exemplo, o caso das obrigações definidas em lei como de

pequeno valor que a Fazenda Federal, Estadual, Distrital ou Municipal deverá

pagar, em virtude de sentença judicial transitada em julgado. Nos termos do art.

100, § 5° da Constituição Federal, a lei poderá fixar valores distintos para essas

obrigações, segundo as diferentes capacidades das entidades de direito público.

58
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., São
Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 37.
59
Idem, p. 42.
98

O tratamento jurídico diferenciado, neste caso, é autorizado pelo

ordenamento constitucional, que no entanto, define um limite para teto máximo

para tais obrigações, sendo de quarenta salários mínimos para os Estados e

Distrito Federal, e de trinta salários mínimos para a Fazenda dos Municípios,

conforme o art. 87 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Não há óbice a que cada ente federado defina o montante para

as obrigações de pequeno valor, conforme as respectivas capacidades

financeiras, desde que seja observado o teto máximo acima definido. Para a

União, o valor fixado na própria Lei n° 10.259/01, é de sessenta salários

mínimos.

Veja-se, por exemplo, que no Estado do Acre, vigora a Lei

Estadual nº 1.481 de 17/01/2003 que define a obrigação de pequeno valor para o

Estado em 30 salários mínimos. No âmbito do Município de Rio Branco, a mesma

obrigação é definida em R$ 1.000,00 (mil reais), por ter capacidade financeira

diferente. E assim pode suceder nos demais entes da Federação.

Essas diferenças de valores não ofendem o princípio da

isonomia, uma vez que compatíveis com a ordem constitucional e por ela

legitimadas. Não obstante, reitera-se que é a diferença no tratamento processual

e procedimental para a tramitação de causas envolvendo pequenas obrigações

contra entes públicos que viola juridicamente a igualdade entre os litigantes,

em comprometimento à unidade desenhada pelo legislador constituinte e

retratada no estabelecimento dos direitos e garantias relativos ao processo,

tematizada no art. 5º, da Constituição Federal.


99

Aliado à igualdade dos litigantes, sobressai-se o direito

fundamental à tutela jurisdicional. Ao consagrar que “a lei não excluirá da

apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, a Lei Maior não quer

apenas reafirmar o direito de acesso aos tribunais (sic. Poder Judiciário), mas

também o direito a uma prestação jurisdicional por meio de um “procedimento

adequado”.

Esse direito é considerado fundamental porque se constitui no

direito a fazer valer os próprios direitos. Implica no direito de exigir uma

prestação do Estado, que deverá fornecer a técnica processual adequada para a

resposta jurisdicional do juiz acerca da lesão ou ameaça a um direito. E não

apenas isso: o acesso à justiça requer, além da edição de técnicas processuais

adequadas à tutela jurisdicional, mas de procedimentos idôneos à possibilita-la,

como também a própria prestação do juiz, de forma efetiva.

Destacando a importância das regras processuais para a proteção

do direito fundamental de acesso à justiça, Ingo Sarlet, ao abordar os direitos à

prestações normativas por parte do Estado afirma que “podem incluir tanto

direitos a proteção mediante a emissão de normas jurídico-penais, quanto o

estabelecimento de normas de organização e procedimento”.60

Em arremate a esse entendimento, é de Canotilho a afirmação de

que:

60
SARLET, Ingo W. A eficacia dos direitos fundamentais, p.194-195, apud MARINONI, Luiz
Guilherme. Técnica processual e proteção dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais. P.186
100

“A garantia de acesso aos tribunais perspectivou-se até agora, em


termos essencialmente defensivos ou garantísticos: defesa dos direitos
através dos tribunais. Todavia, a garantia de acesso aos tribunais
pressupõe também dimensões de natureza prestacional, na medida em
que o Estado deve criar órgãos judiciários e processos adequados
(direitos fundamentais dependentes da organização e procedimento) e
assegurar prestações (apoio judiciário, patrocínio judiciário, dispensa
total ou parcial do pagamento de custas e preparos) tendentes a evitar a
denegação da justiça por insuficiência de meios econômicos. O acesso à
justiça é um acesso materialmente informado pelo princípio da igualdade
de oportunidades”. 61

Do direito de acesso à justiça, decorrem diretamente outros, tais

como o direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional, direito

fundamental ao procedimento adequado, direito fundamental ao provimento

adequado e tempestivo, direito ao meio executivo adequado, tudo com vistas à

almejada efetividade do direito substancial.

Diante desse quadro, sendo o processo, em sentido amplo

(processo e procedimento) a técnica para a outorga da tutela jurisdicional, se

se apresentar inadequado à viabilização dessa outorga àquele que a ela tem

direito, por motivo de determinadas circunstâncias ou situações discriminadoras,

estará o próprio instrumento de acesso à justiça negando o direito fundamental a

que se propõe.

Da mesma forma, haverá igual lesão ao direito de acesso à justiça

na ocorrência de procedimentos diversos por mera justificativa da estrutura

organizatória dos órgãos jurisdicionais.

Para Luiz Guilherme Marinoni, o direito à tutela jurisdicional

efetiva não se contenta apenas em ser o direito ao procedimento legalmente

instituído.

61
CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p.456.
101

Sendo insuficiente raciocinar unicamente em termos de iguais

oportunidades de acesso à justiça, é fundamental verificar a partir de que lugar

o procedimento deve ser formatado, e assim qual é a origem de sua legitimação.

“O jurisdicionado não é obrigado a se contentar com um procedimento


inidôneo à tutela jurisdicional, pois seu direito não se resume à
possibilidade de acesso ao procedimento legalmente instituído. Com
efeito, o direito à tutela jurisdicional não pode restar limitado ao direito de
igual acesso ao procedimento estabelecido, ou ao conceito tradicional de
direito de acesso à justiça.” 62

O direito fundamental de igualdade, além de jungido ao direito de

acesso à justiça, é também vinculado ao direito ao devido processo legal. Nesse

sentido, prossegue ainda o renomado professor, em magnífica lição cuja

transcrição, apesar de longa, é oportuna:

“O art. 3º, III da CF é bem claro ao afirmar que um dos objetivos


fundamentais da República Federativa do Brasil é ‘erradicar a pobreza e
a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais’.
É possível deixar evidente, nessa linha de argumentação, que nem todo
procedimento especial instituído pelo legislador é um procedimento
legitimo à luz dos valores da Constituição. Também por uma razão
óbvia: da mesma forma que não é correto tratar situações diferentes por
meio de um único procedimento, não é possível conferir procedimentos
distintos à situações que não merecem – à luz do valores da
Constituição – tratamento diversificado.
Se a Constituição Federal deve eliminar as desigualdades, não há como
aceitar o procedimento que faz exatamente o contrário, isto é,
potencializa a desigualdade, abrindo ao que tem posição social
privilegiada a oportunidade de percorrer as vias da jurisdição, por
intermédio de um procedimento diferente daquele que é atribuído às
posições sociais “comuns”.
Como já dissemos, os procedimentos, como todos os atos do poder
público, devem estar em conformidade com o princípio da igualdade. O
legislador infraconstitucional é obrigado a desenhar procedimentos que
não constituam privilégios, bem como, para atender aos socialmente
mais carentes, a estruturar procedimentos que sejam diferenciados, na
medida em que a diferenciação de procedimentos é uma exigência
suprimível para um ordenamento que se inspira na igualdade
substancial.
O procedimento que não está de acordo com o principio de igualdade
não é due process of law. A cláusula do devido processo legal não é
mais mera garantia processual, tendo se transformado, ao lado do
principio da igualdade, “no mais importante instrumento jurídico, protetor
das liberdades públicas, com destaque para sua novel função de
controle do arbítrio legislativo e da discricionariedade governamental,
notadamente da ‘razoabilidade’ (reasonableness) e da ‘racionalidade’
(rationality) das normas jurídicas e do atos em geral do Poder Público”.

62
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais – 2004. pp. 197-198.
102

A cláusula do devido processo legal no sentido substancial permite o


controle da legitimidade das normas jurídicas mediante o principio da
isonomia. Ora, como já dizia San Tiago Dantas, nem todo ato legislativo
formalmente perfeito é due process of law. Para que o seja, é necessário
que esse ato, no seu conteúdo normativo, esteja de acordo com o
principio da igualdade.
O controle da razoabilidade da lei, realizada em virtude da garantia do
devido processo legal, tem por fim evitar leis que sejam arbitrárias, ou
melhor, leis que discriminem em desatenção ao principio da igualdade,
ou que deixem de diferenciar quando necessário à observância desse
principio. Isto é, a cláusula inclui “a proibição do Poder Legislativo de
editar leis discriminatórias, ou em que sejam negócios, coisas ou
pessoas tratados com desigualdade em ponto sobre os quais não haja
entre eles diferenças razoáveis, ou que exijam, por sua natureza,
medidas singulares ou diferenciais”. 63

Estas leituras reforçam a idéia, já acentuada anteriormente, de

que os litigantes em situações iguais devem ter assegurados os direitos

fundamentais, notadamente o da igualdade, por meio do devido processo

legal, de procedimento adequado, e em iguais condições de acesso à

justiça.

Nesse ponto, observe-se que, se houve o reconhecimento da

existência de causas de menor complexidade a serem discutidas contra a

União, tal entendimento deve ser o mesmo quanto à existência de causas

contra Estados, Municípios e contra o Distrito Federal, para assegurar a

efetividade dos direitos fundamentais acima destacados.

63
Op.cit. pp. 197-198.
103

CAPÍTULO IV

INSUFICIÊNCIA DOS CRITÉRIOS PARA SOLUÇÃO

DA ANTINOMIA ENTRE AS LEIS n° 9.099/95 E 10.259/01


104

4.1. A antinomia no procedimento para as causas cíveis de menor


complexidade contra entes públicos

Como visto no capítulo um, a coerência lógica é requisito do

sistema jurídico. O problema do conflito de normas envolve não só os limites da

norma tida por incompatível, mas também a própria função da ciência jurídica.

Uma norma ou princípio jurídico pode ser afrontado às claras, de

forma ousada e expressa. Contudo, por outras vezes, a ofensa acontece de

forma muito sutil. Casos há em que a norma, a nível formal, atende

regularmente a uma determinação constitucional, mas na sua substância,

contraria a mesma Lei Maior que autorizou sua elaboração. A sutileza da ofensa

pode passar imperceptível a um olhar superficial, mas nem por isso deixa de

configurar incompatibilidade, nem é menos censurável.

É justamente nessa forma mais sutil de ofensa (e que muitas

das vezes leva a raciocínios equivocados embasados em visões exclusivamente

pontuais), que se exige um amplo exame da incompatibilidade face aos valores

maiores que norteiam o ordenamento jurídico.

É o caso da presente investigação. Até o ano de 2001 não

havia distinção de processo ou procedimento para as causas cíveis de menor

complexidade ajuizadas contra a Fazenda Pública Municipal, Distrital, Estadual

ou Federal. Essas demandas seguiam, todas, o rito do processo comum

(ordinário ou sumário).
105

Já se falou, no item 3.1, que a Lei n° 9.099/95 (norma geral) não

disciplinou, originariamente, procedimento relativo às demandas contra entes

públicos, justamente por ter proibido a tramitação de causas de interesse da

Fazenda Pública no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis.

Por outro lado, a Lei n° 10.259/01 (norma específica a um dos

entes da federação – União) admitiu que os entes públicos federais fossem

demandados perante os Juizados Especiais Cíveis Federais.

É evidente que ocorre incompatibilidade normativa, vez que

uma das normas é proibitiva (Lei n° 9.099/95) e a outra permissiva (Lei n°

10.259/01). A norma permissiva definida pela lei específica a um dos entes

públicos está compreendida na proibição – genérica – para todos os entes

públicos, definida na lei de caráter geral. Ademais, como já destacado no

capítulo 3, existe igualdade jurídica entre os destinatários das duas normas,

tanto entre os entes públicos, quanto entre os jurisdicionados que contra eles

litigam.

Confrontados entre si, os dois microssistemas apresentam

indesejável antinomia de proibição e permissão, quebrando a coerência do

ordenamento jurídico (item 1.1 supra).

Estamos assim, diante de normas processuais incompatíveis, já

que seria impossível cumprir integralmente a Lei n° 10.259/01 sem descumprir

parcialmente a Lei n° 9.099/95, em seus artigos 3°, § 2° e 8°.


106

Incompatibilidade maior ainda se destaca quando o microssistema

dos juizados especiais federais e o atual tratamento processual conferido às

causas cíveis de menor complexidade contra os demais entes públicos são

confrontados com os valores e princípios constitucionais, a por em dúvida a

validade da Lei n° 10.259/01.

A antinomia aqui encontrada não é apenas entre os dois

microssistemas dos juizados especiais (estaduais e federais), mas principalmente

entre os procedimentos para as causas cíveis de menor complexidade

envolvendo as pessoas jurídicas de direito público da União, demandada

mediante procedimento diferenciado e dos Estados, Distrito Federal e Municípios,

remanescendo para estes últimos o procedimento ordinário. Trata-se de questão

que urge um equacionamento, face aos prejuízos processuais às partes

litigantes que restaram discriminadas em situações iguais, sem perder de vista os

escopos sócio-jurídicos-políticos da legislação.

Não se justifica, após o legislador admitir a União como parte nos

Juizados Especiais, emprestar tratamento desigual aos os Estados, Municípios e

Distrito Federal, excluindo-os de procedimento mais célere que muito beneficia

os jurisdicionados. Tal incompatibilidade é condenável juridicamente, tendo em

vista que causa dificuldades à justa e igual aplicação dos direitos fundamentais

ligados ao direito processual.

Apesar do grande avanço que a Lei n° 10.259/01 trouxe na luta

travada contra a morosidade processual, nos feitos em que é parte a Fazenda

Pública, deve-se dar importância, ante a dinamicidade do direito, à

necessidade de um processo legislativo livre da edição de normas antinômicas.


107

Tendo o legislador o poder de modificar as leis, deve obedecer

às regras do sistema que traçam os lineamentos para a elaboração legislativa,

tanto na forma quanto na substância (ou conteúdo) dos atos normativos.

No caso em estudo deveria, portanto, estar atento à

observância dos princípios constitucionais, notadamente o princípio da

isonomia. Poderia ter modificado previamente a Lei n° 9.099/95, em seus

artigos 3°, § 2º e 8°, admitindo que os entes públicos, nas três esferas de

poder da federação, fossem demandados em sede de Juizados Especiais Cíveis,

respeitados os valores compatíveis com a capacidade financeira de cada

entidade, estabelecidos em leis locais, para efeito de definição das obrigações

de pequeno valor, às quais ficaria vinculado o teto máximo para aferição das

causas cíveis de menor complexidade. Não há qualquer vedação constitucional

nesse sentido. Ao contrário, todo o ideário do sistema caminha em direção à

ampliação do acesso à justiça.

Mas não foi assim que aconteceu. O caminho escolhido,

conquanto buscasse alcançar a Justiça Federal com a boa experiência dos

Juizados Especiais Estaduais, acabou por quebrar a coerência do ordenamento

jurídico. O legislador ordinário foi além do permitido pela Emenda

Constitucional, eis que o parágrafo único do artigo 98 limitou a atuação do

legislador ordinário à simples criação do juizado e não ao estabelecimento de

normas processuais. Assim, qualquer acréscimo a essa autorização, inclusive

definição de um novo rito processual, teria que enfrentar a limitação

constitucional ou alterar previamente as regras gerais previamente estabelecidas

na Lei n° 9.099/95, onde foi consignada a vedação de demandas contra a

Fazenda Pública.
108

As leis de natureza processual também são instrumentárias do

direito fundamental de acesso à justiça, bem como do princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana, ambos expressos na Constituição Federal. Sendo

assim, é de se concluir que a admissibilidade de procedimentos diversos para

causas iguais, a saber, causa cíveis de menor complexidade contra entes

públicos, sem lastrear-se o fator discriminatório em fator de relevância social

justificável no plano do aferimento de valores superiores em confronto, vulnera

os princípios federativo e da unidade da jurisdição, bem como os direitos

fundamentais da igualdade e do acesso à justiça, proclamados na

Constituição.
109

4.2. Critérios para solução das antinomias - revisitando os


ensinamentos de Norberto Bobbio

Como se constata, os princípios constitucionais e direitos

fundamentais já destacados figuram entre os limites materiais à edição de lei

que contenha norma processual especificamente endereçada a um dos entes da

federação, uma vez que representam o ponto de sustentação do ordenamento

jurídico.

A necessidade de coerência exige a correção das normas

incompatíveis, com a exclusão das contradições detectadas, para assegurar sua

homogeneidade e garantir a segurança na aplicação do direito.

Para tanto, é necessário identificar as espécies de

incompatibilidades, bem como lançar mão dos critérios possíveis para sua

solução.

Norberto Bobbio ensina que “a situação de normas incompatíveis

entre si é uma das dificuldades frente as quais se encontram os juristas de todos

os tempos, tendo esta situação uma denominação própria: ANTINOMIA”64.

Coube a esse renomado autor classificar as antinomias, que

podem ser distintas em três tipos diferentes, conforme a maior ou menor extensão

do contraste entre as duas normas.

64
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1990. p. 81
110

Se as duas normas incompatíveis têm igual âmbito de validade, a

antinomia pode-se chamar, total-total: em nenhum caso uma das duas normas

pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra. Um caso de antinomia

total-total é a oposição entre a proibição da greve e a permissão da greve.

Se as duas normas incompatíveis têm âmbito de validade em

parte igual e em parte diferente, a antinomia subsiste somente para a parte

comum, e pode chamar-se parcial-parcial: cada uma das normas tem um campo

de aplicação em conflito com a outra, e um campo de aplicação no qual o conflito

não existe.

Se, de duas normas incompatíveis, uma tem um âmbito de

validade igual ao da outra, porém mais restrito, ou, em outras palavras, se o seu

âmbito de validade é, na íntegra, igual a uma parte do da outra, a antinomia é

total por parte da primeira norma com respeito à segunda, e somente parcial por

parte da segunda com respeito à primeira, e pode-se chamar total-parcial. A

primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito

com a segunda; a segunda tem uma esfera de aplicação em que não entra em

conflito com a primeira.

Mas, uma coisa é descobrir a antinomia, outra é resolvê-la. É

necessário passar da determinação das antinomias para a solução das

antinomias. Para isso, Bobbio ainda identifica três regras fundamentais para a

solução das antinomias.


111

O primeiro é o critério cronológico, aplicado quando duas normas

incompatíveis são sucessivas, prevalecendo a posterior. O segundo critério é o

hierárquico, e serve quando duas normas incompatíveis estão em nível diverso,

prevalecendo a superior. Segundo esse critério, as normas superiores podem

revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar as superiores.

O último é o critério de especialidade serve no conflito de uma

norma geral com uma norma especial, prevalecendo a segunda. A passagem da

regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação

das categorias, e a uma descoberta, gradual, por parte do legislador, dessa

diferenciação.

Quanto a esse terceiro critério, segundo o qual a lex specialis

derogat generali, cabem algumas considerações complementares.

A edição de leis especiais é admissível porque corresponde a

uma exigência fundamental de justiça, compreendida como tratamento igual das

pessoas que pertencem à mesma categoria. A lei especial subtrai, então, uma

parte da matéria de uma lei geral para submetê-la a uma regulamentação

diferenciada, menos extensa e mais específica.

Isso ocorre quando se verifica um determinado fator de

diferenciação, pelo qual a persistência da regra geral importaria no tratamento

igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e portanto, numa

injustiça. Cuida-se de um processo natural de diferenciação das categorias.

Contudo essa diferenciação deve ser razoavelmente justificada. Não o sendo,

importa em violação à mesma igualdade que limita sua elaboração.


112

Logo, a antinomia criada pelo relacionamento entre uma lei geral

e uma lei especial, é aquela que corresponde ao tipo total-parcial. Isso significa

que quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de

uma das duas normas incompatíveis mas somente daquela parte da lei geral que

é incompatível com a lei especial.

Bobbio afirma ainda que pode haver até mesmo conflito entre os

critérios para solução de determinadas situações antinômicas. O caso mais

interessante de conflito se verifica quando entram em oposição dois critérios

fortes entre si, como o hierárquico e o da especialidade. É o caso de uma norma

superior-geral incompatível com uma norma inferior-especial.

Aplicado o critério hierárquico, prevalece a lei geral. Aplicado o

critério de especialidade, prevalece a lei especial. Para esse problema não existe

uma regra geral consolidada. A solução dependerá também, neste caso, como no

da falta dos critérios, do intérprete, o qual aplicará ora um ora outro critério

segundo as circunstâncias.

A gravidade do conflito deriva do fato de que estão em jogo dois

valores fundamentais de todo ordenamento jurídico, o do respeito da ordem, que

exige o respeito da hierarquia e, portanto, do critério da superioridade, e o da

justiça, que exige a adaptação gradual do Direito às necessidades sociais e,

portanto, respeito do critério da especialidade.

Teoricamente, deveria prevalecer o critério hierárquico: a ser

admitido que uma lei especial possa derrogar os princípios constitucionais, que

são normas gerais, os princípios fundamentais de um ordenamento jurídico não

teriam razão de ser e se esvaziariam rapidamente de qualquer conteúdo.


113

Diante desse difícil problema é que o renomado jurista italiano,

que estudou profundamente a bases para uma teoria do ordenamento jurídico,

chama a atenção para a insuficiência desses três critérios, identificando ainda um

critério, não elencado especificamente como quarto critério, mas como critério

complementar, a ser aplicado conforme a forma da norma.

Segundo a forma, as normas podem ser imperativas, proibitivas e

permissivas. O critério é certamente aplicável, porque é claro que duas normas

incompatíveis são diferentes quanto à forma: se uma é imperativa, a outra é ou

proibitiva ou permissiva, e assim por diante.

Segundo Bobbio, o critério com respeito à forma consistiria de

estabelecer uma “graduação de prevalência” entre as três formas da norma

jurídica, por exemplo, deste modo: se de duas normas incompatíveis uma é

imperativa ou proibitiva e a outra é permissiva, prevalece a permissiva. Esse

critério parece razoável, e correspondente a um dos cânones interpretativos mais

constantemente seguidos pelos juristas, que é o de dar preponderância, em caso

de ambigüidade ou incerteza na interpretação de um texto, à interpretação

favorabilis sobre a odiosa.

O problema real, frente ao qual se encontra o intérprete, não é o

de fazer prevalecer a norma permissiva sobre a imperativa ou vice-versa, mas sim

o de qual dos dois sujeitos da relação jurídica é mais justo proteger, isto é, qual

dos dois interesses em conflito é justo fazer prevalecer, mas nessa decisão a

diferença formal entre as normas não oferece a mínima ajuda.


114

Bobbio porém, reconhece que essas regras deduzidas da forma

da norma não têm a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos três critérios

anteriormente examinados. Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um

conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a solução do

conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos quase falar de um

autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito

segundo a oportunidade, valendo-se de todas as técnicas hermenêuticas usadas

pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar

uma só regra.

Defende ele que, no caso de conflito entre duas normas, para o

qual não valha nem o critério cronológico, nem o hierárquico, nem o da

especialidade, o intérprete, tem à sua frente três possibilidades: eliminar uma,

eliminar as duas ou conservar as duas.

No primeiro caso – de eliminação de uma das normas - a

operação feita pelo juiz ou pelo jurista chama-se interpretação ab-rogante. Mas o

jurista não tem o poder normativo e portanto não tem nem poder ab-rogativo;

Igualmente o juiz tem o poder de não aplicar a norma que considerar incompatível

no caso concreto, mas não o de expeli-la do sistema (de ab-rogá-la).

O segundo caso, de eliminação de ambas as normas em conflito

pode verificar-se, como vimos, somente quando a oposição entre as duas normas

seja não de contradição, mas de contrariedade. Também nesse caso pode-se

falar de interpretação ab-rogante, mas nesse caso trata-se, de uma dupla ab-

rogação.
115

A terceira solução - conservar as duas normas incompatíveis - é

talvez aquela à qual o intérprete recorre mais freqüentemente. É estrito dever do

intérprete, antes de chegar à interpretação ab-rogante tentar qualquer saída para

que a norma jurídica tenha um sentido. O jurista e o juiz tendem, tanto quanto

possível, à conservação das normas dadas. É certamente uma regra tradicional

da interpretação jurídica que o sistema deve ser obtido com a menor desordem,

ou, em outras palavras, que a exigência do sistema não deve acarretar prejuízo

ao princípio de autoridade, segundo o qual as normas existem pelo único fato de

terem sido estabelecidas pelo legislador.


116

4.3. Antinomias entre normas de processo

Às leis processuais aplicam-se as normas comuns de

interpretação para a solução de antinomias, devendo-se valorizar, notadamente,

o disposto no artigo 5º da Lei de Introdução do Código Civil (Dec-lei n. 4.657/42),

que manda ao aplicador da lei atender “aos fins sociais a que ela se dirige e às

exigências do bem comum”.

Neste campo do direito, a forma não deve obrigatoriamente

prevalecer sobre o fim último, de modo que os preceitos acerca de procedimentos

devem ser interpretados com a maior liberalidade possível, visto que as leis

processuais não podem ser um obstáculo que venha a frustrar a pronta

realização do direito material dos litigantes. O que importa, hodiernamente, ao

direito processual, é um processo justo e adequado.

Os princípios gerais do processo, sobretudo aqueles presentes na

Constituição Federal, vinculam toda e qualquer norma processual, razão pela

qual as disposições processuais devem ser interpretadas em harmonia ao

referidos princípios.

Para a fiel interpretação das normas processuais, deve-se

portanto, lançar mão dos princípios informativos que estruturam o processo em

sua missão específica de composição do litígio.


117

Como já visto no decorrer do presente estudo, constata-se

indesejável incompatibilidade normativa entre os procedimentos estabelecidos

para a tramitação de causas cíveis de menor complexidade contra as pessoas

jurídicas de direito público, admitindo-se que a União seja demandada mediante

procedimento diferenciado dos Estados, Distrito Federal e Municípios,

remanescendo para estes últimos o procedimento ordinário.

Quanto a essa incompatibilidade normativa, surgem aqui, duas

hipóteses.

A primeira é a de que falta à Lei n° 10.259/01 considerações

particulares ou justificativa razoável para o tratamento diferenciado à União,

diante dos princípios e direitos insculpidos nos artigos 1°, 5°, e 98 da

Constituição Federal e da proibição constante dos artigos 3º, § 2º e 8º da Lei

n.º. 9.099/95.

A segunda é a de que, a partir do advento da Lei n° 10.259/01,

falta à Lei n° 9.099/95 justificativa para a manutenção da proibição de causas

cíveis de menor complexidade contra os entes públicos.

A serem levados em conta os princípios do acesso à justiça, da

igualdade jurisdicional, da efetividade do processo e da celeridade processual

que nortearam a implantação dos Juizados Especiais, tais princípios por si só já

justificariam que todas as causas cíveis de menor complexidade fossem

processadas e julgadas perante os Juizados Especiais Cíveis, tanto nos casos em

que se trate da União, quanto nas demandas envolvendo os Estados, Distrito

Federal ou Municípios.
118

Ademais, é evidente que uma interpretação em prol da alegação

de inconstitucionalidade da Lei n° 10.259/01 certamente conduziria a um

retrocesso à execução anterior contra a Fazenda Pública, o que se revela

injustificável diante dos grandes avanços alcançados. Por isso mesmo, a se

atender os fins sociais da lei e as exigências do bem comum, sendo uma dessas

exigências, em matéria de processo, a igualdade de tratamento entre os

litigantes, entende-se, no presente trabalho, que a interpretação da lei

processual não pode ser restritiva e sim ampliativa, em favor do princípio

constitucional do acesso à justiça.

Com efeito, a interpretação teleológica nos termos da Lei de

Introdução ao Código Civil, considerando-se os princípios acima referidos, leva à

conclusão de que, com a instituição do novo sistema dos Juizados Especiais

Federais, admitindo-se o ajuizamento de causas cíveis de menor complexidade

contra um dos entes públicos da federação, os dispositivos da Lei n° 9.099/95

devem se colocar em harmonia com o texto constitucional, para o fim de ampliar

a competência dos Juizados Especiais Cíveis, admitindo-se ali o igual

ajuizamento de demandas contra Estados, Distrito Federal e Municípios.

A regra aqui adotada é a da “interpretação conforme a

constituição”, destacada pelo grande jurista Paulo Bonavides, que assim leciona:

“Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas


conduzem ao reconhecimento de inconstitucionalidade, outras, porém,
consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete,
adotando o método ora proposto, há de inclinar-se por esta última saída
ou via de solução. A norma, interpretada “conforme a Constituição”, será
portanto considerada constitucional. Evita-se por esse caminho a
anulação da lei em razão de normas dúbias nela contidas, desde
naturalmente que haja a possibilidade de compatibilizá-las com a
Constituição.”65

65
BONAVIDADES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 4ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
119

Nesse mesmo sentido é a orientação de Alexandre de Moraes66:

“Assim sendo, no caso de norma com várias significações possíveis,


deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com
as normas constitucionais, evitando sua declaração de
inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico.”

Essas leituras forçam concluir que a interpretação da lei

processual que mais se harmoniza com o texto constitucional é a “interpretação

conforme a Constituição”, que permite, lastreada nos direitos fundamentais de

igualdade jurisdicional e acesso à justiça, o acesso aos Juizados Especiais nas

causas de menor complexidade contra todos os entes públicos, e não apenas

contra a União, evitando assim a retirada da Lei n° 10.259/01 do ordenamento

jurídico.

66
MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional, 5ª. Ed. São Paulo: Atlas, 1999.
120

4.4. Solução da antinomia entre as leis n° 9.099/95 e n° 10.259/01


– Insuficiência dos critérios

O que se fez até aqui foi buscar, no plano teórico, a

constatação da incompatibilidade normativa em leis de natureza processual, bem

como a identificação do critério mais aceitável de interpretação para corrigir tal

incompatibilidade, a saber, o critério hierárquico, mediante a interpretação

conforme a constituição, seus valores e princípios.

O sistema constitucional brasileiro, inspirado pela doutrina norte-

americana, adotou o denominado controle difuso de constitucionalidade,

permitindo aos juízes deixar de aplicar lei que considerem incompatível com a

Constituição Federal. Nesse sistema, prevalece o critério hierárquico,

aplicando-se a norma superior constitucional, em detrimento da inferior

infraconstitucional.

Não obstante, a só identificação e utilização desse critério de

solução no plano teórico não expurga a incompatibilidade, eis que, no plano

prático, somente poderá ser utilizado de forma individual pelo aplicador do

direito – o juiz – o qual tem o poder de decretar a inconstitucionalidade pela via

difusa, contudo, limitado aos casos concretos. Disso decorre que a adoção de

tal interpretação, como forma de solução da incompatibilidade, poderá não ser

unânime, perpetuando ainda mais a desigualdade e com o risco de ver anulado

todo o processo em que for utilizado esse critério, na hipótese da instância

superior defender posicionamento diferente.


121

Sem adentrar no campo ético e filosófico, é possível afirmar que,

a permanecer ignorada a sutil incompatibilidade, com justificativas pontuais

sobre a validade das duas normas, há dificuldade para emprestar razoabilidade

à aplicação irrestrita e continuada de leis incompatíveis com o sistema

constitucional.

Cabe aqui recorrer mais uma vez às lições de Norberto Bobbio,

quando destaca a insuficiência dos critérios hierárquico, cronológico e da

especialidade, para resolver todos os casos possíveis de antinomias:

“Por outro lado, é necessário acrescentar logo que essas regras não
servem para resolver todos os casos possíveis de antinomia.
Daqui deriva a necessidade de introduzir uma nova distinção no âmbito
das antinomias próprias, isto é, a distinção entre as antinomias solúveis
e as antinomias insolúveis. As razões pelas quais nem todas as
antinomias são solúveis são duas:
1) há casos de antinomias nos quais não se pode aplicar nenhuma das
regras pensadas para a solução das antinomias;
2) há casos em que se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais
regras em conflito entre si.
Chamamos as antinomias solúveis de aparentes; chamamos as
insolúveis de reais. Diremos, portanto, que as antinomias reais são
aquelas em que o intérprete é abandonado a si mesmo ou pela falta de
um critério ou por conflito entre os critérios dados“.67

Este sutil quebra-cabeça expõe à dura prova o intelecto dos

juristas. Urge portanto constatar, no presente estudo, se a incompatibilidade

aqui encontrada configura antinomia aparente (solúvel) ou real (insolúvel).

Se a incompatibilidade for considerada uma antinomia

“aparente”, admitirá solução jurídica mediante a utilização dos critérios de

interpretação exaustivamente destacados.

67
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1990. p. 92
122

Nesta hipótese, a solução mais adequada a homenagear os

valores constitucionais destacados no presente trabalho será então, não a

inconstitucionalidade da Lei n° 10.259/01, mas a declaração da

inconstitucionalidade superveniente dos artigos 3°, §2° e 8° da Lei n°

9.099/95, considerando-os revogados apenas na parte que se refere à proibição

de “causas de interesse da Fazenda Pública” e do ingresso das “pessoas

jurídicas de direito público” no sistema dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais.

Tal interpretação afigura-se como a única ferramenta a ser

manejada pelos aplicadores do direito, valorizando os princípios constitucionais,

sem expurgar do ordenamento a Lei n° 10.259/01.

Ocorre que, no plano prático, como já visto acima, a suspensão

da aplicação da lei, com o reconhecimento da inconstitucionalidade,

individualmente em cada caso concreto, será possível e até recomendável, mas

não solucionará integralmente o problema da antinomia, pois estará submetida

ao convencimento pessoal de cada magistrado, o que pode acarretar

posicionamentos distintos, perpetuando, dessa maneira, a desigualdade e a

falta de coerência almejada pelo ordenamento jurídico. Ademais, tais decisões

poderão ser anuladas, em caso de entendimento contrário nas instâncias

superiores, causando mais demora e mais prejuízos aos litigantes.

Na esfera do Poder Judiciário, a única decisão de suspensão da

aplicação dos mencionados artigos 3°, § 2º e 8° da Lei n° 9.099/95, com

eficácia “erga omnes” somente será possível pela via da ação direta de

inconstitucionalidade – “Adin”, no plano do controle concentrado de

constitucionalidade, junto ao Supremo Tribunal Federal.


123

Com efeito, é o Supremo Tribunal Federal o órgão do Poder

Judiciário incumbido, por excelência, da “interpretação conforme a Constituição”.

Mas não havendo a propositura da ação pelos órgãos legitimados, tal órgão não

age de ofício. Todavia, há três anos foi promulgada a Lei n° 10.259/01, sem

qualquer ação questionadora da inconstitucionalidade superveniente e parcial dos

artigos 3° e 8° da Lei n° 9.099/95, não havendo nesta parte solução concreta.

Ocorre que, mesmo solvendo o problema no plano teórico, e no

plano individual de cada demanda, os critérios para solução da antinomia

aparente não solucionam, de maneira geral, a antinomia detectada. É dizer: a

incoerência permanece viva no ordenamento jurídico.

Diante desse quadro, a única saída que se encontra para uma

aplicação justa e equânime, segura e mantenedora da coerência do

ordenamento jurídico é mesmo a edição de lei nacional ordinária, revogando

a proibição de demandas contra entes públicos no âmbito dos Juizados Especiais

Estaduais, para sanar a incompatibilidade aqui detectada.

O posicionamento aqui adotado no que se refere às questões

pertinentes às causas cíveis de menor complexidade contra entes públicos, é o de

que a melhor solução para a ampliação da competência é produção legislativa,

revestida de validade e eficácia, a ser aplicada de forma geral por todos os órgãos

do Poder Judiciário.

A edição de lei corretiva, embora não conste dentre os critérios

assinalados na doutrina de Bobbio (item 4.3 supra) é o meio por excelência para

correção da incompatibilidade detectada.


124

4.5. O Projeto de Lei nº 3.763, de 2000

Como foi visto, a antinomia de proibição/permissão encontrada

entre a Lei n° 9.099/95 e a Lei n° 10.259/01 configura situação de difícil

enquadramento, uma vez que os interesses processuais dos litigantes se

entrelaçam com igual peso. Diante desse impasse, e sendo insuficientes os

critérios para solução da antinomia, há premente necessidade de ação legislativa

para disciplinar corretamente a matéria.

A bem da verdade, a obrigação de eliminar a incompatibilidade é

mesmo tarefa do legislador, que deve envidar os esforços necessários ao

restabelecimento da igualdade almejada e assegurada pela Constituição Federal.

Nesse sentido, importa destacar que tal medida encontra-se em

fase de implementação, com proposta de alteração da Lei n° 9.099/95 ora em

tramitação no Congresso Nacional, mediante o Projeto de Lei 3.763 de 2000, de

autoria do Deputado Ricardo Fiúza, atualmente aguardando pauta para

julgamento. Referido projeto, que já se encontra com parecer favorável da

Comissão de Constituição e Justiça, aguardando o encaminhamento para

votação, visa aperfeiçoar o procedimento para as demandas de pequena

complexidade contra os Estados e Municípios.

De acordo com o referido projeto, o caput do art. 8º da Lei n°

9.099/95, passará a vigorar com a seguinte redação:


125

“Art. 8°. Não poderão ser partes, no processo instituído por esta lei, o
incapaz, o preso, a massa falida e o insolvente civil”.

Exclui-se do corpo do artigo a expressão “as pessoas jurídicas de

direito público, as empresas públicas da União”. Trata-se de iniciativa justa, pois

significa a correção da desigualdade apontada no presente trabalho, eliminando a

restrição de a Administração Pública vir a ser demandada nas ações propostas

perante os Juizados Especiais e possibilitando aos cidadãos comuns

demandarem contra os entes públicos em causas cíveis de menor complexidade.

É oportuna a transcrição de trecho da exposição de motivos do

referido projeto de lei, que traz a seguinte justificativa:

“Um novo modelo institucional para a gestão dos serviços básicos do


Estado tem sido proclamado com veemência, no cenário das políticas
públicas para com o usuário cidadão, revitalizando esse relacionamento.
Corolário dessa diretriz, sem dúvida, será o permissivo legal, afastando o
impedimento do art. 8° da Lei n° 9.099/95 no tocante à Administração
Pública, oportunizando o exercício da cidadania através de demandas
desinformalizadas nos Juizados Especiais, notadamente no que diz
respeito à qualidade dos serviços públicos prestados.”68

Vale lembrar a similaridade constante na Exposição de Motivos

E.M./M.J./N° 009 de 11 de janeiro de 200169, por ocasião do encaminhamento do

Projeto de Lei que resultou na edição da Lei n° 10.259/01, onde asseverou o

senhor Ministro José Gregori que:

“A Comissão constituída pelos senhores Ministros do Superior Tribunal


de Justiça pretendeu, com o anteprojeto apresentado, simplificar o
exame dos processos de menor expressão econômica, ‘facilitando o
acesso à justiça e o ressarcimento das partes menos favorecidas nas
disputas contra a União, autarquias, fundações e empresas públicas
federais, pois a solução de tais litígios dar-se-á rapidamente, e sem a
necessidade de precatórios para a quitação dos eventuais débitos”70.

68
Extraído do site: www.camara.gov.br
69
BRASIL, Diário da Câmara dos Deputados nº 00358, que circulou em 02 de fevereiro de 2001.
70
Extraído do site: www.camara.gov.br
126

Questão interessante a se observar é que o Projeto de Lei n°

3.763 para alteração da Lei n° 9.099/95 foi encaminhado ainda no ano de 2000,

ou seja, bem antes do Projeto de Lei que resultou na Lei n° 10.259/01, que veio a

disciplinar a criação dos Juizados Especiais Federais, o qual somente foi

encaminhado em 2001.

Contudo, já decorridos quatro anos de seu encaminhamento, o

primeiro projeto (alteração da Lei n° 9.099/95) ainda não foi levado à votação,

enquanto o segundo (Lei n° 10.259/01) tramitou com extraordinária celeridade,

sendo votado num prazo recorde de seis meses.

A rapidez com que foi encaminhada e votada a Lei n° 10.259/01

denota a avidez com que se buscou estender o sistema dos Juizados Especiais

à Justiça Federal, com certo atropelo, pois caso o primeiro projeto (n. 3.763)

tivesse sido votado anteriormente, ou mesmo simultaneamente com o da Lei n°

10.259/01, não remanesceria a destacada antinomia entre as normas.

Por outro lado, esse mesmo Projeto de Lei n° 3.763 de 2000,

caso seja votado com o atual conteúdo, não deixará de ser objeto de novas e

polêmicas discussões, visto que apresenta falhas em sua elaboração.

Com efeito, o projeto não definiu as causas cíveis de menor

complexidade contra os entes públicos, as quais devem necessariamente estar

vinculadas ao teto para as obrigações de pequeno valor a serem estabelecidas

por cada ente federativo no âmbito de sua competência legislativa; Não alterou o

art. 3º, § 2º da Lei n° 9.099/95, suprimindo a expressão “causas de interesse da

Fazenda Pública”.
127

O projeto também não definiu o rito processual para essas

demandas contra os demais entes públicos, o que forçará necessariamente a

supressão da lacuna mediante interpretação analógica extensiva da Lei n°

10.259/01. Não previu a antecipação de honorários à conta de verba

orçamentária do respectivo tribunal, a ser ressarcido ao final pela entidade

pública eventualmente vencida. Não previu, por fim, a obrigatoriedade de criação

e instalação de Juizados Especiais Fazendários, quando o movimento forense o

justificar e nem a obrigatoriedade de aperfeiçoamento e capacitação dos

magistrados e servidores. Necessita portanto, de urgente complementação, antes

de sua votação final.


128

CONCLUSÃO
129

Conclusão

A incoerência normativa destacada no presente trabalho é

reflexo de uma postura legislativa que buscou de forma exacerbada extrair

para o âmbito da Justiça Federal a aplicação do sistema dos Juizados

Especiais, atropelando a orientação normativa constitucional.

As premissas adotadas no marco teórico (capítulo 1) repudiam

critérios legislativos que, na busca desenfreada de efetividade do processo,

deixem de levar em conta os princípios e direitos fundamentais, e tais são o

acesso à justiça e a igualdade de tratamento processual.

A edição de qualquer lei que restrinja insuportavelmente os

direitos fundamentais, ainda que criada por norma de aplicação específica na

jurisdição federal, compromete fatalmente a coerência do ordenamento jurídico.

Não é correto pôr em dúvida os propósitos positivos almejados,

com a adoção do sistema dos juizados especiais federais, principalmente no

momento atual do processo civil. No entanto, a avidez pela efetividade do

processo não deve levar, contraditoriamente, à formação de leis que afrontem

princípios constitucionais, assertiva esta que é uma das principais bandeiras da

moderna ciência processual.


130

Por isso, os princípios processuais constitucionais destacados

neste trabalho, assumem um relevante papel na garantia da supremacia e

efetividade da Constituição, na manutenção da coerência do ordenamento jurídico

e, conseqüentemente, dos direitos fundamentais vinculados ao direito

processual.

No presente estudo chega-se a três conclusões.

A primeira é a de que não se pode deixar de considerar como

inconstitucional o tratamento processual diferenciado para as causas cíveis de

menor complexidade contra a União, em detrimento do procedimento que

remanesce para as mesmas causas, contra os Estados, Distrito Federal e

Municípios.

A segunda conclusão é a de que os critérios teóricos existentes

para a solução da incompatibilidade normativa são insuficientes, visto que,

mesmo utilizando-se dos instrumentos disponíveis para a correção da

antinomia, notadamente o critério hierárquico, mediante a interpretação conforme

a Constituição, tal medida não atinge igual e simultaneamente a todas as

situações e a todos os jurisdicionados, porque podem ser aplicados apenas

individualmente, conforme a convicção do aplicador do direito em cada caso

concreto. Não há sequer vislumbre de interpretação conforme a constituição em

sede de controle concentrado, ausente a propositura de Ação Declaratória de

Inconstitucionalidade (superveniente) do art. 8° da Lei n° 9.099/95 perante o

Supremo Tribunal Federal pelos órgãos legitimados.


131

A terceira conclusão é a de que, apesar das vozes de

autorizados doutrinadores brasileiros, de que o processo deve ser colocado

dentro de novos paradigmas e parâmetros constitucionais, tornando efetiva a

aplicação dos princípios e direitos fundamentais, as situações concretas estão

a evidenciar a cada dia, que ainda há um longo caminho até a consecução

deste objetivo. O ideal seria que todos os operadores do direito estivessem, em

voz uníssona, imbuídos da transformação dessa realidade, de forma a tornar o

processo como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Não se

cogita, aqui, de simples criação de juizados especiais, ou de ampliação da

competência destes, e sim de um necessário e novo enfoque do processo civil.

O ordenamento jurídico brasileiro não pode continuar albergando

situações contraditórias como a que foi aqui destacada, mormente quando

direcionadas às pequenas demandas contra a Fazenda Pública. Mas o

principal responsável por essa incoerência é, sem dúvida, o legislador. Somente

através dele é possível modificar, de forma juridicamente segura, igualitária,

justa e equânime, o quadro angustiante que se está a demonstrar. Há, assim,

necessidade urgente de modificação da Lei nº 9.099/95, para admitir as causas

cíveis de menor complexidade contra os entes públicos, respeitados os valores

definidos em cada unidade federativa para as obrigações de pequeno valor.

Para concluir, faço minhas as palavras de Dinamarco, augurando

“que o exagero com que às vezes alguns desses mecanismos são manipulados

não conduza a uma retração e retrocesso em relação aos progressos que eles

significam.”71

71
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil – Volume I. São Paulo:
Malheiros, 2004. p. 113.
132

BIBLIOGRAFIA

1) Obras Jurídicas:

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Editora Revista dos Tribunais,1997.

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1990.

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2) Artigos:

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Faculdade de Direito de São Paulo, 1899, p. 120, apud José Frederico Marques, Ensaio sobre a
Jurisdição Voluntária, São Paulo, Saraiva, 1959.

3) Textos científicos publicados em periódicos eletrônicos:

JÚNIOR, João Mendes. A Nova Fase da Doutrina e das Leis do Processo Brasileiro, in Revista da
Faculdade de Direito de São Paulo, 1899, p. 120, apud MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre
a Jurisdição Voluntária, São Paulo, Saraiva, 1959, apud OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O
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4) Legislação:

BRASIL, Constituição da República Federativa.


BRASIL, Código de Processo Civil.
BRASIL, Lei n° 9.099/95.
BRASIL, Lei n° 10.259/01.

5) Periódicos:
BRASIL, Diário da Câmara dos Deputados nº 00358, que circulou em 02 de fevereiro de 2001.
Extraído do site: www.camara.gov.br, em 11 de dezembro de 2003.
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