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RESENHA SOBRE O NOVO ORGANUM DE FRANCIS BACON

Paulo Gomes Lima


Prof. Adjunto da FAED/UFGD – MS.
Área Fundamentos da Educação

No prefácio do Novo Organum, Francis Bacon (séc. XVI/XVII) afirma que a sua
via (como prefere) ou método, como costumamos conhecer, é de fácil apresentação,
enquanto objeto do conhecimento, mas, para a sua época, não tão fácil de ser aplicado
por conta de obstáculos históricos no desenvolvimento da cosmovisão científica. Neste
sentido, tece seu raciocínio propositivo no estudo dos graus de verdade originados das
percepções sensíveis sob nova ótica (distanciando-se da perspectiva aristotélica baseada
na crença da ciência por meio da autoridade clássica): uso de critérios metodológicos
para o desvelamento do objeto. Em sua proposição, deixa claro que sua ênfase não
pretende anular a reflexão científica ou mesmo dar-lhe um valor secundário, mas que
“... haja finalmente dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e o outro
destinado à descoberta científica”(Bacon,1999, p.29). Deste último, especificamente, o
propósito seria “... conhecer a verdade de forma clara e manifesta” (Id.,p.30).
O Novo Organum foi organizado didaticamente por Bacon em duas partes (Livro
I e II). Nas duas partes desenvolve sua proposta metodológica em forma de aforismos.
Aforismos são breves sentenças de índole afirmativa, negativa ou interrogativa que
podem contemplar e finalizar um raciocínio ou podem se encadear com outros
aforismos derivados ou não. Assim, o livro I é composto por 130 aforismos e o Livro II
por 52.
A leitura do livro não é cansativa, uma vez que o autor procura na escrita, seguir
o método ou a via que propõe: o pensamento indutivo. O seu ponto de partida é o
conhecimento do homem como sujeito e intérprete da natureza, mas que limita o seu
avanço por conta de um apego à agentes obstaculizadores. Em muitos dos aforismos,
observamos que Bacon faz menção à limitação do desenvolvimento científico,
condicionada pela teologia, sem negá-la ou rejeitar ele mesmo o cristianismo, mas pela
estagnação de um mundo determinado e revelado. Para ele, o mundo deveria ser
descoberto pela experimentação científica, podendo sem maiores prejuízos, coexistir a
fé e a ciência, como segue ao final de sua obra: “Pelo pecado o homem perdeu a
inocência e o domínio das criaturas. Ambas as perdas podem ser reparadas, mesmo
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que em parte, ainda nesta vida; a primeira com a religião e a fé, a segunda com as
artes e com a ciência.” (p.218).
Passo a passo, Bacon levanta argumentos da necessidade de um novo
conhecimento e fortalecimento da ciência pela educação do pensamento mobilizado
pela experiência, como observaremos a seguir nas duas partes de sua obra.

LIVRO I – AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA


E O REINO DO HOMEM

Nos aforismos de I a X, Bacon enfatiza a limitação da ciência, entendida como


caminho contemplativo. Para ele, o caminho científico deveria ser entendido à luz da
experiência sensível, por meio de auxílios adequados (métodos) que pudessem
favorecer a descoberta e não revelação dos fenômenos estudados.
Nos seguintes, de XI a XX, reporta-se a limitação da utilização silogística no
estudo dos objetos ou fenômenos. Neste caso, observa que as mesmas não assumiam
qualquer valor no estudo de fenômenos particulares, tendo em vista sua incursão
dedutiva, logo, aponta para a necessidade de um caminho de estudo apropriado que não
mais poderia ser orientado por uma lógica da dedução, mas, pelo “...verdadeiro
caminho...ainda não instaurado”. (p.36)
Nos aforismos de XXI a XXX observa que os axiomas abstraídos de fatos
particulares, conduzidos por antecipação e interpretação da natureza podem levar ao
encontro de descobertas evidentes, neste sentido, seria necessário a observação de
critérios concretos para a sua consecução.
De XXXI a XL se reporta a obstrução dos ídolos e noções falsas que impedem
os homens de instaurarem um novo olhar e caminho pra uma nova ciência. A palavra
“ídolo” emprega por Bacon dá a idéia de um falso deus ou falsa imagem do
conhecimento que também produz e reproduz noções equivocadas da verdade.
Dos aforismos XLI a L, Bacon classifica os ídolos em quatro tipologias – como
paradigmas que interferem no desenvolvimento da ciência e do pensamento coerente do
homem frente a um mundo que solicita outro tipo de olhar, a saber: a) da tribo, b) da
caverna, c) do foro e d) do teatro, as quais passamos a pontuar:

a) Ídolos da tribo: a tribo para Bacon corresponde à raça humana, os ídolos surgem
quando o homem se deixa perceber a realidade a partir de apenas uma perspectiva, por
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exemplo, tomar o conhecimento advindo dos sentidos como verdadeiro, não


considerando que tais percepções são incompletas e parciais. Para Bacon o homem
tende a querer simplificar o complexo como se isso de fato o explicasse o seu todo,
pois lhe é conveniente, mas uma via falsa, pois desconsidera as tramas desta totalidade.

b) Ídolos da caverna:
Bacon observa que cada pessoa tem sua caverna particular, seu raio de conformação,
assim a tendência dos indivíduos é observar e conceber a realidade por meio da luz que
estão habituados, Desta maneira alguns vão se guiar pelas diferenças do objeto, outros
pela semelhanças à luz de sua própria caverna (mundo concebido) e ambas orientações
poderão estar equivocadas

c) Ídolos do foro:
Ou ídolos do mercado ou da feira são erros caracterizados pela ambigüidade das
palavras e comunicação entre os interlocutores. Algumas palavras podem ser usadas em
sentidos diferentes por interlocutores e ambos concordarem aparentemente. Mas se
contextualizadas as convergências se dissipam e o diálogo se mostra tal como é.

d) Ídolos do teatro:
São causados ou surgem a partir dos sistemas filosóficos e em regras de demonstração
sem sustentação, portanto, falseadas como num teatro em que a verdade é somente um
detalhe e o que importa é a divagação. Os ídolos do teatro são caracterizados como
invenções acerca da verdade por meio dos sistemas filosóficos sem ter base na realidade
propriamente ditam. Dito de outra maneira os ídolos do teatro se materializam pela
aceitação irrefletida de falsas teorias acerca da natureza, do universo e do próprio
homem.

Para ele estes ídolos eram responsáveis pelo não progresso da ciência e pela
forma como o homem era educado, reproduzindo-se uma tipologia de homem,
distanciado do mundo real. Por isso propõe o caminho correto para se encontrar a
verdade contida no livro da natureza materializado no método indutivo – que consistia
na observação e experiências com fenômenos particulares para se chegar a
conhecimentos e causas mais gerais.
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Dos aforismos LI a LX refere-se aos Ídolos do foro como os mais perturbadores


para o desenvolvimento da ciência, por conta de tentarem explicar o mundo somente
pelo âmbito da racionalidade e sempre numa perspectiva ambígua, descartando a
experiência como aspecto significativo no desvelamento do objeto.
Nos aforismos LXI a LXX o autor enumera os motivos e causas para a
libertação dos ídolos e o amplo acesso ao reino dos homens, que repousa sobre as
ciências. Embora reconheça a contribuição grega no enfoque cultural da humanidade,
Bacon sente-se incomodado com a estagnação do pensamento idealista e a limitação da
perspectiva realista de Aristóteles, ainda que sua proposição seja realista, a condução do
pensamento e ordenamento metodológico representam o grande avanço para a
revolução do pensamento que inauguraria a idade e a ciência moderna.
Nos aforismos LXXI ao XC, faz alusão à ciência orientada pelos clássicos da
filosofia grega e depois romana, resignando-se ao indigno ofício de serva, uma vez que
desprendida do estudo de realidades particulares, universalizam os seus axiomas sem
experimentação, simplesmente na autoridade dos clássicos. Para Bacon, “...a verdade é
filha do tempo, não da autoridade”. (p.66) Neste sentido, aponta como importante a
verificação como tarefa do cientista numa nova perspectiva de aceitação ou não da
descoberta: “aceito ou não, porque experimento”.
Dos aforismos XCI ao C Bacon reporta-se à importância dos experimentos para
o progresso da ciência. Classifica-os como Lucíferos - necessários para a descoberta
das causas e axiomas e dos Frutíferos – responsáveis pelas descobertas ou
desvelamento do objeto ou fenômeno estudado por meio de método apropriado.
Do CI até o CX, Bacon afirma que muitas invenções podem ser desdobradas,
muitos axiomas e idéias podem ser concebidas se o caminho ou via do pensamento
seguirem a perspectiva do indutivismo.
Nos aforismos CXI ao CXXX, Bacon elucida o porquê da necessidade de sua
contribuição metodológica, afirmando que a ciência somente alcançaria qualquer
avanço se fosse conduzida por métodos que conduzissem e produzissem significativos
resultados práticos. Verdade científica e utilidade deveriam ser os alicerces do
pensamento indutivista, evitando-se toda e qualquer abstração que não fosse passível de
experimentação.

LIVRO II – AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA


E O REINO DO HOMEM
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Os aforismo I ao X Bacon estabelece o escopo da ciência à luz do pensamento


indutivo, reportando-se as intervenções metódicas e experimentos como o cerne de seu
método.
Do aforismo XI ao XX enfatiza que o método indutivo deveria ser orientado
pelas tábuas da investigação (princípios metodológicos) que funcionariam como
critérios essenciais no estudo do objeto ou fenômeno, a saber:
• Tábua da presença ou afirmação – levantamento de todos os casos em
que o fenômeno/ problema aparece – desde que apresente as mesmas
características;
• Tábua das ausências ou negação – Verificação dos casos em que o
fenômeno não ocorre;
• Tábua das graduações ou comparações – anotação dos diferentes graus
de variação do fenômeno, descobrindo-se as correlações entre as
modificações
Os procedimentos experimentais para Bacon abrangem o maior número possível
de observações indutivas, conforme se segue:

Variação – análise de um fenômeno/objeto cuja dimensão é alterada (massa


inicial/massa alterada) resultando numa comparação entre a velocidade inicial (sem
alteração de massa) e a velocidade procedente do objeto que tece sua massa aumentada.

Prolongação – aplicação do mesmo princípio à objeto ou fenômenos naturais alterados


(se o imã atrai o ferro em condiçõe naturais, em uma solução aquosa partículas de ferro
poderiam ser atraídas ?)

Transferência – a imitação de um fenômeno natural como possibilidade de gerar, por


intervenção do homem o mesmo resultado.

Inversão – estudo da inversão do fenômeno, comparando-se pelo menos dois deles


(frio/calor, etc.). Se existe uma relação verdadeira geradora do frio, o mesmo poderia
ser aplicado inversamente para o calor ?
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Compulsão – análise da relação causa-efeito (O aumento ou diminuição das causas


poderá acarretar ou não modificações nos efeitos ?)

União – análise da mistura de dois produtos diferentes e que são utilizadas para
finalidades similares – a sua união geraria ou não o mesmo resultado quando encontrado
juntos ?

Mudança de condições – análise da alteração ou não do objeto/fenômeno em


condições distintas (ex. ar livre/ recipientes ou lugares fechados).

O conjunto das tábuas de investigação e dos procedimentos experimentais foi


denominado por Bacon de Primeira Víndima, como se estive se referindo aos primeiros
passos (ou coleta de dados) na condução do estudo do estudo do objeto. O passo
seguinte, seria orientado pelas Instâncias Prerrogativas.
Do aforismo XXI ao LI Bacon discorre sobre as instâncias prerrogativas
caracterizando-as como o estudo do objeto em sentido restrito, de acordo com a
manifestação empírica do objeto. No Novo Organum, Bacon descreve 27 delas, como
enumeradas a seguir:
Solitárias Potestade ou do Cetro Caminho
Migrantes Acompanhamento Suplementares ou
substitutivas
Ostensivas Hostis Vara ou do raio
Clandestinas Subjuntivas Currículo
Constitutivas Aliança ou união Quantidade
Conformes ou proporcionadas Cruciais Luta
Monádicas Divórcio Indicadoras
Desviantes Lâmpada ou primeira Policrestas
informação
Limítrofes Analógicas Mágicas

Nestes aforismos, Bacon descreve cada uma destas instâncias exemplificando suas
características. Dentre estas as mais importantes são as seguintes:

Solitárias – análise de corpos ou características iguais de determinado objeto de esudo


com somente uma diferenciação;
Migrantes – análise das manifestações repentinas da natureza e análise do
objeto/fenômeno considerando o quadro de manifestações naturais;
Ostensivas – evidenciação de uma certa característica do fenômeno ou objeto.
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Analógicas – busca de esclarecimento de um objeto/fenômeno por meio de outro.


Cruciais – explicações opostas que auxiliam no esclarecimento do fenômeno.

O aforismo LII conclui que as instâncias prerrogativas relacionam-se


respectivamente com a parte informativa (auxiliam os sentidos e o intelecto), com a
parte operativa (ordena a prática metodológica, medindo ou facilitando a execução da
pesquisa) ou com ambas no estudo do objeto.

Considerações finais
Bacon é considerado o precursor da ciência moderna. Embora sua visão aponte
para o reducionismo científico por meio da indução, sua contribuição certamente abriu
possibilidades para a eclosão do século do método (XVII). A este respeito
Bernardo Jefferson de Oliveira (2002, p. 16) destaca que:

Bacon trouxe (...) noções, como a de colaboração,


progressividade e operacionalidade, que se fizeram
decisivas no conhecimento científico. A concepção do
conhecer como um fazer e do fazer que é ele mesmo
um conhecer (...) alcança em sua filosofia uma
sistematização e maturidade que fazem seu projeto de
reforma do conhecimento uma matéria fundamental
para a reflexão em torno da relação entre ciência e
tecnologia. De forma inédita, Bacon procurou afastar
estes dois saberes da arte, da religião e da metafísica
e, ao postular a identidade entre verdade e utilidade,
articulou a base da legitimidade em que o
conhecimento científico até hoje se apóia.

Ao pensarmos numa ciência experimental que em si apresentasse caminhos


metodológicos precisos, devemos nos reportar ao empenho de Bacon que, para além de
seu tempo projetaria tal perspectiva numa leitura distinta do tempo cronológico em que
vivia. Nisto reside o papel do pesquisador, conhecer e indagar-se do mundo, de suas
manifestações, de suas cosmovisões, mesmo que de forma fragmentada, porém numa
lógica dinâmica na construção do conhecimento.

Referências
BACON, F. Coleção Os Pensadores. Tradução e notas de José Aluysio Reis de
Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
LIMA, P. G. Fundamentos teóricos e práticas pedagógicas. Engenheiro Coelho:
UNASP, 2008.
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OLIVEIRA, J. B. Francis Bacon e a fundamentação da ciência como método. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2002.

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