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Experiências de nostalgia: de

Stranger Things a Vozes de Tchernóbil,


diferentes construções nostalgizantes

Bruno Souza Leal


Felipe Borges
Igor Lage

Ao investigar a relação que mantemos com a passagem do tempo, Hans


Ulrich Gumbrecht (2015) detecta uma imensa dificuldade em deixarmos
nossos passados “para trás”, pois somos constantemente inundados por
memórias e objetos de décadas anteriores. Segundo ele,

[...] em parte devido às nossas poderosas tecnologias de registro e


preservação da memória, em parte devido à já referida transforma-
ção na nossa construção social do tempo, temos hoje mais dificul-
dades do que antes para afirmar como será a arquitetura, o estilo
literário ou a música “do nosso tempo”. (GUMBRECHT, 2015, p. 52).

Diante desse cenário altamente cumulativo e da dificuldade em


projetarmos futuros (devido aos prognósticos desanimadores), Gum-
brecht defende que vivemos em um amplo presente. Nesse novo crono-
tropo, na leitura do filósofo teuto-americano, transitamos em meio às
atualizações de diferentes passados enquanto nos furtamos de pensar o
amanhã. Na esteira de diagnósticos como esse, em que a rememoração dá
o tom de boa parte da nossa experiência temporal, é recorrente o discurso
de que vivemos numa época nostálgica (NIEMEYER, 2014): nostálgica por

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tempos que já se foram (BAUMAN, 2017; REYNOLDS, 2011); por narrati-
vas do passado, que renascem por meio de remakes, reboots, prequências
e sequências (como das franquias Star Wars e Jurassic Park, e de séries
como Lost in Space); pelo passado das próprias mídias que acompanha-
mos (vide o canal por assinatura Viva, cuja programação consiste em re-
prises de produções antigas da Rede Globo); dentre outros casos.
Se parece ser um relativo consenso que a nostalgia é um elemento
importante da vida contemporânea, não surge como razoável pressupor
que ela seja ofertada ao consumo, nos diferentes produtos midiáticos,
e vivida pelas pessoas de modo homogêneo, linear, unidimensional ou
uniforme. A pregnância da nostalgia hoje, nos parece, adquire força e po-
tência quando articulada à experiência, ou seja, aos modos como ela se
enraíza, plasma, configura em ações e textos. Isso leva ao menos a dis-
tinguir a nostalgia tal como ela é materializada no agir dos integrantes da
indústria midiática, configurada nas narrativas dos diferentes produtos
e efetivamente incorporada à vivência das pessoas. Nessa perspectiva, é
possível diferenciar uma estratégia de produção e de apresentação de cer-
tos produtos midiáticos, ou seja, um modo de ganhar e garantir consumo
e audiências, dos recursos narrativos, em que a nostalgia dá o sentido ao
mundo possível organizado numa dada história. Essas duas formas nas
quais a nostalgia se apresenta nos produtos culturais não se confunde,
por sua vez, com a vivência nostálgica das pessoas, marcadas por diferen-
tes modos de articulação entre memória e esperança, passado, presente
e futuro. Menos que um sentimento promovido por um agente externo, a
nostalgia, vinculada à experiência, é sobretudo uma ação – motivada por
um impulso, diria Fredric Jameson (2000) – que matiza os nossos modos
de lidar com as lembranças, com o que foi, com expectativas e projeções
acerca do que é hoje e do que virá.
Considerando os limites deste artigo, propomos um caminho re-
flexivo e analítico que busca distinguir a ação nostalgizante de diferentes
narrativas, sejam elas ficcionais ou não ficcionais. No primeiro caso, to-
mamos como referências narrativas audiovisuais, em especial de séries
como Mad Men e Stranger Things. No segundo caso, nos apoiamos nas
histórias que compõem o livro Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksié-
vitch (2016). A aproximação de obras tão distintas considera que, mesmo
apresentando mundos claramente ficcionais ou vivenciados por sujei-
tos históricos, elas acentuam o papel imaginativo e ambíguo que marca

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a ação nostalgizante, permitindo-nos, então, observar algumas tensões
presentes na nossa experiência temporal contemporânea.

Nostalgia e progresso
Conforme Andreas Huyssen (2014), a palavra “nostalgia” pode ser decom-
posta em “lar” (nostos) e “dor”, “perda” ou “desejo” (algos). O termo se re-
fere, assim, a uma saudade de casa, à falta de algo que está longe e/ou já
passou. Logo, “[o] significado primeiro da palavra remete para a noção
de irreversibilidade do tempo: algo no passado que já não se pode alcan-
çar” (HUYSSEN, 2014, p. 87). De maneira semelhante, Katharina Nieme-
yer (2014) define o sentimento nostálgico como o desejo agridoce por
tempos e espaços do passado. Porém, para a autora, a nostalgia se refere
também à atração por algo que poderia ter sido. Segundo ela, uma série
como The Newsroom (HBO, 2012-2014) é nostálgica não por mostrar o
passado do jornalismo que nos deixou saudades, mas sim por apresentar
uma visão ideal da profissão tal como sempre desejamos, mas que jamais
se concretizou.
Segundo Huyssen,

[d]esde o século XVII europeu, com a emergência de um novo sen-


tido da temporalidade, caracterizado cada vez mais pela radical as-
simetria de passado, presente e futuro, a nostalgia enquanto desejo
de um passado perdido transformou-se num mal moderno. Este
sentido predominantemente negativo da nostalgia na modernida-
de tem uma explicação: a nostalgia opõe-se às noções lineares de
progresso e corrói-as, tanto as que respondem à dialéctica da filoso-
fia da história como as que dizem respeito à modernização social-
-econômica. (HUYSSEN, 2014, p. 87).

Diante do discurso da modernidade europeia, que em boa medida


recusava o passado em prol de um futuro melhor, podemos dizer que a
nostalgia serviria até mesmo como forma de resistência – inclusive por
aqueles para quem o tal progresso jamais chegava. Niemeyer acentua que
a emergência da nostalgia indica, antes de tudo, uma crise com a própria
temporalidade.

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Nesse sentido, expressões nostálgicas ou a criação de mundos nos-
tálgicos poderiam indicar um fenômeno duplo: uma reação às tec-
nologias velozes, mesmo que elas sejam usadas, no desejo de de-
sacelerar, e/ou uma fuga dessa crise para um estado de desejo por
viajar (Fernweh) e de nostalgia (no sentido de Heimweh) que pode-
ria ser “curada”, ou encorajada, pelo uso e consumo da mídia. A nos-
talgia poderia, consequentemente, indicar um sintoma de progres-
so, mas também de crise. (NIEMEYER, 2014, p. 2, tradução nossa).1

A mídia, dessa forma, desempenharia um papel fundamental e pa-


radoxal na nossa relação com a nostalgia: ao mesmo tempo que a encora-
ja, pode ser vista também como sua “cura”. Essa abordagem nos permite,
por um lado, escapar de uma visão midiacêntrica sobre tal relação. Não é
que a mídia desperte, a partir dela própria, a nostalgia no leitor/especta-
dor: trata-se de uma complexa relação dialógica, na qual criamos e con-
sumimos, consumimos e criamos, narrativas nostálgicas, midiáticas ou
não. É nessa perspectiva que se pode reconhecer, tal como observa Nie-
meyer, uma estreita ligação entre mídia e nostalgia, uma vez que a primei-
ra se configura como um espaço fundamental para que possamos expres-
sar nosso sentimento nostálgico: “A mídia produz conteúdos e narrativas
não apenas no estilo nostálgico, mas também como desencadeadores da
nostalgia. A mídia e as novas tecnologias, em particular, podem funcio-
nar como plataformas, lugares de projeção e ferramentas para expressar
nostalgia” (NIEMEYER, 2014, p. 7, tradução nossa).2 A mídia, nesse senti-
do, seria importante para alimentar e responder à nostalgia não apenas
pelo viés tecnológico de recuperação de imagens de arquivo, por exem-
plo, mas também – e principalmente – pela possibilidade de fazer circular
narrativas capazes de conectar pessoas de diferentes gerações, lugares e
classes sociais. O fortalecimento de laços de pertencimento (mesmo que
ideal, possível, desejado ou sonhado; mesmo se geracional, comunitário,
nacional e/ou cultural), afinal, pode se constituir como elemento basi-

1 In this sense, nostalgic expressions or the creation of nostalgic worlds could indicate a
twofold phenomenon: a reaction to fast technologies, despite using them, in desiring to slow
down, and/or an escape from this crisis into a state of wanderlust (Fernweh) and nostalgia
(in the sense of Heimweh) that could be ‘cured’, or encouraged, by media use and consump-
tion. Nostalgia could consequently present a symptom of progress, but also of crisis.
2 Media produce contents and narratives not only in the nostalgic style but also as triggers
of nostalgia. Media, and new technologies in particular, can function as platforms, projec-
tion places and tools to express nostalgia.

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lar da nostalgia, como veremos mais adiante. Nessa perspectiva, faz-se
necessário evitar os perigos de abordagens amplas e homogeneizadoras,
estabelecendo distinções, atentando-se para os diferentes gestos nostal-
gizantes dos produtos midiáticos, ou seja, observando como a nostalgia
se configura, se apresenta, em cada narrativa, em cada produto, em cada
experiência.

Abordagens midiáticas sobre décadas passadas e sobre


hoje e amanhã
Diante da tão difundida defesa de que vivemos tempos de nostalgia, é
preciso tomar cuidado em relação ao que seria, de fato, um sentimento
nostálgico. A nostalgia se refere, num nível básico, a um tipo de relação
com a memória na qual há um despertar de, como dissemos, sentimentos
agridoces por tempos e espaços, de uma vontade de relação com o pas-
sado muitas vezes ludibriada pela romantização. Na introdução de Media
and Nostalgia, Niemeyer (2014) sugere uma possível e coerente aproxi-
mação entre o boom da memória – defendido, entre outros, por Huyssen
(2014) – e o da nostalgia. Nesse enquadramento, a impressão que fica é
a de que qualquer narrativa de reconstrução memorialística é automa-
ticamente “nostálgica”. Em alguns momentos, a autora parece confundir
ambas as dimensões, ao colocar os filmes O artista (The artist, Michel
Hazanavicius, 2011) e A invenção de Hugo Cabret (Hugo, Martin Scorsese,
2011) juntamente às séries Mad Men (AMC, 2007-2015), Boardwalk Em-
pire (HBO, 2010-2014) e Downton Abbey (ITV, 2010-2015) como exemplos
da atual onda nostálgica. No entanto, o olhar saudoso e ingênuo que A
invenção de Hugo Cabret apresenta sobre a Paris do começo do século
XX está longe de se aproximar do modo como Downton Abbey constrói
a virada entre os séculos XIX e XX, explorando os conflitos, as traições e
a corrupção que assola as pomposas famílias aristocratas da Inglaterra.
Aliás, as três séries citadas tendem a construir quadros críticos sobre os
períodos históricos que exploram.
É mesmo possível, por exemplo, igualar as séries Stranger Things
(Netflix, 2016-presente) e Halt and Catch Fire (AMC, 2014-2017), uma vez
que ambas se passam nos anos 1980? A primeira faz referência (e reve-
rência) ao universo nerd da época: citações a diversos filmes do período
dão a tônica do show, como O enigma de outro mundo (The Thing, John

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Carpenter, 1982), ET: o Extraterrestre (ET: the Extra-Terrestrial, Steven
Spielberg, 1982) e Chamas da vingança (Firestarter, Mark L. Lester, 1984).
Já Halt and Catch Fire trata da revolução dos computadores pessoais no
mesmo período e no mesmo país. Stranger Things pode ser vista como
uma grande homenagem à infância no subúrbio dos Estados Unidos.
Na trama, quatro crianças precisam investigar o que aconteceu com um
amigo que desapareceu, em meio à descoberta de forças sobrenaturais
atuando na até então pacata e fictícia Hawkins. A vinheta de abertura, a
trilha sonora, as intrigas e os easter eggs (elementos escondidos nas ce-
nas, geralmente algum objeto, que fazem referência a outro filme, série ou
game, por exemplo) querem fazer o espectador viver o que teria sido os
anos 1980 – e, ao fim, concordar que foi uma época especial, digna de des-
pertar saudades ou mesmo uma admiração resignada naqueles que não
a vivenciaram. Não é essa a proposta de Halt and Catch Fire. Se Stranger
Things é, como produto cultural e como construção narrativa, uma obra
marcadamente nostálgica, Halt não pode ser assim considerada apenas
por também examinar a década de 1980 – afinal, apesar de algumas con-
cessões sentimentais, ela tende a desenhar mais criticamente o período,
assim como o faz Mad Men em relação aos anos 1960-1970.
Em sua impecável reconstrução histórica, Mad Men pode parecer, a
princípio, uma atraente isca para os espectadores ansiosos por rememo-
rar as glórias dos Estados Unidos do meio do século XX, com seus homens
de ternos alinhados, suas mulheres bem-vestidas e obedientes, seus car-
ros elegantes e suas casas acolhedoras. A cada episódio, entretanto, o que
temos é uma implacável e dolorosa desconstrução dessa imagem “per-
feita”, que se intensifica conforme os eventos históricos reais (a Guerra
do Vietnã e os assassinatos de John F. Kennedy e Martin Luther King, por
exemplo) tornam o país mais turbulento. Entretanto, mais do que explo-
rar tais acontecimentos, a série está preocupada em escancarar os jogos
de poder corrosivos que sustentam e perpassam lares e empresas esta-
dunidenses da época: por trás do casamento perfeito, inúmeras traições;
por trás de uma promoção profissional, favores sexuais; por trás de um
premiado comercial de cigarro, consumidores que morrem de câncer no
pulmão; por trás de um homem brilhante e respeitado, uma identidade
oculta. A saudade, aqui, certamente não é a tônica da relação que se cons-
trói com as referências a esse passado, mas sim a negação de uma visão
idealizada.

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Assim, Mad Men pode ser incluída no hall das produções que, con-
forme Jameson, não opera na lógica dos filmes (ou séries, no caso) de
nostalgia, que nos treinaram para “[...] consumir o passado em termos de
imagens sofisticadas [...]” (2000, p. 293). A produção traz, sim, imagens al-
tamente sofisticadas, por assim dizer – mas são imagens que expõem uma
ilusão, em que a aparência não condiz com a substância. Se as imagens do
período são ressignificadas na série, o mesmo pode ser dito sobre a músi-
ca: um recurso constante é o uso de canções ingênuas da época, capazes
de convocar uma memória nostálgica – mas que, empregadas no contex-
to dos perturbadores acontecimentos da série, geralmente para fechar os
episódios, perdem o viés saudosista, ganhando contornos irônicos.
Em nosso modo de ver, Mad Men não é nostálgica como Stranger
Things ou O artista. Por um lado, a série claramente se sustenta num im-
pulso nostálgico como um modo de atrair e seduzir espectadores, ou seja,
como uma cuidadosa estratégia de espectatorialidade e de consumo. Por
outro, no mundo narrativo que constrói, ela tematiza criticamente a nos-
talgia. Como lembra Niemeyer, isso é bem trabalhado no último episódio
da primeira temporada, “The Wheel”, em que o protagonista, Don Draper,
surge nostálgico não só por seu passado e por sua casa, mas por uma ideia
de família que, na verdade, nunca experimentou realmente. Isso é dizer,
então, que Mad Men parece interessado menos em expressar um senti-
mento nostálgico, oferecendo-se à experiência da saudade, e mais em
pensar o nosso presente de forma pessimista, como destaca Elie During:

Apesar do extremo cuidado de realismo e de fidelidade histórica na


expressão da textura de uma época – até mesmo a escolha de re-
lógios e canetas –, o prazer de acompanhar os membros de uma
agência de publicidade no coração de Manhattan dos anos 1960
procede, em realidade, do mesmo fascínio pelo caráter irreal des-
se passado que imaginamos facilmente em preto e branco ou na
distância do clichê, do estereótipo inscrito nas imagens “cromo” da
revista Life, e que redescobrimos como uma versão possível do nos-
so presente. Pois esse passado, esse impulso futurista dos anos 1960
que conjugava crescimento econômico e liberação dos costumes, é
recuperado aqui com a cor e o gosto do presente, como um presen-
te alternativo que poderia duplicar o nosso, a ponto de recobri-lo. O
universo de Mad Men, seu irreal do passado, é uma proposição do
presente. (DURING, 2013, p. 216, grifos do autor).

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Oferecendo-se como experiências nostálgicas bem distintas, Mad
Men e Stranger Things pedem um olhar mais aprofundado sobre o lugar
do espectador. É por isso que a noção de nostalgizar, com a qual Niemeyer
trabalha, é atraente. A própria autora ressalta que o termo não existe no
dicionário. Tal falta não é gratuita, uma vez que a nostalgia sempre esteve
mais ligada à ideia de “ser/estar nostálgico” – ou seja, é mais passiva do
que ativa. “Uma mudança linguística para empregar o verbo pode, nesse
sentido, indicar uma mudança social. A nostalgia não seria apenas uma
expressão de um sentimento, mas algo que você faz, um ato discursivo [...]
que pode potencialmente se transformar em um processo criativo prag-
mático” (NIEMEYER, 2014, p. 10, tradução nossa).3 Segundo Niemeyer,

[...] a nostalgia não seria apenas algo que somos ou sentimos, e seria
mais do que apenas um produto cultural que consumimos, admi-
ramos ou escrevemos sobre. Seria, em vez disso, algo que fazemos
ativamente, superficial ou profundamente, sozinho, com a família
ou amigos ou, em maior escala, com a mídia. (NIEMEYER, 2014, p.
11, tradução nossa).4

A mídia, assim, seria espaço fundamental para o exercício da nos-


talgização. Levar em conta o papel do leitor/espectador nesse processo,
porém, é algo que parece faltar em boa parte dos diagnósticos acerca do
suposto boom nostálgico que vivenciamos. Afinal, O artista, La La Land
(Damien Chazelle, 2016), Stranger Things e Everything Sucks! (Netflix,
2018) seriam essencial e igualmente nostálgicos?
Apregoar uma nostalgia sem levar em conta as relações que emer-
gem entre o produto cultural, seu texto e seu leitor/consumidor (potencial
e real) é, em alguma medida, defender uma imanência textual. Stranger
Things, por exemplo, apela à nostalgia dos espectadores – mas certamen-
te seu público não se resume a quem vivenciou os anos 1980, ou mesmo
a quem se acostumou a ver filmes da década. Da mesma forma, boa parte
dos espectadores que foram ver La La Land no cinema eram jovens que

3 A linguistic shift to employing the verb might, in this sense, indicate a social change. Nos-
talgia would be not only an expression of a feeling, but something you do, an act of speech
[...] that can potentially turn into a pragmatic creative process.
4 [...] nostalgia would not only be something we are or feel like, and it would be more than
only a cultural product we consume, admire or write about. It would, instead, be something
we do actively, either superficially or profoundly, alone, with family or friends or, on a larger
scale, with media.

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jamais haviam assistido a um musical na vida e, apesar de não identifi-
carem várias referências do filme – clássicos como Melodia na Broadway
(The Broadway Melody, Harry Beaumont, 1929) e A roda da fortuna (The
Band Wagon, Vincente Minnelli, 1953) –, que reforçam a homenagem à
“era de ouro” de Hollywood, criaram a sua própria experiência de frui-
ção. Essa parcela, assim, não mantém uma relação de nostalgia com essas
produções. Pensar menos em termos de “produções nostálgicas” e mais
numa nostalgização na relação com o consumidor parece, portanto, mais
interessante e coerente no que concerne ao encontro entre produto cul-
tural e leitor/espectador/consumidor.
A nostalgização, aliás, faz emergir diferentes relações nostálgicas
em uma mesma narrativa em particular. Tomemos, novamente, o exem-
plo de Stranger Things: o agir e a construção nostálgicas, ali, se sustentam
de formas variadas. Há a saudade pelos anos 1980, construída pela trama;
há a mídia que sente saudades de seu próprio passado (NIEMEYER, 2014)
– o que, na série, se relaciona às citações de filmes, séries e bandas antigas
e às próprias tecnologias usadas na época, como a televisão de tubo; há,
ainda, uma curiosa nostalgia, a dos espectadores que sequer eram nas-
cidos nos anos 1980, mas que compram a ideia de que se trata de uma
época fascinante. Da mesma forma, Mad Men traz imagens sofisticadas
de um passado, dialoga com séries hoje ditas clássicas como Jeanie é um
gênio (I dream of Jeannie, NBC, 1965-1970) e A feiticeira (Bewitched, ABC,
1964-1972) ou mesmo A família do-ré-mi (The Partridge Family, ABC,
1970-1974) e põe diante dos nossos olhos algo que muitos de nós não vi-
vemos, mas que sabemos que poderia ter sido assim. Mas cada uma de-
las, Mad Men e Stranger Things, aciona essas estratégias para promover
experiências nostálgicas bastante peculiares e, em certa medida, quase
opostas. Elas nostalgizam-se cada uma a seu modo, da mesma forma que
cada espectador diante dessas histórias e de outras (ficcionais ou não)
que vivencia.

Nostalgia sem memória?


Em Modernity at Large, Arjun Appadurai (1996) explora, entre outros
temas, como a nostalgia se relaciona com a globalização e o marketing.
Segundo ele, um tipo de publicidade de massa bastante comum faz
uso de um padrão peculiar de nostalgia: o que se refere àquilo que não

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aconteceu. O público sentiria falta, assim, do que nunca perdeu. Appa-
durai nomeia esse sentimento de “nostalgia imaginada” (1996, p. 77), que
seria uma “nostalgia sem memória” (1996, p. 82). Talvez seja esse o caso,
por exemplo, do espectador brasileiro na faixa dos 40 anos, que assiste a
Stranger Things com saudades dos anos 1980 – apesar de, certamente, sua
experiência de infância ter sido radicalmente diferente da de uma criança
que cresceu no subúrbio dos Estados Unidos, ou mesmo de alguém que
nasceu anos depois. Caso semelhante pode ser conferido no exemplo de
Gumbrecht (2015) para dizer das diversas modalidades de resgate histó-
ricas, muitas vezes absolutamente incoerentes. Como ele destaca, há no
Brasil uma empresa aérea cujas cabines e uniformes emulam o estilo Pan
Am dos anos 1950 – a histórica companhia aérea dos Estados Unidos – e
não se pode dizer que todas as pessoas que viajam em seus aviões sejam
tomadas por um impulso nostálgico e mesmo que sequer identifiquem a
referência dos uniformes das aeromoças da Azul Linhas Aéreas.
Em relação à formulação de Appadurai (1996), porém, alguns cui-
dados se fazem necessários. Até que ponto podemos dizer, realmente, de
uma nostalgia sem memória? Em nosso ponto de vista, a nostalgia de cer-
tos espectadores pelos anos 1980, que resulta no apreço por produções
como Stranger Things e Super 8 (J. J. Abrams, 2011), não está relacionada,
de fato, à memória de vivenciar aquela época daquela maneira – algo que,
inclusive, certamente não acontece mesmo para um estadunidense que
cresceu no subúrbio, em sua totalidade. Essa nostalgia está ligada, talvez,
à memória de se assistir a outros filmes e séries dos anos 1980 (e aos quais
Stranger Things faz referência), e que compuseram a experiência de in-
fância e adolescência dos espectadores da produção da Netflix, seja nos
Estados Unidos, seja no Brasil, seja em vários outros países.
Por conseguinte, não estaríamos falando de uma nostalgia sem me-
mória. Trata-se, é verdade, de uma nostalgia sem um tipo de memória: a
“memória vivida”, para usar a expressão de Huyssen (2014), que se contra-
põe a uma “memória imaginada”. A formulação desta última, por sinal, é
feita a partir do próprio Appadurai (1996). As memórias imaginadas estão
entre aquelas comercializadas em massa, e tendem a ser menos memorá-
veis que as vividas empiricamente (HUYSSEN, 2014). Segundo Huyssen,
“[a] memória vivida é activa, viva, encarnada no social – ou seja, nos in-
divíduos, nas famílias, nos grupos, nações e regiões” (2014, p. 26). Certa-
mente, “[i]nsistir numa separação radical entre memória ‘real’ e virtual

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parece-nos quixotesco, mesmo que não seja pela razão de que qualquer
coisa lembrada – quer por memória vivida ou imaginada – é em si virtual”
(HUYSSEN, 2014, p. 27), e, assim, talvez seja mais acurado dizer de uma
nostalgia sem uma certa qualidade de memória.
Pode ser tentador classificar a nostalgia imaginada como menos
autêntica do que a “verdadeira” nostalgia. Isso seria, porém, uma sim-
plificação. Em primeiro lugar, porque significaria cair numa separação
pura e simples entre o que seria “real” e o que seria “virtual”, dicotomia
recusada pelo próprio Huyssen (2014). E, em segundo lugar, dizer que a
nostalgia alimentada por meio de produções do cinema e da TV é menos
relevante é ignorar a nossa vivência cultural e a importância que as tro-
cas simbólicas – que se materializam de modo peculiar nos filmes, livros,
séries, músicas e revistas em quadrinhos que aprendemos a consumir e a
amar – exercem sobre a nossa experiência de vida e sobre a nossa relação
com o tempo.
Isso não significa, porém, que devamos nos abster de analisar cri-
ticamente algumas configurações da nostalgia que emergem mais forte-
mente no cenário da globalização, em que as forças envolvidas são, cla-
ramente, desiguais. É esse o movimento realizado por Appadurai (1996),
quando ele observa os fluxos culturais globais e suas inserções locais. Para
recuperar um dos exemplos do autor, é muito mais fácil notar algumas
construções nostálgicas imaginadas nas Filipinas, a partir de um imagi-
nário estadunidense, do que o contrário. O American way of life circula de
maneira forte nas Filipinas e diversos outros países, produzindo imagens
de passado que não lhes pertencem a princípio, mas que passam a inte-
grar a experiência de vida dos locais. O risco dessa discrepância é, afinal,
o apagamento de memórias e de nostalgias vividas em favor de algumas
que são, pelo menos em alguma medida, colonizadas. Isso pode resultar,
inclusive, na nostalgia a que Niemeyer (2014) faz referência, acerca de um
modo de vida que poderia ter sido. Nesse caso, o modelo estaduniden-
se de infância – alimentado pelas tais “imagens sofisticadas” de Jameson
(2000) – seria apresentado como o ideal, em contraposição àquele que
efetivamente vivenciamos.
Por conseguinte, essa oferta nostálgica (e as construções narrativas
dela decorrentes) pode ser ambígua no que diz respeito ao que seria um
aspecto fundamental – e dos mais potentes – da nostalgia, capaz de evi-
denciar como ela abrange não só o passado, mas também o presente e o

Nostalgias e mídia: no caleidoscópio do tempo 57

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futuro: a sua participação na criação de vínculos, no fortalecimento do
senso de pertencimento, na constituição de identidades. O passado ideal
americano pode promover o apagamento ou a fuga de uma experiência
vivida, mas pode também oferecer-se como contraponto crítico ou ideal
a ser buscado, se não mais para mim, para meus filhos. Ao mesmo tempo,
construções narrativas como Mad Men, a menos que sejam acompanha-
das pelo conservador mais empedernido e delirante, oferecem-se à de-
núncia desse passado ideal, da corrupção que o constituía e do que dele
continua no presente. Mesmo “colonizada”, portanto, a nostalgia pode
servir para comparar experiências, alinhar perspectivas sobre o passado
e, portanto, ajudar na construção de projetos minimamente coerentes so-
bre o futuro, em maior ou menor escala.
Nesse sentido, a nostalgia do efetivamente vivido, da experiência
em comum, de um imaginário construído coletivamente no dia a dia
pelo contato direto com o outro, pode surgir como amparo fundamental
para o sujeito diante das narrativas “colonizadoras” e dos acontecimen-
tos catastróficos, que reconfiguram toda a relação que uma comunidade
constrói com o tempo e o espaço. É o que podemos perceber em Vozes de
Tchernóbil, obra na qual os relatos desvelam uma nostalgia que parece
emergir, ao fim e ao cabo, como uma condição de sobrevivência e resis-
tência ao desastre nuclear e também às narrativas oficiais, da mídia e dos
governos soviético e russo.

Nostalgia como ressignificação da memória e do presente


Ao longo de toda sua bibliografia, a escritora bielorrussa Svetlana Alek-
siévitch tem se mantido fiel a um mesmo programa de escrita, que con-
siste em ouvir e registrar os depoimentos de pessoas que foram drasti-
camente afetadas por acontecimentos marcantes da história soviética a
partir da Segunda Guerra Mundial. Essas “vidas pequenas” não têm lugar
nos diferentes relatos oficiais e midiáticos por diferentes razões, seja por
produzirem verdades incômodas, seja por não serem traduzíveis em nú-
meros, seja por serem excessivamente locais, demasiadamente pessoais.
Nos relatos, percebe-se o quanto tais acontecimentos – e, neles, os rela-
tos oficiais e mediáticos – reconfiguraram (ou desconfiguraram, de fato)
o próprio entendimento desses indivíduos sobre si, sobre ser e estar no
mundo, evidenciando uma espécie de ruptura entre uma vida anterior ao

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acontecimento e outra posterior. Nesse conflito temporal entre passados,
presentes e futuros que deixam de ser compreendidos, a fala dos ouvidos
muitas vezes assume um tom memorialístico, e, em alguns casos, esse
gesto de memória aparece tingido com cores de nostalgia.
Em Vozes de Tchernóbil (2016) talvez o seu trabalho mais conhe-
cido, Aleksiévitch debruça-se sobre a vida de pessoas que ainda vivem a
catástrofe nuclear resultante da explosão de um reator da Central Elétri-
ca Atômica de Tchernóbil, em 1986, na Ucrânia, próxima à fronteira com
a Bielorrússia. De acordo com a própria autora, seu esforço consiste na
tentativa de compreender algo da catástrofe a partir dos sentimentos,
pensamentos e palavras das pessoas comuns que, diante das circuns-
tâncias, deixaram de ser ordinárias e passaram a assumir uma nova con-
dição. “Tchernóbil para elas não é uma metáfora ou um símbolo, mas a
sua casa” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 40). Nos relatos, essa condição de “ser
alguém de Tchernóbil” recorrentemente é apresentada como causadora
de certo desconforto, o que aparentemente leva a um desejo de retorno a
um estado anterior:

Houve um tempo em que vivíamos felizes. Nos feriados havia can-


ções, danças, acordeão. Agora parece uma prisão. Eu, às vezes, fecho
os olhos e caminho pela aldeia… “Que radiação é essa”, digo a eles,
“se as borboletas estão aí voando, e as abelhas zunindo? E o meu
[gato] Vaska caçando ratos.” (Chora.) (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 65).

O trecho acima, destacao do depoimento de Zinaída Kovaliénka,


residente da zona proibida, nos apresenta uma lembrança de outrora
marcada por um desejo de retorno que nos parece próximo da noção
“clássica” de nostalgia levantada por Niemeyer e Huyssen como ponto de
partida para suas reflexões. Há um sentimento de dor pela perda do lar, e
uma vontade de deixar essa “casa” atual para voltar a um momento pas-
sado. Mas que passado é esse que quer ser retomado?
Se recuperarmos as categorias de Huyssen (2014), parece seguro
dizer que é um passado que retorna a partir de uma “memória vivida”,
e não de uma memória formada por narrativas da mídia (ou oficiais, no
caso). Além disso, parece também um passado oriundo de uma memória
construída a partir de uma vivência coletiva, como denotam as imagens
de festividades e o uso da primeira pessoa do plural. Certamente, há uma
dimensão individual e subjetiva no gesto memorialístico de Kovaliénka,

Nostalgias e mídia: no caleidoscópio do tempo 59

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mas há também um certo impulso nostálgico em relação ao coletivo: “vi-
víamos felizes”. Portanto, a nostalgia aqui parece operar na recuperação
de uma identidade compartilhada entre as pessoas que habitaram aque-
le lugar que, hoje, tornou-se zona proibida. Elas eram as pessoas daque-
le povoado (na qual a própria sobrevivente se inclui), e não pessoas de
Tchernóbil.
Conforme Niemeyer, por poderem se referir a espaços e temporali-
dades que estão fora de alcance, memória e nostalgia podem atuar tanto
como fatores de manutenção de identidades como provocadores de uma
amnésia social (2014, p. 5). Nesse ponto, as considerações de Huyssen
(2014) sobre políticas de memória e políticas de esquecimento nos aju-
dam a perceber que esses dois efeitos não são necessariamente contradi-
tórios ou excludentes. Pelo contrário, um geralmente depende do outro.
Como exemplo, Huyssen recupera os julgamentos referentes ao período
ditatorial argentino, nos quais foi preciso esquecer que as guerrilhas de
extrema esquerda também foram responsáveis pela morte de centenas de
pessoas, sob o risco de não haver como criar um consenso sobre a puni-
ção aos militares condenados. Dessa forma, construiu-se uma identidade
sobre os militares, sobre os guerrilheiros e sobre o próprio regime dita-
torial que se funda – não exclusivamente, mas em alguma medida – no
esquecimento coletivo de certos acontecimentos, pois este garante coe-
rência a uma narrativa que, naquele momento, precisava existir.
A nostalgia nos parece operar de maneira semelhante: para que
se crie um sentimento nostálgico em relação a determinada memória,
é preciso que se esqueça de certos elementos que compuseram aquela
experiência, para que se decante apenas aquilo que mantém um aspec-
to afetivamente positivo, ainda que a impossibilidade de retorno pleno a
essa experiência confira também uma dor pelo sentimento de perda. É o
que acontece, por exemplo, em Stranger Things e O artista, que realizam
uma pacificação dos respectivos períodos históricos que recobrem a fim
de apagar ou, pelo menos, disfarçar os aspectos capazes de gerar não sau-
dade, mas repulsa sobre o passado, e que arranhariam a imagem positiva
cuidadosamente construída. Na direção contrária, Mad Men pareceutili-
zar – mercadológica e narrativamente – de estratégias nostálgicas não só
para gerar uma visão crítica do passado, mas também para denunciar as
adversidades que ainda se mantêm no presente.

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Em Vozes de Tchernóbil, os modos como esses atos de nostalgizar
aparecem estão sempre relacionados à existência da catástrofe. A lem-
brança positiva do passado surge assim com ares de romantização do
tempo ido, por se produzir no apagamento de nuances que poderiam
corromper o doce dessa memória, mas também parece indicar uma ten-
tativa de esquecimento do presente desolador, ainda que seja um esque-
cimento temporário. Dessa forma, para Kovaliénka, a memória das can-
ções e danças em seu vilarejo representa um contraponto feliz à “prisão”
na qual ela agora vive.
Como destacamos anteriormente com Niemeyer, a presença da
nostalgia parece indicativa de uma crise entre temporalidades, sensação
fortemente presente nos relatos do livro de Aleksiévitch – e, como sugeri-
mos, em obras tão diferentes como Stranger Things e Mad Men. A própria
autora ressalta, em passagem autorreferente, como Tchernóbil impõe-se
como um enigma ainda não decifrado, uma “catástrofe do tempo” que
desafia uma concepção linear de passado, presente e futuro. “Passaram-
-se vinte anos desde a catástrofe, mas até hoje me persegue a pergunta:
eu sou testemunha do quê, do passado ou do futuro?” (2016, p. 39). Que
presente é esse em que vivem as vítimas de Tchernóbil?
Nesse conflito temporal, a nostalgia parece despontar mais como
um modo de se relacionar (como fuga, como escape e também como crí-
tica) com o estado atual do que como uma tentativa de compreendê-lo.
Em Vozes de Tchernóbil, o potencial destrutivo da catástrofe rompe com
um conjunto de temporalidades que guiavam as pessoas e lhes conferiam
uma identidade para lhes outorgar uma nova condição. Esse processo
traumático parece fazer com que as memórias sejam, então, ressignifi-
cadas, a partir do momento em que eles passam a representar não uma
continuidade do que existia, mas um local distante e inacessível:

Ainda tem uma coisa: antes, a gente mesmo é que batia a mantei-
ga, o creme de leite, fazia a coalhada e o queijo. Preparávamos a
massa do leite. [...] A gente bebia suco de bétala e de bordo: berió-
zovik e klenóvik. Púnhamos a vagem sem debulhar no caldeirão de
ferro e cozinhávamos no fogão grande. Fazíamos geleias de frutas
silvestres… E, durante a guerra, a gente colhia urtigas, espinafre da
montanha e outras ervas. O corpo inchava de fome, mas não dava
para morrer. Havia frutas no bosque, havia cogumelos… E agora
essa vida, tudo está destruído. E a gente pensava que tudo aquilo

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era indestrutível, que seria assim para sempre. Que tudo que se co-
zinhava na panela era eterno. Eu nunca acreditaria que isso ia mu-
dar. E o que aconteceu? O leite está proibido; os legumes proibidos.
Proíbem os cogumelos e as bagas. Mandam macerar a carne por
três horas. E trocar a água de cozimento das batatas duas vezes. Mas
brigar com Deus é inútil… Precisamos viver… (ALEKSIÉVITCH,
2016, p. 85).

O depoimento de Anna Petróvna Badáieva, residente na zona con-


taminada, se assemelha ao de Kovaliénka pela nostalgia acerca do que
era cotidiano. Memórias de atividades banais do dia a dia dessas pessoas,
como cozinhar a vagem e preparar sucos, passam a ter outro significa-
do diante de Tchernóbil, significado este que nos parece alterado por um
gesto de nostalgização. Com isso, reforça-se aquilo que Huyssen (2014)
coloca como o caráter mutável e social da memória. Estamos o tempo
todo ressignificando nossas relações com o passado, e, nesse contínuo
processo, as memórias podem adquirir um significado nostálgico que até
então não possuíam. Nesse sentido, ao discutir as relações entre lembrar
e esquecer, Lluís Duch e Albert Chillón (2012) relembram que a memória
não nos permite reacessar o acontecido tal qual ele se deu, uma vez que
há inescapavelmente um movimento hermenêutico nesse retorno a um
passado. Dessa forma, as memórias se aproximam de quadros interpre-
tativos de experiências anteriores que nos permitem buscar parâmetros
explicativos para a apreensão do mundo. Isso significa dizer também que
a memória nos permite agir no mundo (ainda que esse agir seja um dese-
jo de fuga), da mesma forma que opera na busca por estabelecimento de
vínculos com o outro.
Uma questão interessante, portanto, é pensar em como a nostalgia
pode afetar nossas possibilidades de viver o agora e projetar o que virá,
tendo em vista seu caráter de potencial agência no presente e sua confli-
tuosa relação com o passado e com o futuro, que ora toma forma de recu-
sa, ora de um projeto de retomada. Justamente por ressignificar imagina-
tivamente memórias e produzir esquecimentos, a nostalgia parece trazer
consigo um risco de descomplexificação que, se por um lado traz confor-
to, por outro apaga aspectos importantes de uma experiência. Como no
relato acima, em que uma nostalgização da memória torna doce até o pe-
ríodo de guerra e a sensação do corpo inchado de fome. Certamente, não
há uma inevitabilidade desse movimento, mas é preciso estar atento para

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os casos em que a tinta da nostalgia não apenas muda a tonalidade das
lembranças, mas também as permeia de um verniz brilhante e protetor.

Ambivalências da nostalgia
Retomando a relação entre nostalgia e mídia, podemos pensar de que
forma as manifestações de memória que observamos brevemente nos
relatos de Vozes de Tchernóbil ajudam a tensionar aquele diagnóstico do
boom da nostalgia levantado por Niemeyer (2014). Em primeiro lugar, há
a questão da qualidade da experiência que fundamenta esse passado re-
cuperado. Em Tchernóbil, as memórias tomadas como nostálgicas refe-
rem-se, em sua grande maioria, a uma vivência cotidiana experimentada
socialmente pelos habitantes daquela região em um momento anterior
à catástrofe. Nas séries, filmes e demais produtos culturais, as memórias
de outros períodos não partem necessariamente de experiências vividas,
mas podem se dar por meio de experiências já midiatizadas. Como vimos
com Huyssen (2014), não parece haver muito sentido em hierarquizar es-
sas construções nostálgicas, mas é importante colocá-las lado a lado para
acentuar que a nostalgia operada nas mídias e pelas mídias não dizem
holisticamente de toda experiência nostálgica. Nesse mesmo caminho,
desmistificamos uma ideia comum de que certas narrativas seriam essen-
cialmente nostálgicas para reconhecer que o que parece ocorrer de fato
são processos de nostalgização dessas narrativas, por parte do público,
autores, crítica, produtores, entre outros agentes.
O reconhecimento desse caráter de ação na nostalgia também pode
nos ajudar a entender por que se convencionou dizer que a nossa época
é especialmente nostálgica. Tanto em Vozes de Tchernóbil como nas nar-
rativas midiáticas, o impulso nostálgico parece emergir de um descon-
forto com o presente, que acaba ressignificando, e quase sempre robus-
tecendo, uma memória do passado. Uma proposta é pensar, portanto, de
onde nasce esse desconforto. Na situação-limite de Tchernóbil, a catás-
trofe é o elemento que rompe os fios do tempo e inaugura um presente
incompreensível, desprovido de qualquer projeto de futuro: “Mas diga,
segundo a ciência, como é que atua essa radiação? Fale a verdade, nós
vamos morrer, de qualquer forma”, diz um morador de uma aldeia conta-
minada (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 72). Aqui, o acontecimento é o monstro
que assombra o presente. Mas e em nossos cotidianos? Seria o excesso

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cumulativo de memórias midiatizadas e os constantes prognósticos ne-
gativos de futuro a razão de um desejo de afastamento do presente, esse
amplo presente diagnosticado por Gumbrecht (2015)? Difícil dizer, mas
a partir do momento em que pensamos a nostalgia como ação humana,
abre-se um caminho para compreender que não somos apenas atingi-
dos por uma overdose de nostalgias nas narrativas que consumimos, mas
que somos também produtores de memórias e de narrativas nostálgicas.
E, talvez, guardadas as devidas proporções de cada situação, da mesma
forma que o sobrevivente de Tchernóbil nostalgiza para continuar a viver
em um presente desmoronado, nós nostalgizamos para navegar as águas
incertas desse nosso estranho e desconfortável presente (e, por extensão,
do futuro), para o qual não encontramos diagnóstico plenamente seguro.
Com isso, esbarramos novamente com um caráter ambivalente da
nostalgia, que parece lhe ser definidor. Se a nostalgia nos fornece uma
possibilidade de escapar de um presente incerto e incômodo, podemos
dizer que ela opera tanto como uma espécie de “cura”, um alívio memo-
rialístico ao sofrimento que aflige (NIEMEYER, 2014), quanto como um
modo de afastamento crítico, que põe o hoje em perspectiva. Ao mesmo
tempo, a inquietação de tantos com um excesso de nostalgia nas mídias,
das quais as produções audiovisuais aqui citadas são apenas fragmentos,
não seria um indicativo de que estaríamos seduzidos, fascinados e tam-
bém “assombrados” ou mesmo “doentes” de nostalgia? Pensando ainda
na falência de uma temporalidade progressista (HUYSSEN, 2014), pare-
ce possível entender a nostalgia tanto como um recurso para estabeleci-
mento de parâmetros com vistas a projetar futuros quanto como uma re-
núncia de futuro em favor de um desejo de passado. E se pensarmos nos
termos de Appadurai (1996), há nostalgias capazes de fortalecer vínculos
identitários, mas há também ações nostálgicas colonizadoras, que amea-
çam identidades locais ao projetar a sombra de referências globalizan-
tes, desenraizadas, “internacionais”. Ora, a própria descrição da nostalgia
como um sentimento “agridoce” oferece uma dimensão de sua ambiva-
lência. Diante disso, um ponto fundamental parece ser a compreensão da
nostalgia como um fenômeno que não apenas acomete o indivíduo, mas
que também não é originária somente de sua ação; ela é marcada espa-
cialmente, temporalmente, socialmente e, por sua íntima vinculação com
a memória, está sempre suscetível a transformar-se.

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Referências
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
APPADURAI, Arjun. Modernity at large: cultural dimensions of globalization.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. São Paulo: Zahar, 2017.
DUCH, Lluís; CHILLÓN, Albert. Un ser de mediaciones: antropología de la comu-
nicación. v.1. Barcelona: Herder Editorial, 2012.
DURING, Elie. O que é o retrofuturismo? Introdução aos futuros virtuais. In: NO-
VAES, Adauto (Org.). O futuro não é mais o que era. São Paulo: Editora Sesc SP,
2015.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente. Bauru: Unesp, 2015.
HUYSSEN, Andreas. Políticas de memória no nosso tempo. Lisboa: Universidade
Católica Editora, 2014.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São
Paulo: Ática, 2000.
NIEMEYER, Katharina (org.). Media and nostalgia: yearning for the past, present
and future. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014.
REYNOLDS, Simon. Retromania: pop culture’s addiction to its own past. Londres:
Faber and Faber, 2011.

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