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A DÁDIVA NOS MUSEUS: AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE MEMÓRIA

E MUSEIFICAÇÃO DE AMBIENTES PUNITIVOS NA PERSPECTIVA DA


HOSPITALIDADE

Fátima Marília Lima de Andrade 1 – fatima.andrade@aluno.ufop.edu.br

Área de conhecimento: Ciências Sociais Aplicadas


Palavras-chave: dádiva; museus; hospitalidade.

Resumo
O presente trabalho tem como objetivo uma abordagem teórica, levantando
reflexões críticas acerca da dádiva, na perspectiva dos espaços museais
enquanto ambientes de produção de hospitalidade. O resumo então se
baseia nas relações entre memória e poder dentro dessas instituições,
sobretudo as que outrora foram originalmente designadas à exercerem
papéis de punição, como presídios e manicômios, que hoje se tornaram
museus, na tentativa de elencar novas narrativas, mas ao mesmo tempo,
caminhando lado a lado com a hostilidade.

Introdução
Pierre Nora (1993) defendia que é impossível se preservar
completamente uma memória, mas é possível dela manter fragmentos vivos
em locais em que estejam relacionados com sua representação. É o caso do
Memorial da Resistência de São Paulo, que foi um espaço de
aprisionamento e tortura à presos políticos no período da ditadura militar
brasileira (1964 – 1985) e hoje funciona como um espaço de memória às
vítimas que por ali passaram.
Também é o caso do Museu da Loucura, localizado em Barbacena –
MG, onde funcionou durante quase um século o Manicômio de Barbacena,
episódio também conhecido como Holocausto Brasileiro, tragédia que
vitimou cerca de 60 mil e inclusive atendia a interesses políticos e
econômicos da época (ARBEX, 2013 p. 28).
Espaços como esses, hoje museificados, são de suma importância
para a manutenção e ressignificação da memória, pois já defendia Pollak
(1989): ‘’memória é disputa (...). É necessário associar uma profunda
mudança politica a uma revisão crítica do passado.’’

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Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG); Mestranda no
Programa de Pós-Graduação em Turismo e Patrimônio da Universidade Federal de Ouro Preto
(UFOP); Bacharel em Museologia (UFPE).
Ou seja, a memória está em constante transformação, fomentando
também relações de dádiva, hospitalidade e consequentemente, hostilidade.
É nessa perspectiva que este resumo foi moldado.

Revisão de Literatura
Marcel Mauss (1950) abordava a dádiva enquanto fenômeno social
total, responsável por abranger os mais variados setores da sociedade:
culturais, políticos, religiosos, etc. Segundo ele, a vida social se baseia no
‘’dar’’ e ‘’retribuir.’’ A dádiva nas relações estaria então, diretamente
associada à reciprocidade como requisito para essas relações
permanecerem interligadas, havendo sempre a obrigação de retribuí-las.
(MAUSS, 1923, p. 194).
Para Stuart Hall (2003, p.27), uma identidade cultural, se torna
múltipla. O autor explora se existe ou não uma ‘’crise identitária’’ e aborda o
chamado ‘’multiculturalismo’’ como sendo um mecanismo diretamente
influenciado pelo ambiente, criação e parentesco, existindo assim uma
fragmentação cultural (Halls, 2003, p. 52). Devido à esse colapso cultural,
Hall trás o conceito de sujeito pós moderno, como forma de evidenciar
identidades mutáveis e não-permanentes, que podemos associar a uma
maior preocupação com a ressignificação da memória.
Em se tratando de museus, enquanto instituições que lidam
frequentemente com a preservação e a destruição, a memória e a perda,
essas forças antagônicas no fim, são indissociáveis (CHAGAS, 2002, p.44).
São as relações de poder quem ditam o que deve ser lembrado e o que
deve ser esquecido. Afinal, ainda segundo Chagas (2002, p.44), a memória,
sendo ela individual ou coletiva, será sempre seletiva, sobretudo devido à
dolorosas feridas coloniais deixadas pelos massivos processos de
dominação e extermínio de culturas, onde podemos tratar como uma eterna
‘’dívida colonial’’.
Hallbwachs (1925) trás os conceitos de memória individual e memória
coletiva, onde a memória é construída coletivamente, mas é também um
exercício do próprio sujeito, existindo uma constante relação entre memória
e esquecimento,

‘’ (...) Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um


acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de
noções comuns, que se encontram tanto no nosso espírito, como
no dos outros, porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e
continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente
assim poderemos compreender que uma lembrança possa ser ao
mesmo tempo reconhecida e reconstruída.’’ (HALLBWACHS,
1925, p. 34).

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Pollak (1989),

Discussão, Resultados e Considerações Finais


Com base em todo o estudo bibliográfico realizado, foi-se elaborada
uma breve análise das instituições-exemplo citadas anteriormente: O
Memorial da Resistência de São Paulo e o Museu da Loucura, de Barbacena
(MG).
Ambas são instituições que foram palco de tristes episódios na
história do nosso país. Hoje museificadas, elas representam valor simbólico
inestimável para a preservação da memória, que por muito tempo se baseou
no esquecimento (BRAGA; SILVA, 2019, p. 105).
No entanto, é preciso reconhecer a complexidade de se trazer à tona
narrativas subterrâneas de memórias que por tanto tempo foram silenciadas
(POLLAK, 1989, p. 11). Cerca de 70% das pessoas que eram enviadas ao
Manicômio de Barbacena por exemplo, não eram ‘’loucas’’, eram pessoas
indesejadas pela sociedade: pretos, filhas grávidas, LGBT’s, etc (ARBEX,
2013), sendo submetidas aos mais variados experimentos médicos e tinham
seus corpos vendidos às faculdades de medicina do estado de Minas
Gerais, pois se havia lucro até mesmo com a morte. (ARBEX, 2013, p. 67).
Ou seja, pra muitos, é um capítulo vergonhoso a ser exibido ao público, o
que impulsiona o culto ao esquecimento e silêncio (POLLAK, 1989).
Por outro lado, a memória, quando trabalhada na perspectiva da
conscientização, pode ser um instrumento poderoso de prevenção à
repetições de tragédias, o que faz da proteção à memória um dever
individual e coletivo (BRAGA; SILVA, 2019, p. 104). Visto isso, nota-se que,
a memória sendo elaborada dentro de espaços que fomentaram tragédias, -
como o caso do Memorial da Resistência e do Museu da Loucura - , a torna
ainda mais latente e significativa, pois a instituição ressignifica o espaço
museificado como um ambiente de hospitalidade, e a partir daí podem ser
construídas relações de dádiva.

No entanto, é preciso reconhecer

‘’Os lugares de memória seriam os espaços depositários de um


passado desaparecido ou em processo de desaparecimento.
Como equipamentos culturais e atrativos turísticos têm o desafio
de acolher os visitantes em suas necessidades, expectativas e
emoções.’’ (SPOLON, 2017, p. 255)

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Dessa forma, baseado no embasamento teórico apresentado,
podemos então dizer que as relações de memória e poder presentes em
instituições que, antes de serem museus, foram espaços de hostilidade, -
como prisões e manicômios -, também estão ligadas à relações de dádiva,
pois trata-se de uma tentativa de reparação com um passado doloroso;
dívida essa que talvez nunca poderá ser quitada, estabelecendo assim uma
relação de dom.
A hospitalidade então é utilizada como pilar, mas não consegue
anular a presença da hostilidade, por serem duas faces de uma mesma
moeda. Nessa perspectiva então, os museus elaboram uma relação de
dádiva para com a sociedade. Dádiva. Uma dívida eterna com aqueles que
sequer tiveram direito à memória.

Referências
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. 1. Ed. – São Paulo: Geração
Editorial, 2013.
BRAGA, Victória Lustosa; SILVA, Alessandro Soares da. Memorial da
Resistência: um instrumento de políticas de memória, de educação em
direitos humanos e de luta contra o esquecimento. RG&PP, 9(1): 101-122,
2019.
CHAGAS, Mário. Memória e Poder: Dois movimentos. Cadernos de
Sociomuseologia, No. 19. Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias. Lisboa, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2003.
MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Edições 70: Lisboa, 2008.
POLLAK, Michael. ‘’Memória, esquecimento, silêncio.” In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: vol. 2, nº 3, 1989.
SANTOS, Nádia Maria Weber. A Loucura transformada em memória:
manicômios, museus e arte. In: História, Memória, Oralidade e Culturas. Ed.
UECE, Vol. III. Fortaleza, 2019.
SPOLON, Ana Paula Garcia. A beleza e a virtude do espaço atrás das
grades: conversão de prisões em museus e a produção de lugares de
hospitalidade. In: Hospitalidade e Dádiva: a alma dos lugares e a cultura do
acolhimento, org.: Leandro Benedini Brusadin (org.). Curitiba, Prismas, 2017,
281-296.

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