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RESENHA CRÍTICA: MEMÓRIA E CIDADE

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003, p.29-70 e p.157-189.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo. Contexto, 2014, p.15-20 e p.156-164.

Anna Karoline Oliveira Santiago1

As águas purificaram-se, as viagens tornaram-se festivas e violeiras./ E ninguém temia


a morte, e o louvor da vida era uma canção implícita no cedro das carrancas./ Os
tempos são outros. Onde as carrancas?/ Onde os barcos, as travessias melodiosas de
antigamente?/ O Rio São Francisco está sem mistério e poesia? (ANDRADE, 2018)2

Hoje, objeto valioso da arte e da identidade barranqueira na Bahia, as carrancas nas


proas do médio São Francisco já foram um símbolo de proteção dos antigos barcos a vapor
através da história das navegações. Chama a atenção em uma das doze cidades por onde passa
o rio Corrente, o espaço saudosista que as carrancas possuem na cultura e na história, não mais
como uma prática, doravante uma lembrança dos tempos em que o rio era o principal meio de
transporte e comunicação entre as cidades ribeirinhas3. Na poesia de Drummond, a elucubração
é de que os tempos são outros e portanto as carrancas representam naquela comunidade, uma
imagem parcial da memória coletiva do rio que ao mesmo tempo, se funde e se diferencia com
as lembranças individuais daqueles que esculpiram e daqueles que acreditavam “[...] no interior
de um repertório flexível e aberto a diferentes meios: representações, mitos-histórias, ritos,
saberes, heranças etc., ou seja, no interior de um registro memorial. (CANDAU, 2014, p.16)”
Como a memória coletiva possui um caráter transitório, as práticas que anteriormente
tinham significado cultural e histórico podem acabar sendo apenas memórias individuais, pois
a memória de um grupo pode desaparecer ou alterar com o tempo. Maurice Halbwachs (2003),
sociólogo socialista e filósofo francês, influenciado pela filosofia de Henry Bergson (1859-
1941) e pela abordagem empírica e científica da escola durkheimiana, compartilha conosco o
pressuposto de que a sociedade molda e reconfigura a memória coletiva e que as memórias
individuais são familiarizadas e transformadas por meio da socialização e do compartilhamento
de experiências através de rituais, símbolos, histórias e tradições, pois “[...] é assim que a

1
Mestranda PPGPROCIDADE Projeto e Cidade (FAV/UFG). E-mail: karoline@discente.ufg.br
2
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Centenário Guarany”. In: “Amar se aprende amando: Poesia de convívio
e de humor”. 1ª ed. Companhia das Letras, São Paulo. 2018, p. 36.
3
AS CARRANCAS DO RIO SÃO FRANCISCO. Diretor: Júlio Heilbron. Produção do Instituto Nacional de
Cinema (INC). Brasil. Cine Brasil TV. 1974. 1. Plataforma digital [online]
memória se enriquece de bens alheios que, desde que se tenham enraizado e encontrado seu
lugar, não se distinguem mais das outras lembranças” (HALBWACHS, 2003, p.53). Segundo
Halbwachs, as memórias são construídas no presente e mudam de acordo com as mudanças
afetivas e simbólicas dos grupos.
Em contraste com o idealismo filosófico dominante na época, Halbwachs não interpreta
a relação entre memória e sociedade por um viés determinista e enfatiza que, por meio de
"quadros sociais", as narrativas individuais estariam ligadas às relações coletivas,
profundamente afetadas por eventos históricos que são restaurados na memória. Entretanto,
Halbwachs (2003, p. 81) faz uma distinção entre memória e história, se opondo ao termo
"memória histórica". Embora ambos termos compartilhem um recorte comum entre presente e
passado por permitir uma consciência do tempo, a história tende a intrumentalizar a memória
através de uma verificação dos acontecimentos. Como resultado, apesar de estar em diálogo
contínuo, a memória avança no tempo do passado para o presente, enquanto a história começa
no momento em que a memória se dissolve.
O professor, antropólogo e pesquisador contemporâneo Joel Candau defende, do ponto
de vista antropológico, que, no processo de formação da memória e forjamento da identidade
de um território, tanto a história quanto a memória estão abertas à interpretação individual e
coletiva. Ao criar e preservar identidades territoriais, conduzindo a ideia de patrimônio, as
referências espaciais desempenham um papel crucial, uma vez que “a memória, ao mesmo
tempo em que nos modela, é também por nós modelada [...] (CANDAU, 2014, p. 16)” e expõe
a dialética que existe no processo de construção da identidade, podendo envolver esquecimento,
silenciamento, amplificação ou reinterpretação de eventos passados. Segundo Candau (2014):
De fato, a memória e identidade, se entrecruzam indissociáveis, se reforçam
mutuamente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução. Não
há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre
acompanhada de um sentimento de identidade [...] (CANDAU, 2014).

Candau (2014, p.16) estabelece as três palavras-chave da consciência contemporânea,


memória, identidade e patrimônio “como naturalização da cultura [...] (CANDAU, 2014,
p.161)” que dialoga com a abordagem teórica não-contemporânea de Halbwachs (2003, p.164)
ao enfatizar a dimensão coletiva da memória e sua relação com a construção da identidade
individual e grupal num quadro espacial. Os dois autores apontam para a necessidade do espaço
relacional na construção e manutenção de costumes, que varia de acordo com a raça, classe e
gênero, e como isso contribui para o fortalecimento da identidade, sendo o território o espaço
mediador das relações dos sujeitos e reestruturação das memórias coletivas.

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