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Cidade, dramaturgia e patrimônio.

A memória de bairros cariocas pela pena


de Nelson Rodrigues

Evelyn Furquim Werneck Lima1


Lucas Soares de Souza2
Introdução

Existe atualmente entre os estudiosos da História Urbana forte tendência a redescobrir tecidos
históricos que tenham representado espaços simbólicos nas cidades e que muito se modificaram
com o passar dos anos. Estudos com base em documentos e relatos de época podem transformar a
memória coletiva em memória histórica e permitem preservar a memória das cidades, ainda que
seja em arquivos e bibliotecas, e não mais na própria paisagem.

É fato que as cidades se modificam ao longo do tempo e que a preservação/conservação dos


imóveis e da paisagem urbana do passado empreendida pelos órgãos de patrimônio é insuficiente
para dar o testemunho da história e da geografia urbana. A memória coletiva do grupo social
também se modifica com as intervenções no tecido da cidade, verticalização, aberturas de novas
avenidas e túneis, muito recorrentes nas cidades contemporâneas. As imagens da cidade em
diferentes temporalidades vão sendo apagadas, impedindo que ao ler uma obra escrita que
referencie espaços urbanos que não mais podem ser identificados, o indivíduo não localize mais
aqueles lugares, e, principalmente, não perceba as relações de sociabilidade que tiveram lugar em
tais locais.

Há que se investigar o passado e o presente e buscar reestabelecer esta continuidade interrompida


(HALBWACHS, 1950). No intuito de identificar as transformações do patrimônio urbano e
sociológico da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960, considerando principalmente a
questão da memória coletiva e das identidades que assumem os bairros cariocas na história social,
este artigo analisa as referências presentes na dramaturgia de Nelson Rodrigues. Para Niuxa
Drago,

O Rio de Janeiro não é, na obra de Nelson Rodrigues, a “Capital Federal” que deslumbra o
caipira. É a cidade que transborda de dentro do personagem carioca; que, paradoxalmente, o
liberta e o aprisiona, e cujo espaço encontramos em algum lugar onde a nossa memória se
encontra com a ilusão do espaço dramático. O espaço da cidade é materializado na cena através

1
Professora Titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ PPGAC. Pesquisador 1-C do CNPq. Este
artigo é resultado da pesquisa Espaço, Memória e Projeto Urbano.
2
Aluno de Estética e Teoria do Teatro (Graduação) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista de
Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
da lembrança ou impressão de cada espectador e das ações e reações dos atores/personagens.
Não é possível entender a força da dramaturgia rodriguiana sem este personagem que é a cidade.
(DRAGO, 2008: 98)

A obra teatral de Nelson revela a identidade dos bairros nos quais acontecem as tramas e tenciona
as nuances pelas quais esses espaços passaram na vida urbana. O autor expõe uma verdadeira
decomposição da cidade do Rio de Janeiro, subdividida em áreas de manutenção próprias,
segundo características específicas de cada bairro. Neste sentido, lançando um olhar às Tragédias
Cariocas3, o presente trabalho analisa o modo como os personagens interagem com o espaço
urbano carioca e como a identidade dos bairros, principalmente Tijuca, Centro, Copacabana e
Barra de Tijuca, emerge na construção da ação dramática do autor.

A estreita relação de Nelson Rodrigues com o Rio de Janeiro

Identificar a relevância da cidade do Rio de Janeiro na produção dramatúrgica de Nelson


Rodrigues implica considerar que, no cerne de seu teatro, está o indivíduo em eterno conflito com
os espaços (tanto materiais como institucionais) nos quais ele atua. Nesse sentido, poder-se-ia
pensar, a princípio, que a cidade é o último estágio da progressão desses espaços de atuação dos
personagens, que vão desde a análise psicológica do sujeito que se relaciona consigo mesmo,
passando pelas relações interpessoais, familiares até o choque do personagem com o universo da
rua. A especificidade do espaço urbano carioca coexiste nos personagens rodriguianos em todas
essas dimensões. E o faz de modo tão intenso a ponto de surgir uma relativa dificuldade de se
imaginar as histórias e os diálogos do dramaturgo acontecendo em qualquer outra cidade do
mundo sem que se perca algo de sua essência estética.

Ainda que de caráter específico, sua dramaturgia aborda questões humanas mais abrangentes,
devido à relação do autor com o estudo da psicanálise – como o desejo, a repressão, o delírio, a
perversão, que são objetos comuns no teatro rodriguiano. Contudo, simultaneamente, existe uma
sofisticada análise macro política acompanhando o mythos e é nesse embate entre indivíduo e
sociedade que se tecem os conflitos de Nelson Rodrigues e se expõe a crise do urbanoide, de

3
Segundo a classificação do crítico Sábato Magaldi (1985), as Tragédias Cariocas são: A falecida (1953), Perdoa-me
por me traíres (1957), Os sete gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), O beijo no asfalto (1960), Toda nudez será
castigada (1965), Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende (1968) e A serpente (1978).
2
perder-se em meio à multidão. Portanto, a presença da cidade é indissociável da construção da
psicologia das personagens do autor, intensamente subjetivados e universalizados, sem que, desta
dialética se constitua um paradoxo.

Assim, como a Londres vitoriana pode ser reconstruída na memória dos ingleses pela pena de
Dickens, que se dedicou mais à literatura do que ao teatro4, entende-se que aspectos
desaparecidos das cidades ainda podem ser recuperados nas instituições de memória, pelos textos
e registros de encenações teatrais. Nelson refere-se à cidade do Rio de Janeiro segundo
características específicas de cada bairro nas décadas de 1950 e 1960. Revisitar urbanística e
sociologicamente alguns bairros da cidade por meio das percepções que manifestavam os
personagens rodriguianos é a proposta desta investigação.

Bairros cariocas na pena de Nelson

Tijuca e arredores

Bairro tradicional muito procurado pelos cariocas que ocuparam os arredores da antiga Fábrica
das Chitas, atual Praça Saens Peña, aquele espaço da cidade representou para o Rio de Janeiro ao
final dos anos 1940 uma segunda Cinelândia, com a construção dos cinemas Olinda, América,
Metro Tijuca, entre muitos outros. Ruas agradáveis e arborizadas reuniam casas e pequenos
prédios onde as famílias se conheciam e partilhavam atividades no espaço público5, nas encostas
do Maciço da Tijuca e da floresta tropical. Além dos inúmeros cinemas, em 1950, às margens do
rio Maracanã, foi inaugurado o estádio Mario Filho, atual Maracanã e seu complexo, que
transformaram o bairro em área festiva e de muito movimento para o qual convergiam moradores
de todos os demais bairros da cidade. Nos anos 1950 e 1960, a Tijuca já era considerada um
bairro familiar de classe média.

Na obra de Nelson, a Zona Norte foi a intensa e pujante fonte de inspiração desde os anos em que
morou na Aldeia Campista, na rua Alegre, refletindo quase sempre as questões morais da classe
média tijucana. O bairro e seus arredores surgem na dramaturgia como um espaço conservador,
no qual Nelson subverte uma série de princípios. É na Praça da Bandeira que acontece o
polêmico beijo que Arandir dá no rapaz desconhecido que fora atropelado, na peça O beijo no

4
Apesar do sucesso da peça The Frozen Deep, em coautoria com Wilkie Collins.
5
A noção de espaço público aqui entendida como esfera pública no sentido aplicado por Jurgen Habermas (1984).
3
asfalto, encenada em 1960. Na Tijuca, assim como na obra de Nelson Rodrigues como um todo,
o conservadorismo familiar anda paralelamente ao desvio, ao subversivo, como se verifica nas
falas da primeira cena, do primeiro ato, que fazem referências à praça, ao elemento que causou
tanto impacto na peça. O personagem Amado, querendo instigar um delegado desmotivado para
um caso policial, relata um acidente trágico.

“AMADO – (Na sua euforia profissional) Cunha, escuta. Vi um caso agora. Ali na Praça da
Bandeira. Um caso que. Cunha, ouve! Esse caso pode ser a tua salvação.
AMADO – (Incisivo e jocundo) Porque você é uma besta, Cunha. Você é o delegado mais burro do
Rio de Janeiro. (Cunha ergue-se)
AMADO – Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi atropelado. Estava juntinho de
mim. Nessa distância. O fato é que caiu. Vinha um lotação raspando. Rente ao meio-fio. Apanha o
cara. Em cheio. Joga longe. Há aquele bafafá. Corre pra cá, corre pra lá. O sujeito estava lá,
estendido, morrendo.
AMADO – Manja. Quando eu vi o rapaz dar o beijo. Homem beijando homem. (Descritivo) No
asfalto. Praça da Bandeira. Gente assim. Me deu um troço, uma ideia genial! De repente. Cunha,
vamos sacudir essa cidade! Eu e você, nós dois!” (RODRIGUES, 1985: 93-94)

Fig. 1 – Praça da Bandeira em 1962. Foi a locação


escolhida para relatar o atropelamento que causou tanto
impacto na peça Beijo no Asfalto. Fonte:
http://www.rioquepassou.com.br/2011/02/10/praca-da-
bandeira-inicio-dos-anos-60/

O Centro do Rio de Janeiro

4
Os espaços urbanos na obra de Nelson têm tanta (ou mais) importância que as ações dos
personagens. Podemos considerar que tão eloquente quanto o que elas fazem é onde elas estão.
Quase como se houvesse uma espécie de mapa da boa conduta social e familiar que dita quais
espaços se devem ou não ocupar. Nesse sentido, o Centro como símbolo da síntese da cidade em
si manifesta-se não só como um espaço de circulação, de passagem provisória entre as diferentes
zonas da cidade, mas carrega também sentidos sociais que vão desde os aspectos de coerção
familiar pelos perigos que apresenta até o cenário de importantes eventos. É na Avenida
Presidente Vargas que os habitantes se reúnem para assistir à “apoteose fúnebre” de Boca de
Ouro.

A cidade se coloca como um perigoso transbordamento do espaço da família. O embate entre a


rua e a casa. Esta última como um suposto espaço de controle, mas que se subverte enquanto tal
na medida em que as relações familiares vão se desviando do padrão normativo. Em Os sete
gatinhos (1958), por exemplo, temos uma personagem que desenha figuras e dizeres sexuais e
obscenos na parede do banheiro, como forma de escape à persona de mãe recatada. Na mesma
obra, revela-se que, por trás de um mascaramento muito maior da família, existe uma rede de
prostituição para sustentar uma aparência social. Em Bonitinha, mas ordinária, de 1968, a
inocência da filha de Werneck é assegurada pelo desconhecimento da menina em relação ao
Centro da cidade (DRAGO, 2008: 106). O acesso a esse espaço caótico - em que a vigilância dos
familiares não mais opera - e o contato com as atividades que acontecem nesses espaços,
supostamente inadequadas a uma moça de família, significam então uma ruptura daquilo que uma
família tradicional carioca de classe média almejava aparentar nos anos 1950 e 1960.

Fig. 2 - Centro da Cidade. Imagem do ônibus que percorria a


cidade da Tijuca à Copacabana passando em frente ao
Edifício Marquês do Herval projetado pelo Irmãos Roberto,
em 1956, em substituição ao Palace Hotel, ainda com a
fachada original. Fonte:
htttp://oriodeantigamente.blogspot.com.br/2011/01/historia-
dos-coletivos-linhas-modelos-e.html

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Copacabana

A ocupação do bairro iniciou-se com a abertura do túnel Alaor Prata (antigo Real Grandeza)
ainda em 1892 e com a ligação da linha de bonde que servia ao bairro de Botafogo em direção às
praias da Zona Sul, onde surgiram os primeiros loteamentos. No princípio eram palacetes de
famílias abastadas, mas, após a construção do Hotel Copacabana Palace, com projeto de Joseph
Gire, em 1923, ocorreu a primeira ocupação de prédios de apartamentos, em especial na área do
Lido. A própria família de Nelson Rodrigues ocupou uma mansão de dois pavimentos situada à
Rua Inhangá, em 1924, transferindo-se depois para o palacete na Rua Joaquim Nabuco. O
primeiro endereço aparece em crônica do dramaturgo, explicando sobre algumas referências que
usou em Vestido de Noiva (1943) e que foram memórias da experiência que ele teve aos dez
anos, quando morou naquela rua próxima ao Copacabana Palace e descobriu espartilhos e velhos
chapéus de pluma no sótão da casa, tal como também descobertos por Alaíde, a protagonista da
peça canônica (“Velhos espartilhos”, de 30 de dezembro de 1967)

No final dos anos 1950 ainda não haviam sido implementadas no Rio de Janeiro as obras viárias
grandiosas que beneficiavam apenas o capital e seguiriam o modelo desenvolvimentista das
décadas seguintes. Ainda não fora alargada a avenida Atlântida, que tinha pista em mão-dupla e
nem executado o projeto paisagístico de Burle Marx para o calçadão. Copacabana era então o
bairro procurado pelas classes média e alta da cidade.

Fig. 3 - Praia de Copacabana nos anos 1950 –


Cartão Postal antigo.

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O problema habitacional se acentuava, mas Copacabana era um dos bairros mais procurados da
Zona Sul do Rio, com o atrativo da praia e seus prédios luxuosos além de hotéis e restaurantes
frequentados pela burguesia. Na Avenida Atlântica, as edificações ainda formavam um
continuum de proporções e linguagens arquitetônicas similares, cantada em prosa e verso por
músicos e poetas, ainda sem as altíssimas edificações hoteleiras dos anos 1970 e 1980 que
subverteriam a ordem ditada pelo Decreto 6.000 de 1937, inspirado no Plano Agache.

Fig. 4 - Copacabana – Vista da intensa ocupação no início dos


anos 1950, ainda sem as altíssimas edificações hoteleiras
permitidas nos anos 1970. Foto do sítio de André Decourt
http://www.rioquepassou.com.br/2010/03/01/copacabana-
primeira-metade-dos-anos-50/

A praia, com a crescente possibilidade de roupas de banho mais exíguas, gerou mais
permissividade nos costumes dos cariocas. Nas ruas mais interiores do bairro surgiram prédios
com muitos apartamentos pequenos ou conjugados que facilitavam a ocupação como
garçonnières, bastante comuns naquela década para encontros amorosos extraconjugais. Em uma
das cenas de Boca de Ouro (1959), Nelson Rodrigues explora este hábito bastante difundido na
época. Em briga entre os personagens Celeste e Leleco, o rapaz conta que a sogra estava morta,
enquanto ela estava em Copacabana, com um amante e, em uma das cenas do 2º ato, Leleco está
desconfiado da saída de sua mulher. Ela diz que foi ao dentista. O que Leleco realmente quer
saber com a pergunta é se a mulher estava se prostituindo.

“LELECO – Não foi a Copacabana?


CELESTE – (Com um riso falso) Mas, Copacabana? (Celeste quer-se levantar)”.
CELESTE – Fazer o que, em Copacabana? Ora, filhote!”
LELECO – Escuta uma coisa: há quanto tempo você não vai a Copacabana?”
LELECO – Você quer ver sua mãe morta como não esteve hoje, em Copacabana?”
LELECO – Tu não querias ver tua mãe morta? Morreu, pronto! Já estava morta e tu em
Copacabana.” (RODRIGUES, 1985: 294)

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Em Os sete gatinhos, mais uma vez Copacabana é associada às atividades de prostituição das
personagens. No início da trama, Bibelot e Aurora conversam. Ele a explica que seu apelido se
deu por conta da fama que tem de ter sorte com as mulheres, conta que é casado e convida-a a um
passeio pelo bairro. “BIBELOT – (Para o chofer invisível) Barata Ribeiro, nossa amizade. (Para
Aurora, feliz) Ah, eu preciso ter sempre uma mulher na zona!” (RODRIGUES, 1985: 193)

É também em Copacabana que Silene se encontra com seu amante Bibelot, no mesmo
apartamento em que ele leva todas as suas mulheres. “SILENE – (Ainda mais sofrida) E passará
as noites ao teu lado, que ótimo! (Muda de tom) E, na última vez, fomos a um apartamento em
Copacabana e... Ele tem um santinho de pescoço que...”. (RODRIGUES, 1985: 243)

Barra da Tijuca

O bairro da Tijuca é uma das principais testemunhas dos acontecimentos das Tragédias Cariocas.
Um bairro de classe média do Rio de Janeiro que experimentou drásticas mudanças culturais
desde os anos em que o dramaturgo viveu e escreveu suas obras literárias. Entretanto, nos anos
1960, descendo o Alto da Tijuca, atingia-se a Barra da Tijuca, espaço com identidade ainda em
formação, uma vez que era muito distante e difícil de ser atingido. Uma das alternativas para
chegar à Barra era subir a Avenida Niemeyer, aberta desde 1916, e chegar ao bairro de São
Conrado, onde já havia, desde os anos 1950, o Bar Bem, estrutura circular que fez sucesso nos
anos cinquenta e sessenta, pois atendia às famílias que ali almoçavam nos finais de semana e aos
que buscavam encontros fortuitos durante a semana (Fig. 5). Para chegar à Barra era necessário
subir a Estrada do Joá e passar pelo Restaurante e Boate do Joá, existente desde os anos 1950
(Fig. 6). As duas arquiteturas foram totalmente descaracterizadas, mas os acontecimentos que ali
ocorriam ainda estão guardados na memória de alguns. Certamente, os vazios que eram
atravessados e a grande extensão de terras totalmente ermas tornavam aqueles espaços da cidade
ainda suspeitos e perigosos, como já anunciava a marchinha de Braguinha “Vai com jeito” de
1956. Nelson também faz alusões que denotam o estigma do bairro e dos percursos de seus
acessos.

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Fig. 5 - São Conrado - Bar Bem Fig. 6 – Bar e Restaurante Joá. Fonte:
nos anos 1950. Fonte: Foto do Foto do sítio de André Decourt
sítio de André Decourt http://www.rioquepassou.com.br/2011/
http://www.rioquepassou.com.b 01/21/bar-e-restaurante-do-joa-anos-
r/2011/01/19/bar-bem-sao- 50/
conrado/

Em Bonitinha, mas ordinária ou Otto Lara Resende de 1968, podemos perceber o caráter
duvidoso do bairro naquele momento, quando a personagem assim se manifesta: “RITINHA –
(Atônita) Avenida Niemeyer? Barra da Tijuca? Então, é curra! Curra! Mas os caras que tocarem
nas minhas irmãs hão de morrer de câncer na língua! Vão morrer!” (RODRIGUES, 1985: 308)

Cabe lembrar que a Barra da Tijuca nos anos 1960 era ainda bastante rural, com exceção dos
loteamentos Jardim Tijucamar e Jardim Oceânico que começaram a ser urbanizados nos anos
quarenta, próximos à Igreja de São Francisco de Paula (AULER, 2007: 135).

Figuras 9 e 10 - Barra da Tijuca nos anos 1950 e 1970, respectivamente. Fonte: Wikicommons. 9
Algumas considerações

O conceito de patrimônio urbano usado na pesquisa não se restringe aos arranjos dos bens
arquiteturais na paisagem, porém, envolve a valorização das qualidades culturais e de uso dos
bairros analisados, sobretudo considerando as trocas de sociabilidade que acontecem nos espaços
públicos desses bairros.

A sensibilidade aguçada de Nelson Rodrigues tanto para a arte dramática quanto para o espaço
urbano permitiu que escrevesse peças em que os espaços da cidade se relacionam com a intriga
da trama e com os personagens, possibilitando nesta pesquisa, sentir “a alma” de alguns bairros
cariocas nos anos 1950 e 1960. A interpretação psico-sociológica da cidade constitui um
patrimônio imaterial que identifica o Rio de Janeiro no tempo, ao mesmo tempo em que informa
a aura que revestia alguns espaços da cidade em determinada temporalidade.

No período no qual investigamos a relação de Nelson Rodrigues com o Rio de Janeiro, a cidade
perdeu a condição de capital federal (1960) que coincidiu com a criação do Estado da Guanabara,
e, a partir de 1964, passou pelas arrasadoras transformações do “milagre econômico”, quando o
governo militar investiu em obras de grande vulto e estimulou os empreendimentos imobiliários,
modificando não só os espaços físicos, mas os espaços sociais da cidade. A formação de uma
cultura capitalista após 1960 criou signos de uma vida pessoal muito individualizada e de uma
vida pública vazia, fato que acabou resultando na morte do espaço público (LIMA, 2007:16).
Praças e ruas que eram locais de vivência e de inteiração transformaram-se em zonas de
passagem entre o local da moradia e o local do trabalho.

Bibliografia

AULER, Maria Cristina. Em busca de uma centralidade urbana: a Barra da Tijuca. In: LIMA,
Evelyn F. W. ; MALEQUE, Miria. (orgs.) Espaço e cidade. Conceitos e leituras. 2ª edição. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.133-142.

DRAGO, Niuxa. Espaços da cidade na dramaturgia de Nelson Rodrigues. In: LIMA, Evelyn F.
W. (org.) Espaço e Teatro. Do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2008, p. 97-116.

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HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. Trad. Flavio Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1984.

HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: Les Presses Universitaires de France,


1950.

LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Políticas de desenvolvimento e patrimônio cultural. In: LIMA,
Evelyn F. W. ; MALEQUE, Miria. (orgs.) Espaço e cidade. Conceitos e leituras. 2ª edição. Rio
de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.11-24.

RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. Vol. 1 a 4 (org. Sábato Magaldi). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

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