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Cânone Editorial

Editora responsável
Ione Valadares
Conselho Editorial
Adriano Naves de Brito, Anita C. Azevedo Resende,
Denize Elena Garcia da Silva, Lisandro Nogueira,
Maria Zaira Turchi, Noé Freire Sandes
Copyright © 2017 Tadeu Alencar Arrais

Proibida a reprodução total ou parcial deste livro sem autorização do editor


(sanções previstas na Lei n. 9.610, de 20 de junho de 1998).

1. edição
Projeto gráfico
Marcus Lisita Rotoli
Tadeu Alencar Arrais
Diagramação
Marcus Lisita Rotoli
Capa
Alanna Oliva
Revisão de textos
Gisele Dionísio da Silva
Ilustração de capa
Litografia de Balzac por Benjamin Roubaud

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Andreia de Almeida CRB-8/7889

A797s Arrais, Tadeu Alencar


Seis modos de ver a cidade / Tadeu Alencar Arrais. –
Goiânia: Cânone Editorial, 2017.
174 p. : il. ; 16 cm
ISBN 978-85-8058-090-7

1. Geografia urbana – Desenvolvimento 2. Mapas topográficos


3. Geomorfologia 4. Ecologia humana 5. Geografia urbana –
Filmes cinematográficos I. Título

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Impresso no Brasil – Printed in Brazil
O monstro estava explodindo. No entanto, nas
ruas de Manhattan, não havia sinais de que nada
de importante acontecera. A força que afetaria
suas vidas para sempre estava oculta.
Esse era o problema com o dinheiro: o que as
pessoas faziam com ele tinha consequências, mas
eram tão distantes da ação original que a mente
nunca conseguiria fazer a ligação entre elas.
(Michael Lewis, A jogada do século)
A cidade deveria ser mestra nesse modo de agir,
o fórum no qual se torna significativo unir-se a
outras pessoas sem a compulsão de conhecê-las
enquanto pessoas. Não creio que este seja um
sonho inútil: a cidade serviu como foco para
a vida social ativa, para o conflito e o jogo de
interesses, para a experiência das possibilidades
humanas, durante a maior parte da história
do homem civilizado. Mas hoje em dia essa
possibilidade civilizada está adormecida.
(Richard Sennett, O declínio do homem público)
sumário

introdução................................................................10
o mapa.......................................................................16
a morfologia............................................................28
a ecologia..................................................................44
a técnica....................................................................66
a paisagem...............................................................82
o cotidiano............................................................104
conclusão...............................................................152
referências............................................................156
anexos.....................................................................172
introdução
A
ideia de escrever um livro sobre os modos de ver a cidade
nasceu diante de um filme futurista. Filmado em preto
e branco e lançado em 1927, Metropolis, de Fritz Lang,
impressiona pela inflação de imagens típicas do cinema mudo. A
primeira imagem é topográfica, e é a partir dela que Lang constrói
seu roteiro piramidal. A técnica comanda a vida em Metropolis.
Há um sincronismo proposital entre a repetição das engrenagens
e o cotidiano programado dos operários do mundo subterrâneo.
O enredo de conflitos é construído no encontro entre a base e o
cume da pirâmide. A imagem final, demasiadamente romântica,
sugere um projeto urbano só possível, considerando-se o nosso
horizonte temporal, no cinema ou mesmo na literatura.
A ideia que gerou este livro, motivada por um filme vi-
sionário, tornou-se possível em virtude da junção de três outras
experiências. A primeira tem data específica, registrada em um
documento conhecido como CTPS (Carteira de Trabalho e Pre-
vidência Social). Em 18 de janeiro de 1988, ainda sem completar
15 anos de idade, ingressei no mundo do trabalho formal pelas
portas da construção civil. Certo dia, no espremido intervalo para
o almoço, subi ao décimo andar da obra – um edifício de quatorze
andares, localizado na área central da cidade. A sensação de estar
nas entranhas daquele edifício, dentro de sua anatomia, entre co-
lunas de concreto, com a brisa vazando entre as lajes que subiam
vagarosamente, ofereceu-me uma visão diferente da cidade. A ci-
dade era aquilo. Mistura de tijolos, argamassa, aço, cobre, alumí-
nio, azulejos, tubulações e muita gente se ocupando em preencher
os espaços vazios daquele esqueleto. Hoje se constrói em maior
velocidade e com menos operários. O avanço tecnológico resultou
em maior produtividade, por meio da incorporação de novos ma-
teriais e técnicas construtivas, o que acarretou um novo gerencia-
mento do canteiro de obras. Hoje, resido no décimo oitavo andar
de um edifício na mesma região. Do alto, a paisagem da cidade
pode ser diferente, mas sua natureza não mudou muito. Continua
avançando para cima, repaginando o velho sonho de Babel.
A segunda experiência foi acadêmica. A geografia urbana,
como um ponto de partida, sempre ambicionou uma visão sis-
têmica da cidade. O sítio urbano é a primeira referência, lição
metodológica do geógrafo Pierre Monbeig. No ambiente acadê-
mico, o contato com as obras de David Harvey, Mike Davis e Jane
Jacobs modificou aquela visão, ainda ingênua, do décimo andar
da obra.
Harvey oferece um conceito relativamente simples de ci-
dade como forma de concentração dos excedentes socialmente
produzidos. Isso revela muito do seu significado histórico, de
suas articulações com os sistemas regionais e, principalmente,
do seu propósito político. A obra de Davis, por sua vez, deve ter
lugar obrigatório nas estantes de qualquer um que deseja estudar
a cidade. A mistura de história, ecologia e política garante o efei-
to apocalíptico de sua narrativa. Jacobs, por sua vez, certamente
oferece aquele cadinho de esperança de um cotidiano renova-
seis modos dor, especialmente nas grandes cidades. Gosto de imaginar que a
de ver a cidade simpática militante subiu vários décimos andares na tentativa de
12 compreender o funcionamento das cidades.
A terceira experiência brotou, vagarosamente, de meu in-
teresse pela literatura. A compreensão do desenvolvimento de ci-
dades como Paris e Londres, especialmente no século XIX, não
seria a mesma sem o olhar perspicaz de Honoré de Balzac e de
Charles Dickens. Balzac (2013a, p. 108) não foi modesto quando
escreveu que o plano de sua obra A comédia humana consistia em
“fazer o inventário dos vícios e das virtudes” da sociedade fran-
cesa. O escritor admitia uma relação quase determinista entre o
ambiente físico de Paris, representado pela paisagem urbana, e o
aspecto moral dos seus habitantes burgueses, representado pela
obsessão pelos salões requintados da planície do Sena.
Dickens, contemporâneo de Balzac, tinha em comum o
profundo interesse pelas cenas londrinas, pelos tipos que povoa-
vam as margens do Tâmisa. Esse quadro de interesse pelos tipos
urbanos, pelas transformações na paisagem urbana e pelos tu-
multos políticos gerados pelas revoluções influenciou, igualmen-
te, a literatura de Victor Hugo e de Émile Zola. Poucas descrições
sobre o sítio urbano de Paris são carregadas de tanta sensibilidade
como aquela de Victor Hugo (2014) em Os miseráveis. No Bra-
sil, Aluísio Azevedo (2012), em O cortiço, conseguiu demonstrar
como o Rio de Janeiro, não obstante um centro decrépito e reple-
to de moradias precárias, esteve envolto no circuito da locação e
no consequente rentismo. Enfim, a literatura do século XIX, na
Europa ou no Brasil, já demonstrava a globalidade das formas de
produção do espaço urbano, afinal as semelhanças entre o Rio de
Janeiro e as principais cidades europeias não se limitavam à im-
portação dos modos urbanos aristocráticos, especialmente os fi-
gurinos, para as faixas tropicais. A literatura, como uma forma de
comunicação, traduzida em crônicas, contos, romances ou ficção
policial, oferece um olhar mais prosaico sobre o universo urbano.
A cidade é lugar privilegiado para a construção de personagens e
enredos que marcaram a história da humanidade.
Mapa, morfologia, ecologia, técnica, paisagem e cotidiano introdução

são filtros que, em diferentes circunstâncias, utilizamos para nos 13


aproximarmos das cidades. A partir dessas dimensões experi-
mentamos a universalidade do fenômeno urbano, em qualquer
que seja a latitude e em qualquer que seja o tempo histórico. O
que propomos não é, contudo, um exercício acadêmico, muito
embora os seis modos de ver a cidade sejam ancorados, de certa
forma, em conceitos consagrados entre os pesquisadores. A cida-
de é mais que um conjunto de conceitos programados por uma
determinada retórica acadêmica e é disso que tentamos, com a
consciência dos riscos, nos desviar.
A organização dos temas responde a uma ordem de apro-
ximação, como um viajante que olha para o mapa antes de vis-
lumbrar, no horizonte, a morfologia da cidade incrustada em um
vale ou no topo de uma montanha. O viajante se pergunta que
condições possibilitaram aquele assentamento, mesmo antes de
conhecer sua ecologia. Sabe, no entanto, que a técnica permitiu
a ocupação dos lugares mais inóspitos do planeta. Com a técni-
ca certa, pântanos são drenados, encostas protegidas e desníveis
driblados com obras de engenharia. Após adentrar a cidade, a
paisagem criada revela-se a cada esquina e sempre em interação
com o cotidiano. É o momento em que todos os modos de ver a
cidade são incorporados à vida diária, em uma espécie de síntese
que chamamos de city, urbe, ville, town, ciudad, cittá, cidade etc.

seis modos
de ver a cidade

14
o mapa

– Resta uma que você jamais menciona.


Marco Polo abaixou a cabeça.
– Veneza – disse Khan.
Marco sorriu.
– E de que outra cidade imagina que eu estava falando?

(Italo Calvino, As cidades invisíveis)


T
homas Morus (2009, p. 71) preferiu o discurso aos mapas
para descrever sua Utopia: “Quem conhece uma cidade
conhece todas, porque são muito semelhantes e não se
distinguem senão pelo terreno”. Sem diferenças humanas a res-
saltar, os mapas perdem muito de sua utilidade. O discurso de
Morus sobre a cidade e as formas de governo alinha-se a uma tra-
dição consagrada de descrição das sociedades ideais. Com muita
frequência, estas eram chamadas de cidades. De difícil localiza-
ção geográfica, tais cidades são não lugares, por isso cada qual
funciona como negação, em cada tempo, da realidade vivida por
seus idealizadores.
Morus escreveu Utopia em 1516, época em que a cartogra-
fia, ainda com muita carga de abstração, ocupava-se em repre-
sentar as cidades. As cidades imaginárias sempre se edificaram
nas curvas de nível da cidade real. Sem existir na esfera concreta
do mundo, seus idealizadores contentaram-se em reproduzi-las
em modelos radiais ou cônicos que, quase sempre, miravam para
um centro, demonstrando que o propósito sacro, republicano ou
mesmo carismático comandaria a vida nessas cidades.
Os mapas, como uma espécie de discurso gráfico, foram
instrumentos eficazes na popularização da imagem das cidades.
Os mapas bidimensionais, desenhados em tabuletas de argila ou
em papel, testemunharam o desenvolvimento das sociedades
urbanas. Com o advento dos recursos técnicos inerentes a cada
época, os mapas das cidades adquiriram novas funções, deixan-
do para trás a carga de abstração que caracterizara a cartografia
arcaica. A função de orientação espacial, a utilização para um
protourbanismo ou mesmo a vinculação aos guias urbanos para
viajantes os popularizaram. É inegável, independentemente de
suas funções, que os mapas muito cedo se transformaram em ins-
trumentos fundamentais na divulgação das cidades. Essa carac-
terística é atemporal.
Black (2005) afirma que o conhecimento cartográfico, es-
pecialmente nas áreas costeiras, aumentou significativamente a
partir dos séculos XVI e XVII. É sabido que a urbanização seguiu,
tanto no Mediterrâneo quanto na Ásia e nas Américas, as faixas
litorâneas. Era natural, portanto, que se construísse um grande
acervo de mapeamento dessas áreas, o que incluía o mapeamen-
to, por vezes detalhado, das cidades portuárias. Se observarmos o
trabalho Ciudades del Renacimiento, composto por mais de uma
centena de mapas (Moritz, 2008), verificamos a função destaca-
da de Amsterdã, Constantinopla, Barcelona, Veneza e Londres.
A sobrevalorização da função portuária é uma característica co-
mum na cartografia urbana da Renascença, era das viagens trans-
continentais e dos descobrimentos. Os mapas comunicavam as
rotas, delimitavam os lugares e informavam as cidades a serem
conquistadas. Havia uma equivalência, com muita frequência,
entre os portos e as cidades representadas. A cidade de Acre (Is-
rael), localizada na Galileia, na costa mediterrânica, foi menos
representada que Jerusalém no tempo das Cruzadas, mas certa-
seis modos mente figurava no mapa do caminho para a Cidade Santa, como
de ver a cidade lugar a ser conquistado. Não haveria outro propósito para suas
18 muralhas que não constituir-se um bastião para a proteção do
território de Jerusalém. Foi também um porto de destaque no
Mediterrâneo.
Os mapas das cidades, pelo menos até o século XVIII, exi-
biam duas características comuns. A primeira diz respeito, sem
dúvida, aos elementos naturais, destacadamente os rios e o relevo.
No mapa de Cairo de 1572, por exemplo, o rio Nilo aparece com
uma calha extensa vigiando a cidade, mais densa na parte leste. À
época, suas ilhas aluvionais ainda eram pouco povoadas. A Esfinge
e as pirâmides, em sinergia com o relevo, orientavam o viajante que
chegava do Mediterrâneo. Com isso, a visão panorâmica e a neces-
sidade de evidenciar os monumentos caracterizavam a cartografia
da época. O mapa aproximava-se bastante do desenho. Nas cidades
em que os rios seccionam o espaço, as pontes aparecem como ele-
mentos centrais, bastando para isso verificar os sucessivos mapas
de Paris e Londres, desde o século XVI (Schüler, 2012).
Nos mapas de Granada e Praga, ambos de 1572, as cidades
aparecem encravadas em colinas e rodeadas de campos. No mapa
de Moscou de 1662, a calha do rio Moscova revela-se larga, o que
era comum na representação cartográfica de várias cidades. Os
rios eram meios de transporte e, por isso, a visão da cidade po-
deria ser construída a partir da chegada do viajante. Se existiam
rios, certamente haveria pontes. Os sucessivos mapas de cidades
como Londres e Paris retratam o processo de expansão urbana,
ultrapassando o seccionamento natural do Tâmisa e do Sena. Não
é por acaso que Paris seja lembrada pela divisão entre a margem
esquerda e a margem direita com mais frequência do que pelos
seus vinte arrondissements. A densidade nas margens do Sena era
tão alta que exigia a ocupação das pontes por casebres, como se
nota em alguns mapas da Paris medieval.
A segunda característica consiste na presença de muralhas
que, feitas de pedra ou madeira, circundavam as cidades. As mu-
ralhas nunca foram um elemento aleatório na arquitetura urbana.
Um século antes da Era Cristã, Vitrúvio (2007), em seu Tratado o mapa

de arquitetura, descreveu em detalhes como edificá-las, tradição 19



Paris vers 1530, plan que se seguiu durante a Idade Média. Mesmo nos primeiros po-
dit “d’Arnoullet”,
apresenta algo que voamentos da América era comum a construção de muralhas de
se repete em muitos madeira pelos colonizados, sempre receosos das reações nativas,
outros mapas das
cidades medievais. O como ocorreu em algumas cidades do Oeste norte-americano.
exagero na escala da
calha, pelo olhar de
A muralha isolou a cidade e consagrou a divisão espacial
hoje, é proporcional entre o interior e o exterior, entre a cidade e o campo. Os mapas
à importância do rio
Sena na morfologia tiveram a didática função de eternizar essa divisão; talvez tenha
urbana da capital. O sido essa, em qualquer período histórico, sua principal função. O
mapa é uma síntese da
Paris medieval, cidade historiador Jacques Le Goff (1992, p. 195) foi preciso na definição
densa marcada por
grupos de muralhas
do caráter espacial da muralha na Idade Média:
desenhadas que
operam uma separação
O controle de um espaço é coisa capital para a cidade. Evoquei-o
funcional entre a para indicar as características desse espaço: o jogo entre o
paisagem urbana e a interior e o exterior articulado em torno da muralha e das portas,
paisagem rural.
Fonte: Arnoullet o sistema dos “pontos quentes” da cidade.
(1906); Arrais (2016).

seis modos No interior das muralhas situavam-se igrejas, ruelas, pra-


de ver a cidade ças, largos e um amontoado de casas a servir de habitação, estabe-
20 lecimento comercial e local para a indústria artesanal, a exemplo
dos curtumes e das cutelarias. As torres e os portões controlavam
o acesso e ordenavam a circulação e a comunicação com o exte-
rior. Os campos bucólicos, castelos e moinhos, além de pastores
e suas criações, são representados em muitos mapas medievais.
Ao desenharem os mapas, seus autores comunicavam, especial-
mente, o cotidiano rural. Nos campos bucólicos, ordenados em
função dos cultivos, os indivíduos aparecem em dois grupos: o
primeiro é formado pelo labor camponês, que aparece em vários
mapas das cidades da Renascença; o segundo é retratado em ce-
nas prosaicas, com mulheres e homens a admirar a natureza de
um ponto de vista privilegiado. As vestes não deixam dúvidas so-
bre a origem aristocrática. Em função da “escala” e da densidade
das edificações, as pessoas pouco aparecem no interior das mu-
ralhas. Esses elementos, em escala diferenciada em cada mapa,
eram reais, embora os fenômenos concretos exigissem, a depen-
der da técnica e do quadro de intenções do desenhista ou do car-
tógrafo, alguma carga de abstração.
A busca por segurança justificava o esforço para a constru-
ção de muralhas em várias regiões do planeta. Como resultado de
um intenso movimento de sedentarização das comunidades, an-
tes nômades, as cidades não podiam prescindir da proteção dos
seus sítios. Mas a natureza da segurança das cidades medievais
do interior europeu era distinta daquela das cidades litorâneas,
cuja função também gravitava em torno do controle dos vastos
territórios. Isso vale, reservando-se as devidas proporções, para
as cidades litorâneas coloniais do território brasileiro, como Reci-
fe, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, que ainda guardam registros
de fortificações na paisagem urbana. Não é sem propósito que
muitas cidades guardem em sua toponímia a palavra “forte”. For-
taleza, por exemplo, nasceu do Forte de São Sebastião, localizado
na foz do rio Ceará, ainda no século XVI.
A estratégia de urbanização da costa brasileira pressupôs
a construção de fortes, com faróis e canhões, frequentemente re- o mapa

presentados nos mapas coloniais. Nos Estados Unidos, quase uma 21


dezena de cidades guardam em sua toponímia o substantivo fort,
como Fort Collins, no Colorado, ou Fort Smith, no Arkansas; es-
tas nasceram de fortes militares durante o século XIX. A proteção
em um ambiente de povoamento constituiu-se em prioridade.
No livro Cartografía de la ciudad, de Schüler (2012), que
reúne um conjunto de mapas das cidades da Antiguidade até
o século XX, as muralhas são o elemento principal. Os mapas
de Cuzco, de 1563, e de Jerusalém, de 1682, impressionam pelo
alinhamento das muralhas. No primeiro mapa surge a mura-
lha retangular, com torres e soldados vigiando as fronteiras. No
segundo, ela é igualmente retangular e as torres e os inúmeros
templos mereceram a atenção do cartógrafo. Esse mapa, como
indica Schüler, faz referência às cenas bíblicas, como as crucifi-
cações fora do perímetro muralhado. Jerusalém, em função de
sua histórica vinculação com a religião e os sucessivos cercos,
transformou-se em uma das cidades mais mapeadas até o século
XVI. A narrativa dos conflitos é objeto de investigação do his-
toriador Simon Sebag Monteriore (2013) no livro Jerusalém: a
biografia.
No mapa de Frankfurt, de 1563, e no mapa de Bruxelas, de
1572, as muralhas aparecem em composição com as torres e os
portões de acesso. Pontes e barcos ilustram o dinamismo da ocu-
pação e mais de uma dezena de torres vigiam os perímetros. O
controle da circulação, seja para segurança ou para propósitos fis-
cais, explica a predominância das muralhas. No mapa de Milão,
de 1572, a muralha apresenta-se em perfeito alinhamento com o
rio, sitiando a cidade. A opulência do castelo de Pisa é destaca-
da, assim como os canais que integravam a cidade ao mundo ex-
terno, funcionando como meio de comunicação e transporte de
mercadorias. Contudo, em matéria de ilustração, poucos mapas
são tão eficientes na divulgação da imagem de segurança como
seis modos aquele do Kremlin, em Moscou. Não é por acaso que a palavra
de ver a cidade Kremlin signifique “fortaleza”. O sítio é protegido pelo rio Mos-
22 cova e pelas muralhas, formando uma figura parecida com um

triângulo. Chegar ao Kremlin pelo norte, a julgar fiel o relato do O mapa, que data
de 1796, retrata
mapa, exigia avançar por três fileiras de muralhas, além dos de- aspectos da proteção
safios hídricos, uma vez que a fortaleza se situava em uma ilha. do sítio urbano da
cidade do Rio de
A imagem da segurança, portanto, revela-se predominante, tanto Janeiro, ilhada pela
Baía de Guanabara.
para o viajante quanto para o conquistador que olhasse o mapa. São representadas a
A partir do século XIX, os mapas das cidades distancia- topografia, a igreja e
as praias. O destaque
ram-se cada vez mais das representações panorâmicas e ilustra- é para a Fortaleza da
tivas. A técnica venceria, a partir de então, a imaginação, ou seja, Ilha das Cobras e o
Armazém de Pólvora.
a busca pela precisão cartográfica suplantou, progressivamente, a Fonte: Bulhões (1796).
subjetividade. A concentração populacional e o espraiamento das
ocupações consecutivas por parte de diversos grupos humanos,
resultante da intensa migração, demandaram outro tipo de carto-
grafia, mais pragmática e vinculada às iniciativas de planejamen-
to urbano. O caso de Londres é exemplar. O mapa que antecede o mapa

o grande incêndio, datado de 1658, uma espécie de xilogravura, 23



O mapa de Londres, indica o alinhamento das casas ao redor do rio Tâmisa. Nos ma-
de 1860, diferencia-se
dos mapas medievais, pas posteriores, os distritos aparecem ordenados.
a começar pela No século XIX, os sistemas de planejamento exigiram ma-
representação do
traçado das ruas e pas elaborados com crescente precisão. É conhecida a história do
avenidas. A técnica médico John Snow e do padre Henry Whitehead, cujo trabalho
utilizada permite
maior aproximação consistiu em correlacionar os óbitos decorrentes da cólera e as
com a realidade e,
ao mesmo tempo,
condições sanitárias, centrando as energias na distribuição de
atende às demandas água nas bombas, especialmente aquelas localizadas na Broad
das atividades de
planejamento urbano. Street. O mapa urbano, talvez pela primeira vez na história, foi
Fonte: Smith ([201-]). utilizado para fins de reconhecimento epidemiológico na escala
intraurbana. O escritor Steven Johnson (2008, p. 177), em O mapa
fantasma, assim descreve o método de mapeamento utilizado:
John Snow concebeu seu primeiro mapa sobre o surto da
Broad Street em princípios de 1854. Em seu formato original,
seis modos apresentando ao público em um encontro da Sociedade
de ver a cidade
Epidemiológica em dezembro, assemelhava-se ao trabalho
24 de Cooper, com duas pequenas modificações: cada morte foi
representada por um grosso traço preto, o que proporcionava
um vívido destaque às casas que sofreram uma quantidade
significativa de perdas, e o excesso de detalhes foi eliminado,
preservando-se unicamente o traçado básico das ruas e os
símbolos representavam as treze bombas d’água que abasteciam
a vasta área de Soho.

Ainda na escala intraurbana, merece atenção o Atlas sou-


terrain de la ville de Paris, de Fourcy (1859). Os mapas do atlas
indicam com precisão o estatuto da exploração do subsolo da
capital francesa. Naquele período de grandes transformações, o
mapeamento das galerias tornara-se fundamental. As alterações
do Barão de Haussmann, prefeito de Paris entre 1853 e 1870, de-
mandaram um mapeamento da cidade em várias escalas e temá-
ticas, com atenção especial para a infraestrutura viária. A cidade
reformada é, sobretudo, uma cidade fluida, que transforma a lo-
comoção em prioridade.
Locomover-se em cidades como Paris e Londres, no século
XIX, especialmente para o viajante recém-chegado, não era tarefa
simples. À medida que as cidades se expandiam horizontalmente
e, ao mesmo tempo, diversificavam as atividades nas áreas cen-
trais, a tarefa de nelas se localizar tornava-se mais difícil. Por esse
motivo, os mapas, os desenhos e os croquis de localização de ruas
e bairros tornaram-se populares no século XIX. Em Um estudo
em vermelho, de Arthur Conan Doyle (2015a, p. 120), aventura
que apresenta Sherlock Holmes para o público londrino, o cri-
minoso egresso dos Estados Unidos e perseguido pelo detetive
assim se expressa:
O pior foi aprender a movimentar-se; confesso que, de todos
os labirintos já inventados, o das ruas dessa cidade é o mais
confuso. Mas eu tinha sempre comigo um mapa de Londres, e
quando fiquei conhecendo a localização dos principais hotéis e
estações, saí-me muito bem.

Já os mapas temáticos, que descreviam a distribuição da o mapa

pobreza ou dos grupos étnicos, popularizaram-se a partir do final 25



A imagem de satélite do século XIX. Eles procuravam auxiliar a explicação de deter-
captada pelo Google
Earth é da cidade
minados fenômenos que ocorriam no interior das cidades. No
de Nordlingen, na primeiro quartel do século XX, a chamada Escola da Ecologia
região da Baviera,
na Alemanha. É Humana, em suas incursões sobre os estudos urbanos, dedicou
possível que os mapas esforços ao mapeamento da escala intraurbana. Faris e Dunham
medievais dessa cidade
destaquem os mesmos (1948) mapearam as áreas de Chicago, informando o preço dos
elementos, com as aluguéis e correlacionando essa informação com a ocupação dos
variações das formas,
resultantes da precisão domicílios por negros e brancos. Fizeram o mesmo com o que
da escala. Nordlingen
dispõe de mais de uma
chamaram de áreas de demência da cidade, ou distritos, entre
dezena de torres e pelo 1930 e 1931. Chicago não foi um laboratório apenas da chamada
menos cinco grandes
portões de acesso ao ecologia humana, mas também da cartografia urbana, com todos
mundo exterior. os problemas que uma representação pode suportar.
Os mapas acompanharam, portanto, a evolução das ci-
dades, o que é natural, uma vez que estas sempre despertaram
curiosidade no viajante e no explorador; daí os momentos de
revolução da cartografia serem, igualmente, momentos de revo-
lução no mapeamento e na representação das cidades. No pós­
‑guerra, especialmente na Europa, a necessidade de reconstru-
ção das cidades exigiu dos urbanistas mapas que conduzissem,
seis modos de certo modo, a intervenções, seja na escala do quarteirão, seja
de ver a cidade na escala do aglomerado urbano. Nesse período, por assim di-
26 zer, o urbanismo retirou o monopólio dos mapas de cartógrafos e
geógrafos. As cidades precisavam ser reconstruídas e a escala da
planta urbanística ganhou prioridade.
Ainda no século XIX, os mapas das cidades, como catálo-
gos turísticos, despertavam desejos pelo consumo da paisagem
urbana. Conhecia-se uma cidade a partir de seus mapas. A jovem
Emma Bovary, mesmo sem conhecer Paris, centro de realizações
e liberdade dos valores provincianos, percorre seus bulevares com
a ajuda de um mapa (Flaubert, 2011). Mais de um século depois
e considerando-se os aparatos tecnológicos e os diversos aplica-
tivos disponíveis na internet, ainda é possível dizer que os mapas
das cidades continuam a despertar uma primeira imagem, uma
representação do desejo do viajante. Afinal, antes de viajar para
uma cidade qualquer, não contemos a curiosidade de visualizar
suas ruas e monumentos em imagens de satélite no Google Earth.

o mapa

27
a morfologia

Como podemos ser pegos de surpresa?


Que truque de topografia é esse que
deixa um monstro tão extenso se
esconder por trás das esquinas e dar o
bote no viajante?

(China Mieville, Estação perdido)


O
plano morfológico pode ser descrito como uma linha
composta de aclives, declives e retas. Esse plano oferece
uma visão da cidade distinta daquela dos mapas bidi-
mensionais. O viajante, de longe, observa a silhueta da cidade em
composição com uma cadeia de montanhas, um vale encaixado
ou mesmo um extenso planalto. Uma visão distante. Uma segun-
da aproximação que visa à compreensão da identidade da cidade,
pois a primeira pode ser um mapa ou simplesmente um desenho
impresso em uma revista semanal ou em um cartão-postal. Uma
primeira expectativa topofólica, para utilizar a expressão de Tuan
(1980). A revelação da cidade não ocorre apenas pela relação di-
reta, próxima, com o sítio urbano, mas por um esquema gráfico
capaz de estimular a imaginação.
O plano morfológico de Atenas, sitiada pelo Mar Egeu e
pelo Mar de Creta, ao sul e ao sudeste, certamente limitava as
ações militares em tempos de guerra. A colina de rocha calcária,
local de assentamento da Acrópole, oferece um ponto de visão de
360 graus para o sítio da antiga pólis, assim como para a moder-
na cidade. As dimensões do reduzido platô no alto da colina são,
do norte para o sul, menos de 120 m e 300 m, aproximadamente,
no sentido leste-oeste. A partir das suas escarpas, a diferença de
altitude é inferior a 60 m em relação às áreas circundantes. Parece
pouco, mas naquele período era suficiente para a proteção da ci-
dade. Até hoje, para quem chega pelo Mar Egeu, a visão da Acró-
pole, esculpida sobre a rocha e desenhada em mármore, como que
vigiando o passado, é o elemento de maior destaque de Atenas.
A primeira imagem do Rio de Janeiro é, sem dúvida, to-
pográfica, independentemente de o observador chegar por terra,
pelo mar ou pelo ar. Abreu (2014), em “A cidade, a montanha e a
floresta”, sublinhou a função do Maciço da Tijuca na conforma-
ção da ocupação da cidade, como local estratégico para proteção
nos tempos de sua fundação. Hoje o Maciço exerce outras fun-
ções, sendo parcialmente vencido pelas obras de engenharia. A
topografia turística, representada pelo Corcovado, pela Pedra da
Gávea, pela Pedra do Arpoador e pelo Pão de Açúcar oferece aos
visitantes de hoje ângulos diversos da cidade. Os afloramentos
de granito testemunham, silenciosamente, tanto o tempo geoló-
gico quanto o tempo histórico. Afirmam a identidade cenográfica
da cidade, como foi ilustrado, ainda na década de 1970, no filme
007 contra o foguete da morte. A cena do gigante, interpretado
pelo ator Richard Kiel, com dentes de aço, a mastigar os cabos do
bondinho diante de uma paisagem aprazível e exótica, prende o
expectador.
A morfologia das cidades brasileiras durante o período da
mineração, seja em Minas Gerais, Goiás ou Mato Grosso, apre-
senta elementos similares que justificaram a escolha dos sítios
urbanos. Tal escolha, por parte dos colonizadores, não foi alea-
tória. A presença do ouro de aluvião dependeu de uma simbiose
entre geologia (ocorrência do mineral metálico), relevo (área de
deposição aluvial) e água (necessária para extração). Ouro Pre-
seis modos to (MG) e Pirenópolis (GO), naquele período, enquadravam-se
de ver a cidade perfeitamente nesse enredo morfológico que sempre despertou a
30 ambição dos desbravadores. A localização dos arraiais e vilas em

vales cercados por montanhas garantiu a identidade das cidades A silhueta do Rio
de Janeiro não
do chamado ciclo do ouro brasileiro. Seu charme não se resume, deixa dúvida sobre
apenas, às edificações coloniais geminadas e às ruas curvas, mas, a importância da
morfologia na
sobretudo, ao fato de serem vigiadas por serras. construção de uma
A morfologia das cidades ferroviárias, no processo de co- primeira imagem da
cidade. A vista do Pão
lonização do Oeste norte-americano, conformou, por outro lado, de Açúcar a partir de
Botafogo, do final
um modelo pontual, linear e plano de organização urbana. Pon- do século XIX, revela
tual porque em cada estação, a depender das condições técnicas como a topografia
demarca a identidade
de manutenção, era fundada uma cidade. Linear porque, em um dessa cidade.
primeiro momento, o sítio organizava-se ao longo da linha férrea. Fonte: Ferrez (1880).

Plano porque a instalação da via permanente e dos dormentes


em espaços de topografia regular implicava redução dos custos
operacionais. Uma morfologia plana, seja nas terras altas, seja nas
planícies áridas. A lógica é a mesma em várias latitudes. Se a mor-
fologia permite uma ferrovia, exigirá estações, pontos de apoio
para abastecimento de água e lenha para gerar vapor para mover
locomotivas e vagões. Daí inicia-se o processo de povoamento e
fundação das cidades ferroviárias em sítios marcados pela planu-
ra do relevo.
O movimento de fronteira pressupôs, além de exploração a morfologia

mineral, a fundação de núcleos de povoamento seguidos, em mui- 31


tos casos, da expansão ferroviária, exemplo que se aplica a algumas
regiões dos estados do Colorado, Kansas e Texas. Nesse último, a
fundação da cidade de Fort Worth no final do século XIX, cuja
expansão esteve associada à atividade pecuária, enquadra-se no
enredo de ocupação das planícies norte-americanas. A cidade, si-
tuada em uma região cuja altitude não ultrapassa 300 m, insinua­
‑se nos meandros do rio Trinity, assim como na linha da ferrovia.
Talvez seja esse o principal traço das cidades norte-americanas das
planícies áridas, como a lendária Tombstone, no Arizona, e não o
bangue-bangue, eternizado nos filmes de John Wayne.
A imagem morfológica permite especular sobre os limites
de expansão do sítio urbano, as formas de circulação interna e
o sistema de integração. A cidade de Santiago, capital do Chile,
insinua-se com mais evidência no sentido norte-sul. Limites para
a expansão do sítio edificado são impostos no sentido leste, dada
a presença da Cordilheira dos Andes, que dista aproximadamente
40 km do centro da cidade. La Paz, capital da Bolívia, com uma
altitude média de 3.600 m, certamente impôs limites físicos ao
colonizador, em razão do ar rarefeito. Até mesmo os atletas es-
trangeiros que participam de jogos de futebol devem passar por
períodos de adaptação.
A presença de água, salgada ou doce, corrente ou parada,
é captada pelas lentes morfológicas. Originalmente, a água escul-
piu o relevo e fertilizou os solos, formando vales de povoamento
e favorecendo a sedentarização por meio da agricultura e da do-
mesticação dos animais. A genealogia de qualquer cidade é, pois,
a genealogia da sedentarização. A geografia da água confunde-se
com a geografia da cidade. Não é sem propósito que as cidades
tenham uma relação umbilical com os grandes rios.
O Crescente Fértil é conhecido não apenas por uma área
de extensas planícies aluvionais que possibilitaram o desenvolvi-
seis modos mento da agricultura. Se desenharmos um raio de 850 km a par-
de ver a cidade tir da cidade de Sakaka, situada no noroeste da Arábia Saudita, na
32 fronteira com o Iraque, teremos, em sua metade norte, o desenho
dessa região. No extremo oeste está a região da cidade do Cai-
ro, capital do Egito; a noroeste, o Vale do Rio Jordão; ao norte, a
fronteira com a Turquia, tendo como ponto central a cidade síria
de Aleppo, na Síria; a sudeste, o Golfo Pérsico, no delta dos rios
Tigre e Eufrates. A fundação e a conquista de cidades nessa região
são comuns nos relatos bíblicos do Velho Testamento. A narrativa
bíblica não é outra senão aquela de um intenso conflito, seguido
da procura de um sítio para sedentarização, sempre provocada
pelos chamados divinos. Não é por acaso que a sina de Abraão,
que deixa a Mesopotâmia, seja aquela da busca pela prometida
Terra de Canaã. O mesmo fez Moisés e Josué, este último com
exaltação e violência, como pode ser ilustrado pelos cercos a Je-
ricó e Jerusalém. Antes deles, Adão povoou os Jardins do Éden,
localizados, ao que parece, no alto Eufrates, na Turquia. O relato
bíblico não deixa dúvidas sobre a relação entre o Êxodo, a morfo-
logia e a sedentarização:
Por esse motivo desci a fim de livrá-los das mãos dos egípcios e
tirá-los daqui para uma terra boa e vasta, onde mana leite e mel:
a terra dos cananeus, dos hititas, dos amorreus, dos ferezeus, dos
heveus e dos jebuseus. (Êxodo, 3:8)1

Ao leite e ao mel, como indicam os relatos bíblicos, poder­


‑se-ia acrescentar o sangue, uma vez que o povoamento não se
fez sem a violenta conquista das cidades. A geografia dessa região
explica o surgimento da cultura do pastoril, do nomadismo, mas
também dos assentamentos fortificados em pequenas colinas nas
vertentes do Vale do Rio Jordão. A associação entre desertos ári-
dos e cadeias de montanhas dificulta a locomoção nessa região
desde os tempos de Josué e das Cruzadas no século XI.
O povoamento dos vales dos rios Tigre e Eufrates, que cor­
rem para o Golfo Pérsico, reproduziu enredo similar. A região
conhecida como Mesopotâmia é um verdadeiro oásis. Às margens
desses rios, nas regiões da Turquia, Síria e Iraque, fundaram­‑se
a morfologia

1. Disponível em: <www.bibliaonline.com.br>. 33



Perfil topográfico de cidades bíblicas, como a Babilônia. As áreas com vegetação e
20 km, partindo do
centro das cidades
aquelas agricultáveis, em poucas ocasiões, ultrapassam 10 km a
selecionadas, captado partir das calhas principais dos dois rios. A exceção fica para as
pelo Google Earth.
Em Brasília, Los áreas baixas na confluência entre eles. O calendário urbano, nos
Angeles e El Alto, o primórdios da civilização mesopotâmica, dependia do fluxo de
perfil seguiu o sentido
centro-nordeste. Em água desses rios. Mumford (1998, p. 70) descreve a fundação das
Amsterdã, o perfil cidades e sua relação com a dinâmica hidrográfica, destacando o
seguiu o sentido
centro-leste. controle da água.
Se os habitantes, em verdade, não moldavam a terra de uma
forma ordenada, a natureza o fazia a sua própria maneira, mais
crua, pela inundação anual com formações sedimentares, no
vale do Nilo, ou pela enchente e violenta destruição, vedando a
passagem e mudando o curso de rios, no vale do lento Eufrates e
do turbulento Tigre.

Fernand Braudel (1988, p. 73) ressalta a diferença entre o


vale do Nilo e a Mesopotâmia, destacando a relação entre o calen-
dário agrícola e a necessidade imperativa de obras técnicas para
irrigação:
Todavia, diferentemente do Eufrates ou do Tigre, a cheia regular
do Nilo, geralmente entre o solstício de Verão e o equinócio de
Outono, permite um calendário agrícola previsível. A cheia traz
tudo, a água, o fértil lodo negro, e fica circunscrita pela própria
natureza ao único vale do rio, sendo ambas as margens ladeadas
pelos relevos desérticos, pela cadeia arábica a leste, a líbica a
seis modos oeste. Assim, não se trata no Egipto, como na Mesopotâmia, de
de ver a cidade
impedir, de dominar a inundação, mas apenas de a orientar.
34

A imagem do Cairo confunde-se com os movimentos de Localização das
principais cidades do
deposição de sedimentos nos meandros do rio Nilo. Benevolo Crescente Fértil.
(2005, p. 40) recorda que inúmeras cidades foram “eliminadas pe- Fonte: Adaptado da
Enciclopédia Britânica
las enchentes anuais do Nilo”, restando poucos registros arqueo- por Loçandra Borges
lógicos. Ludwig (1948, p. 9) escreve que o Nilo é “o mais extenso de Moraes.

e solitário rio da terra”. O autor da biografia do rio Nilo escrita


na década de 1930 quis dizer que, em metade do seu curso, não
há registros de afluentes perenes ou mesmo de chuvas regulares.
Mas a solidão sempre foi quebrada por uma histórica rede de ci-
dades ao longo de suas margens. A partir do Cairo, acompanhan-
do as margens do Nilo, há uma faixa de urbanização que concen-
tra mais de 80% da população do Egito, com maior destaque para
as cidades de Maghaghah, com 75.657 habitantes, Al-Minyã, com
236.046 habitantes, e Aswan, com 260.003 habitantes, em 2014. A
urbanização do lago Vitória, nas nascentes do Nilo, não deixa dú-
vidas sobre a rede urbana, dependente da água, que se configurou
na África Central, mais especificamente no Quênia, na Tanzânia a morfologia

e em Uganda. 35
É curioso que a mesma representação sobre a presença da
água em relação à cidade do Cairo, Paris ou Londres, não tenha
ocorrido com Bagdá, cidade quase sempre retratada no cinema
como um ambiente inóspito. Na tradição popular, representa-
da pelas magníficas histórias de As mil e uma noites (Antoine
Galland, 2010), é comum a referência aos jardins de Bagdá que
impressionam visitantes e mercadores, imagem distinta daquela
do cinema hegemônico contemporâneo. Toda a importância do
rio Tigre não foi suficiente, especialmente na cinematografia dos
conflitos, para contrapor a metonímia árida da capital do Iraque.
Para Hollywood, parece não haver diferença no enredo morfoló-
gico das cidades do Oriente Médio, especialmente aquelas envol-
vidas em conflitos geopolíticos. O Tigre, com seus meandros e
ilhas, auxiliado pelo afluente Diyala, secciona o espaço urbano de
Bagdá, fato negligenciado pelos roteiros cinematográficos, como
pode ser ilustrado em Zona Verde e Guerra ao terror. O primei-
ro filme, protagonizado por Matt Damon, traz no título a marca
territorial de uma área controlada pelo exército norte-america-
no. Localizada no centro de Bagdá, a Zona Verde é demarcada, a
oeste, por uma faixa de aproximadamente 6 km lineares da calha
do Tigre. A largura da calha pode variar de 140 m, no extremo
sul, até mais de 400 m na divisa norte da Zona Verde. A escolha
do sítio não foi aleatória. O rio Tigre, no entanto, só aparece em
minúsculas tomadas, indicadas por flashes de imagens em mapas
nas perseguições militares.
O filme Guerra ao terror, por sua vez, apresenta roteiro
similar. Muito embora as incursões por Bagdá sejam frequentes
no filme, não há nenhuma tomada que mostre o rio Tigre, a não
ser na cena que exibe um mapa fincado na parede, no tenso diá-
logo entre o soldado Owen, interpretado por Brian Geraghty, e
o coronel-médico John Cambridge, interpretado por Christian
Camargo. Mais que Zona Verde, Guerra ao terror eleva ao extre-
seis modos mo a aridez do espaço urbano. Água, só engarrafada. Sabemos
de ver a cidade que nenhum dos dois filmes foi filmado em Bagdá. A Jordânia e
36 o Marrocos são locações escolhidas com muita frequência para
representar a capital iraquiana ou qualquer que seja o ambiente
de conflito envolvendo cidades do Oriente Médio. Mas a loca-
ção importa menos que a intenção de reproduzir, como imagem
geral, um ambiente árido, ilhado por desertos e habitado por
uma população que se comunica a partir de gestos excêntricos.
Edward Said (1990, p. 222), em seu estudo sobre o orientalismo,
ensina que a geografia sempre foi um dos “sustentáculos mate-
riais do conhecimento sobre o Oriente”. Há um perfeito encaixe
entre a metonímia espacial, com um sítio urbano sempre árido, e
a gramática dos bárbaros, representada pela estratégia discursiva
de homogeneização dos grupos. A morfologia urbana intimida o
telespectador tanto quanto os grupos humanos ali representados.
Afirma Said (1990, p. 291):
Nos filmes ou nas fotos de notícias, o árabe é sempre visto em
grandes números. Nenhuma individualidade, nenhuma caracte-
rística ou experiência pessoal. A maior parte das imagens apre-
senta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais
(logo, desesperadoramente excêntricos). À espreita, por trás de
todas as imagens, está a ameaça da jihad. Resultado: um temor
de que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo.

Assim como as cidades do Egito acompanham as margens


do Nilo, as cidades do Iraque acompanharam as margens do Ti-
gre, seu maior eixo de urbanização. As cidades, como as estradas,
insistem em perseguir os meandros dos rios, como que testemu-
nhando a origem e evolução das comunidades humanas.
Na China, país de indiscutível diversidade ambiental,
preenchido por planícies aluvionais, montanhas e desertos, as
cidades também acompanharam os rios até os deltas. Inúmeras
delas foram fundadas às margens do rio Amarelo, cujas nascen-
tes situam-se ao norte da Cordilheira do Himalaia. O rio percor-
re a China no sentido leste-oeste, finalizando sua sina no Mar
Amarelo. Jinan, uma das últimas grandes cidades antes da foz, e
Qinedao, na altura da foz, concentravam 3.527.566 e 3.990.942 a morfologia

pessoas, respectivamente, em 2010 (City Population, 2016). 37


A disputa de grandes rios com cadeias de montanha, como
as Rochosas e os Apalaches, constituiu elemento natural funda-
mental no povoamento das áreas centrais dos Estados Unidos.
Às margens do rio Missouri, que nasce nas Montanhas Rocho-
sas, no estado de Montana, formaram-se vários povoados desde
a Marcha para o Oeste. St. Louis é uma cidade sintomática da
relevância dos rios no processo de povoamento norte-americano.
Localizada na confluência dos rios Missouri e Mississipi, consti-
tui nó fundamental para a ocupação do Oeste norte-americano.
Do oeste verte o Missouri e do norte o Mississipi, formando uma
extensa e baixa área de deposição de sedimentos que vigiam o
sítio urbano de St. Louis.
As grandes cidades, assim como os grandes rios, tentam
evitar as montanhas, preferindo as planícies, onde podem se es-
palhar. A morfologia responde, antes de tudo, pelo movimento
gravitacional. Em poucos sítios do planeta existe uma aparente
simbiose entre a água e a cidade como em Veneza. Braudel (1988,
p. 105) afirma que a “água da laguna é a matriz natural de Vene-
za”. Como não levar em conta a opinião do historiador quando
observamos os inúmeros veios de água, canais, que ordenam o
cotidiano da cidade? Trata-se de labirintos de água que, à exceção
do Grande Canal, raramente ultrapassam 8 m de largura.
No Brasil, a simbiose com a água demarcou, de certo
modo, a identidade da cidade de Recife, apelidada, por isso mes-
mo, de Veneza brasileira. Freyre (1961, p. 103) assim resumiu essa
simbiose:
A cidade pode-se dizer que saiu de dentro da água como uma
Iara. O rio está ligado da maneira mais íntima com a história
da cidade. O rio, o mar e os mangues. Assassinatos, cheias,
revoluções, fugas de escravos, assaltos de bandidos às pontes
fazem da história do Capibaribe a história do Recife.

seis modos Há, por assim dizer, uma relação íntima, por vezes ro-
de ver a cidade mântica, entre os rios e as cidades, tanto quanto com o mar. O
38 Mediterrâneo, como lugar de chegada e contato entre Europa,
África e Ásia, permitiu trocas perenes entre cidades europeias,
africanas e asiáticas. As condições geográficas, com a presença
das penínsulas, inúmeras ilhas cerceadas por montanhas, tor-
naram o Mediterrâneo conhecido de mercadores e turistas que,
muito cedo, descobriram as vantagens das trocas comerciais e o
veraneio como opção de lazer. Braudel, que dedicou energia a
decifrar seus segredos, escreve que esse mar é “devorado pelas
montanhas”. Sua opinião sobre as montanhas que circundam o
Mediterrâneo é definitiva:
Elas encontram-se presentes até a orla marítima, abusivas,
encostadas umas às outras, inevitáveis, esqueleto e pano de fundo
da paisagem. Dificultam a circulação, torturam as estradas,
limitam o espaço reservado aos campos felizes, às cidades,
ao trigo, à vinha, até mesmo às oliveiras; a altitude domina as
atividades dos homens. (Braudel, 1988, p. 19)

Dezenas de cidades foram fundadas a partir dos portos


marítimos. Cidades peninsulares, com forte vocação comercial.
Entre o Estreito de Gibraltar e o Estreito de Bósforo, por exemplo,
desenharam-se redes marítimas e terrestres. Istambul, a arcaica
Constantinopla, espalha-se para ambas as margens do Estreito de
Bósforo. É fácil perceber os motivos pelos quais essa cidade cons-
tituiu-se como rota de comunicação entre o Ocidente e o Oriente.
Cidades como Alexandria (Egito), Orã (Argélia), Acre (Israel),
Atenas (Grécia), Nápoles (Itália), Marselha (França) e Barcelona
(Espanha) também consistiram em portos de difusão do comér-
cio, da cultura e da religiosidade. A civilização mediterrânea foi,
sem dúvida, fundada no contato urbano.
A imagem morfológica pode revelar o quadro de intenções
do colonizador, daqueles que primeiro ocuparam o sítio urbano,
que escolheram um vale, uma montanha ou mesmo uma escarpa
rochosa costeira para um assentamento que logo mais se trans-
formaria em uma cidade. A possibilidade de enxergar a grandeza
das pirâmides de Gizé, para quem chegava do sul, no caminho a morfologia

do Nilo, era diferente da de hoje, uma vez que suas margens não 39
eram tomadas pela urbanização. A apropriação do relevo para
a segurança, tanto quanto para a localização de templos, é uma
característica marcante das cidades da Antiguidade. E isso vale
tanto para cidades no Mediterrâneo quanto para aquelas que se
localizam na interlândia do continente europeu, uma vez que o
“bárbaro” poderia chegar tanto pelo mar quanto por terra.
No modo de ver morfológico, o relevo plano aparece como
ambição, e, não por acaso, as chamadas cidades planejadas foram
assentadas em sítios de relevo pouco movimentado. Um encaixe
perfeito entre o plano do papel e o plano do terreno. Juscelino
Kubitschek, presidente do Brasil de 1956 a 1961, cita em suas me-
mórias as arriscadas aventuras sobre o céu brasileiro a bordo de
um velho DC-3. Ao sobrevoar o local da nova capital na década
de 1950, no Planalto Central, lembra:
Era um descampado infinito, com suaves ondulações no terreno,
que não ultrapassavam a altura de 200 metros. Tudo era chato e
amplo – a vastidão desconcertante do vazio. (Kubitschek, 1975,
p. 45)

A imagem morfológica de Brasília, assentada no Planalto


Central, ou de Palmas, às margens do rio Tocantins, privilegia
as linhas retas. Estas constituíram, muito cedo, uma ambição da
arquitetura moderna. Não é por acaso que Le Corbusier (1992,
p. 10) tenha asseverado, em outra escala: “A rua curva é o cami-
nho das mulas, a rua reta o caminho dos homens”. É evidente que,
no olhar contemporâneo, marcado pelo urbanismo moderno, as
áreas planas são associadas às escolhas racionais.
Entretanto, seria arrogância supor que não houve um olhar
racional para a escolha do sítio urbano de Cuzco (Peru), no vale
do magro rio Huatanay, cercado por cadeias de montanhas cuja
altitude nas faixas norte e sul ultrapassa 4.000 m. Nada nos auto-
riza a concluir que a escolha de um sítio com tal configuração te-
seis modos nha sido aleatória. Aristóteles, em sua Política (1985), advoga que
de ver a cidade a cidade deveria atender quatro aspectos em relação à localização,
40 como salubridade, proteção contra os ventos do norte, favoreci-
mento das atividades administrativas e militares e fonte de água.
Vitrúvio (2007) salienta que as escolhas para os sítios das cidades
deveriam pautar-se, primeiramente, no aspecto da salubridade,
o que resultava na preferência por lugares altos, evitando, desse
modo, os pântanos. O pensamento sobre a localização estratégica
e, portanto, racional das cidades remonta à Antiguidade e não ao
século XX. O sedentarismo, palavra que primeiro define a origem
das cidades, pressupõe um sítio para saciar a sede, matar a fome e
destinar oferendas aos diferentes deuses. Assim nasceram, pros-
peraram e sucumbiram várias sociedades urbanas.
Poucas imagens morfológicas são tão evidentes quanto
aquela de Eugène de Rastignac, personagem central na trama de
Balzac (2002) O pai Goriot. Ao olhar da pequena colina na dire-
ção dos meandros do rio Sena, o então estudante de Direito, agora
não mais debutante diante da cruel burguesia parisiense, desaba-
fa: “Agora, é entre nós dois!” (Balzac, 2002, p. 275). O que a cena
mais uma vez revela é uma imagem topográfica de Paris tão ca-
racterística das obras de Balzac. A perspectiva de vista da cidade
a partir do cemitério Père-Lachaise é reveladora das hierarquias
sociais que o jovem ansiava por vencer. Vencer a topografia social
equivale a descer para a planície. É habitar justamente aquelas
áreas da velha aristocracia, como o Faubourg Saint-Honoré ou
até mesmo as áreas burguesas do Faubourg Saint-Germain, como
destaca Hussey (2011).
O mesmo sentimento histórico em relação à mobilidade
social e à ocupação de sítios com topografia irregular serve para
aqueles que residem em cidades com topografia excepcionalmen-
te irregular. Em Salvador, até o final do século XIX, o transporte
de mercadorias nas inúmeras ladeiras era reservado, preferen-
cialmente, aos escravos. Trata-se de uma cidade comandada pela
geomorfologia. Cidade Alta. Cidade Baixa. O Elevador Lacerda,
ainda nos seus primeiros anos durante a década de 1870, ameni-
zou as dificuldades de integração entre as duas partes da cidade; a morfologia

hoje é um ponto turístico. 41



Vista da margem A morfologia, traduzida no valor diferencial do solo, ajuda
direita do rio Sena a
partir do cemitério a explicar a fragmentação espacial das cidades. Luiz Edmundo
Père-Lachaise. A (1957, p. 199), um cronista da primeira metade do século XX,
planície do Sena,
com seus meandros assim se refere à mobilidade social no Rio de Janeiro:
e ilhas, conformou
uma paisagem com Os Morros de Santo Antônio e do Castelo, no coração da cidade,
poucos pontos de vista são dois arraiais de aflição e de miséria. No Rio de Janeiro, os que
em elevação. O Père­
‑Lachaise localiza-­se
descem na escala da vida, vão morar para o alto, instalando-se na
em uma altitude de livre assomada das montanhas, pelos chãos elevados e distantes,
aproximadamente de difícil acesso.
90 m, pouco mais
baixa que a da Basílica
de Sacre-Coeur, de A topografia do terreno corresponde, em uma ordem in-
onde se avistam as
planícies do Sena a versa, à topografia social. Mas existem inúmeras exceções que
partir de uma altura de ilustram a apropriação diferencial do relevo. O exemplo das co-
120 m.
Fonte: Civeton (2013). linas do sul de Lima, no Peru, é um dos mais surpreendentes.
seis modos O alinhamento de um topo de morro separa a comunidade de
de ver a cidade San Juan do bairro de Miraflores de Surco. As duas áreas distam
42 aproximadamente 10 km do centro de Lima. Na vertente de San
Juan, a favela de Vista Hermosa derrama para o oeste do vale. No
lado leste, as ocupações de luxo, com piscinas e encostas verdes
a proteger dos possíveis deslizamentos no bairro de Miraflores.
Não bastasse a linha topográfica do topo do morro que separa as
duas realidades, construiu-se um muro de aproximadamente 10
km. A expressão “técnica de separação”, utilizada por Haesbaert
(2014), é apropriada para a ocasião. A vista para o oeste, privile-
giada em função do Atlântico, é preservada. O muro de concreto
que supera 3 m de altura, enfeitado com círculos de arame farpa-
do laminado, tipo cacto, comuns nas áreas de ocupação militar,
dá o tom da barreira física, uma vez que a própria paisagem se
encarregou de revelar as barreiras sociais.
Se, nas cidades do século XIX, os andares mais altos eram
reservados aos estratos mais pobres da população, o mesmo não
ocorre nas cidades dos séculos XX e XXI. O progresso técnico re-
sultou em comodidades para os que podem pagar pela topografia
artificial. Ninguém duvida que nos edifícios luxuosos, as cober-
turas são ocupadas pelos estratos mais abastados da população.
O valor do metro quadrado no Leblon, o mais caro registrado
no Brasil, ultrapassa 24 mil reais. Não é incomum, no mercado
imobiliário carioca, encontrar imóveis comercializados a preços
que superam 20 milhões de reais. O predicado principal é a vista
para o mar, associada à segurança e à disposição de amplos espa-
ços internos. A apropriação diferencial da topografia revela uma
morfologia social tanto quanto a ecologia revela que os riscos na
cidade não são compartilhados da mesma forma pelos grupos so-
ciais que a habitam.

a morfologia

43
a ecologia

O essencial é apenas impedi-la de


matar metade da cidade.

(Albert Camus, A peste)


A
Escola de Ecologia Humana, conhecida como Escola
de Chicago, ocupou-se em estudar as interações entre o
homem e o meio ambiente, partindo do pressuposto de
que a cidade é um ambiente condicionador das atividades huma-
nas, como pode ser verificado no conjunto de estudos publicados
por Donald Pierson (1948). Processos biológicos de sucessão, do-
minância e segregação foram transportados para a análise urba-
na, o que tem gerado, desde a década de 1930, algum espanto por
parte das ciências ocupadas em estudar as cidades. As analogias
entre processos biológicos e sociais não são bem digeridas pelas
ciências humanas.
Mike Davis (1993, 2001) obteve sucesso na empreitada de
oferecer um novo significado para a ecologia urbana. Seus estudos
sobre Los Angeles, a segunda maior metrópole norte-americana,
revelam, didaticamente, como a ecologia urbana está submetida ao
tempo geológico na mesma proporção que ao tempo histórico. As
intempéries e os eventos geológicos, assim como as relações histo-
ricamente construídas entre os grupos humanos, determinaram o
destino daquela cidade. O tempo da natureza e o tempo da técni-
ca. Deslizamentos, tornados, secas, incêndios, terremotos, além de
uma fauna pronta para se vingar de todos, revelam o cataclismo
urbano de Los Angeles. A visão sistêmica de Davis permite com-
preender as relações causais entre o clima, a geologia, o relevo e os
eventos sociais, em um perverso ciclo de riscos não socializados.
Pode-se dizer que a rotina do risco define a ecologia das cidades
contemporâneas. Risco de deslizamentos. Risco de enchentes. Ris-
co de hipotermia nas noites frias. Risco de atropelamento. Risco de
latrocínio. Risco de solidão diante da multidão. Risco de fome em
uma sociedade urbana que se vangloria da abundância.
A ecologia de Los Angeles em quase nada é semelhante à
ecologia de Recife, exceto pela atroz luta pela sobrevivência de al-
guns grupos humanos, que na última cidade ocorreu em meio à
lama e aos aterros. Josué de Castro (2001), em Homens e carangue-
jos, romance publicado na segunda metade da década de 1960, des-
creve como a ecologia da capital pernambucana, formada no caldo
grosso da lama do mangue do rio Capibaribe, moldou o homem
caranguejo. O caranguejo integra uma extensa cadeia de vida, mor-
te e renovação, sobrevivendo da bosta humana e, ao mesmo tempo,
tornando possível a nutrição da vida humana. O mimetismo é a
face do discurso da adaptação contra a fome que Castro denuncia
com a mesma contundência que Manuel Bandeira, em seu poema
urbano. Só na cidade é possível imaginar o realismo de tal cena.
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
seis modos
de ver a cidade (Bandeira, 2015)
46
O mimetismo não é apenas recurso estilístico da literatu-
ra ou da poesia. Na cidade, ele reforça a invisibilidade de alguns
grupos humanos, especialmente aqueles que sobrevivem dos res-
tos. A cada manhã, em várias cidades do planeta, uma legião de
homens, mulheres e crianças ocupa-se da tarefa de recolher os
restos da cidade. A escritora Katherine Boo (2013, p. 16), autora
do premiado romance Em busca de um final feliz, assim descre-
ve a rotina vitoriana dos moradores da favela de Annawadi, em
Mumbai, na Índia:
A cada manhã, milhares de catadores de lixo espalhavam-se pela
área do aeroporto em busca de todo excedente que pudesse ser
comercializado, uns poucos quilos das oito mil toneladas de lixo
que Mumbai produzia diariamente. Esses garimpeiros estavam
atrás de maços de cigarro amassados, atirados de carros com
vidros escurecidos, dragavam esgotos e vasculhavam caçambas
em busca de garrafas vazias de água ou cerveja e, toda noite,
percorriam de volta a rua da favela com sacos de estopa cheios
de lixo jogados às costas, como uma procissão de papais-noéis
desdentados e ávidos.

Em sua hierarquia de preferência estão o alumínio, o pape-


lão e o plástico, recicláveis de maior valor no mercado. A função
ecológica desses homens, mulheres e crianças esconde um árduo
processo de precarização do trabalho. São como formigas, em um
nanossistema ecológico urbano. Portanto, é comum na ecologia
urbana que a nutrição de alguns grupos humanos dependa da-
quilo que é descartado por outros grupos na mesma cidade. Se o
consumo de água de coco nas cidades litorâneas brasileiras, por
um lado, é potencial gerador de resíduos, por outro, gera insumos
alimentares que frequentemente são consumidos por moradores
de rua que se aproveitam de sua polpa rica em minerais. A reci-
clagem, na moderna ecologia urbana, assume ares de adaptação,
no mais perfeito sentido darwiniano.
A “nova” ecologia urbana pode ser decifrada traçando­ a ecologia

‑se um perfil vertical da cidade, como fazem os pedólogos para 47


investigar os horizontes do solo. No primeiro horizonte concen-
tram-se a vida humana, a fauna e a flora, adaptadas à ecologia
da cidade. Cachorros, gatos, ratos, corujas, calangos, pombos,
urubus convivem com edificações como se estas fossem florestas,
alimentando-se dos restos produzidos por humanos. Os urubus,
certamente, amenizam o odor proveniente das vísceras e restos
de peixes na área do Mercado Ver-o-Peso, em Belém. Não seria
exagero dizer que executam a mesma função dos porcos nas cida-
des medievais. Seu sistema digestivo permite, assim, a execução
da tarefa de limpar a cidade. Gatos e cachorros, agora domesti-
cados, habitam residências, exigindo, especialmente nos espaços
públicos, políticas de manejo de resíduos sólidos.
Os biólogos chamam de sinantropia o processo de adapta-
ção às condições ecológicas de espécies não comuns ao ambiente
urbano. Este, muitas vezes próximo dos testemunhos de florestas,
rios ou áreas alagadiças, oferece abrigo e oportunidade de ali-
mentação para répteis, mamíferos e os mais variados insetos. Os
subterrâneos de cidades como Paris e Nova York são lendários e,
pelas dimensões, podem abrigar sistemas ecológicos com mui-
tas espécies de répteis e roedores. Em Berlim, em 2012, correu o
mundo a notícia de que um javali de aproximadamente 120 kg
atacou e feriu quatro pessoas. Esses ataques não são incomuns na
capital alemã.
A geografia das cidades de Orlando e Miami, na Flórida,
pontuadas por lagos e canais alagadiços, ajuda a explicar o inte-
resse dos aligátores, espécie de jacaré-americano, por piscinas de
condomínios de luxo. Os relatos de encontros com esses répteis
são cada vez mais comuns. Ao aumento do número de roedores
nas cidades seguiu-se, igualmente, o aumento do número de co-
bras, cada vez mais comuns nos centros urbanos. Davis (2001),
no capítulo intitulado “Os comedores de carne humana da Sierra
Madre”, do livro Ecologia do medo, explica os medos resultantes
seis modos dos frequentes encontros entre a fauna silvestre e a população ur-
de ver a cidade bana. O autor relata a inversão na cadeia alimentar e, igualmente,
48 na relação predador-presa.
Os veados, por exemplo, tornam-se gulosos devoradores de
gramados, enquanto os coiotes acabam viciados em fast-food
catada nas latas de lixo. Linces acrescentam o gato doméstico
à sua dieta e populações crescentes de corvos buscam carniças
nas estradas. Em outras palavras, a vida selvagem torna-se mais
urbana em seus modelos básicos de subsistência, ao mesmo
tempo em que espécies domésticas tornam-se bravias. (Davis,
2001, p. 198)

Nos cursos d’água ainda encontramos peixes e cágados re-


sistindo com baixos níveis de oxigênio. A relação das cidades com
a água, aliás, merece registro. Não apenas porque os primeiros as-
sentamentos emergiram em sítios com água, mas porque os rios
e córregos foram considerados canais para despejo dos resíduos
domésticos. Não deixa de ser irônico que a água, predicado para
a sedentarização, seja a primeira vítima do processo de urbaniza-
ção. Era comum, na arquitetura das cidades coloniais brasileiras,
que os fundos das residências se insinuassem para os rios, local
de despejo dos dejetos humanos carregados pelos “tigres”, alcu-
nha dada aos escravos responsáveis pela tarefa. Os dejetos eram
levados em tonéis a serem despejados em rios, no mar ou em
valas na área urbana.
Mas o principal produto da adaptação sem limite é o ho-
mem, que transforma o solo, o relevo, a água, o ar, atribuindo-lhes
valor. Quem duvida que os lugares com maior conforto térmico
de qualquer grande cidade sejam, justamente, aqueles mais valo-
rizados? Aí reside, por exemplo, a semelhança entre a valorização
imobiliária das propriedades localizadas nas proximidades do
Parque Ibirapuera, em São Paulo, ou do Central Park, em Nova
York. Os parques são áreas cada vez mais valorizadas na ecologia
urbana. Não porque abrigam uma fauna ou uma flora residual,
mas porque oferecem conforto térmico diário para poucos e uma
paisagem artificial desejada por muitos.
No segundo horizonte, o solo aparece como recurso. A a ecologia

produção de alimentos nas cidades, com espaços praticamente 49


impermeabilizados, tomados por residências e ruas, não é capaz
de alimentar o contingente crescente de humanos. A identidade
da cidade moderna foi determinada pela sua capacidade de trans-
formar a matéria-prima oriunda de áreas distantes do perímetro
urbano em artefatos e produtos industrializados, não pela relação
com o solo produtivo, mais identificado com o campo, na clássica
divisão do trabalho. A crescente concentração de pessoas tornou
necessário o acionamento dos estoques ecológicos regionais para
atender a progressiva demanda urbana. O mais radical exemplo
é aquele dos cercamentos dos campos ingleses no século XVIII.
Segundo Raymond Williams (1989, p. 138), “mais de 2,4 milhões
de hectares de terras foram apropriados pelos proprietários poli-
ticamente dominantes: cerca de um quarto da totalidade das ter-
ras cultivadas”.
A história de qualquer cidade é aquela do rompimento de
um equilíbrio ecológico que, ironicamente, nunca existiu. Mes-
mo na Idade Média, com cidades relativamente coesas, havia uma
dependência da ecologia regional. É perfeitamente lógico, dada
a escassez de espaço, que a agricultura e a pecuária fossem ativi-
dades desenvolvidas fora das muralhas. O mercado Les Halles,
situado na margem direita do Sena, por exemplo, sempre centra-
lizou a produção regional. Em todas as manhãs do século XIX,
filas de carroças atravessavam os portões da cidade. Não é pos-
sível imaginar que, mesmo naqueles tempos, o pequeno sítio de
Paris fosse capaz de produzir queijos, carnes, cereais, vinhos etc.
para sustentar uma população que, em 1872, chegou a 1,8 milhão
de habitantes (Combeau, 2011). O historiador Richard Graham
(2013), em estudo sobre a alimentação em Salvador entre 1780
e 1860, descreve a complexa cadeia de consumo na cidade. Ele
aponta que, em 1799, havia 25 açougues na capital baiana: “A ci-
dade consumia de 350 a seiscentas reses por semana, no fim do
seis modos século XVIII e começo do século XIX” (Graham, 2013, p. 169).
de ver a cidade Com uma população que não ultrapassava cinquenta mil habi-
50 tantes no período, Salvador constitui uma pequena amostra de
como as ecologias regionais eram acionadas para atender a de-
manda por carne, isso sem falar na farinha, no arroz, no milho,
nas hortaliças, enfim, em uma gama de alimentos que, de fato,
alimentavam a cidade e chegavam de fora, seja pelo mar, seja pe-
las rotas do sertão. A autossuficiência alimentar nunca foi uma
característica das cidades.
Além disso, a extração de madeira e rochas para sustentar
a crescente onda de construções pressionou constantemente as
ecologias regionais. A área urbanizada de Paris, no século XIX,
não ultrapassava 100 Km². A questão da densidade em Londres,
com uma população maior que Paris, era “ligeiramente” atenuada
por um sítio urbano mais espraiado no final do século XIX. A
Londres contemporânea atingiu população superior a oito mi-
lhões de pessoas, em sítio urbano aproximadamente quinze vezes
maior que o de Paris. Imagine-se, portanto, como a densidade
populacional pressionou as ecologias regionais. Na queda de Ber-
lim, em abril de 1945, Antony Beevor (2015) relata um fato que
poderia ser cômico, não fosse a tragédia diária testemunhada pela
cidade. Diante do cerco do Exército Vermelho, Goebbels, então
ministro da Propaganda do Reich, respondendo às preocupações
de um general alemão sobre as dificuldades de abastecimento da
população sitiada, teria dito ao oficial que poderia “levar as vacas
para o centro da cidade”. Assim teria uma razoável oferta de lei-
te para a população miserável. O general, como descreve Beevor
(2015, p. 15), perguntou: “com o que alimentariam as vacas?”. O
cerco não apenas pressionou a esmagada infraestrutura urbana,
mas também evitou que a ecologia regional, já estagnada pelo
esforço de guerra, fosse acionada para atender as demandas por
alimentação de uma população que ultrapassava três milhões de
habitantes. Essa narrativa serve igualmente para Varsóvia, capi-
tal da Polônia, Stalingrado, atual Volgogrado, e Leningrado, atual
São Petersburgo, ambas na Rússia.
Fora dos tempos de guerra, o maior azar de uma flores- a ecologia

ta sempre foi estar próxima de uma cidade que demandava le- 51


nha para as caldeiras, madeira para as construções e carvão para
o aquecimento. Há uma ideia, recorrente, de que as mudanças
nos quadros florestais estão limitadas à expansão das atividades
agrícolas. Quando observamos no Brasil a infinidade de postes
de madeira para sustentação da rede de iluminação pública, po-
demos dimensionar a pressão, apenas para esse fim, nas áreas
florestais. A urbanização teve profundo impacto nas ecologias
regionais, fato que não pode ser resumido apenas na análise da
mancha urbana impermeabilizada.
A tendência de centrar as energias na interpretação de um
modelo de urbanização como sinônimo de concentração dos ex-
cedentes da indústria na cidade camufla, de certo modo, o fato
de que a urbanização concentrou, igualmente, as demandas por
áreas florestais e campos abertos para pastagem, bastando para
comprovar esse argumento a observação da cadeia da construção
civil e a drenagem de alimentos dos espaços rurais. Não há equilí-
brio, mas uma drenagem de recursos naturais para as cidades. Es-
tas concentraram, historicamente, os excedentes do campo, fato
justificado pela progressiva sedentarização e correlata diversifica-
ção do consumo. É o consumo o grande motor de transformação
da ecologia urbana. A cada momento, para além das necessidades
de reprodução da vida diária, são criadas novas necessidades de
consumo que são logo suplantadas por outras. A quantidade de
objetos que povoam as residências contemporâneas é absoluta-
mente superior à quantidade de objetos nas residências da Idade
Média ou até mesmo da modernidade. Não apenas a oferta foi di-
versificada, como também sua durabilidade, o que gerou pressão
nos sistemas ecológicos.
A cidade nunca foi e dificilmente será um ambiente de
equilíbrio ecológico. Somente uma ecologia romântica não re-
conhece esse dado histórico. É difícil imaginar, considerando as
seis modos doze aglomerações urbanas mais populosas do planeta que con-
de ver a cidade centravam, em 2014, 331,1 milhões de habitantes, que a ecolo-
52 gia desses sítios urbanos, mesmo com os recursos técnicos con-
População das aglomerações urbanas selecionadas, em 2014.
Aglomeração País População Aglomeração País População
Guangzhou China 46.900.000 Karachi Paquistão 24.000.000
Tóquio Japão 39.500.000 Manila Filipinas 23.100.000
Shangai China 30.400.000 Mumbai Índia 23.000.000
Jakarta Indonésia 27.700.000 Cidade do México México 22.500.000
Delhi Índia 26.000.000 Nova York EUA 21.900.000
Seul Coreia do Sul 24.300.000 São Paulo Brasil 21.800.000
Fonte: City Population (2016).

temporâneos, possa sustentar esse contingente populacional. Na


verdade, em termos de ecologia, não são apenas 331,1 milhões
de pessoas. São 331,1 milhões de consumidores assentados em
espaços ecologicamente insustentáveis. Água, alimentos, plásti-
co, minérios, traduzidos em uma infinidade de produtos consu-
midos e descartados diariamente, povoam as cidades. Estas, com
diferentes culturas e sistemas ecológicos, têm algo em comum,
que é, justamente, o acionamento das ecologias regionais para o
sustento da vida. A história dos monumentos de Atenas ou de
Roma é um exemplo notável de drenagem de recursos naturais.
As esculturas de mármore do Partenon, em Atenas, demandaram
a exploração dos depósitos de rochas, por um lado, e o trabalho
de operários e artesãos, por outro. A monumentalidade das cida-
des exigiu magnífico esforço ecológico, obscurecido apenas pelo
brilho do mármore.
A escassez de água para abastecimento humano é ameaça
comum em várias cidades do planeta, exigindo o acionamento
cotidiano das ecologias regionais para alimentar o crescente con-
sumo de água, bem como de insumos químicos para seu trata-
mento. A água captada, raramente, é potável. As áreas de capta-
ção de água, com frequência, são mais espraiadas que o próprio
tecido urbano das cidades. Los Angeles e São Paulo são exemplos.
O filme Chinatown, de Roman Polanski, já indicava, na superfície
do seu roteiro, o intenso conflito de interesses envolvendo o abas- a ecologia

tecimento de água da cidade de Los Angeles e os proprietários 53


de terras. Los Angeles, ilhada entre a aridez do deserto e o sal do
Pacífico, não encontrou outra solução que não aquela de buscar
água a dezenas de quilômetros, no Vale Central, por meio de um
meticuloso processo de tubulações, aquedutos e barragens. Mas
nem isso tem sido suficiente para domar a força do consumo da
cidade que já convive com racionamento de água. O sol e o sal da
Califórnia cobram um alto preço da ecologia regional e, ao mes-
mo tempo, desmascara os interesses econômicos envolvidos na
lucrativa cadeia produtiva da água. Não podíamos imaginar que
a Los Angeles pós-moderna de Ridley Scott, em Blade Runner,
povoada por replicantes, seria apenas um aperitivo do desastre
apocalíptico urbano que agora não é mais demarcado pela som-
bria chuva ácida, mas sim pela falta de água.
De modo semelhante, o abastecimento da água da cidade
de São Paulo depende de uma extensa rede interligada de barra-
gens e canais que se localizam cada vez mais longe do núcleo ur-
bano. Existem áreas de captação, represas, que distam mais de 40
km do núcleo central da cidade. O mais irônico é que o sítio ori-
ginal era composto por dezenas de veios d’água, agora soterrados
ou até mesmo canalizados. O colapso no abastecimento de água
em 2014 teve origem na redução das chuvas, eufemismo utiliza-
do para justificar a ausência de investimento, especialmente nas
áreas mais pobres da aglomeração urbana. O relatório “Sistema
Cantareira e a crise da água em São Paulo: a falta de transparên-
cia no acesso à informação” (Martins, 2014) denuncia a falta de
transparência na gestão de recursos hídricos da Companhia de
Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). A expres-
são “volume morto”, que designa a reserva de água para captação
mais profunda de um reservatório, popularizou-se em 2014. Os
gestores negaram a ocorrência de redução intencional da pressão
para as áreas altas, como indica o referido relatório.
seis modos O episódio de racionamento de água prova que os riscos
de ver a cidade não são socializados da mesma forma, uma vez que os grandes
54 consumidores não sofreram penalizações. É sabido que o consu-
mo domiciliar é inferior ao industrial e ao agrícola. É interessante
observar que até mesmo o consumo domiciliar varia segundo as
regiões da capital paulista, como indica o “Mapa do consumo de
água” (Mapa..., 2015). Em 2013, a média de consumo domiciliar
na região dos Jardins atingiu 19.930 litros, reduzida para 14.900
litros em 2015. Em Guaianazes, na região leste, a média de con-
sumo passou de 11.530 litros em 2013 para 9.200 litros em 2015.
É preciso considerar, ainda, que as regiões são diferencialmente
povoadas, sendo a Região Leste uma das mais povoadas e de me-
nor renda domiciliar proporcional da cidade.
Na ecologia urbana, a ideia de socialização dos riscos não
passa de uma metáfora de mau gosto. O sociólogo Ulrich Beck
(2011, p. 10), em seu clássico Sociedade de risco, originalmente
publicado no final da década de 1980, sob influência do ambiente
econômico marcado pelo industrialismo e pela progressiva der-
rocada do regime de Berlim, assim analisa o risco:
O reverso da natureza socializada é a socialização dos danos à
natureza, sua transformação em ameaças sociais, econômicas
e políticas sistêmicas da sociedade mundial altamente indus­
trializada. Na globalidade da contaminação e nas cadeias
mundiais de alimentos e produtos, as ameaças à vida na cultura
industrial passam por metamorfoses sociais do perigo: regras da
vida cotidiana são viradas de cabeça para baixo.

Os riscos de hoje diferenciam-se dos riscos medievais, se-


gundo o sociólogo, em função de sua globalidade e de suas causas
modernas. Incomoda, contudo, a insistência de Beck na sociali-
zação dos riscos (ambientais, tecnológicos, de saúde etc.), por-
que, para além da globalidade dos riscos descritos, ainda persis-
tem, mesmo em decorrência de um cataclismo global, melhores
chances de desvios para as frações abastadas, o que é muito claro
quando observamos a escala urbana. A apropriação diferencial
do relevo na escala urbana, por exemplo, implicou um arrisca-
do jogo de risco. A história dos deslizamentos nas cidades não a ecologia

pode ser compreendida apenas como elemento de acomodação 55


natural de massas de terra. Os frequentes deslizamentos revelam
não apenas o aspecto da geologia dos morros em associação com
o regime pluviométrico, mas também uma forma de ocupação
majoritária das encostas e áreas instáveis por estratos pobres da
população urbana. Vem de Davis (2006a, p. 128) este relato:
Para começar, as favelas enfrentam a má geologia. A periferia de
favelas de Joanesburgo, por exemplo, ajusta-se com perfeição a
um anel de solo dolomítico perigoso e instável, contaminado por
gerações de extração mineral. Ao menos metade da população
não branca da região mora em povoamentos informais em área
de depósito de lixo tóxico em desmoronamento crônico do solo.

As enchentes e o fogo, em várias cidades do planeta, não são


incidentes ocasionais. Domar a hidrografia com desvios, aterros e
tubulações sempre constituiu uma ambição da engenharia urbana.
Chuvas torrenciais, com muita frequência, são prenúncios de per-
das humanas e prejuízos materiais. Não surpreende, então, que o
calendário de chuvas tropicais, especialmente em cidades com sis-
temas de drenagem pluvial pouco dimensionada, como São Paulo
e Goiânia, seja o mesmo calendário da Defesa Civil. E novamen-
te são os pobres os que mais sofrem com os eventos climáticos.
Muito frio. Muito seco. Muito úmido. Muito calor. As populações
que vivem em abrigos, debaixo de pontes e viadutos, convivem de
maneira distinta com os extremos do clima. Davis (2008), no texto
“Nossas férias de verão: 50 mil mortos”, acusa a administração do
prefeito de Chicago Richard Daley de ser cúmplice na morte de
centenas de pobres e idosos, majoritariamente negros, no verão
de 1995. A amplitude térmica de Chicago chega a 30 graus Cel-
sius. A morte em ambientes urbanos decorrente dos extremos de
temperatura não poupa nem mesmo as cidades europeias, ainda
marcadas pela paisagem política do Estado de bem-estar social. O
resultado da equação é negativo para os pobres. Extremos climá-
seis modos ticos, moradias precárias, ausência de ar-condicionado ou aqueci-
de ver a cidade mento interno nas residências elevam, todos os anos, o número de
56 óbitos nas cidades, especialmente de idosos.
Se considerarmos um mapa geral da urbanização, vere-
mos os piores cenários de catástrofes se desenharem a partir da
elevação do nível do mar, o que ocorre em eventos climáticos
extremos, como furacões. A área costeira dos Estados Unidos é
atingida, com frequência, por eles. O Katrina, em 2005, deixou
um rastro de destruição em Nova Orleans. A cidade, localizada
na planície do rio Mississipi, é sitiada por água: ao norte, o lago
Pontchartrain, ao centro, o rio Mississipi, e a sudeste, o Golfo do
México. O furacão demonstrou todo o seu potencial de destrui-
ção, exigindo esforço federal e estadual. A tarefa de lidar com de-
sastres como furacões, grandes enchentes e incêndios florestais
nos Estados Unidos cabe à Agência Federal de Gerenciamento de
Emergências (Fema), cujo protagonismo aparece em evidência
no seriado House of cards. Na terceira temporada, até mesmo o
inescrupuloso Frank Underwood, personagem interpretado por
Kevin Spacey, reluta, diante da iminência de um furacão que atin-
giria cidades da Costa Oeste, em condicionar as verbas da Fema
para seu programa populista de geração de emprego.
No apocalipse urbano, segundo Tuan (2005, p. 45) em
Paisagens do medo, nada despertou tanto medo quanto o fogo,
apontado como o principal elemento gerador de medo na cidade
medieval:
O aspecto do meio ambiente físico que provoca o maior medo na
cidade não era o tráfego, mas sim o fogo – violento, incontrolável,
o fogo deu ao povo dos tempos medievais a imagem vívida do
inferno.

A comparação dos mapas de Londres, anteriores e pos-


teriores ao grande incêndio de 1666, ilustra o potencial recons-
trutivo do fogo. Tal qual uma fênix, alguns distritos londrinos
ressurgiram das cinzas, renovados. Casas geminadas, muita ma-
deira e carvão para cozinhar e aquecer as noites frias formavam o
húmus ideal para a propagação de incêndios. Bastava uma fagu-
lha, intencional ou não, para que os medos descritos por Tuan se a ecologia

materializassem. Roma, Londres, Paris, Nova York, entre outras 57



A imagem de Kibera, cidades, em momentos diferentes, passaram pela dolorosa expe-
no Quênia, captada
pelo Google Earth,
riência do fogo.
sequer serviria de Similarmente, o fogo constituiu-se em objeto de preocu-
comparação com
os assentamentos pação nas principais cidades brasileiras do século XIX. Data de
vitorianos. É difícil 1856, ainda durante o reinado do imperador D. Pedro II, o pri-
identificar algum
sinal de áreas verdes meiro regulamento para o Serviço de Extinção de Incêndio, ofi-
que poderiam, em cializado no Decreto n° 1.775, de 2 de julho daquele ano (Brasil,
tese, garantir algum
conforto térmico. 1856). A leitura do decreto fornece um quadro geral das preocu-
As ruelas tortas são
também utilizadas
pações daquele tempo. O parágrafo 6 do artigo 19 exigia a execu-
para o escoamento do ção dos procedimentos descritos no Código de Posturas da Câ-
esgoto nessa ecologia
que exige esforço mara Municipal, inserido no anexo do decreto. Consta da Secção
diário de adaptação 2ª, título 10, parágrafo 16:
para mais de um
milhão de habitantes. Quando haja incendio, será obrigado cada visinho do quarteirão
em que elle for, e dos quatro dos lados, a mandar immediatamente
hum escravo, com hum barril de agua, a apagar o incendio,
os quaes se apresentarão a qualquer dos Inspectores dos tres
quarteirões, que tomarão a rol o nome do escravo e do senhor.
Findo o incendio, o Fiscal respectivo receberá dos Inspectores
dos quarteirões os róes que tiverem feito, e os que por elles
constar que não mandárão hum escravo, serão multados em
4$000, salvo mostrando que tiverão justo impedimento para
seis modos assim fazerem, e neste caso póde o mesmo Fiscal deixar de os
de ver a cidade autoar, informando-se da verdade da excusa. (Brasil, 1856)
58
O Código de Posturas ainda previa, no parágrafo 20, que os
vendedores de água deixassem as pipas e barris cheios de água no
período noturno – uma prática comum do período, como medi-
da de prevenção. A ausência de um corpo de bombeiros deman-
dava esforço coletivo e coordenado envolvendo, especialmente,
os aguadeiros (escravos ou até mesmo homens livres), responsá-
veis pela distribuição e comercialização da água, prática comum
em cidades brasileiras e europeias no século XIX. Aguadeiros e
tigres exerciam funções semelhantes na ecologia urbana. Se os
primeiros transportavam água à luz do dia, os segundos, ao pôr
do sol, ocupavam-se em transportar as fezes humanas para longe
da vida privada. No mesmo período, em Londres, um exército de
pessoas movia-se diariamente na lida com os excrementos huma-
nos. Segundo Johnson (2008, p. 13), em 1854
Londres é uma cidade de catadores de lixo, cujos nomes, isola­
damente, soam hoje tal um estranho catálogo zoológico:
catadores de ossos, de fezes, de ostras, junta-trapos, lameiros,
exploradores de esgotos, lixeiros, limpadores de fossa, cata-velas,
cata-bagulhos, varredores de costa. Eles eram as classes baixas de
Londres, um contingente de no mínimo cem mil pessoas.

No Rio de Janeiro imperial nem todos dispunham de um


poço, de uma fonte de água ou mesmo de escravos para realizar
o transporte da água e dos dejetos humanos. A população que
morava nos cortiços convivia, além das condições insalubres de
habitação, com o perigo do fogo, e, não por acaso, esse evento
ocupa parte central no enredo de O cortiço, de Aluísio de Aze-
vedo (2012). O Decreto 1.775/1856 ainda previa um pitoresco
sistema de alarme, com tiros de artilharia e toques de sinos nas
principais igrejas de cada freguesia, além de gratificações para
aquele que “primeiro der a notícia do incêndio”. A considerar a
situação da cidade do Rio de Janeiro, com a presença de cortiços
e a dificuldade de abastecimento de água, é possível compreender
que a vigilância constante não era sem motivo. a ecologia

59
As epidemias causaram mais medo nas cidades medievais,
e nisso discordamos de Tuan (2005), uma vez que enterraram
mais vítimas que o fogo ou qualquer outro evento de ordem na-
tural ou social. A Peste Negra, por exemplo, atingiu a jugular da
Europa no início do século XIV, deixando dois ensinamentos. O
primeiro era que as comunicações, consequência das trocas co-
merciais, começavam a despertar desconfiança, afinal, a peste era
trazida por pulgas acomodadas nos pelos dos roedores, a bordo
das galeras; tais pulgas portavam a bactéria yersinia pestis. A se-
gunda era que as condições ecológicas das cidades, caracterizadas
pelo acúmulo de lixo em todos os cantos, não exigiram muito
esforço para a adaptação dos roedores, o que, por consequência,
favoreceu a disseminação das pulgas. É possível imaginar, nas
noites congelantes, em casebres insalubres, com muita palha, ani-
mais e panos crus, como era fácil a interação entre as pulgas e a
pele humana.
John Kelly (2011), no livro A grande mortandade, descreve
o percurso evolutivo da doença a partir dos portos mediterrâneos.
Chegando à Sicília, em 1347, a onda de contaminação alastrou-se
para Gênova, Veneza, Roma, Florença, Pisa, Nápoles, apontando
para o norte até atingir Paris e Londres. A mortandade, mesmo
para os padrões demográficos contemporâneos, impressiona. Es-
tima-se a redução, em algumas cidades europeias, de até metade
da população. Segundo Kelly (2011), em cidades como Bolonha,
a peste vitimou entre 35% e 40% dos habitantes. Florença regis-
trou as taxas mais altas de mortalidade. Naquele tempo, na falta
de antibióticos, entre as soluções apontadas em algumas cidades
estava a eliminação dos gatos, especialmente os pretos, sempre
caracterizados pelo aspecto demoníaco. A eliminação dos felinos
implicou a quebra da cadeia alimentar, deixando os ratos, com
suas pulgas, livres para sobreviver do lixo humano. Morrer, no
seis modos entanto, não resolvia o problema ecológico nas principais cidades
de ver a cidade da Idade Média. Os mortos, enterrados em valas comuns, assom-
60 brariam durante muito tempo a ecologia das cidades europeias.

A carne humana, putrefata, pode-se dizer, ajudou a compor os Dedicação do
monsenhor de
horizontes mais férteis do solo urbano das cidades europeias da Belzunce aos
Idade Média. acometidos pela peste,
em Marselha, França,
Os temores contemporâneos das epidemias não são mais em 1720. Essa não
representados em pinturas a óleo, com anjos anunciando a sal- foi a primeira onda de
peste que atingiu a
vação, mas na tela do cinema. Duas imagens são comuns nos cidade.
filmes cujos roteiros gravitam em torno das epidemias globais. Fonte: Monsiau
([201-]).
A primeira é a de um gráfico evolutivo sobre o número de con-
tagiados, geralmente apresentado, em primeira mão, aos altos es-
calões do governo norte-americano. A segunda é a projeção do
planisfério destacando as cidades mundiais. Irremediavelmente
há uma coincidência entre as manchas de contágio e as manchas
de urbanização. É assim em Contágio, protagonizado por Matt a ecologia

Damon, e em Guerra Mundial Z, estrelado por Brad Pitt. Os ha- 61



Média mensal de bitantes de Nova York, Jerusalém, Hong Kong, Tóquio, Chicago,
temperaturas nas
cidades de Bagdá, Londres, entre outras cidades com menor impacto visual, prati-
São Petersburgo, camente somem do mapa. Davis (2006b), no surpreendente O
La Paz e Nova York,
em 2014. Fatores monstro bate à nossa porta, analisa as formas de disseminação do
ambientais influenciam
sobremaneira as
vírus H1N1. O autor destaca três motivos para uma proliferação
formas de apropriação rápida do vírus, assim resumidas: a) integração dos sistemas de
dos espaços nas
cidades. O clima transporte aéreo, que contribui para a velocidade da propagação;
exerceu papel b) superpovoamento das cidades e péssimas condições sanitárias;
excepcional no cerco a
São Petersburgo, então c) ausência de eficientes sistemas de controle. Eis a receita para o
Leningrado, durante desastre global que nem mesmo os muros da sagrada Jerusalém
a Segunda Guerra
Mundial. Ainda seria poderão evitar.
preciso acrescentar o
regime pluvial. Bagdá,
Mas Hollywood ainda não produziu um filme de impacto,
por exemplo, recebe com grande orçamento, que centre suas atenções nas epidemias
146 mm de chuvas por
ano, ficando quatro nos países do Sul. Ao que tudo indica, contentamo-nos com ce-
meses sem chuva. Já nas apocalípticas acima dos trópicos. No entanto, a mancha tro-
São Petersburgo recebe
631 mm de chuvas pical da epidemia da dengue poderia ser mostrada em um ex-
por ano.
Fonte: <http://www.
celente filme noir. As cidades da faixa tropical ressentem-se, em
educaplus.org>. todos os verões, dos problemas potencializados pelas precárias
condições sanitárias. No Brasil, as áreas de maior concentração
de casos de dengue, em números absolutos, estão localizadas nas
grandes metrópoles, muito embora não haja um corte demográfi-
seis modos co, o que dá um aparente ar democrático para a doença. De modo
de ver a cidade semelhante, o fato de a filha de Eduardo III, rei da Inglaterra, ter
62 sido levada pela Peste Negra não é, em si, um indicativo de que a
doença tenha sido democrática. Hoje, é possível recorrer a expe-
dientes que possibilitam afastar-se das áreas endêmicas ou mes-
mo amenizar o sofrimento em leitos hospitalares confortáveis –
tratamento não reservado para parte significativa da população
pobre que habita as cidades.
Segundo informações divulgadas em O Globo, até se-
tembro de 2015 Campinas e Sorocaba, cidades com 1.164.098 e
644.919 habitantes, respectivamente, registraram 61.483 e 50.316
casos de infectados pelo vírus da dengue (Brasil, 2016). Isso sig-
nifica dizer que um em cada dezenove habitantes de Campinas e
um em cada doze habitantes de Sorocaba vão contrair a doença.
Não é mais uma loteria. Acredita-se que o Aedes aegypti, vetor
de transmissão da dengue, não se reproduza com facilidade em
água suja ou com grande concentração de matéria orgânica. Mas
isso não é necessário, uma vez que embalagens, pneus velhos, re-
cipientes plásticos, calhas e um sem-número de objetos descarta-
dos como lixo urbano funcionam como tapetes reprodutores. O
cenário de uma possível adaptação para a água suja, perspectiva
que não pode ser eliminada, será avassalador para as aglomera-
ções urbanas tropicais. Mas o mosquito de poucos milímetros é
portador de outras péssimas notícias. O vírus da zika, além da
febre chikungunya, acolheram o mosquito como vetor de trans-
missão. O Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (Brasil,
2016) admitiu a relação entre a zika e a microcefalia. O pânico
instalou-se nas cidades brasileiras e, especialmente, nas mater-
nidades. Diante do medo duas práticas tornaram-se comuns. A
primeira é recorrer aos inúmeros repelentes no mercado, algo re-
comendado pelo próprio governo. Diante do aumento da procu-
ra, os registros de aumento no preço do produto impressionam.
O segundo, comum no comércio de rua das cidades brasileiras,
é uma engenhoca chamada de “frita mosquito”, uma espécie de
raquete de tênis elétrica que virou febre. É possível que, no futu-
ro, analisando os tempos de hoje, os demógrafos reconheçam a a ecologia

influência da ocorrência do vírus da zika na curva de natalidade. 63


A cidade, como uma espécie de realização técnica, pres-
supôs o aniquilamento daquela primeira natureza primitiva, por
vezes romantizada no velho ideal de retorno ao campo. Daquela
primeira ecologia romântica, cujo esforço de adaptação estava
restrito à luta contra os desígnios da natureza. A própria mura-
lha que cercava a cidade excluía a natureza de seu perímetro. A
presença de amplos espaços verdes ou de ruas arborizadas era re-
lativamente rara nos mapas das cidades medievais europeias. As
sombras que acompanham esses agrupamentos urbanos resul-
taram da pouca incidência de luz, agravada pelo sombreamento
dos casebres e das vias estreitas. As cidades industriais clássicas,
igualmente, baniram a natureza. O céu azul foi substituído pela
imagem lúgubre, alimentada pela fuligem expelida pelas fábricas
e minas de carvão. Essa cidade industrial é aquela condenada por
Ebenezer Howard (2002) quando imaginou sua cidade-jardim.
Na proporção em que a cidade se abriu, derrubando ou
incorporando as sucessivas muralhas à mancha urbana em ex-
pansão, as sinergias com a ecologia regional ficaram mais evi-
dentes. O limite físico da muralha, artificial quando se considera
a exploração dos recursos naturais, caiu por terra, ocasionando
uma expansão do padrão horizontal que remonta ao século XIX.
A cidade transformou-se, prioritariamente, em uma ecologia do
consumo. Davis (2006a) aponta a cidade como uma solução abs-
trata para a crise ambiental global. Seu argumento faz sentido:
Em termos abstratos, as cidades são a solução para a crise
ambiental global: a densidade urbana pode traduzir-se em
maior eficiência do uso da terra, da energia e dos recursos
natu­rais, enquanto os espaços públicos democráticos e as
instituições culturais também oferecem padrões de diversão e
qualidade superior ao do consumo individualizados e do lazer
mercadorizado. (Davis, 2006a, p. 139)

seis modos O otimismo de Davis, no entanto, assume forma de iro-


de ver a cidade nia. Aí reside a grande questão da ecologia urbana contemporâ-
64 nea. Como se dar ao luxo de destinar coeficientes de áreas verdes
para uma reduzida parcela da população, invariavelmente mais
abastada, quando parte significativa da mesma população mora
em lugares insalubres, em casebres que não fariam vergonha aos
assentamentos vitorianos? Se a densidade provocou pressão nos
ambientes naturais, também é de se notar que dispomos de recur-
sos técnicos como nunca antes para construir residências melho-
res e mais eficientes do ponto de vista do consumo de energia e
água. O Tâmisa não é o mesmo do século XIX. Não exala mais o
odor característico dos esgotos. O Tietê não é o mesmo do século
XIX. Piorou muito. O Capibaribe (Pernambuco), assim como o
Iguaçu (Paraná) e o Meia Ponte (Goiás), meandram entre esgoto
doméstico, entulhos e toda sorte de produtos industriais lançados
nos respectivos leitos. Todos os rios que cortam as grandes cida-
des brasileiras carregam, além de sedimentos, lixo e detergentes,
o odor vitoriano, muito embora não faltem condições técnicas
para resolver os problemas existentes. Nas cidades a técnica apa-
rece como um atributo – perdoem a analogia ecológica –, ao mes-
mo tempo, de adaptação e dominação do meio ambiente.

a ecologia

65
a técnica

Assim o Senhor os espalhou dali


sobre a face de toda a terra; e
cessaram de edificar a cidade.
Por isso se chamou o seu nome
Babel.

(Gênesis, 11:8.)
E
m O ventre de Paris, de Émile Zola (1956), a personagem
Florêncio estranha as transformações no Les Halles, o
mais tradicional mercado da cidade. Sua grande abóbo-
da e suas estruturas de ferro, funcionalmente zoneadas em pa-
vilhões, traduzem as transformações de ordem técnica que dei-
xaram marcas em toda a cidade. Paris, tanto quanto Londres,
constituiu um centro de realização e difusão das técnicas. Técni-
cas para garantir maior produtividade. Técnicas para permitir o
adensamento do solo urbano. Técnicas para estimular e celebrar
o consumo. Técnicas para ordenar as cidades. Não é por acaso
que sediaram as grandes exposições universais do século XIX. A
primeira delas ocorreu em Londres, em 1851, conforme descreve
Pesavento (1997, p. 73):
Londres, 1º de maio de 1851. A capital inglesa amanhecera
em festa para a inauguração da primeira exposição universal.
Multidões acorreram ao Hyde Park, e a chuva fina que ameaçara
cair cessou para dar lugar ao sol, fazendo brilhar o imenso
palácio de vidro e ferro, construído especialmente para abrigar
todos os inventos que o engenho humano fora capaz de produzir.
Em 1889 foi a vez de Paris celebrar os 100 anos da Revolu-
ção Francesa com uma boa dose de técnica. Paris já havia sediado
outras Exposições Universais, mas nada igual àquela de 1889 que
fincou no Campo de Marte uma torre de mais de trezentos me-
tros de altura que ficaria mais conhecida que a própria Revolução
Francesa. Daí em diante, sob a tutela das Exposições Universais,
inaugurou-se, na escala global, uma genuína “guerra dos lugares”.
A Exposição Universal de Chicago, em 1893, não apenas celebrou
os avanços técnicos e a nova arquitetura da cidade, mas também a
rivalidade disfarçada de patriotismo. França versus Estados Uni-
dos. Paris versus Chicago. Os 100 anos da Revolução Francesa
versus os 400 anos da chegada de Colombo. O rio Sena versus o
lago de Michigan. A Torre Eiffel versus a Roda de Ferris.
Mas por que a técnica desperta tanto interesse e como as
cidades se enquadram nesse conjunto de interesses? Segundo Mil-
ton Santos (1997, p. 25), as técnicas “são um conjunto de meios
instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida,
produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”. Esse argumento aplica-se
de forma exemplar ao movimento de surgimento e expansão das
cidades. A sedentarização, razão primeira do surgimento das cida-
des, pressupôs algum grau de transformação daquela primeira na-
tureza. Transformação para garantir a reprodução da vida diária, o
que implicou, principalmente, estabelecer condições perenes para
a alimentação, além da construção de abrigos. Tem sido assim
desde os primeiros assentamentos nos vales do Eufrates, do Tigre
ou mesmo do Nilo. Não é por acaso que as cerâmicas, objetos or-
dinários para a reprodução da vida doméstica, sejam testemunhas
das descobertas arqueológicas de sítios urbanos.
Na cidade, a técnica assume a função de artefato (ferra-
menta e utensílio), sistema (rede) e relação (expertise de uso).
Mumford (1992), em Técnica e civilização, lembra que a técni-
seis modos ca não é autônoma, pois resulta do acúmulo de experiências do
de ver a cidade conjunto da sociedade. Podemos dizer que a cidade, ao longo da
68 história, tornou-se, por excelência, um meio de produção, di-
vulgação e celebração da técnica. Houve um período em que se
acreditava que o destino de toda cidade era transformar-se em
uma tecnópole. O filósofo Henri Lefebvre (1991) advoga que, no
mundo moderno, a técnica invade toda prática social. A própria
cidade torna-se, em sua opinião, um “objeto técnico”.
Todo período histórico produziu um conjunto de artefatos
que serviram como uma extensão do corpo humano. Uma pá,
nesse sentido, é tanto artefato quanto um facão ou uma pane-
la de pressão, muito embora o sentido arqueológico da palavra
não autorize tal analogia. Mesmo antes das máquinas, a cidade
centralizou a produção em oficinas. Machados, facas, ferraduras,
utensílios domésticos e todo um conjunto de ferramentas utili-
zadas para a criação dos mais variados objetos e monumentos.
As oficinas responderam por uma ordem hierárquica e por uma
ordem de aprendizagem dos ofícios.
Enxergamos a presença de artefatos em cada monumento
histórico assentado nas cidades. Na catedral de Notre Dame (Pa-
ris), em Pisa (Roma) ou Al-Aqsa (Jerusalém), os artefatos técni-
cos ajudaram a levantar paredes, esculpir o mármore e talhar as
madeiras. Na Idade Média, a cidade era um espaço caracteriza-
do por agrupamentos profissionais, como ensina Le Goff (1998).
Ferreiros, pedreiros, curtidores, carpinteiros, tipógrafos, tecelões,
sem esquecer dos ourives e dos alfaiates ou mesmo dos açou-
gueiros, formavam classes de prestígio na cidade. Alguns deles
produziam artefatos que, por sua vez, facilitavam a produção de
outros artefatos. Em comum entre esses agrupamentos podemos
citar sua localização em cidades, a formação de comunidades de
compromisso laboral e o domínio das técnicas produtivas – as
habilidades manuais, resultantes de sistemas de cooperação e
aprendizagem, eram valorizadas.
Já a fábrica, preenchida pela maquinaria, ditou um ritmo
diferente de funcionamento das cidades sem substituir as ofici-
nas, cuja natureza gradualmente mudou. O aparecimento da fá- a técnica

brica moderna, ungida pela máquina a vapor, pressupôs mudan- 69


ças na organização da cidade e nas formas de cooperação para o
trabalho. A máquina envolveu, progressivamente, os homens em
sua rotina e, em consequência, capturou o ritmo da cidade. Pou-
cos duvidariam que o maquinismo correspondesse ao momento
de generalização dos artefatos na cidade. A história evolutiva dos
transportes, passando das charretes para as carruagens e destas
para os automóveis, é suficiente para comprovar essa hipótese. A
locomotiva a vapor e o motor elétrico, invenções técnicas do sé-
culo XIX, tiveram na cidade seu maior meio de divulgação. Mu-
daram a forma e a velocidade das pessoas de consumir, produzir
e se locomover nas cidades.
As redes técnicas foram tão importantes no desenvolvi-
mento das cidades quanto os artefatos. Redes de energia e comu-
nicação, além das redes de infraestrutura, como água, esgoto e gás,
permitiram o funcionamento diuturno do espaço urbano. Outra
propriedade das redes técnicas, ainda mais que os artefatos, é o
caráter coletivo que envolve sua produção e uso. A mobilização
de capitais, mão de obra e conhecimento assume escala extraor-
dinária quando é necessário dotar as cidades de tais redes. Muitas
delas, ao contrário dos aquedutos romanos, são invisíveis, como
artérias acomodadas entre os músculos e ossos do corpo humano.
Impressiona a descrição do subsolo de Paris feita por Vic-
tor Hugo (2014) em Os miseráveis. O romancista não teve o ob-
jetivo de descrever a ecologia da cidade, apenas prepara o leitor
para indicar como as classes subterrâneas utilizaram, para recor-
rer à sua expressão, o intestino de Paris. Esse intestino é o retrato
das redes técnicas subterrâneas.
O subsolo de Paris, se o olhar pudesse penetrar sua superfície,
teria o aspecto de uma madrepérola colossal. Uma esponja não
tem mais buracos e sinuosidades do que o torrão de terra de seis
léguas de circunferência sobre a qual repousa a antiga grande
cidade. Sem falar nas catacumbas, que são subterrâneos à parte,
seis modos sem falar na inextrincável rede de canos de gás, sem contar o
de ver a cidade
vasto sistema tubular de distribuição de água potável, que vai a
70 todos os chafarizes, só os esgotos formam sob as duas margens
uma prodigiosa rede tenebrosa; labirinto que tem por fio seu
declive. (Hugo, 2014, p. 1308)

Todos os dias, quando acordamos, acionamos essas redes


sem sequer imaginar como foram produzidas ou como funcio-
nam. Poucas ocorrências causam tanto transtorno nas cidades
quanto a falta de energia. O caos instala-se: pessoas presas em
elevadores, congestionamentos em decorrência da paralisia dos
semáforos, hospitais acionando geradores de energia alternativos.
O inverno seria insuportável na pequena cidade de Marlborough,
no estado de Massachusetts, por exemplo, não fosse o sistema de
gás para aquecimento.
Parece que as redes estão naturalizadas na cidade. Isso sig-
nifica dizer que não paramos no cotidiano para nos perguntar
como elas funcionam.
• Que caminhos o esgoto sanitário doméstico percorre?
• Como a energia elétrica é distribuída para cada domicílio?
• Como a água é tratada e distribuída para prover as neces-
sidades do consumo diário?
A naturalização reflete uma espécie de alienação técnica.
Pouco se sabe sobre quem produziu e, o que é mais grave, quem
controla as redes que fazem o cotidiano urbano funcionar. Quem
as produz e controla são interrogações essenciais para a com-
preensão do modo como a técnica ordena a cidade. Quem con-
trola essas redes controla a cidade. Controla a vida das pessoas.
O extremo desse ponto de vista foi explorado no filme Matrix.
A oferta de Morpheus, personagem de Laurence Fishburne para
Neo, interpretado por Keanu Reaves, é seguida de uma advertên-
cia: “Tudo o que ofereço é a verdade”. Neo toma a pílula vermelha
e descobre que, para comandar sua vida, terá que derrotar Ma-
trix. Esta assume a forma de uma rede técnica que não pode pres-
cindir da energia, da vontade que emana dos homens. A emanci-
pação dos homens depende da destruição de Matrix. Mas o que é a técnica

Matrix?, pergunta, em dado momento, Neo. 71


Morfeu: Você quer saber o que é Matrix? Matrix está em toda
parte... É o mundo que acredita ser real para que não perceba a
verdade.
Neo: Que verdade?
Morfeu: Que você é um escravo, Neo. Como todo mundo, você
nasceu em cativeiro. Nasceu em uma prisão que não pode ver,
cheirar ou tocar. Uma prisão para a sua mente.

A dominação de Matrix, que ordena o cotidiano humano,


desde o apetite até o trabalho rotineiro, resulta de um tipo de alie-
nação comumente explorado pela literatura, bastando para isso
recordar a simbiose entre homens e máquinas descrita por Thea
Von Harbou, em Metropolis (Harbou, 1988). Na cidade engrena-
gem, uma parcela significativa dos homens, como observou Fre-
der, vivem para alimentar as máquinas. Nenhuma experiência de
tempo individual, apenas a rotina reprodutiva.
– Pai, Ajude os homens que vivem em suas máquinas!
– Eu não posso ajudá-los, disse o cérebro de Metropolis. Nin-
guém pode ajudá-los. Eles estão onde deveriam estar. Eles são
o que deveriam ser. Eles não servem para mais nada, ou nada
diferente. (Harbou, 1988, s/p)

O homem cada vez mais distancia-se daquilo que foi pro-


duzido coletivamente pelo trabalho humano. Não é sem motivo
que o trabalho tenha despertado tanta atenção da literatura no
século XIX. A cidade passa a ser esse lugar privilegiado, tanto
para a alienação quanto para a emancipação. A técnica é utilizada
para ambos os propósitos. A própria inflação dos objetos técnicos
e das redes reforça essa dialética entre alienação e emancipação,
exigindo esforço contínuo de adaptação.
A relação (expertise do uso) é resultado direto da forma
como a técnica organiza o cotidiano e interfere nas atividades de
produção, consumo, lazer e comunicação. Essa relação gera estra-
seis modos nhamento cotidiano, e os intervalos de tempo entre uma inovação
de ver a cidade e outra são cada vez mais estreitos. O sociólogo Anthony Giddens
72 (1991), em sua interpretação sobre a modernidade, argumenta

que, a cada dia, nos envolvemos em um jogo de confiança e ris- A imagem é
sintomática de como
co. Seguindo seu raciocínio, reconhecemos que parte do nosso a técnica possibilitou
cotidiano está terceirizado para os peritos, motivo pelo qual con- o adensamento
das cidades. A foto,
fiamos nos sistemas de transporte, nos elevadores, nas escadas intitulada “Lanche no
topo de um arranha-
rolantes, nos caixas eletrônicos, nos semáforos e nas estruturas ‑céu” – mesmo como
de concreto armado que sustentam edifícios cada vez mais altos. uma encenação para
fins publicitários –,
A sensação de estranhamento pode ser ilustrada por um exemplo revela as condições
cotidiano. A disseminação dos caixas eletrônicos de autoatendi- de trabalho,
especialmente de
mento, resultado da progressiva automação bancária, não mudou migrantes, na Nova
apenas a relação entre os clientes e os conhecidos caixas de ban- York dos anos 1930.
Do 69º andar do
co. O uso dos caixas eletrônicos, além da impessoalidade, acarre- Rockefeller Center é
possível enxergar o
tou uma série de impactos negativos para um perfil específico de Central Park e o rio
usuário: os idosos, especialmente aqueles não alfabetizados, sen- Hudson.
Fonte: Men at lunch
tem-se desconfortáveis com esse tipo de atendimento impessoal, (2012); Rockefeller
bastando para comprovar essa hipótese uma visita aos bancos nos Center (2016).
centros das cidades. O estranhamento diante de uma nova téc-
nica exige tempo e flexibilidade para adaptação, fato que ocorre,
especialmente, na esfera do consumo de serviços.
A evolução técnica, portanto, guarda relação umbilical
com a cidade. A gênese da fábrica moderna, em sua simbiose
com as fontes de energia (carvão) e materiais de construção (mi-
nério e madeira), projetou uma imagem da cidade como centro
de realização. Não parece aleatória a necessidade de sincroniza-
ção do tempo do trabalho no século XIX, como insiste Thompson
(1998). Daí surgiu a imperiosa necessidade do relógio nas cida-
des, nas oficinas e no próprio bolso para o controle individual
dos tempos. Os sinos das igrejas, que antes regulavam o tempo
das cidades, em parceria com o sol, agora aparecem como adorno
do antigo poder eclesiástico, não mais sustentado pela Inquisição.
A chamada Idade das Trevas apenas admitiu aquele bocado de
técnica que não contrariasse as explicações metafísicas sobre o
mundo. Não deixa de ser surpreendente que, como aponta Ver-
ger (2002), a universidade seja uma das maiores contribuições da
Idade Média ao saber. Há um vínculo umbilical entre a universi-
dade e a cidade e, portanto, entre a cidade e a evolução técnica.
A cidade sempre compareceu ao catálogo das invenções técnicas
universais. Na medida em que centralizou os problemas, também
motivou as respostas técnicas do conjunto da sociedade. Técnicas
para transformar e produzir espaço. Técnicas para ordenar e ad-
ministrar o tempo. Mais tempo para produzir. Mais tempo para
circular. Mais tempo para consumir. Mais tempo para acumular.
Se um objeto técnico como o relógio permitiu a sincroni-
zação do tempo produtivo, a energia elétrica possibilitou avan-
çar no tempo. As noites em Nova York jamais seriam as mesmas
depois do pioneirismo da iluminação elétrica. Thomas Edison
não criou apenas a lâmpada incandescente, mas um sistema de
seis modos produção e distribuição de energia que permitiu a iluminação
de ver a cidade de uma área de Nova York. Mudança excepcional que deixou no
74 passado os modelos de iluminação a gás e querosene. As baleias
agradeceram. A iluminação pública gerou, assim, a demanda por
um serviço remunerado de primeira necessidade nas residências.
A generalização da eletricidade nas vias públicas estimulou
o uso diuturno da cidade, aumentando a visibilidade dos passan-
tes. É possível que Jack, o estripador, tenha se aproveitado das
ruas escuras e frias do East End, distrito pobre de Londres, para
executar suas vítimas. No âmbito domiciliar do inverno europeu,
os aquecedores elétricos ou a gás ofereceram uma alternativa de
aquecimento ao carvão, que era caro. Tendo em conta o depoi-
mento de Pai Goriot, personagem de Balzac (2002), cujo curto
orçamento impunha a necessidade de economia para garantir o
aquecimento de sua moradia na Pensão Vauquer, é possível supor
o impacto da generalização da eletricidade nas cidades europeias.
Mesmo no início do século XX, não deixa de causar espanto que
Ernest Hemingway (2012, p. 18), que em 1954 ganharia o Prêmio
Nobel de Literatura, relate dificuldades financeiras para aquecer
seu apartamento alugado em Paris:
Eram seis ou oito lances de escada até o último andar. Fazia um
frio terrível e eu sabia o quanto me custaria um feixe de gravetos,
três amarrados de lascas de pinho, cortadas no tamanho de meio
lápis cada um para pegar fogo nos gravetos, e, finalmente, o feixe
de maneira dura e meio seca que teria de comprar se quisesse
aquecer o quarto.

A energia elétrica mudou, igualmente, os espaços da inti-


midade. Uma revolução silenciosa nas práticas de cozinhar e de
higiene e também nas relações de gênero. As residências foram
povoadas de objetos de consumo movidos a energia elétrica. O
chuveiro elétrico, a iluminação residencial, a geladeira e a televi-
são, para focar em quatro exemplos, determinaram novas práti-
cas de higiene pessoal e novos modos de leitura e conversa que
não dependiam do fogareiro ou do lampião. A conservação dos
alimentos via refrigeração, especialmente carnes, revolucionou os
hábitos alimentares. O lazer e a comunicação foram igualmente a técnica

afetados, o que resultou em uma nova economia do consumo a 75


partir dos anúncios publicitários na TV. A expansão da técnica
no Brasil pode ser ilustrada por pesquisa do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE (Brasil, 2010) sobre o consumo
de bens duráveis. Segundo a pesquisa, mais de 95% dos domicí-
lios brasileiros dispõem de TV e mais de 93% dispõem de gela-
deira. Se considerarmos que o primeiro aparelho de TV foi usado
na década de 1950, quando era considerado um artigo de luxo, é
possível imaginar seu impacto nos domicílios brasileiros.
A presença da técnica na cidade influenciou formas de cir-
culação das pessoas e das mercadorias, formas de habitar e formas
de comunicação. A utilização do aço, seguida do aparecimento
do elevador, determinou o padrão de adensamento urbano cada
vez mais vertical. A substituição de vigas de madeira por vigas
de ferro resultou da refuncionalização de outro elemento técnico,
ainda no século XIX. A explicação de Benjamin (2006) para o
surgimento das passagens repousa em questões de ordem técni-
ca. A primeira guarda relação com o aumento da produtividade
e, por consequência, do comércio têxtil. A segunda, também de
ordem técnica, é assim explicada:
Pela primeira vez na história da arquitetura, surge o ferro como
um material de construção artificial. Ele vai passar por uma
evolução cujo ritmo se acelera ao longo do século. Este recebe o
impulso decisivo quando se evidencia que a locomotiva, objeto
de experimento desde o final dos anos vinte, só poderia ser
utilizada sobre trilhos de ferro. O trilho torna-se a primeira peça
de ferro moldado, precursor da viga. (Benjamin, 2006, p. 40)

A Acrópole de Atenas insinua-se para o céu a partir da


colina, em uma altitude de 160 m. O aproveitamento do relevo,
por si só, coloca em evidência a construção de mármore. Desde o
século XX a competição pela visibilidade vertical atingiu limites
inimagináveis, sem a necessidade do aproveitamento das colinas.
seis modos O edifício mais alto até o momento, o Burj Khalifa, mede 828 m
de ver a cidade de altura, mais que o dobro do Empire State Building, localizado
76 na Quinta Avenida, em Nova York. É possível, no caminho da

cidade técnica de Os Jetsons, constatar como os deslocamentos O avanço da
verticalização responde
verticais tomaram conta das cidades. Os elevadores são, basica- por mudanças
mente, meios de transporte sem os quais não seria possível am- nos materiais de
construção, na
pliar a densidade urbana. geração de energia
e nas formas de
Historicamente, a técnica projetou a identidade das cidades gerenciamento do
a partir de duas imagens. A imagem dos monumentos, estática, e a trabalho no canteiro de
obras. Nessa corrida,
imagem da eficiência, fluida. Os aquedutos romanos, a Torre Eiffel, a cada dia novos
a Ponte Rio-Niterói, o Palácio de Versalhes, a Ponte do Brooklyn recordes são batidos.
Os Estados Unidos, que
ou mesmo o Burj Dubai são, antes de tudo, realizações técnicas. Os dominaram o mundo
monumentos, para além da perspectiva comemorativa, como ar- das edificações até
a década de 1970,
gumenta Argan (1995), comunicavam a história da cidade a partir perderam a competição
para os Emirados
de uma perspectiva ideológica. O Arco da Vitória, em Bagdá, foi Árabes, atual detentor
construído no final da Guerra Irã-Iraque e, sem dúvida, celebrava do título, sempre
provisório, de país que
o personalismo de Saddam Hussein. O Palácio de Versalhes, antes abriga o maior edifício
de lembrar a monarquia, celebra o personalismo de Luís XIV. Em do planeta.
Fonte: Figura
outros casos, como em São Petersburgo, o próprio nome da cidade elaborada por Pedro
mudou, transformando-se em um monumento personalista em Henryque a partir
de dados <http://
sua plenitude. A fria cidade, localizada no litoral báltico, passou a exame.abril.com.br/
mundo/noticias/os-20-
chamar-se Leningrado na década de 1920, mudança que pretendia predios-mais-altos-do-
eternizar o nome do líder da Revolução Russa de 1917. Já a cons- mundo#4>.
trução da Torre Eiffel anunciou outro tipo de evento, caracterizan-
do uma espécie de universalismo. A torre de ferro de mais de 300
m de altura, inaugurada em 1889, no percurso da grande Exposi-
ção Universal e dos cem anos da Revolução Francesa, não tinha o
propósito de fixar-se para sempre no Campo de Marte. Vencendo
as resistências, este que logo passou a ser um dos monumentos
mais visitados de Paris comunicou os propósitos da modernidade.
Miniaturas desse suvenir parisiense, bem como réplicas em tama-
nhos diversos, espalham-se pelos quatro cantos do mundo. Antes
de celebrar a imagem de Paris, a Torre Eiffel é um recado técnico
que mirou, por assim dizer, em um futuro de alegria e cosmopoli-
tismo – a Bela Époque propriamente dita.
A monumentalidade, do ponto de vista da função, não é
estática. A função de um monumento muda, mesmo permane-
cendo, de certo modo, testemunha do poder político, militar ou
até mesmo eclesiástico do tempo em que foi erigido. Os Arcos da
Lapa, originalmente, compunham um aqueduto, função desem-
penhada durante os dois últimos quartéis do século XVIII e boa
parte do século XIX. O aqueduto transportava água do rio Cario-
ca para as partes centrais da cidade. A imensa e elevada estrutura
logo em seguida transformou-se na tradicional linha do bonde de
Santa Tereza – um cartão-postal do Rio de Janeiro e marco identi-
tário da Lapa. Com isso, muitos desses lugares transformaram-se,
para lembrar a expressão de Paulo Cesar da Costa Gomes (2013),
em “lugares do olhar”, bastando lembrar que a Torre Eiffel, além
da funcionalidade de celebrar a república, permitiu a mais bela
visão panorâmica de Paris. Em cada período histórico, a evolução
técnica permitiu à humanidade aproximar-se do sonho de Babel
e, por pior que a metáfora possa soar, da vingança de Deus – não
é por acaso que os grandes edifícios tornaram-se alvos sistemáti-
cos de ataques terroristas.
seis modos Mas uma das principais características da técnica é sua dis-
de ver a cidade seminação diferencial no espaço das cidades. Sua densidade é va-
78 riada. O centro de uma cidade, recortado por redes, ordenado por

semáforos e povoado por veículos, indica uma densidade técnica O transporte regular
de milhões de
que possibilita às mercadorias, pessoas e ideias circularem com efi- pessoas, sobre ou
ciência. Esse espaço contraditório abriga uma economia que repro- sob o solo urbano, é
uma realização que
duz as contradições da própria cidade. É essa carga de densidade resulta do acúmulo de
experiência técnica.
técnica, associada ao movimento do capital, que torna Nova York O metrô de Tóquio
sede da Associação Nacional de Departamentos de Estado da Agri- é composto por 13
linhas, com extensão
cultura (Nasda) e São Paulo sede da BM&FBovespa. Sem a técnica de 286 km. Poucas
não seria possível combinar a instantaneidade da economia aos ar- cidades do planeta
dispõem de sistemas
ranjos urbanos em rede, nos moldes das “cidades globais” de Saskia semelhantes.
Fonte: Subway Map.
Sassen (1998). O que coloca Nova York, Los Angeles, Londres, Tó- Tóquio (2016).
quio, Hong Kong e São Paulo no topo dessa hierarquia é a presença
e o funcionamento instantâneo das redes técnicas, necessárias para
a fluidez do capital. A imagem da eficiência é ancorada na fluidez.
Essa mesma cidade contemporânea, integrada ao mundo,
ressente-se da presença, em determinados lugares, daquele con- a técnica

junto de redes técnicas que não apenas valorizam o espaço, mas 79


facilitam a reprodução da vida diária. Lugares sem abastecimen-
to de água, tratamento de esgoto e energia convivem lado a lado
com o que há de mais avançado em termos de progresso técnico.
Esse padrão de organização do espaço, marcado pelas densidades
técnicas diferenciais, não é novo. Na cidade moderna, que expan-
diu seu sítio urbano horizontalmente, derrubando as muralhas,
a diferenciação espacial também é resultado de uma espécie de
jogo das técnicas. De um lado, as técnicas representam a moder-
nidade e garantem o funcionamento do cotidiano da cidade. De
outro lado, as técnicas afiançam o avanço da produtividade, o que
resultou, historicamente, em diferentes gradientes de exploração
do trabalho. Nesse último caso, se enquadram as cidades que co-
nheceram seu ápice na industrialização, processo que foi descri-
to por Charles Dickens no romance Tempos difíceis. Coketown,
nome oportuno de sua cidade fictícia, é assim retratada:
Era uma cidade de tijolos vermelhos – ou melhor, que seriam
vermelhos se a fumaça e as cinzas o permitissem – mas, no estado
atual, tinha uma cor não natural de vermelho e preto, parecendo
a cara pintada de um selvagem. Era cidade de máquinas e altas
chaminés, das quais saíam intermináveis serpentes de fumaça que
se desatavam sem trégua e sem se dissolverem jamais. Tinha um
canal escuro e um rio que corria com águas purpúreas devido às
tintas fedorentas; vastos edifícios com uma infinidade de janelas
que ressoavam e tremiam o dia inteiro, enquanto os êmbolos
das máquinas a vapor subiam e desciam monotonamente, como
uma cabeça de elefante loucamente melancólico. (1968, p. 37)

Mas a ficção, quase sempre, é menos constrangedora que a


realidade. A distopia, frequentemente, vence a utopia. Coketow
(Dickens, 1968), Metropolis (1988), Nova Crobuzon (Mieville,
2016) não têm localização precisa. Estão em toda parte. São, an-
tes de tudo, distopias que, de uma forma ou de outra, estão sendo
fermentadas como negação da cidade ideal desde a modernidade
seis modos técnica. É como se, na própria cidade, estivessem sobrepostas as
de ver a cidade fases de evolução técnica (ecotécnica, paleotécnica, neotécnica e
80 biotécnica) descritas por Mumford (1961). Há frações das cidades
que ainda vivem na fase paleotécnica, quando havia hegemonia
da máquina a vapor, das ferrovias e do carvão como combustível.
Os vendedores de carvão, comuns em cidades europeias e bra-
sileiras do século XIX, ainda são figuras frequentes em muitas
cidades do planeta. Mas a narrativa da dualidade do espaço da
cidade, bastante atrativa, pode ocultar o fato de que esses proces-
sos são interdependentes. Os pobres, mesmo quando consomem
as migalhas técnicas, são funcionais para a economia urbana. As
diferentes densidades técnicas revelam, enfim, uma paisagem
funcional para a economia contemporânea, da mesma forma que
as exposições universais do século XIX anunciaram a era das téc-
nicas e, por isso, para recorrer a Benjamin (2006, p. 43), eram
“lugares de peregrinação ao fetiche da mercadoria”.

a técnica

81
a paisagem

Esse aspecto da Paris moral


prova que a Paris física
não poderia ser diferente
do que é.

(Honoré de Balzac, A menina


dos olhos de ouro)
D
avid Harvey (2015), em Paris, capital da modernidade,
desenvolveu um estudo que pode ser descrito, como ar-
gumentamos em outro momento (Arrais, 2016), como
uma espécie de memória política da paisagem. Harvey eleva ao
extremo as possibilidades de interpretação da cidade a partir dos
fragmentos que são, em sua narrativa, articulados com o movi-
mento geral da produção e reprodução do capital. O estudioso
não teve dificuldades, em função das fontes e da metodologia
adotada, de reviver a memória de Paris a partir de personagens
que viveram eventos ocorridos no século XIX. A última parte do
livro centra suas energias no processo de construção da basíli-
ca de Sacré-Coeur, na colina de Montmartre. A basílica, além de
local turístico e de celebração dos ritos do catolicismo, é com-
preendida como uma espécie de tentativa de reconciliação po-
lítica, afinal estima-se que mais de duas dezenas de milhares de
communards tenham sido mortos durante a Comuna de Paris,
evento que deixou cicatrizes na paisagem da cidade.
A basílica de Sacré-Coeur é um fragmento de Paris e, como
cada fragmento, conta, ao mesmo tempo, uma história particular
e uma geral. É possível que os cadeados depositados por casais
movidos por paixões efêmeras na Pont des Arts, e agora removi-
dos aos milhares em função do perigo que representam para sua
estrutura, simbolizem milhares de histórias particulares. O Sena,
por outro lado, é depositário de uma história geral para Paris,
assim como o Tâmisa é para Londres e o Nilo para o Cairo. É
por isso que Santos (1997) estava certo ao insistir que a paisagem
guarda a propriedade de exprimir as heranças de uma sociedade.
Circunscrita ao aspecto visível, a análise da cidade a partir da pai-
sagem demanda esforço cognitivo para que possamos ultrapassar
a dimensão da aparência. Tal esforço pressupõe a separação, de-
veras artificial, entre o observador e o mundo exterior. A paisa-
gem é, sempre, vista por um indivíduo localizado em um sítio
específico, influenciado pelas dimensões econômicas, políticas e
culturais da vida cotidiana. Ou seja:
Paisagens são também definidas pelo ponto de vista, ou melhor,
são o enquadramento do olhar, seu delimitador. Dependendo da
posição em que nos encontramos, do ângulo, da distância, coisas
diferentes aparecerão. Algumas parecerão mais importantes que
outras simplesmente pela posição que ocupam naquela visada.
(Gomes, 2013, p. 111)

As transformações na paisagem urbana resultam de certo


intemperismo político, o que torna a noção de tempo impres-
cindível para a compreensão do movimento. O filme Cortina de
fumaça, protagonizado por Harvey Keitel, retrata de modo ex-
cepcional a relação entre o tempo e a paisagem. O protagonista
registra, a cada manhã, com sua máquina fotográfica apoiada em
um tripé, a fachada de sua tabacaria, localizada na esquina da
Terceira com a Quarta Avenidas, no Brooklyn, bairro de Nova
York. As fotos revelam mais que um quebra-cabeça de formas.
A memória de cada dia apresenta-se congelada para um único
seis modos observador, mas diferente para as pessoas que viveram e se recor-
de ver a cidade dam dos momentos registrados no álbum preto e branco. Dian-
84 te do escritor Paul Benjamin, personagem de William Hurt, que
observa que “as fotos são todas iguais”, o protagonista assevera:
“Você nunca entenderá se não olhar mais devagar”. As fotos cap-
tam e congelam as mudanças no ritmo da cidade, transformando
experiência cotidiana em memória. A memória de uma paisagem
em constante transição.
O poeta Charles Baudelaire aborreceu-se com a escalada
de transformações da sua Paris. Faleceu, aos 46 anos, em 1867, no
auge da grande reforma parisiense que ocorreu entre 1853 e 1870.
É conhecida a passagem do poema “O cisne”, em que o eu-lírico
reclama das mudanças da velha Paris: “Morta está a velha Paris.
A forma da cidade muda bem mais que o coração de um infiel”
(Baudelaire, 2000, p. 50). Sob o olhar de Baudelaire, a “prostituta”
esvaía-se em uma escala extraordinária. Novas avenidas. Novas
quadras. Novos parques. Novas estações ferroviárias. Novos bair-
ros. Tudo a exigir esforço adaptativo do poeta.
Te amo, oh capital infame! Prostituta, bandida.
Os prazeres que ofereces são tantos e tais,
mas incompreendidos todos dos vulgares mortais.
(Baudelaire, 2016, p. 167)

O prefeito Haussmann, como indicam suas memórias


(Haussmann, 1890), tinha perfeita noção da natureza das inter-
venções e, não por acaso, é considerado o precursor do movi-
mento adjetivado de City Beautiful. A dar crédito aos seus relatos,
mais de 350 mil pessoas foram deslocadas das áreas centrais da
cidade, que incluíam as remodelações das áreas de habitação e
das áreas destinadas à indústria e ao comércio. Haussmann foi,
ao mesmo tempo, um destruidor, um reformador e um criador
de paisagens. Muitos autores, a começar por Engels (1979) e Ben-
jamin (2006), acreditavam que por detrás do embelezamento e
alargamento das ruas residiria uma estratégia para conter as bar-
ricadas. As alterações em Paris transformaram Haussmann em
um verdadeiro paradigma, em uma espécie de grife urbanística.
Não é por acaso que Engels (1979) se refira ao aparecimento e à a paisagem

generalização do que chama de “método” Haussmann, reprodu- 85


zido em cidades como Londres, Manchester, Liverpool, Berlim e
Viena. Benjamin (2006, p. 49) interpreta assim esse fato:
A eficiência de Haussmann insere-se no imperialismo napo-
leônico. Este favorece o capital financeiro. Paris vive o auge da
especulação. A atividade especulativa nas bolsas supera as for-
mas do jogo de azar herdadas da sociedade feudal.

No Brasil, o nome Haussmann popularizou-se a partir das


reformas na cidade do Rio de Janeiro, sob a administração do
prefeito Pereira Passos, nos primeiros anos do século XX. Jaime
Benchimol (1992, p. 318), no livro Pereira Passos: um Haussmann
tropical, assevera:
Os prédios postos abaixo e as ruas suprimidas ou alargadas que
constituíam, no início do século, a herança colonial condenada
pelos reformadores eram o suporte material de uma trama de
relações engendrada e reiterada desde meados do século passado,
quando o escravismo se desagregou, abrindo caminho para o
trabalho assalariado e para as relações capitalistas de produção,
circulação e consumo.

Em comum entre as reformas havia a ambição de apagar


da paisagem urbana as marcas do passado, seja ele medieval, no
caso de Paris, seja ele colonial, no caso do Rio de Janeiro. Nesse
sentido, o discurso higienista condenava os ambientes insalubres
e o aparato institucional publicava decretos e leis para legitimar
a ação do Estado. Em todos os casos, a intenção repousava em
construir uma paisagem urbana moderna. Esse é o momento de
transição, para lembrar o arquiteto Leonardo Benevolo (2005), da
“cidade liberal” para a “cidade pós-liberal”. A modernidade ofe-
rece uma nova experiência de cidade. Uma nova rua, um novo
caminho iluminado. A própria paisagem transforma-se em ob-
jeto de consumo. A “cidade luz” drena os olhares e os sonhos de
consumo tanto quanto a “cidade maravilhosa”.
seis modos Harvey (2015), em seu estudo sobre Paris, ensina que as
de ver a cidade reformas pretenderam, antes de tudo, eliminar as “barreiras es-
86 paciais”, possibilitando a livre circulação de capitais, por isso não
centraram-se apenas no sistema de circulação intraurbana, mas
também regional. Para Harvey (2011), a circulação de capital im-
plicou um movimento espacial e, consequentemente, a absorção
dos excedentes de mão de obra e capital. Não é incomum que
as reformas surjam, na história urbana, em momentos de crise
econômica ou de mudanças políticas. A criação de paisagens é,
também, uma eficiente estratégia de acumulação.
Mas as alterações na paisagem, demonstração do dinamis-
mo das cidades, não são apenas sistêmicas nem resultam unica-
mente de um quadro de intenções meticulosamente planejadas
pelas forças hegemônicas. O processo de construção da Cidade
Livre, um dos primeiros assentamentos de Brasília, carrega esse
quadro de intenções que desafiou a racionalidade dominante. A
ideia era que o assentamento original servisse de suporte para
a construção da nova capital brasileira, assentada em uma área
pouco povoada de uma região central do novo Distrito Federal.
Ali, tudo tinha a marca da transitoriedade, a começar pelos bar-
racos de madeira no chão vermelho despido. Logo, no entanto,
a forte migração, associada ao dinamismo econômico da cadeia
da construção civil e à constante pressão por moradia, transfor-
maram o sítio em um local dinâmico, concentrando serviços e
comércio. Na Cidade Livre o transitório tornou-se perene. Após
a inauguração de Brasília, no início da década de 1960, a inten-
ção de remover o assentamento não logrou resultados esperados
em função das lutas populares. Mesmo com a toponímia alterada
para Núcleo Bandeirante, ainda encontramos na paisagem urba-
na as marcas do pioneirismo da Cidade Livre.
Há outra ordem de eventos que alteram a paisagem da
cidade de maneira instantânea. Os sons que povoavam a paisa-
gem de Londres, na Segunda Guerra Mundial, anunciavam os
bombardeios da chamada Blitz alemã. Ao som das sirenes e dos
estrondos das bombas seguiam-se os inúmeros focos de incên-
dio que colocaram abaixo parte dos distritos londrinos. Os bom- a paisagem

bardeios constantes geraram um êxodo para o interior, especial- 87



Muitos dos que visitam mente de crianças e idosos, fato retratado no início do filme As
o Central Park, oásis
na ilha de Manhattan, crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Na mesma
nem imaginam que década, do outro lado do continente europeu, em Berlim, como
se trata de um objeto
que nada preserva da relata Beevor (2015, p. 251), a vida tornava-se “intensamente
natureza primitiva.
Cenário de filmes de
claustrofóbica”. Contudo, a vida nos porões e abrigos em tempos
Woody Allen e de de guerra não era pior que a intensa violência de gênero, indicada
séries de investigação
policial, a área de pela recorrente violência sexual a que estiveram submetidas as
3,2 km² originou-se
de um conjunto de
mulheres diante da presença das tropas soviéticas que povoavam
intervenções realizadas a paisagem urbana de Berlim após a queda do Reich.
no segundo quartel
do século XIX. Nem Em poucas décadas, a paisagem urbana das cidades envol-
mesmo a água nas tas nos conflitos da Segunda Guerra Mundial foi reconstruída. A
cascatas responde ao
movimento natural, memória da violência, da brutalidade, no entanto, não pode ser
uma vez que o fluxo é
regulado por registros
apagada com a mesma facilidade. Hiroshima, no Japão, talvez se
hidráulicos. enquadre no exemplo mais dramático de alteração instantânea da
Fonte: <http://www.
centralparknyc.org/ paisagem. A bomba atômica eliminou, a um só tempo, a forma e
home>. o conteúdo da paisagem. A pausa e o movimento. É preciso olhar.

É preciso sentir. É preciso querer lembrar. Assim, por exemplo, Nem os hospitais
foram poupados
tencionaram fazer os oficiais norte-americanos quando enviaram dos sucessivos
citadinos da cidade de Gotha, localizada na área central da Ale- bombardeios à
capital inglesa
manha, para observar, logo ali perto, os horrores do campo de durante a Segunda
Guerra Mundial. Os
concentração de Ohrdruf. escombros são do
Os eventos no World Trade Center (WTC), em 11 de se- hospital St. Thomas,
tendo ao fundo o Big
tembro de 2001, em Nova York, igualmente se enquadram em um Ben, um dos ícones
tipo específico de alteração instantânea da paisagem. Os ataques da paisagem urbana
londrina.
terroristas daquela manhã colocaram abaixo dois ícones da en- Fonte: <http://
pix.avaxnews.
genharia urbana erigidos na década de 1970. As Torres Gêmeas, com/avaxnews/
singulares em tantos filmes de Hollywood, foram reduzidas a es- d6/26/000026d6.
jpeg>.
combros, em meio ao fogo, à poeira e aos muitos corpos. No mes-
mo local, agora, encontra-se o memorial Tribute in Light, cujas
colunas verticais de luz insinuam-se para o céu. No memorial é
possível, a partir de estímulos sensoriais, relembrar os aconteci- a paisagem

mentos do 11 de Setembro de 2001. A paisagem é, além de visual, 89


sonora. No canto, por meio de fones de ouvido, é possível escu-
tar as sirenes e o desespero, enquanto lá fora a prática de selfies
multiplica-se.
Dois livros, ilustrados com imagens coloridas, convidam
o leitor a observar as diferentes paisagens das cidades contempo-
râneas. Se, no primeiro deles, a paisagem revela a impertinência
do uso, em função das ocupações sem ordem do espaço público,
o segundo expõe a cortesia do uso, um projeto de cidade só reco-
nhecido em determinadas latitudes.
O primeiro livro, de um grupo de urbanistas, sob o pa-
trocínio da Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior de
España, desenvolveu um inventário bastante original de diversas
cidades no planeta (Peran, 2009). O traço comum desse inventá-
rio resultou da identificação das “cidades ocasionais”, definidas
a partir das formas de ocupação do espaço público que fogem
às normas urbanísticas consagradas. Trata-se de espaços públicos
utilizados para comércio, lazer e habitação, conformando uma ar-
quitetura genuína, produto das adaptações para suportar o duro
cotidiano de precarização do trabalho e da moradia. A comida
nas ruas, a venda de roupas e utensílios domésticos em tendas
ou em porta-malas improvisados de carros velhos, são imagens
comuns em cidades como Valparaíso (Chile), São Paulo (Brasil),
Cali (Colômbia) e Buenos Aires (Argentina), entre tantas outras
ao redor do planeta, o que pode indicar uma contranorma, na
acepção de Michel de Certeau (1996).
Em outra ponta de interpretação encontra-se o livro do co-
nhecido urbanista Jan Gehl (2013), Cidades para pessoas. O livro,
uma espécie de book de luxo, parece ter a intenção de produzir
uma cidade cenográfica, muito embora não haja dúvida sobre a
veracidade dos registros fotográficos. O perigo é a metonímia vi-
sual que cria um paradigma de uso e ocupação eminentemente
seis modos europeu. A iluminação das fotos, com espaços limpos habitados
de ver a cidade por pessoas igualmente limpas, na sua maioria brancas e felizes,
90 com poucas indicações herdadas de uso incorreto, indica um
tipo de urbanismo desejado e, portanto, distante da realidade da
maior parte das cidades africanas ou mesmo latino-americanas.
Os dois livros estimulam a identificação de normas sociais
a partir da observação da paisagem. Os edifícios contemporâneos
não refletem apenas técnicas diferentes de construção, mas um
conjunto de normas de coabitação. Os gabaritos de hoje são dis-
tintos daqueles do início do século passado. A história da cidade,
manifestada formalmente na paisagem urbana, sempre traduziu
os embates históricos sobre o uso e a refuncionalização dos espa-
ços. A diferenciação entre o direito de propriedade e o direito de
construir determinou, mesmo que no plano abstrato, uma nova
dinâmica dos usos e, por assim dizer, da regulação do solo urba-
no. Isso significa dizer que um proprietário de uma área urbana,
à luz do Estatuto das Cidades (Brasil, 2001), não pode construir
sem levar em consideração um conjunto de normas urbanísticas
que garantem, teoricamente, a função social do solo urbano. To-
mando como exemplo a legislação brasileira, Marcelo Lopes de
Souza (2002) destaca, entre outros elementos, a necessidade de
gabaritos (verticais e horizontais), afastamentos (lateral, fundo e
frontal), área construída e taxa de permeabilidade, assim como
outras normas edílicas presentes nos Códigos de Edificações. En-
tretanto, mesmo gozando de marcos legais comuns, ainda encon-
tramos ocupações em áreas nas mais diversas cidades brasileiras
que são adjetivadas, pejorativamente, de cidades ilegais. A legali-
dade promove armadilhas.
A paisagem revela, frequentemente, alguns conjuntos de
imagens das cidades, muitos dos quais associados às formas de
morar. A oposição entre essas formas tem um propósito didático,
com o fito de revelar as contradições e as articulações entre esses
espaços. Uma espécie de metonímia da paisagem, com todos os
cuidados que a generalização merece. É preciso sempre lembrar
que a forma de ocupação não apenas qualifica os espaços, mas
também os sujeitos que os ocupam. Davis (2006a), em Planeta a paisagem

favela, quantifica, qualifica e compara várias favelas ao redor do 91


planeta. A própria palavra “favela” é portadora de um conteúdo
pejorativo e de variado significado político, como ensina Souza
(2013). Certamente Davis (2006a) sabe disso e o uso generalizado
do termo objetiva, principalmente, politizar um debate carrega-
do de preconceitos. A carga pejorativa baseia-se em uma espécie
de tripé discursivo, assim descrito: 1) A favela tem uma forma
específica, indicada por usos incorretos e facilmente visíveis; 2)
A favela tem um conteúdo social, indicado pela homogeneidade
daqueles que habitam esse espaço; 3) A favela tem economia es-
téril, uma vez que não produz, sendo apenas um repositório de
mão de obra barata. Esse tripé alimenta representações negativas
sobre tais espaços e, portanto, sobre aqueles que os habitam.
Uma pesquisa divulgada no Fórum Nova Favela Brasileira
(Serviço Brasileiro..., 2015) coloca abaixo esse tripé discursivo.
A pesquisa revelou que, entre 2005 e 2015, a massa de renda dos
moradores das favelas subiu mais de 50%. Esse dado comprova
uma noção, por demais conhecida, de que as favelas não são, do
ponto de vista econômico, áreas estéreis ou mesmo bacias homo-
gêneas de emprego precário. O mercado imobiliário, que atua na
venda ou mesmo na locação, é dinâmico, indicando processos de
valorização diferencial do solo urbano. O grande varejo e os esta-
belecimentos de crédito muito cedo descobriram isso. As favelas
são espaços de consumo e, por isso mesmo, espaços produtivos,
com suas centralidades específicas, talvez ocultadas, em alguns
casos, pela morfologia do terreno. No Brasil, em 2010, havia
3.224.229 domicílios nos chamados “aglomerados subnormais”.
Esse termo, grosso modo, é a denominação de favela utilizada
para as pesquisas do IBGE. Desse total, 52% estavam instalados
em áreas planas, 26,8% em áreas de aclives e declives moderados
e 20,7% em áreas de aclives e declives acentuados (Brasil, 2013).
A pesquisa do Sebrae revela, ainda, que a percepção de
seis modos comunidade pelos habitantes da favela é oposta à percepção de
de ver a cidade violência, predominante na imagem daqueles que não moram lá.
92 A identificação da favela como reduto de drogas e delinquência,
bastante propalada por segmentos da mídia, está assentada em
uma ideia de enclave que não resiste às análises mais críticas. O
mais importante. Dos moradores entrevistados na referida pes-
quisa, 42% disseram ser felizes e 48%, muito felizes.
Muitas favelas ao redor do planeta, e isso é o mais relevan-
te, têm em comum a luta pela adaptação à ecologia, por um lado,
e a luta política pela posse da terra, por outro. A favela Estrada
Nova, em Belém, ou aquelas situadas na cidade boliviana de El
Alto, apresentam peculiaridades, por assim dizer, topográficas. A
primeira, às margens do rio Guamá, agrupava em 2010, segun-
do o IBGE (Brasil, 2011), 12.666 domicílios e 53.129 pessoas. A
média de moradores é de 4,2 por domicílio. É uma das inúmeras
favelas de Belém, situada em áreas de várzea ou, como são co-
nhecidas regionalmente, baixadas. Na capital paraense, mais de
1,2 milhão de pessoas vive naqueles assentamentos denominados
pelo IBGE de aglomerados subnormais. Quanto mais perto da
água, mais distante do saneamento básico.
A cidade de El Alto, localizada a oeste de La Paz, capital da
Bolívia, apresenta uma topografia semelhante à dos assentamen-
tos cariocas, não fosse a diferença de altitude. Uma arquitetura
que foge aos padrões consagrados pelo urbanismo formal, bem
como a ausência de infraestrutura básica e de serviços, especial-
mente saneamento básico e coleta de lixo, particularizam esses
espaços, que frequentemente demandam um processo de regu-
larização fundiária. A não formalização da posse da terra colo-
ca os moradores em constante situação de fragilidade diante das
pressões do mercado imobiliário e do próprio Estado. São áreas
resilientes, assentadas, muitas vezes, em regiões centrais e valori-
zadas do ponto de vista imobiliário. São indesejadas porque abri-
gam pobres, mas desejadas porque se localizam, muitas vezes,
em espaços centrais cobiçados pelo mercado de imóveis. Assim
nasce o processo de gentrificação, seja por uma ação sistêmica
orquestrada pelo estado e pelo setor imobiliário, seja por uma a paisagem

ação focalizada, tal qual aquela representada no filme Aquarius, 93


do Diretor Kleber Mendonça Filho. O edifício Oceania, trans-
formado em Aquarius, é praticamente um enclave, ilhado entre
espigões na orla da prestigiada praia de Boa Viagem, no Recife.
Clara, protagonista da película, enfrenta, enquanto observa a ci-
dade envelhecer e o seu corpo perecer com naturalidade, as mais
argutas estratégias do mercado imobiliário para forçá-la a abdicar
de sua memória. Trata-se de uma estratégia quase invisível, es-
pecialmente se comparada às grandes e sistêmicas reformas dos
centros urbanos tradicionais.
Numa escala mais ampla, a baía poluída de hoje, habita-
da por pobres, que exala odor de esgotos, pode transformar-se
em lugar aprazível, acomodando as classes abastadas, ou mesmo
eventos esportivos mundiais, bastando para isso remover os in-
convenientes sociais e remodelar o ambiente. As chamadas remo-
ções involuntárias, em várias cidades do planeta, acompanham
os calendários dos eventos globais. Desde uma visita do papa,
passando por uma Copa do Mundo de futebol ou mesmo uma
Olimpíada, tudo é motivo para remover os peões nesse imenso
tabuleiro de xadrez que é a cidade. A urbanista Raquel Rolnik
(apud Lima, 2010), em entrevista que abordou a relação entre
moradia e grandes eventos, assim se expressa:
No caso da África do Sul, a localidade que eu acompanhei mais
foi a Cidade do Cabo, onde existia uma favela enorme, com 20
mil moradores. O governo já havia, há muitos anos, anunciado a
intenção de urbanizar essa favela. E o que acabou acontecendo é
que pessoas que foram removidas para habitações temporárias –
para que ficassem nessa condição provisória até a reurbanização
e redesenho do assentamento – até hoje permanecem nessa
condição provisória. Muitos residem em “casas” que [são]
apelidadas [de] “microondas”, porque são contêineres feitos
de metal. Os prédios novos nesse assentamento acabaram não
indo para a população que morava lá antes, mas sim para uma
população de maior renda.
seis modos
de ver a cidade Os condomínios horizontais, chamados de “enclaves forti-
94 ficados” por Caldeira (2000), revelam outro conjunto de imagens
que, não fosse pela ausência do burburinho cotidiano marcado
pelo uso das ruas lamacentas e escuras, poderiam lembrar as cida-
des medievais, também fechadas por muros. No lugar das torres,
guaritas. A segurança é o maior predicado desse urbanismo cuja
imagem é vinculada ao ideal comunitário. Quem poderia imaginar
que um sítio habitado por pessoas iguais, em termos de renda e as-
pirações sociais, reproduziria os anseios da sociedade urbana que,
hipoteticamente, nasceu para negar? Vem de Jean-Luc Godard, no
filme Alphaville, a visão mais pessimista de um empreendimento
marcado pelo absoluto controle. Já no início do filme, o agente
secreto Lemmy Caution, interpretado por Eddie Constantine, se
depara com uma placa na área de acesso a Alfaville: “Silêncio. Ló-
gica. Segurança. Prudência.” O que se desenha no roteiro é uma
cidade biônica, vigiada, sem emoção, com o cotidiano logicamen-
te programado. O filme é de 1965. Em 1973 aparece, no Brasil, o
modo Alphaville de urbanismo. Certamente, os empreendedores
não buscavam nenhum paralelo com a visão ácida de Godard. O
progressivo avanço dos empreendimentos Alphaville, em Barueri,
que dista aproximadamente 25 km do centro de São Paulo, são a
resposta objetiva do mercado imobiliário para uma fração de classe
incomodada com a manifestação objetiva dos problemas dos cen-
tros urbanos. Um tipo de fragmentação do tecido urbano direta-
mente associado ao que autores, como Souza (1996), denominam
“autossegregação”. Esse modo de urbanismo se disseminou em vá-
rios cantos do país, saindo das capitais para cidades do interior,
como Imperatriz, no Maranhão. Traço comum a todos são os sis-
temas de segurança e controle, gabaritos dos lotes extensos, espa-
ços de lazer e áreas verdes em abundância. Existem distinções, no
entanto, entre o padrão espacial observado em São Paulo e aquele
adotado em outras cidades. Em Goiânia, por exemplo, os condo-
mínios não apresentam padrão vertical e nem mesmo áreas de uso
comercial, como os complexos com shoppings e serviços especiali-
zados registrados em Barueri. Em Goiânia, o condomínio não cria a paisagem

uma centralidade com um polo de serviços no interior dos muros. 95


Ao contrário, se instala em lugares cuja centralidade foi estimula-
da pelo conjunto de investimentos públicos e privados. As especi-
ficidades, no entanto, não comprometem a natureza geral desses
empreendimentos que passa por criar uma arquitetura intimista,
cujo acesso público, seja às vias de transportes, seja às nascentes
e áreas verdes, é negado para o conjunto da população. É como se
alguns problemas das grandes cidades, manifestados formalmente
por furtos, vandalismo, consumo de drogas, atropelamentos e ba-
rulho, ficassem para trás quando o feliz proprietário, no final do
dia, atravessasse os pórticos vigiados por uma fileira de homens
armados e dispostos a defender os condôminos do resto da cidade.
O fato é que, do ponto de vista do ideal urbanístico, os
condomínios fechados podem ser considerados descendentes das
chamadas cidades-jardins e primos dos subúrbios norte-america-
nos. Bourdin (2001) argumenta que a cidade-jardim, como ideal
urbanista, propôs uma alternativa ao modelo de cidade compac-
ta, ao chamado “urbanismo de laje”. Para o autor, no entanto, o
modelo está mais próximo de uma vulgata que advoga o retorno
a uma espécie de “sociabilidade primária”:
Esta imagem da cidade-jardim não se confunde com a da natureza
fundadora da localidade ou da anticidade americana. O mito do
jardim do Éden está presente na construção da localidade para
certas categorias de população, que são: os ecologistas radicais
da volta à terra, mas também toda espécie de proprietários de
residências secundárias, ao fazerem esta escolha por amor a
uma paisagem, ou para estarem o mais longe possível de toda
concentração urbana. (Bourdin, 2001, p. 117)

É preciso recordar as condições objetivas que possibilita-


ram o surgimento dos tradicionais subúrbios norte-americanos.
Entre elas, destacamos a deterioração do meio ambiente urba-
no, demarcada pelo progressivo adensamento e pelo congestio-
seis modos namento e correlata redução da qualidade de vida. Mumford
de ver a cidade (1963), em La carretera y la ciudad, culpa os substanciais inves-
96 timentos governamentais em rodovias pelo padrão de dispersão
das cidades e pelo consequente aparecimento dos subúrbios nos
Estados Unidos. As ferrovias passaram a integrar os grandes es-
paços metropolitanos a partir da década de 1940. Em seguida
foram as rodovias e os automóveis. Apenas a Ford produziu, até
1921, 5.662.675 automóveis. A produção de 1920 e 1921 atingiu
1.250.000 veículos, nada próximo dos 18.664 produzidos entre
1909 e 1910 (Ford, 1964). A ambição de Henry Ford de transfor-
mar o automóvel em um objeto de consumo ordinário facilitou
o processo de expansão horizontal das cidades, ampliando, em
termos geométricos, a distância entre os locais de moradia e os
locais de trabalho e de lazer. O Modelo T, automóvel robusto, de
fácil dirigibilidade e baixo preço, exerceu forte impacto na urba-
nização. Tunnard (1971, p. 125) descreve a relação entre trans-
porte e habitação nos Estados Unidos:
O novo Sistema Interestadual de Estrada de Rodagem, ligando
os já desenvolvidos centros de população urbana, contribuiu
poderosamente para as forças que iriam decidir sobre onde
morariam os americanos em 1960 e num futuro previsível.
Com quase três milhões de pessoas acrescidas anualmente à
população, 82 por cento desse aumento se encontrariam nas
partes dos arrabaldes das áreas metropolitanas.

A conjunção desses eventos tornou possível a populariza-


ção dos subúrbios nos Estados Unidos e instituiu um verdadeiro
paradigma urbano intimista. O ponto central desse novo para-
digma, oposto ao tipo de ocupação dos centros urbanos tradicio-
nais, foi a união entre um ideal de meio ambiente e um ideal co-
munitário. O raciocínio de Richard Sennett (2012, p. 165) auxilia
na compreensão desse processo:
Lugar é geografia, um local para a política; comunidade evoca
as dimensões sociais e pessoais de lugar. Um lugar se torna uma
comunidade quando as pessoas usam o pronome “nós”.

O desejo da comunidade, como alega o autor, é essencial- a paisagem

mente defensivo. A defensibilidade, por assim dizer, requer certa 97


arquitetura a ser preenchida por determinados padrões identitá-
rios. Quanto maior a homogeneidade interna, maior será a exclu-
sividade e a necessidade de proteção da diferença. O intimismo
vence o espaço público. Tudo começa com o velho sonho ecoló-
gico, de comunhão com a natureza. O fragmento, mesmo sendo
uma segunda residência no entorno rural, ainda faz parte da ci-
dade. Aos poucos o discurso ecológico vai perdendo espaço para
o discurso da segurança, prioridade que suplanta o “sonho” eco-
lógico. Antes de um espaço verde, é necessário um espaço seguro.
Uma trágica vulgata localista, vendida pelo mercado imobiliário,
para lembrar Bourdin (2001).
Em muitos casos a paisagem pode enganar. Para os ricos,
em função da estrutura das construções, é difícil perceber as irre-
gularidades urbanísticas, pois a paisagem uniforme, limpa e verde,
pode ocultar uma história espacial pouco ortodoxa. As constru-
ções podem ocupar áreas públicas, por exemplo. Poucos imagina-
riam que as áreas de lazer privativo de várias mansões que vigiam
o lago Paranoá, em Brasília, estavam localizadas em áreas públicas,
apropriadas indevidamente por uma fração da população com fácil
acesso aos tribunais. Causou espanto, em 2015, a decisão positiva
do governo do Distrito Federal de colocar abaixo edificações e mu-
ros situados em áreas públicas, restituindo, assim, o direito público
de acesso às margens do lago. No outro extremo, as áreas de posse,
que preservam usos antigos, como ocupações densas ou mesmo
cortiços, são caracterizadas como espaços ilegais, mesmo que te-
nham passado por processo de regularização fundiária.
O exercício visual de classificar as áreas é o mesmo utili-
zado para classificar os sujeitos que as habitam. Nesse exercício
é necessário perceber como a forma pode dificultar a percepção
da cidade fragmentada. Por exemplo, um condomínio horizontal
visto a partir de uma rodovia duplicada, local preferencial para a
seis modos instalação desse tipo de assentamento urbano, cercado por muros
de ver a cidade de alvenaria de 4 m de altura, dificulta a percepção do conjunto
98 arquitetônico e das áreas verdes e nascentes que são, por exem-
plo, de domínio público. A visão oblíqua de um mesmo condo-
mínio, ao contrário, revela não apenas os padrões de edificação,
mas as dimensões dos lotes, as áreas verdes e os espaços de lazer.
O lendário lago Vitória, objeto de cobiça de viajantes que procu-
raram durante anos as nascentes do rio Nilo, patrocinados por
sociedades geográficas, é hoje um espaço composto por redes de
cidades da Tanzânia, do Quênia e de Uganda. A margem do lago
é formada por uma mancha urbana em constante expansão. A
aglomeração urbana de Kampala, por exemplo, atingiu 2.950.000
pessoas (City Population, 2016). O lago não serve apenas para a
pesca artesanal, cada vez mais comprometida, mas também para
o turismo, bastando para isso observar os resorts assentados em
suas margens.
Além da norma, a paisagem urbana guarda um aspecto ge-
ral de globalidade, cujo maior propósito é favorecer seu rápido
reconhecimento. Uma gramática comum que objetiva dificultar
o estranhamento, afinal há certa identidade nas cidades, passível
de ser reconhecida a partir do movimento do tráfego automotivo,
da verticalização das áreas centrais, dos anúncios publicitários,
do barulho das buzinas e dos motores, assim como dos inúmeros
magazines nas avenidas comerciais. Nessa estética comum não se
pode esquecer dos apelos do mercado imobiliário que apresen-
tam as tendências mundiais no design e no paisagismo urbanos.
Os condomínios de lazer e os de negócios foram generalizados,
seguindo o caminho trilhado pelos shopping centers. Dados da
Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce) indicam
que existiam, em 2006, 351 estabelecimentos desse tipo no Brasil,
total que passou para 520 em 2014. São Paulo, Rio de Janeiro e
Belo Horizonte têm 53, 40 e 20 shoppings, respectivamente (As-
sociação..., 2015). Muitos deles têm área superior a 60 mil m², o
que dá uma ideia da necessidade de espaço, motivo pelo qual se
localizam nas áreas distantes dos centros tradicionais das cidades.
É sugestivo que a disseminação dos shoppings longe des- a paisagem

ses centros seja correlata ao fechamento dos cinemas tradicionais 99



Os condomínios em várias cidades brasileiras. Jacobs (2007, p. 23) salienta que os
horizontais têm shoppings centers monopolistas “encobrem a exclusão do comér-
como características
comuns o cercamento cio – e também da cultura – da vida íntima cotidiana das cidades”.
do perímetro (com
vigilância 24 horas),
Como expressão de um tipo de descentralização dos serviços, os
lotes com gabaritos shoppings simulam, em sua arquitetura, espaços centrais; não por
extensos, além da
junção de áreas acaso, existe um zoneamento interno que permite a identificação
verdes e de lazer. A global dessa forma arquitetônica, cuja praça de alimentação, sem-
foto retrata área do
complexo Alphaville, pre próxima às áreas de lazer, parece ser o principal ingrediente
em Goiânia. Dista, da receita global. Mas a simulação exclui os momentos de pausa.
proximamente, 5 km
do centro da cidade. Com exceção das áreas de alimentação, os shoppings ressentem-se
Foto: Maria Ester, de bancos nos diversos pavimentos. Simula-se um tempo global,
2015.
a partir da presença das marcas universais. Um tempo agradável.
Nem chuva. Nem sol. Nem calor. Nem frio. Nem noite. Nenhuma
experiência de estranhamento. Tudo programado. Sarlo (2014,
seis modos
p. 9) destaca algo que ilustra a necessidade de universalidade:
de ver a cidade
Quando um shopping não oferece todas as marcas, de algum
100 modo rompe seu contrato de universalidade, porque priva de
alguns objetos seus visitantes, que considera indignos por falta
de dinheiro; deixa, assim, à mostra que ninguém é igual no
mercado.

Mas os shoppings não figuram entre as paisagens mais


desejadas do planeta. Kublai Khan, personagem de Italo Calvi-
no (1990), não estranharia os relatos de Marco Polo se tivesse
acesso às tecnologias contemporâneas. Uma espécie de aplicativo
chamado de Sightsmap apresenta um mapa constantemente atua-
lizado das paisagens mais fotografadas do planeta. Nova York e
Roma estão no topo dos hotspots, seguidas de Paris e Monte Car-
lo. Nesse ranking das paisagens mais vistas e desejadas, composto
por cidades, o Rio de Janeiro perde para Buenos Aires.
Mas também existem paisagens menos desejadas, que não
aparecem em destaque no Sightsmap, muito menos nos catálogos
das principais agências de turismo. Nem mesmo a luz das câme-
ras digitais é capaz de suavizar a paisagem das favelas ao redor
do planeta. Casebres unidos por finas paredes, lonas ou metal,
vielas tortas que drenam o esgoto sanitário, lama nos períodos
chuvosos e ruas empoeiradas nos dias quentes, formam um con-
junto de paisagens incrustadas nas maiores cidades do mundo. O
mercado, mesmo assim, as espetaculariza.
Existe um Grand Tour urbano, nos moldes daquele vigente
no século XVII. A busca pelo exótico, misturada, em casos mais
românticos, com uma espécie de altruísmo urbano explica a es-
petacularização da pobreza em um dos lugares mais pobres do
planeta. O site Kibera Tours ([201-]) anuncia em sua página ini-
cial: “Nossa organização de turismo, sediada em Kibera, gostaria
de recebê-lo para uma turnê em Kibera, a maior favela do leste da
África” (tradução nossa). Kibera, em Nairóbi, no sudeste do Quê-
nia, detém o título nada prestigioso de maior favela do mundo. O
site apresenta, no melhor estilo dos filmes sobre a África colonial,
um conjunto de recomendações para o tour, assim resumidas:
• Utilizar botas para a caminhada, dadas a lama e a água ao a paisagem

longo do caminho; 101


• Restringir o uso de objetos de valor, como joias e relógios;
• Evitar fotografias sem autorização e/ou acompanhamen-
to do guia;
• Ter disposição para caminhadas de duas a três horas,
motivo pelo qual não é aconselhado levar crianças de colo, pois a
circulação de carros é restrita;
• Não distribuir dinheiro, doces, canetas ou qualquer ou-
tro objeto para a comunidade;
• Muito embora a favela seja amigável, o tour será acompa-
nhado por seguranças. (Kibera Tours, [201-], tradução nossa).

O preço do tour é de 2500 KSh, aproximadamente 25 dóla-


res por pessoa, não incluído o transporte para o hotel. Esse é um
exemplo de como a paisagem, em escala diferente mas com pro-
pósitos semelhantes de uma visita guiada ao Coliseu, em Roma,
pode ser funcional para a economia. As paisagens adequam-se
aos imperativos da sociedade do espetáculo, para lembrar uma
expressão de Guy Debord (2007). São integradas ao circuito da
mercadoria, mas continuam, independentemente de se trans-
formarem em suvenires na sala de estar, distantes do contato
cotidiano.

seis modos
de ver a cidade

102
o cotidiano

Mas há milhões desses seres


Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem.

(Chico Buarque, Brejo da Cruz)


O
cotidiano pode ser interpretado como uma síntese par-
ticular e geral da cidade. Particular porque cada indiví-
duo constrói uma relação com os fragmentos da cidade
– praças, parques, ruas, cruzamentos, monumentos etc. Geral
porque é no cotidiano que construímos, ao mesmo tempo, uma
imagem geral dessa mesma cidade e, a partir dela, reproduzimos
nossa vida. Evitamos essa rua, aquele bairro ou preferimos o ca-
minho de volta para casa que circule um bosque, mesmo que
seja mais longo. O cotidiano revela-se nas formas de morar e
trabalhar e, por consequência, nas maneiras de apropriação dos
espaços públicos e privados. É a dimensão completa da reprodu-
ção da vida, traduzida na relação dos indivíduos com o tempo e
o espaço.
As mudanças no cotidiano urbano respondem por dife-
rentes ordenações do tempo. Há um tempo hegemônico em cada
período histórico, que, por assim dizer, determina modos especí-
ficos de produzir, consumir e morar nas cidades. Mas também há
uma economia dos tempos não hegemônicos ou, por assim dizer,
periféricos. É no embate entre essas economias de tempo que o
cotidiano se instaura e, ao mesmo tempo, produz espaços de exis-
tência cujos registros são grafados na paisagem urbana.
Tema bastante debatido nas ciências humanas, o cotidiano
tornou-se uma espécie de depositário das aspirações de mudança
social. Três pontos parecem importantes na compreensão do co-
tidiano como um modo de ver a cidade.
• Como a forma urbana interfere no cotidiano urbano?
• Que forças movem o cotidiano urbano?
• Como o cotidiano poderia unificar um projeto de trans-
formação social?
É possível identificar, na história das cidades, uma cor-
relação entre a forma urbana, as concepções predominantes na
sociedade acerca de produzir e consumir, e o cotidiano. A forma
urbana, como destaca Gomes (2002), influencia as maneiras de
ocupar o espaço. O conjunto de atividades cotidianas para a re-
produção da vida não prescinde de espaço, muito embora essa
assertiva possa parecer banal. Em A apologia de Sócrates, Platão
(2009) não descreve apenas o processo jurídico que levou à con-
denação do filósofo, mas uma parte de sua rotina na pólis. Sócra-
tes acreditava estar ligado à cidade como “uma mosca a um cava-
lo grande, de boa raça, que precisa ser despertado pelas moscas,
pois a gordura o deixou meio lerdo” (Platão, 2009, p. 44). Com
sua ironia característica, Sócrates supunha que sua tarefa coti-
diana era atormentar a pólis. Não se preocupava com a forma da
cidade, mas com as condutas humanas.
A cidade fechada da Idade Média, limitada por muralhas,
restringia a circulação de pessoas para as áreas externas, mas,
por outro lado, favorecia o encontro mais frequente entre elas.
Tratava-se de uma cidade densa, cercada por muralhas que se
expandiam com frequência. O burburinho das ruas e a aparente
seis modos desordem demarcavam sua identidade. Comerciantes, confra-
de ver a cidade rias religiosas, produtores, mendigos, enfim, uma ordem de usos
106 marcada pela proximidade dos corpos de uma sociedade abun-
dante, como descreve Lefebvre (1969). Segundo Le Goff (2002,
p. 531), a noção de tempo era fundamental no condicionamento
do cotidiano urbano medieval:
O tempo na Idade Média é, em primeiro lugar, um tempo de
Deus e da terra, depois, dos senhores e dos que estão sujeitos
ao senhorio, depois – sem que os tempos precedentes tenham
deixado de ser presentes e exigentes – um tempo das cidades
e dos mercadores, e, finalmente, um tempo do príncipe e do
indivíduo.

A noção de tempo na cidade industrial clássica esteve sub-


metida ao tempo produtivo fabril. A fábrica, além de ser uma es-
trutura espacial com destaque na paisagem urbana, disciplinou
os corpos, impondo-lhes um tempo cronometrado. Poucos ter-
mos definem tão bem esse período como jornada de trabalho. O
trabalho assalariado unificou o tempo urbano, demarcando ho-
rários de encontro e funcionamento das instituições. Os dias pas-
saram a ser divididos em diferenciais jornadas de trabalho com
intervalos regulares para refeições e descansos semanais. Os dias
divididos em horas trabalhadas. Os meses divididos em semanas
trabalhadas. Os anos divididos em meses trabalhados, seguidos
de um mês de descanso. O tempo produtivo é considerado por
muitos o termômetro da cidade. Não é sem motivo que a solvên-
cia das economias seja demarcada pelas taxas de desemprego, o
que significa que um número elevado de pessoas estão fora do
mercado de trabalho ou, dito de outra maneira, fora do mercado
do tempo produtivo
O tempo do trabalho fabril permeia o cotidiano, redefinin-
do as experiências dos que vivem nas cidades e, com mais força,
daqueles egressos do campo. Marx (2015), com sua erudição ha-
bitual, escreveu que a população nômade, proveniente do cam-
po, constitui-se na “infantaria ligeira do capital” (2015, p. 778).
A unificação do tempo a partir da experiência urbana do traba-
lho foi funcional para a consolidação do capitalismo moderno. o cotidiano

Thompson (1998, p. 272) traduz de forma brilhante essa relação 107


na seguinte assertiva: “O tempo é agora moeda: ninguém passa o
tempo, e sim o gasta”. A representação da cidade como centro de
realização técnica, como demonstração inequívoca do domínio
humano sobre a natureza, exigiu do homem uma nova relação
com o tempo. Ninguém melhor para traduzir a relação entre tem-
po e trabalho que Charles Dickens, com sua fictícia Coketown:
A cidade contava várias ruas grandes; todas parecidas umas
às outras, e muitas ruas estreitas, ainda mais iguais entre si,
habitadas por pessoas que se assemelhavam, que entravam e
saíam às mesmas horas, produzindo os mesmos sons sobre os
mesmos pavimentos, para fazerem trabalho idêntico e para
as quais cada dia era a imagem da véspera ou do dia seguinte,
exatamente como todo o ano era a cópia do ano anterior e do
vindouro. (1968, p. 37-38)

A modernidade, compreendida pelo viés do fordismo, am-


bicionou criar um modelo de cidade que demandou um tipo es-
pecífico de habitação, acompanhado de uma forma de trabalhar
e de uma forma de circular. Uma forma, enfim, de administrar
o tempo a partir dos pressupostos da eficiência produtiva. Ao
moldar o espaço, o urbanismo contemporâneo tentou moldar o
cotidiano, tal qual a fábrica tentara organizar o tempo dos indi-
víduos. Um determinismo da forma sobre o conteúdo. Os prin-
cípios difundidos na Carta de Atenas, “Trabalhar, circular, morar
e divertir-se nas horas vagas” (Le Corbusier, 1993), impunham
um cotidiano específico sobre as cidades. Nasceu caduco. Não é
por acaso que Harvey (1993) identifique a implosão do Pruitt­
‑Igoe – conjunto habitacional da década de 1950, matriz do modo
moderno de habitação para a classe trabalhadora, localizado em
St. Louis, no estado do Missouri – como o ocaso da modernidade
e prenúncio da pós-modernidade. Jacobs (2007), em linguagem
mais direta, critica, ao mesmo tempo, a descentralização, a po-
seis modos lítica de financiamento e a homogeneização dos novos conjun-
de ver a cidade tos habitacionais norte-americanos daquele período. A citação é
108 oportuna para ilustrar sua elegia em favor da diversidade urbana.
Mas veja só o que construímos com os primeiros vários bilhões:
conjuntos habitacionais de baixa renda que se tornaram núcleos
de delinquência, vandalismo e desesperança social generalizada,
piores do que os cortiços que pretendiam substituir; conjuntos
habitacionais de renda média que são verdadeiros monumentos
à monotonia e à padronização, fechados a qualquer tipo
de exuberância ou vivacidade da vida urbana; conjuntos
habitacionais de luxo que atendem sua vacuidade, ou tentam
atenuá-la, com uma vulgaridade insípida; centros culturais
incapazes de comportar uma boa livraria; centros cívicos
evitados por todos, exceto desocupados; centros comerciais que
são fracas imitações das lojas das redes suburbanas padronizadas;
passeios públicos que vão do nada ao lugar nenhum e nos quais
não há gente passeando; vias expressas que evisceram as grandes
cidades. Isso é não reurbanizar as cidades, é saqueá-las. (Jacobs,
2007, p. 2)

O ocaso de um modelo econômico está sempre a sugerir


uma nova estética da cidade, e não por acaso os sucessivos mo-
delos de reurbanização priorizam, quase sempre, mudanças na
forma urbana, acreditando que, assim, o conteúdo também possa
ser alterado. A flexibilidade, resultado do processo de acumulação
flexível estudado por Harvey (1993), exigiu espaços diferencia-
dos, mesmo que construídos sobre formas herdadas do passado.
Eis a melhor lição do cotidiano: funcionaliza, constantemente, as
formas pretéritas, exigindo adaptação constante.
A imagem da cidade moderna ancorou-se no movimento,
na rapidez indicada pela circulação de carros velozes em bule-
vares e avenidas. O alargamento das calhas das ruas foi corre-
lato ao avanço da motorização. Isso não garantiu, no entanto,
fluidez. A velocidade média dos automóveis, especialmente nas
áreas centrais das grandes cidades, diminuiu progressivamente.
A escala métrica dos congestionamentos é dada em quilômetros.
Os congestionamentos exigem adaptação. Cidades chinesas, por
exemplo, convivem com filas quilométricas de veículos. Em 2014,
segundo informações da Companhia de Engenharia de Tráfego o cotidiano

de São Paulo (2014), a cidade de São Paulo atingiu 344 km de 109


congestionamento. O maior problema, para além de ocorrên-
cias pontuais de chuva ou de acidentes, é a superpopulação de
veículos.
Poucos exemplos são tão pertinentes para ilustrar o caráter
de adaptação das formas pretéritas ao cotidiano quanto aquele
de Al-Qarafa, no Cairo, capital do Egito. O cemitério não guarda
apenas os mortos das aristocracias passadas. Al-Qarafa é uma ne-
crópole de vivos que, muito embora respeitem as tradições secu-
lares, utilizam os túmulos como residências. Os baixos muros do
cemitério são uma alegoria das muralhas medievais. Similarmen-
te, as torres das cidades europeias, assim como suas muralhas,
passam despercebidas no cotidiano urbano. Não vigiam nem di-
videm mais a cidade do campo. Não ordenam mais o cotidiano,
a não ser aquele do turismo programado. Os restos das muralhas
incrustadas no sítio urbano de Paris passam despercebidos por
muitos habitantes e turistas.
Existe um exemplo parisiense similar de refuncionaliza-
ção dos espaços da morte. É oportuno recordar que os cemitérios
nem sempre foram localizados nos centros das cidades. Para usar
a expressão de Le Goff (2000), o cristianismo urbanizou os mor-
tos. Com isso, quis dizer o historiador que, no período medieval,
havia uma espécie de simbiose entre as igrejas e os cemitérios.
Morrer na Paris medieval constituía-se um problema, e a história
do cemitério Saints-Innocents, localizado nas proximidades do
Les Halles, na margem direita do rio Sena, atesta essa máxima.
Hussey (2011, p. 267) afirma:
O fedor do centro de Paris era notório. A razão para isso era
que no século XIX os cemitérios de Paris, muitos deles datados
dos tempos pré-romanos, estavam perigosamente superlotados.
O de pior fama era o Saints-Innocents, no coração da cidade.
Esse lugar era famoso há muito tempo, pelo menos à noite, como
refúgio de necromantes, prostitutas, bêbados, ladrões e, ao longo
seis modos do século XVIII, ladrões de túmulos que vendiam os corpos
de ver a cidade
mais frescos a estudantes e professores da École de Médecine do
110 outro lado do rio.
No final do século XVIII, a situação do cemitério exigiu a
remoção dos corpos, aos milhares, para as antigas galerias, ori-
ginárias da extração de rochas calcárias que, durante muito tem-
po, sustentaram as construções de Paris. Daí surgiram as lendá-
rias catacumbas, formadas por agrupamentos lineares de ossos
humanos. Transferir os restos mortais não foi uma tarefa fácil,
não apenas porque a atividade era feita no período noturno, mas
também porque necessitava da presença de sacerdotes. As cata-
cumbas foram incorporadas ao cotidiano turístico para aqueles
dispostos a desembolsar cinco euros. A paisagem urbana é his-
tória, mas também espetáculo para um cotidiano cada vez mais
programado.
As forças que movem o cotidiano não brotam da pranche-
ta. Jacobs (2007), em Morte e vida de grandes cidades, propõe-se
a responder uma pergunta aparentemente simples: como as cida-
des funcionam? O estudo que resultou dessa pergunta apresenta
um repertório de ricas práticas cotidianas urbanas que demons-
tram a vitalidade das cidades, mesmo naqueles espaços ditos
degradados. No momento em que Jacobs compõe sua elegia, a
grande cidade é mais uma vez acusada de ser um espaço gerador
de violência e impessoalidade. A imagem da selva de pedra, com
a violência brotando em cada esquina, guiou os catálogos de in-
tervenções urbanas. As respostas, criticadas com veemência pela
militante, vieram da mistura dos ideais de Ebenezer Howard, com
sua cidade-jardim, e de Le Corbusier, com sua cidade radiosa. Ja-
cobs não se contentou em teorizar e apresentou uma resposta a
partir de uma realidade concreta, no North End, em Boston. Sua
opinião sobre a segurança e o uso das calçadas merece registro:
Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares
em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente
que garante a manutenção da segurança e liberdade. É uma
ordem complexa. Sua essência está na complexidade de uso das
calçadas, que traduz consigo uma sucessão permanente de olhos.
o cotidiano
(Jacobs, 2007, p. 52)
111
Lefebvre (1991, p. 39), em A vida cotidiana do mundo mo-
derno, destaca o cotidiano como campo de interação entre rela-
ções de produção e consumo, entre cultura e ideologia:
A vida cotidiana se define como lugar social desse feedback. Um
lugar desdenhado e decisivo, que aparece sob um duplo aspecto:
é o resíduo (de todas as atividades determinadas e parcelares que
podemos considerar e abstrair da prática social) e o produto do
conjunto social. Lugar de equilíbrio, é também o lugar em que se
manifestam os desequilíbrios ameaçadores.

Parece ponto de consenso que o cotidiano é afetado pelas


transformações de ordem econômica, daí não ser uma instância
autônoma, separada da realidade concreta. Engels (1985, p. 3), no
prefácio de Situação da classe trabalhadora na Inglaterra, explica
como o mergulho no cotidiano dos bairros pobres, nas ruas e ta-
bernas de Manchester ajudou na composição de sua obra:
[…] queria conhecer-vos nas vossas casas, observar-vos na vossa
existência cotidiana, falar das vossas condições de vida e dos
vossos sofrimentos, testemunhar as vossas lutas contra o poder
social e político dos vossos opressores.

A investigação das condições de vida, especialmente a par-


tir da habitação e do trabalho, é imperativa para a compreensão
do cotidiano nas cidades. A ausência de abrigo nas noites frias e
chuvosas empurrava prostitutas para as ruas escuras de Londres
no século XIX, tornando-as vulneráveis à violência. Os recintos
fechados, insalubres e superpovoados, mesmo sendo lugares da
intimidade e das relações familiares compartilhadas, obrigavam a
utilização das ruas, tal é o exemplo constante de Londres e Paris.
O escritor Charles Dickens (1999), em Retratos londrinos, afirma
que o momento mais glorioso das ruas de Londres é uma “som-
bria e triste noite de inverno”. Assim descreve uma das cenas:
seis modos Vendedores de peixes, ostras e frutas vagam desesperançados
de ver a cidade
pela sarjeta, tentando inutilmente chamar atenção de algum
112 cliente. E os garotos maltrapilhos, que costumam se divertir
correndo pelas ruas, estão agachados em grupelhos em algum
vão de porta ou sob a barraca de lona do vendedor de queijos,
onde grandes e ofuscantes luzes a gás, totalmente descobertas,
expõem enormes fachos de brilho avermelhado. (Dickens,
1999, p. 81)

O escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1999) igual-


mente se interessou pelos segredos das ruas londrinas. Segredos
esses que poderiam ser compartilhados por qualquer outra gran-
de metrópole do primeiro e segundo quartéis do século XIX. Em
O homem na multidão, o narrador, após elaborar uma espécie de
lista classificatória dos transeuntes, aguçado pela curiosidade,
passa a perseguir um velho decrépito pelo labirinto da metrópo-
le. Não há racionalidade aparente no velho que caminha por esse
labirinto. É o que descobre o narrador.
Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se
agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança
de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi
presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda­
‑chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram.
De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre
latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um
prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a
andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com
dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado
aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como
nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha
perseguição. (Poe, 1999, p. 3)

É nessa mesma Londres do final do século XIX que o ex-


cêntrico Sherlock Holmes se movimenta à cata de soluções para
assassinatos, roubos e tramas políticas, preferencialmente em ca-
briolés e carruagens. No endereço mais famoso de Baker Street,
Holmes vigia a cidade, procurando mistérios nos jornais ou mes-
mo esperando que batam à sua porta em busca de ajuda. Em um
diálogo com o companheiro Watson, após passar os olhos pelos o cotidiano

jornais matutinos, o detetive assevera: 113


– O criminoso de Londres é, com certeza, um sujeito sem
imaginação – disse, numa voz lamurienta como a de um
esportista que perde o jogo. – Olhe pela janela, Watson. Veja
como as pessoas aparecem indistintamente, mal são vistas e já
desaparecem de novo na névoa. Um ladrão ou um assassino
poderia andar por Londres impunemente num dia assim, como
um tigre na selva, invisível até o bote fatal de sua vítima. (Doyle,
2015b, p. 79-80)

É também em Paris que Jean Valjean se esconde do inspe-


tor Javert. A Paris de Victor Hugo se assemelha com a Londres de
Edgar Allan Poe:
Paris é um lugar onde tudo se perde, e tudo desaparece nesse
umbigo do mundo como desapareceria no umbigo do mar.
Nenhuma floresta esconde um homem como aquela multidão.
Os fugitivos de todo tipo sabem disso. Vão a Paris como a um
sorvedouro; há sorvedouros que salvam. A polícia também sabe
disso, e é em Paris que ela procura o que perdeu em outro lugar.
(Hugo, 2014, 511-512)

Estatísticas publicadas por Cochin (1864) sobre a popula-


ção e a indústria de Paris informam uma população de 1,7 milhão
de habitantes em 1864. Impressiona, no entanto, sua menção à
existência de 55.000 maisons, o que resultou em uma densidade
de 35 habitantes por maison naquele ano. Não há motivos para
duvidar desses números, especialmente se dermos crédito aos re-
latos de Balzac (2013b, p. 349):
O ar das casas em que vive a maior parte dos burgueses é infecto,
a atmosfera das ruas cospe miasmas cruéis nas peças interiores
das lojas onde o ar se rarefaz; mas, além dessa pestilência, os
quarenta mil prédios dessa grande cidade mergulham seus
alicerces em imundícies que o poder público não quis ainda
seriamente cercar de muralhas que impeçam a lama mais fétida
de filtrar-se através do solo, de envenenar os poços e de fazer
seis modos perdurar subterraneamente em Lutécia seu nome célebre.
de ver a cidade
Metade de Paris jaz entre exalações pútridas dos pátios, das ruas
114 e dos esgotos.
Se as condições de habitação não eram as melhores nas
mais destacadas cidades do século XIX, o que dizer da experiên-
cia com o trabalho, nas fábricas e nas minas, mas também nas
ruas? Assim Engels (1985, p. 104) descreve essa situação:
A grande maioria dos desempregados torna-se vendedores
ambulantes. É principalmente aos sábados e à noite, quando
toda a população operária sai à rua, que vemos reunidas as
pessoas que vivem disso. Fitas, rendas, galões, laranjas, bolos,
em resumo, todos os artigos inimagináveis são oferecidos por
homens, mulheres e crianças...

Ao produzir e centralizar o excedente, articulando espa-


ços regionais e internacionais por meio das trocas comerciais, a
cidade estimulou um tipo de cultura de contestação que pode ser
demonstrada pela gênese do movimento operário. A história do
movimento operário não é outra senão uma história recheada de
greves e movimentos reivindicatórios cotidianos, que utilizam es-
paço público para garantir visibilidade para sua agenda de luta.
Marx (1999) denunciou as estratégias de roubo de tempo e, ao
mesmo tempo, a legislação e os tribunais que, nas cidades ingle-
sas, puniam os trabalhadores com multas e descontos nos seus
parcos salários. Engels (1985), também se referindo à realidade
inglesa, afirma:
A frequência inaudita das paralisações é a melhor prova da
extensão assumida pela guerra social na Inglaterra. Não passa
semana nenhuma, quase dia nenhum, sem que se deflagre uma
greve em qualquer parte. (1985, p. 253)

É oportuno pensar que o arranjo espacial da cidade mo-


derna, em virtude da densidade, formou o húmus que possibi-
litou, por assim dizer, uma pedagogia da rebeldia. A densidade
e a convivência com sistemas de servidão, no chão das fábricas,
resultaram em progressiva politização dos operários. A moradia
em cortiços e distritos operários também estimulou um pensar o cotidiano

coletivo sobre as condições de reprodução da vida da massa de 115


trabalhadores nos grandes centros urbanos, seja na Europa, seja
no Brasil. As condições de trabalho e de moradia, associadas às
dificuldades cotidianas para o sustento da vida, estimularam de
diferentes modos a utopia de mudança. Tal exemplo se encaixa
perfeitamente nos movimentos grevistas em São Paulo, em 1917.
Mas o que era a cidade de São Paulo nesse período? Quais eram
as características dessa população? O recenseamento realizado
em primeiro de setembro de 1920, três anos após a conhecida
greve geral, oferece algumas pistas. Do total da população do mu-
nicípio, equivalente a 579.033 pessoas, 205.245 foram classifica-
dos como estrangeiros (Brasil, 1926). Não deixa de ser curioso,
ao observar os grupos de idade, que nos grupos acima de 30 anos
de idade, registrava-se maioria de estrangeiros. No grupo entre
30 e 39 anos, por exemplo, havia 26.607 brasileiros e 48.662 es-
trangeiros. Esse composto de nacionalidades, também resultado
do movimento migratório registrado a partir da Primeira Guerra
Mundial, favoreceu o contato entre diferentes culturas do traba-
lho, com influência decisiva na organização do movimento ope-
rário. Boris Fausto, em seu estudo sobre o movimento operário
no início do século XX, destaca a função da cidade:
Não obstante os vários fatores que entravaram a formação de um
movimento operário, a cidade reuniu os requisitos mínimos para
seu surgimento. Existia aí um quadro objetivo de exploração
que podia ser interiorizado coletivamente, dada a facilidade de
contatos; os ideólogos revolucionários e organizadores, apesar
das restrições a sua atividade, não eram, no meio urbano, um
peixe estranho. (2016, p. 40)

A excessiva exploração do trabalho nas fábricas (o que in-


cluía o trabalho de mulheres e crianças), o alto custo dos alimen-
tos e o surgimento de ligas, conselhos e agremiações de operá-
rios, tornaram possível a decretação, em 1917, de uma greve geral
seis modos que atingiu a indústria, o comércio e os serviços da cidade de São
de ver a cidade Paulo. O espaço urbano da capital paulista centralizou os exce-
116 dentes de força de trabalho, representados nos diversos ofícios
(tecelões, padeiros, metalúrgicos, alfaiates, serralheiros etc.) e, de
forma semelhante, mobilizou esses agrupamentos de assalariados
em bairros específicos, cujo maior exemplo é a Mooca, tradicional
reduto de italianos. Em informe de A Plebe, um dos muitos jornais
e informativos operários, publicado em 9/06/1917, encontramos:
LIGA OPERÁRIA DA MOOCA
Das agremiações obreiras que estão surgindo esta é a que mais
rápido desenvolvimento tem tomado, contribuindo, natu­ ral­
mente para isso os dois movimentos em fábricas situados naque-
le bairro. Numerosas reuniões foram realizadas durante e após a
greve da fábrica de tecidos Rodolfo Crespi. Sendo elas aprovei-
tadas para a propaganda feita por camaradas nossos. (Khoury,
1981, p. 133)

A correspondência entre os agrupamentos de ofícios e os


bairros, especialmente nos momentos de intensa migração, res-
ponde por um tipo de construção de laços identitários a partir
das redes de proteção na escala internacional. Assim se constrói
um tipo de identidade territorial demarcada pela identidade do
trabalho e pelos vínculos pátrios. O filme Brooklyn retrata de
modo excepcional o encontro, em Nova York, da jovem irlandesa
Ellis Lacey, interpretada por Saoirse Ronan, com o jovem italiano
Tony, interpretado por Emory Cohen. Em determinado momen-
to do filme, ambientado na década de 1950, de frente para um
descampado, Tony pergunta a Ellis: “[...] você quer viver aqui em
Long Island? Sei que não parece muita coisa agora, mas toda a
terra aqui foi vendida. Então não estaremos sozinhos.” Impossí-
vel, nos dias de hoje, um bombeiro e uma aspirante a contadora
obterem recursos para ocupar uma faixa de terra de proporções
iguais na extensa ilha linear que vigia Nova York. O cotidiano
migrante, nas cidades em formação, remete à construção da iden-
tidade de laços de nacionalidades com uma determinada territo-
rialidade; não por acaso o Brooklyn tem sido, tradicionalmente,
representado pela comunidade italiana, assim como o Harlem é o cotidiano

identificado pela destacada presença de afro-americanos. 117


À experiência do trabalho, moldada na disciplinarização
do tempo e do trabalho formal, deve ser acrescida a experiência
do desemprego ou mesmo dos trabalhos precários, chamados de
“informais”, em contraposição à experiência do trabalho formali-
zado, geralmente com registro e seguridade social. Os indicativos
são claros. Uma legião de pessoas agrupadas em semáforos, praças
e calçadas, a vender de tudo um pouco: carregadores de celular,
brinquedos, frutas, churrasquinhos, bebidas etc. Marca comum e
atemporal no cotidiano das cidades é a presença de ambulantes.
No século XIX, nas cidades brasileiras, a função dos ambu-
lantes, sendo escravos ou homens livres, era abastecer as casas dos
mais variados produtos. Sua dinâmica contrastava com o univer-
so das mercearias, estáticas, a vender toda ordem de mercadorias.
Estas muito cedo figuraram como ambiente de comunicação, de
encontro. O pequeno varejo fez-se no contato direto, pessoal,
passional. O feijão, o arroz, a farinha, a manteiga, a banha, a ra-
padura, o café, o açúcar, a carne-seca, as salsichas penduradas em
linhas, denunciavam a relação, em duas escalas, com o mundo
exterior. A primeira escala era o entorno rural imediato, indicado
pela comercialização do excedente rural ou mesmo por produtos
com algum de transformação primária, a exemplo da manteiga
ou da rapadura. A segunda escala refere-se aos espaços distantes,
o que já indicava, mesmo no século XIX, uma progressiva inte-
gração econômica com espaços nacionais e internacionais.
No início do século XX, por exemplo, cidades como São
Paulo e Rio de Janeiro importavam arroz e gado dos sertões do
Centro-Oeste brasileiro. Os produtos a granel ao gosto e à medida
do freguês, na ausência dos enlatados e plásticos, preenchiam os
balcões e o piso das vendas. Daí a presença das balanças com pra-
tos e pesos de chumbo para pesagem. Condimentos, azeites, sar-
dinha, vinhos, além de cortes de tecido, louças e um sem-número
seis modos de quinquilharias domésticas eram, frequentemente, importadas
de ver a cidade da Europa por meio dos portos do Rio de Janeiro e de Salvador,
118 por exemplo. Em reduzido espaço, os fregueses deparavam-se

com uma orgia de cheiros, cores, sabores e sotaques – dada a pre- Composição étnica,
por percentual, das
sença, muito frequente, de proprietários portugueses e árabes. cidades de Miami, Los
Enfim, as mercearias, chamadas de vendas, eram locais de Angeles e Nova York.
O hibridismo cultural,
sociabilidade e de construção de laços de confiança na economia manifestado pela
urbana da virada do século XIX para o século XX. Esse princí- composição étnica,
é uma característica
pio valia para as cidades coloniais brasileiras, tanto aquelas do atemporal das
metrópoles. A presença
interior, que mantinham redes de troca de mercadorias com ci- de hispânicos e de
dades como Rio de Janeiro e São Paulo, quanto estas últimas, que asiáticos deixam
marcas facilmente
mantinham relações comerciais com as cidades europeias. Uma reconhecidas na
consulta ao Almanak da Província de São Paulo para o ano de paisagem e no
cotidiano urbano das
1873 oferece indicativos da riqueza da vida urbana da cidade de metrópoles americanas.
São Paulo naquele ano (Fonseca, 1878). O Almanak informa a Chinatown,
por exemplo, é
presença de 258 armazéns, divididos em diversas categorias, com denominação territorial
em Nova York e em
destaque para “armazéns de molhados” e “gêneros do paiz”. Ar- Los Angeles, além
mazéns, lojas, armarinhos, lojas especializadas em ferragens, cha- de outras cidades
americanas. Os dados
péus, produtos de couro, louças, bebidas etc. dão uma amostra da referem-se ao ano de
diversidade do consumo em uma cidade que não ultrapassava, 2014.
Fonte: City-Data
em 1872, 32 mil habitantes (Fonseca, 1878). Naquele ano, ape- (2016).
nas três cidades brasileiras alçaram população acima de cem mil
habitantes, sendo a maior delas o Rio de Janeiro, então capital do
país, com 274.972 habitantes (Brasil, 1926).
A cidade, desde muito cedo, não apenas centralizou os ex- o cotidiano

cedentes, mas também estimulou e divulgou modos de consumo 119



Esta foto do Armazém nem sempre endêmicos. Se centralizou o excedente foi pelo mo-
Caravella, localizado
na Rua Catumbi, no tivo de constituir-se, em qualquer que seja a escala, um ambiente
Rio de Janeiro, data propício para o pequeno varejo, algo essencial para a reprodução
de 1922. É possível
observar a diversidade da vida diária nas cidades. Em virtude dos contatos com o mundo
de produtos exterior, por intermédio das trocas diárias, a cidade funcionava
dispostos no interior
da venda, como como uma espécie de esponja, absorvendo e adaptando modos
café, açúcar, azeite,
presunto defumado
estrangeiros de conduta, traduzidos nas falas ou, de forma mais
(provavelmente visível, no figurino, demonstrado pelo uso corriqueiro de cha-
importado) e bebidas.
Fonte: Malta ([20--]). péus e bengalas.
O cotidiano da economia urbana reproduziu-se na sim-
biose entre a venda, fixa, e o ambulante, móvel. Mesmo nas ci-
dades contemporâneas tal dinâmica se reproduz, uma vez que
o comércio virtual está longe de relegar os contatos horizontais.
Nesse sentido, é conhecido o trabalho do geógrafo Milton Santos
seis modos (1979) sobre economia urbana. O autor dedica energia a carac-
de ver a cidade terizar o que chama de “circuito superior” e “circuito inferior”
120 na economia urbana dos países subdesenvolvidos. O primeiro
seria resultado da modernização tecnológica, e o segundo seria
demarcado por atividades marginais, com laços orgânicos com o
entorno. O livro de Santos, publicado no final da década de 1970,
apresenta um retrato demasiadamente encaixado das economias
urbanas, algo que deve ser aplicado com ressalvas na contem-
poraneidade. As atividades dos ambulantes estão envolvidas no
processo de modernização e incluídas em redes internacionais.
Por exemplo, um celular de última geração, que nunca é a última
geração, é encontrado com os ambulantes com a mesma rapidez
que com os representantes formais instalados nos shopping cen-
ters. Um relato pessoal ilustra essa articulação. O filme Batman, o
cavaleiro das trevas, foi lançado no circuito formal de cinema em
julho de 2008. Na ocasião, ainda antes de sua presença generali-
zada nas salas de cinema brasileiras, era possível encontrar, nas
ruas de Imperatriz, cidade do interior do Maranhão, cópias do
filme em DVD. Ao indagar um dos vendedores sobre a origem do
produto, ele respondeu: “Acho que da China. Mas sei que a cópia
é original”.
Outra cena comum nas cidades brasileiras é a presença,
nos cruzamentos de avenidas movimentadas, de artistas estran-
geiros, especialmente malabaristas. O idioma não deixa dúvidas.
São peruanos, colombianos, mexicanos, entre outras naciona-
lidades, que migraram em busca de trabalho. Isso sem citar os
chineses. Esse contingente não se restringe aos grandes centros
como São Paulo e Rio de Janeiro, sendo também identificado em
cidades como Goiânia.
A experiência do trabalho sempre exigiu algum esforço de
adaptação ao tempo e ao espaço nas cidades. O trabalho consome
e condiciona parte significativa do cotidiano urbano. Nas décadas
de 1950 e 1960, com o intuito de se empregar na construção de
Brasília, dezenas de milhares de migrantes nordestinos deixaram
o trabalho no campo para ingressar na construção civil. Parcela
considerável originava-se do semiárido nordestino. Um resumo o cotidiano

de 1959 do Censo experimental do Distrito Federal (Brasil, 1959) 121


dá ideia de como era o ambiente de uma cidade planejada, for-
jada no chão vermelho do cerrado. Das 63.914 pessoas, 42.332
eram homens, a maioria jovens e solteiros. Nesse ano, 88,16% da
população constituía-se de migrantes, originários da Bahia, do
Ceará, de Pernambuco e da Paraíba. Brasília era formada, basi-
camente, por assentamentos e acampamentos improvisados, isto
é, se estruturava como uma cidade de operários com um projeto
comum. A imagem da colmeia, aqui, é atraente. É incapaz, no en-
tanto, de revelar a diversidade cotidiana. Serventes, carpinteiros,
pedreiros, armadores de concreto, cozinheiros, apontadores, en-
tre outros profissionais, compunham o mundo do trabalho hie-
rárquico, controlado e vigiado pelas empreiteiras. Como Brasília
tinha data para ser inaugurada, o cotidiano deveria ser subme-
tido ao rígido controle do tempo produtivo. Experiência muito
diferente daquela da nata burocrática que ocupou confortáveis
apartamentos, com salários duplicados, a título de incentivo para
transferir-se para a capital federal.
Em 2012, no âmbito de um programa disciplinar sobre
geografia urbana, um grupo de alunos desenvolveu um estudo
sobre a invisibilidade dos sujeitos sociais na cidade. O foco foi a
visibilidade dos garis que trabalham nos caminhões coletores de
lixo no período noturno. A narrativa que é divulgada na impren-
sa é aquela do desgaste físico da atividade, uma vez que são quilô-
metros percorridos por dia. Um dos garis relatou uma situação da
vida privada que merece registro, em função da sua relação com
o trabalho, de maneira particular, e com a cidade, de maneira ge-
ral. Durante a entrevista, perguntou ao aluno, sem ironia, se este
sabia quantos “banhos” ele haveria de tomar assim que chegasse
em casa, antes das relações conjugais. É difícil não se sensibilizar
com relatos dessa natureza.
É por isso que a experiência do trabalho é determinante
seis modos para a compreensão do cotidiano. A tendência de observar o tra-
de ver a cidade balho como algo abstrato cai por terra quando imaginamos como
122 o labor condiciona o cotidiano. Sennett (2012, p. 25), em A cor-
rosão do caráter, convida o leitor a pensar o regime de flexibili-
dade a partir das consequências para o indivíduo, questionando
valores consagrados como segurança, compromisso, mobilidade
social, identidade de classe. Segundo o autor, é
a dimensão do tempo no novo capitalismo, e não a transmissão
de dados high-tech, os mercados de ações globais ou o livre
comércio que mais diretamente afeta a vida emocional das
pessoas fora do local de trabalho. (2012, p. 25)

A escritora norte-americana Bárbara Enrenreich (2004)


enfrentou o desafio de viver e trabalhar em uma economia ur-
bana fundamentada na flexibilização e precarização do trabalho
e da moradia. Vivenciou a dimensão do tempo assinalada por
Sennett. Seu cotidiano, organizado entre trabalhos de faxineira,
atendente e vendedora, determinou sua maneira de morar e sua
nutrição. A escolha da moradia dependeu de uma equação entre
proximidade dos locais de trabalho, valor da hora trabalhada e
valor da locação. A moradia em quarto de hotel ou a dormida
em carros é uma aventura partilhada diariamente com milhares
de norte-americanos. Em Key West, relata a escritora, o esta-
cionamento de trailer, opção frequente de moradia, custava 625
dólares por mês, o que força os trabalhadores, mesmo com dois
empregos, a se distanciarem dos locais de trabalho.
Ao que tudo indica, a noção de residência como uma ter-
ritorialidade fixa vem sendo refuncionalizada. Uma reportagem
do Le Monde Diplomatique Brasil (Bréville, 2016) intitulada “A
vida num trailer nos Estados Unidos” revela que vinte milhões de
norte-americanos vivem nessa modalidade habitacional. É quase
o dobro da população de Portugal e pouco menos que metade da
população da Espanha. A situação é assim resumida:
“O problema não é comprar um trailer, é descobrir um lugar
para instalá-lo”, adverte um empregado da loja Clayton Homes,
a primeira a vender “casas pré-fabricadas” nos Estados Unidos.
o cotidiano
A esmagadora maioria das cidades norte-americanas aplica
regras de zoneamento rigorosas, que limitam as possibilidades 123
de instalação em terrenos particulares a alguns setores bem
precisos e já saturados. Como esses alojamentos têm uma
fama de desvalorizar os terrenos próximos, os prefeitos evitam
cuidadosamente sua proliferação. A menos que disponham
a ir para as zonas rurais, muitos proprietários se veem, então,
obrigados a recorrer a parques particulares, que abrigam 12
milhões de norte-americanos. (Bréville, 2016)

Os que imaginam tratar-se de uma opção que remonta ao


romantismo da década de 1970, pautado na busca de liberdade
ou de novos campos de sociabilidade, estão enganados. A posse
de um trailer não livra o proprietário do mercado de locação de
terrenos, que podem variar, a depender do pátio de estaciona-
mento, de 150 a 500 dólares mensais.
Há uma correspondência entre o trabalho precário, a mo-
radia precária e as privações cotidianas. A realidade da moradia
precária é disseminada nos Estados Unidos, com maior ênfase nos
estados da Califórnia, Colorado, Pensilvânia, Texas e Washington.
Os relatos de Rolnik (2015), não fosse pela arguta análise, pode-
riam se encaixar, perfeitamente, nas crônicas do século XIX que re-
tratam Paris ou Londres. Ao citar o caso de Pacoima, uma quase ci-
dade fantasma próxima de Los Angeles, Rolnik (2015, p. 23) relata:
No final de uma rua, num velho SUV transformado em casa,
Roger, Mary e seus dois filhos, um de 6 e outro de 8 anos,
cozinhavam macarrão em um fogareiro improvisado: “Perdemos
nossa casa e simplesmente não temos para onde ir”.

A chamada crise das hipotecas, sem precedentes históri-


cos, levou uma parcela da população norte-americana para as
ruas, não para protestar, mas para morar. Michael Lewis (2011) é
o autor do livro The big short, que deu origem ao filme A grande
aposta, ganhador do Oscar de melhor roteiro adaptado. O livro,
assim como o filme, narra os acontecimentos envolvendo a cri-
seis modos se do chamado mercado subprime (crédito de risco). O relato de
de ver a cidade Steve Eisman ilustra como a crise afetaria o cotidiano das cama-
124 das trabalhadoras e médias norte-americanas.
Um dia, a empregada sul-americana de Eisman o procurou
para dizer que estava planejando comprar uma casa em um
condomínio no bairro do Queens. “O preço era absurdo, e
ofereceram a ela uma hipoteca de taxa ajustável e sem pagamento
antecipado”, afirma Eisman, que a convenceu a fazer uma
hipoteca convencional com taxa fixa. Logo depois, a enfermeira
contratada para cuidar de suas filhas gêmeas em 2003 ligou para
ele. “Ela era uma jamaicana simpática”, disse Eisman. “Ela me
disse que ela e a irmã eram proprietárias de seis casas no Queens.
‘Corinne, como isso aconteceu?’, perguntei.” Aconteceu, porque
depois de comprarem a primeira casa e o valor da propriedade
aumentar, os credores sugeriram que elas refinanciassem o
imóvel e ficassem com US$ 250 mil em dinheiro, que elas usaram
para comprar outra casa. (Lewis, 2011, p. 127)

A triangulação não é de fácil entendimento e o filme não


facilita a compreensão, dada a rapidez dos diálogos. O negócio
funcionou assim. Não havia garantia para os empréstimos hipo-
tecários, uma vez que o próprio imóvel constituía a garantia, o
que atraiu uma miríade de clientes com potencial inadimplente.
A crescente valorização dos imóveis dava a ideia, artificial, de em-
poderamento aos quase proprietários que possuíam uma, duas,
três ou cinco hipotecas. O estímulo para assinaturas de contratos
pós-fixados (taxas variáveis) fechava a ciranda. Tudo funciona-
va bem até o preço dos imóveis cair e os juros subirem, tendo
como resultado a generalizada situação de inadimplência, segui-
da da inevitável execução hipotecária. No filme A grande aposta,
Eisman, interpretado por Steve Carell, investiga os sintomas do
mercado imobiliário para comprovar a hipótese de que o sistema
entraria em colapso. Com o auxílio de uma corretora de imóveis,
visita bairros abandonados, com preços em declínio e habitados
por pessoas desempregadas. Entrevista corretores hipotecários
orgulhosos das bonificações e chega na ponta da cadeia produti-
va no diálogo com uma stripper que se diz proprietária de cinco
casas e um apartamento, muito embora, ao que tudo indica, não o cotidiano

tenha noção da diferença entre o que seja uma proprietária e uma 125
mutuária endividada. O bem imóvel é tão alienado quanto sua
pseudoproprietária.
Donos de tudo. Donos de nada. A crise hipotecária apenas
reforçou a crise habitacional norte-americana, levando as pessoas
a buscar alternativas para moradia, dentre as quais ruas, bosques
e praças. Apenas na Califórnia, Hunter et al. (2014) registraram
treze assentamentos caracterizados como tent cities, ou cidades
de tendas. Em comum uma paisagem formada por barracas de
lona ou plástico, em áreas públicas, às margens de rios ou em
bosques e parques. A política de despejos, juros e execuções hi-
potecárias piorou esse cenário. Trata-se de cidades nômades,
formadas por uma legião cada vez maior de sem-tetos, que mais
lembram a tradicional floresta de Sherwood, onde Robin Hood
desafiava a aristocracia inglesa. O que distingue as situações é a
ausência do frade gordo, agora substituído por pastores a tentar
convencer suas ovelhas dos desígnios do Senhor.
Situação correlata também é registrada em Buenos Aires.
Em tempos de desemprego, inflação galopante e generalização da
pobreza, a rua transformou-se em refúgio para aqueles que per-
deram empregos e, portanto, não conseguem mais saldar as dívi-
das do aluguel. A solução para a ausência de renda, como aconte-
ce em várias cidades do planeta, é a locação de imóveis precários
ou, em último caso, a moradia nas ruas. Paisagem social igual é
registrada em cidades brasileiras como Goiânia, Recife, Belo Ho-
rizonte e São Paulo. O Censo da População em Situação de Rua
da Cidade de São Paulo contabilizou 15.905 pessoas nessa situa-
ção em 2015 (Fundação..., 2015). Para fins comparativos, mais
de trezentas cidades do estado de São Paulo registraram popu-
lação inferior a quinze mil habitantes em 2010 (Brasil, 2010). Já
em Nova York, estudo divulgado pela organização Coalition for
the Homeless apontou a existência de 59.568 pessoas vivendo nas
seis modos ruas da Big Apple em 2015 (Coalition..., 2016). Em 2005, o núme-
de ver a cidade ro era de 35.505 pessoas. Do total de sem-tetos em 2015, 23.858
126 eram crianças. O estudo compara essa situação à paisagem social
registrada na Grande Depressão, na década de 1930. O novo in-
grediente, mais perverso, é o crescimento da população de rua
com transtornos mentais, resultado da ausência ou inoperância
das políticas de assistência social. À luz das comparações objeti-
vas, nem sempre exatas, a população em situação de rua em São
Paulo é inferior àquela registrada em Nova York. Considerando­
‑se os dados do censo dos Estados Unidos (City-Data, 2016), a
população nova-iorquina, em 2014, era de 8.791.079 habitantes e
a de São Paulo, em 2015, de 11.964.825.
A partir dos dados sobre os sem-teto, é possível calcular a
proporção por habitante em cada uma dessas cidades. Em Nova
York, há um sem-teto para cada 142 habitantes e, em São Paulo,
um para cada 752 habitantes. Seria pertinente, ainda, considerar
a densidade populacional, já que a capital paulista tem o dobro
da área da cidade de Nova York. As opções para invisibilidade,
nesse caso, aumentam. Na metrópole norte-americana, seria ne-
cessário ainda compreender a distribuição dos sem-teto nos cin-
co distritos tradicionais (Bronx, Brooklyn, Manhattan, Queens e
Staten Island). Outro componente para a compreensão do coti-
diano seria o clima, pois o inverno em Nova York pode regis-
trar temperaturas abaixo de zero. Viver em parques ou calçadas,
transportando pertences em carrinhos de supermercado, ima-
gem frequentemente reproduzida no cinema, é a representação
mais clássica dos sem-teto nas cidades norte-americanas. Não
flanam pela cidade. Não há nada de romântico em seu cotidiano,
marcado pela vulnerabilidade e violência. Sua mobilidade muitas
vezes restringe-se às áreas centrais. Não apenas vivem em espaços
públicos, mas também dos espaços públicos, apostando na visibi-
lidade como estratégia de segurança.
É difícil imaginar, em cidades demasiadamente fragmenta-
das, que a mobilidade e a experiência com os lugares da cidade
ocorra da mesma forma para os distintos grupos sociais. Essa é uma
característica do cotidiano das cidades contemporâneas. Vivencia- o cotidiano

mos, cada vez mais, a cidade por partes. Um bairro ou uma região, 127
em muitos casos, pode resumir o contexto da experiência espacial
de uma pessoa ou de determinado grupo social. No entanto, o que
ocorre no conjunto da cidade ou até mesmo de uma região afeta os
lugares das cidades de maneira sistemática. A política de segurança
pública, por exemplo, responde por ações diferenciadas, a depen-
der da localização dos grupos sociais no espaço urbano.
Assim como existem diferentes formas de morar e de tra-
balhar, também existe uma mobilidade diferencial pautada, fun-
damentalmente, em condições econômicas. A mancha urbana
da aglomeração de Lisboa, no sentido norte-sul, pode ser me-
dida por uma distância, em linha reta, de aproximadamente 10
km. Em Santiago, a mancha da aglomeração urbana, no mesmo
sentido, ultrapassa os 25 km, nada comparado à aglomeração de
Tóquio, cuja mancha urbana, no sentido leste-oeste, ultrapassa
50 km. Em pouco mais de uma hora, um trabalhador desloca-se
das estações de Nischi-Funabaschi e Wakoshi, em pontos extre-
mos da capital japonesa. Percorre todo um sítio urbano, trocando
de linhas e estações de maneira confortável e com pontualidade
(Tokyo Metro, 2016).
O mesmo não se pode dizer a respeito de muitas outras ci-
dades, em que trabalhadores deslocam-se de bicicleta mais de 40
km diariamente, arriscando a vida em vias expressas e rodovias,
para trabalhar na construção civil ou em empregos que exigem
pouca qualificação profissional. A distância entre local de traba-
lho e moradia é uma das formas mais perversas de condiciona-
mento do cotidiano. Nesses casos, as forças que movem o coti-
diano entram em contato direto com as forças que fragmentam o
espaço, uma vez que a oferta e a qualidade das redes de transporte
é seletiva. O deslocamento cotidiano nas aglomerações urbanas,
no entanto, não é variável apenas pela distância física. Depende
da disposição de redes de transporte e, principalmente, de renda,
uma vez que a mobilidade no interior das cidades não é gratui-
seis modos ta. Como ensina o geógrafo Jacques Lévy (2001), a mobilidade
de ver a cidade transformou-se em capital social e, portanto, exige condições téc-
128 nicas, financeiras e até mesmo culturais para sua realização.
No Brasil, segundo pesquisa do IBGE, 5.924.107 pessoas
levam mais de uma hora para se deslocar ao trabalho (Brasil,
2010). Trata-se do primeiro deslocamento, não incluindo o retor-
no, o que torna o dado ainda mais dramático. É comum, especial-
mente nos ambientes metropolitanos, que milhares de pessoas
gastem mais de quatro horas do seu dia apenas em deslocamen-
tos. Outras 4.301.914 pessoas frequentam escolas ou creches fora
do seu município. Os números, quando tratamos de cotidiano,
devem ser qualificados. São seis milhões de sujeitos, diferentes
em idade, gênero e condições motoras, deslocando-se nas cidades
ou de uma cidade para outra diariamente, em movimento adje-
tivado de “pendular”. Tradicionalmente, o movimento pendular
fez par com a ideia de cidade-dormitório. Essa é uma caracterís-
tica global de nossas cidades. Os que mais precisam se locomover
moram mais distantes dos locais de trabalho e, comumente, em
cidades de uma mesma aglomeração urbana.
Gehl (2013) relata que a maior parte dos centros urbanos
agrupa um quilômetro quadrado, o que, na sua argumentação,
facilita o uso, especialmente para caminhadas. Esse padrão, mui-
to embora correto quando se pensa nas áreas centrais das cidades
europeias, ainda reproduz um modelo parecido com aquele da
Idade Média. Uma vez que a cidade concentrava-se em um pe-
queno espaço, o controle do tempo e da circulação era a chave do
modelo de urbanização medieval. Mumford (1998) lembra que,
mesmo nas maiores cidades medievais, a área ocupada não se ex-
pandia em faixa superior a 800 m a partir do centro. A dispersão
das atividades da vida cotidiana e a valorização imobiliária em-
purraram para a periferia uma parte significativa da população
urbana do planeta, agora não mais separada por muros físicos. A
história das cidades contemporâneas é a história do rompimento
do frágil equilíbrio entre centralidade (capacidade de aglomerar
serviços e bens de consumo em um determinado espaço) e mo-
bilidade (condições de deslocamento para acessar as centralida-
des). O sociólogo Patrick Geddes (1994) percebeu esse processo o cotidiano

quando cunhou o termo conurbação. 129


É na dialética entre tensão e contemplação diante das for-
mas urbanas que o cotidiano da cidade se revela. Também existe
uma perspectiva contemplativa no cotidiano urbano, resultado
de um tipo de negação voluntária e/ou involuntária do tempo
produtivo hegemônico. O flâneur, a rigor, não negava o tempo
produtivo, uma vez que foi produto da própria modernidade.
Seus deslocamentos, antes de tudo, parecem ser autorretratos de
poetas e escritores que flanavam pelas ruas de cidades como Paris
e Londres, as quais, progressivamente, deixavam o odor medieval
para trás. É difícil pensar que alguém pudesse flanar nas ruas es-
curas e lamacentas das cidades medievais. Balzac, como é sabido,
tinha um cotidiano frenético para saldar suas dívidas em uma
Paris que já passava por inúmeras transformações urbanas. O es-
critor compartilha com seus leitores uma detalhada cartografia
da fisionomia parisiense.
Essas observações incompreensíveis fora de Paris serão, sem
dúvida, compreendidas por esses homens de estudo e pensa­
mento, de poesia e prazer, que sabem colher, flanando por Paris,
os íntimos prazeres que flutuam a qualquer hora entre as suas
muralhas; por aqueles que veem em Paris o mais delicioso dos
monstros: aqui, mulher bonita, mais longe, velha e feia; lá, nova
em folha como a moeda do reino; neste recanto, elegante como
uma mulher da moda. Monstro completo, aliás. Suas águas-
furtadas são-lhe a cabeça cheia de ciência e de gênio; os primeiros
andares, estômagos felizes; suas lojas, verdadeiros pés; deles saem
todos os transeuntes e todos ocupados. (Balzac, 2013a, p. 41)

Assim como Balzac, Dickens era obcecado pelas cenas ur-


banas, como se verifica em Retratos londrinos. Os dois escritores
ocuparam-se em elaborar uma espécie de crônica cotidiana dos
tipos urbanos que povoaram Londres e Paris no século XIX.
O realismo dos cronistas urbanos do século XIX contrasta
com a perspectiva contemplativa e ficcionista, mirada nos deta-
seis modos lhes, de Marcovaldo, personagem de Calvino, que consegue en-
de ver a cidade tender como poucos a mecânica oculta da cidade. No início de
130 suas incursões pela cidade, encontramos essa caracterização:

Esse Marcovaldo tinha um olho pouco adequado para a vida da A ilustração, de
cidade: avisos, semáforos, vitrines, letreiros luminosos, cartazes, Gustave Doré, retrata
uma rua de Londres
por mais estudados que fosse para atrair a atenção, jamais em 1872. O francês
detinham seu olhar, que parecia perder-se nas areias do deserto. ocupou-se em formar
um catálogo de
Já uma folha amarelando num ramo, uma pena que se deixasse
retratos da Londres
prender numa telha, não lhe escapavam nunca: não havia mosca vitoriana. Em destaque,
no dorso de um cavalo, buraco de cupim na mesa, casta de figo na Dudley Street,
crianças brotam dos
se desfazendo na calçada que Marcovaldo não observasse e porões.
comentasse, descobrindo nas mudanças da estação, seus desejos Fonte: Doré ([201‑]).
mais íntimos e as misérias de sua existência. (Calvino, 1994, p. 7)

Marcovaldo representa o homem ordinário constantemen-


te submetido às pressões do cotidiano. Sua ingenuidade asseme-
lha-se àquela da personagem de Mazzaropi no filme Chico Fuma- o cotidiano

ça. No quarto de hotel do Rio de Janeiro, avesso às bajulações, é 131


perguntado pelo prefeito que o acompanha na viagem: “Você já
ouviu falar das noites do Rio de Janeiro?” O matuto responde:
“Não. Mas deve ser igual às noites de Jequitibá. Noite é noite em
qualquer lugar”. Seu estranhamento diante da forma da cidade só
não é maior que seu estranhamento diante do cotidiano urbano,
do ritmo carioca, mais veloz que aquele de Jequitibá.
Cada lugar demanda um tipo de estratégia cotidiana para a
reprodução da vida, mas nem todos contemplam a cidade com a
mesma persistência e riqueza de detalhes que Marcovaldo. Para um
morador do antigo subúrbio norte-americano da década de 1950
como Frank, interpretado por Leonardo Di Caprio em Foi apenas
um sonho, a rotina parece previsível, programada. Café da manhã.
Deslocamento da casa no subúrbio, em Connecticut, para a estação
no seu Buick. De trem para o trabalho em um escritório localiza-
do no 15º andar de um edifício em Nova York. No retorno, à sua
espera, a linda e melancólica April, interpretada por Kate Winslet.
Nem mesmo a ampla casa branca de dois pisos, com jardim e o tra-
dicional latão de lixo, é capaz de amenizar as dores do papel social
reservado à esposa no ideal suburbano norte-americano dos anos
1950. A ficção resultou da adaptação de livro homônimo do escri-
tor Richard Yates. Mumford (1963, p. 306), no mesmo período em
que o filme é ambientado, escreveu um texto que reafirma o papel
reservado à mulher na vida suburbana norte-americana:
Al usar el automóvil para huir de la metrópoli, el automovilista
siente que sólo ha transferido la congestión a la carretera, y por
ende la ha duplicado. Cuando llega a su destino en un suburbio
distante, encuentra que la campiña que buscó ha desaparecido;
más allá de él, gracias a los caminos para automóviles, sólo hay
otro suburbio, tan triste como el suyo. Para tener um mínimo de
comunicación y sociabilidad en esta vida dispersa, su esposa tiene
que convertirse en un chofer de taxi como ocupación diária […].
(Grifo nosso)

seis modos Diferente é o cotidiano de um morador em uma das favelas


de ver a cidade do distrito de Tongo, em Manila, capital das Filipinas, cujo des-
132 locamento para o trabalho, quando esse existir, tomará horas do
seu dia, em condições físicas desgastantes. No fim do dia, mais
próximo da noite, enfrentará os becos escuros e ruas com esgoto
a céu aberto, sabendo que, no próximo dia, tudo se repetirá. Já o
cotidiano dos moradores da favela de San Juan, acomodada entre
a baía de Manila e os meandros do rio Pasig, um dos mais poluí-
dos do mundo, responde ao ordenamento diário das marés e aos
sucessivos movimentos de deposição do lixo urbano.
Poucos relatos cotidianos são, no entanto, tão assustadores
quanto aquele encontrado no relatório da Organização das Na-
ções Unidas (ONU) “The Right to Water” (“O direito à água”),
publicado em 2010 (United Nations..., 2010). Um box inserido
na página 20 traduz duas reclamações recorrentes dos moradores
de Kibera, em Nairóbi, capital do Quênia: o descarte de dejetos
humanos em sacos plásticos lançados nos becos e a violência a
que as mulheres são submetidas, cotidianamente, no momento
de suas necessidades fisiológicas. A estratégia para evitar a ex-
posição e consequente vulnerabilidade passa por tentar regular
o relógio fisiológico ou mesmo sair em grupos, à cata de latrinas.
Não há melhor exemplo de como a forma, a disposição de in-
fraestrutura, resulta não apenas na violação da intimidade, mas
em uma violência cotidiana de gênero. Essas condições sanitárias
remetem ao período medieval, quando era comum o descarte
de dejetos humanos na rua. Colaborou para isso, segundo Kelly
(2011, p. 93), a generalização dos penicos no meio urbano.
O maior poluente urbano provavelmente era o penico cheio.
Ninguém queria descer um ou dois lances de escada, prin­
cipalmente em uma noite fria e chuvosa. Então, na maioria
das cidades, os citadinos medievais abriam as janelas, gritavam
“Cuidado aí embaixo!” três vezes e torciam pelo melhor.

Nos centros urbanos de hoje, entre as inúmeras preocu-


pações dos pedestres, não consta aquela de ser atingido por um
saco de bosta, muito embora pisar nos detritos de cachorros e
gatos seja comum. Os atropelamentos por veículos automotores, o cotidiano

certamente, exigem mais atenção e fazem mais vítimas do que 133


na Paris de Baudelaire, que reclamava das carruagens. Apenas as
vias urbanas do Distrito Federal acumularam, entre 1995 e 2012,
2.903 mortes decorrentes de acidentes; isso sem contarmos o nú-
mero de vítimas não fatais (Acidentes..., [201-]). Não há nada que
mate mais nas cidades brasileiras que os acidentes envolvendo
veículos automotivos.
A análise do cotidiano nos ajuda a compreender as tensões
da vida. O ritmo frenético da cidade é traduzido em um repertó-
rio de conflitos individuais e coletivos. O encontro, nem sempre,
é festa. No filme Crash, ambientado em Los Angeles, os encontros
são povoados por tensões em uma cidade marcada pelo multicul-
turalismo. O censo norte-americano apontou, para Los Angeles,
49,3% de hispanos, 11,2% de asiáticos e 8,6% de negros (City-Da-
ta, 2016). Latinos, chineses, iranianos, brancos e negros formam
o caldo cultural de uma cidade em constante conflito cotidiano e
institucional. Violência policial, de gênero e étnica aparece como
flashes recorrentes. O medo do encontro, naquele cotidiano, é um
dos motores da intolerância.
O cotidiano urbano também é permeado por códigos.
Existem códigos normativos que, a exemplo dos códigos de pos-
turas municipais, regulam a forma de uso e ocupação do espaço.
O recuo e o gabarito dos edifícios, a dimensão das calçadas ou
mesmo a utilização das fachadas para propaganda são regula-
mentadas em diversas cidades. O fato de a lei existir, no entanto,
não garante conformidade a ela. Existem outros tipos de códigos
de conduta, como a obediência a faixas de pedestres e semáforos,
que mudaram ao longo dos tempos. A própria mutação na fun-
cionalidade das calçadas, como espaço de transição entre a casa
privada e a rua, demonstra as mudanças nas normas sociais. É
difícil pensar em sua generalização em cidades com ruas tortas
e vielas, ocupadas por passantes, como na Idade Média ou nas
cidades coloniais brasileiras.
seis modos A invenção, assimilação ou mesmo comunhão dos códigos
de ver a cidade públicos de conduta tornou-se uma das principais características
134 das cidades. Em algum lugar da história da cidade, os espaços

públicos surgiram como forma de se fazer ver e ouvir. Sennett A liteira, espécie de
carruagem sustentada
(2012, p. 103) argumenta que o encontro, nas cidades do século por escravos, era
XIX, deixou de ser verbal para ser visual: “o olho tomou conta comum na paisagem
urbana de algumas
da voz”. A aventura visual passa a ser possível em uma cidade cidades brasileiras
cada vez mais aberta, iluminada, fluida, que se oferece ao público no século XIX. Uma
maneira, certamente,
para a observação e, ao mesmo tempo, observa, vigia esse mes- de demonstrar
mo público. Os códigos e os rituais dessa cidade que anunciaram prestígio social e, ao
mesmo tempo, de
a modernidade criaram um tipo específico de civilidade. Esta, se resguardar das
ruas lamacentas e
como ensina Sennett (1997), implica forjar laços sociais, mesmo empoeiradas. A foto
quando consideramos os outros como estranhos, fato comum nas retrata o cotidiano de
escravos transportando
grandes aglomerações urbanas do século XIX. A grande cidade uma senhora branca
oferece refúgio. A multidão, anonimato. O espaço público, segu- em Salvador, em 1860.
Fonte: Senhora...
rança. Em certa medida, a história da cidade pode ser contada a ([20--]).
partir das mutações no espaço público.
Em primeiro lugar, o espaço público exige uma materiali-
dade, uma concretude, um sítio de realização dos rituais indivi- o cotidiano

duais e coletivos que têm, como característica comum, a publici- 135


dade. Em segundo lugar, esse espaço, demarcado pelas práticas
cotidianas diferenciadas, é preenchido por determinados códigos
sociais e um conjunto de normas, mesmo que aparentemente iso-
nômicas. A materialidade e os códigos sociais oferecem uma “in-
contornável dimensão espacial do fato político” (Gomes, 2012, p.
20). A própria delimitação de um espaço público é, por definição,
um ato político.
Cada atividade conforma uma espacialidade específi-
ca, permitindo o maior ou menor grau de visibilidade. O lazer
nas áreas públicas, certamente, confere maior visibilidade que o
trabalho em um edifício privado. No cotidiano urbano o lazer
adquiriu importância singular, justamente por traduzir normas
gerais de uma cultura, condições materiais de determinada so-
ciedade e gostos individuais. As atividades de lazer também re-
funcionalizam os espaços da cidade, uma vez que a relação entre
cidade e lazer é antiga e pode ser interpretada a partir das muta-
ções no que chamamos de rua. Não é sem razão que, no Brasil
interiorano, rua seja sinônimo de cidade. Ir à rua, nos finais de se-
mana, significava participar de atividades religiosas e festejos. Na
rua, local da festa, o profano e o sagrado convivem. É o lugar das
trocas simbólicas, do pequeno varejo, dos secos e molhados, dos
pequenos rituais e das grandes demonstrações de poder. Lugar de
exposição. Falar da rua é, sempre, falar dos tipos que a povoam,
que a ocupam durante as horas do dia e da noite. A história da
cidade pode ser contada a partir da polifuncionalidade da rua,
muito embora a ideia de rua como espaço de locomoção automo-
tiva seja predominante na modernidade. A cidade é o espelho da
sociedade, assim como a rua é o espelho da cidade.
Dois livros da primeira metade do século XX descrevem
os tipos humanos que povoavam as ruas do Rio de Janeiro e do
Recife: O Rio de Janeiro do meu tempo, de Luiz Edmundo (1957),
seis modos e Guia prático histórico e sentimental da cidade do Recife, de Gil-
de ver a cidade berto Freyre (1961), dão conta de personagens ícones de cada ci-
136 dade, que, ao mesmo tempo, refletem o grau de desenvolvimento
das forças econômicas da sociedade brasileira nos dois primei-
ros quartéis do século XX. Edmundo cita vendedores de carvão,
de aves, peixes e camarão, além de sorveteiros e leiteiros, sem se
esquecer da preta baiana e dos acendedores de lampiões. Freyre
recorda os jangadeiros, os pescadores, as negras da tapioca, os
homens caranguejos, os vendedores de frutas e os sineiros. São
tipos populares encontrados com frequência na paisagem social
da cidade. Esses tipos, a cada período histórico, desapareceram
com as sucessivas ondas de modernização, deixando um ar de
nostalgia nas cidades. Onde foram parar os lambe-lambes que,
pelo menos até a década de 1980, povoavam as áreas centrais das
grandes cidades brasileiras? Poucos ainda resistem.
A relação entre o cotidiano e crianças e idosos também
não foi explorada a contento nos estudos urbanos. O pronome
possessivo, seja no singular ou no plural, é uma resposta comum
quando um carro atravessa o campo de futebol improvisado nas
ruas, ocupado por crianças. A rua é nossa! A história do cotidiano
mais comum é aquela que trata de um corte etário e de gênero.
Um cotidiano, sobretudo, de homens adultos. O papel das mulhe-
res, por exemplo, é ressaltado no ordenamento da vida privada,
o que exclui, de forma recorrente, seu papel político nas cidades.
As barricadas de Paris testemunharam, em diferentes momentos,
o protagonismo das mulheres. Elas desempenharam papel fun-
damental, marcadamente em Londres, no início do século XIX,
na luta pelo direito ao voto, fato histórico representado no filme
As sufragistas. O pano de fundo é a exploração do trabalho e as
relações de gênero nas fábricas têxteis da capital inglesa.
As crianças sempre povoaram as ruas das cidades. É pos-
sível, inclusive, que sua relação com o tempo, nos últimos dois
séculos, tenha mudado mais radicalmente que a dos adultos.
Algumas questões podem explicar a relação das crianças com
as ruas nas cidades do século XIX. As condições insalubres das
residências densamente povoadas, o trabalho nas oficinas, fábri- o cotidiano

cas e minas, além da ausência de escolas para as classes operárias 137


possivelmente empurraram as crianças para as ruas das grandes
cidades nesse período. O tempo da criança contemporânea é
marcado, geralmente, pelo calendário escolar e pela oferta de lu-
gares públicos para atividades de lazer, o que o distingue daquele
tempo representado, por exemplo, pelo órfão Oliver Twist, perso-
nagem central de Dickens (2002). A vida de Oliver, com todos os
percalços de um órfão que é iniciado com brutalidade nos ofícios
insalubres, assim como na economia dos furtos, é tão chocante
quanto o cotidiano das crianças nas manufaturas inglesas descri-
tas por Karl Marx (1994, p. 360):
A manufatura de fósforos data de 1833, quando se inventou o
processo de aplicar o fósforo ao próprio palito. Desde 1845
desenvolveu-se rapidamente na Inglaterra, espalhando-se
das zonas mais populosas de Londres nomeadamente para
Manchester, Birmingham, Liverpool, Bristol, Norwich, Newcastle
e Glasgow e junto com ela o trismo, que, segundo a descoberta
de um médico de Viena já em 1845, é doença peculiar dos
produtores de fósforos. A metade dos trabalhadores são crianças
com menos de 13 anos e jovens com menos de 18. A manufatura
é tão mal-afamada, por ser insalubre e repugnante, que somente
a parte mais degradada da classe trabalhadora, viúvas famintas,
entre outras, cede-lhe crianças, crianças esfarrapadas, meio
famintas, totalmente desamparadas e não educadas.

As mutações na rua, na forma e nos modos de ocupação


pelos diferentes grupos sociais são correlatas às mutações nas for-
mas de expor os corpos na cidade. A exposição expressa prestígio
social e necessidade de adequação à moda, o que explica as trans-
ferências de hábitos próprios das cidades europeias do século
XIX para as cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Para Sennett (1997, p. 17), “obviamente, as relações entre os cor-
pos humanos no espaço é que determinam suas reações mútuas,
como se veem e se ouvem, como se tocam ou se distanciam”.
seis modos Sentimento semelhante ao das ruas é aquele que construí-
de ver a cidade mos em relação às praças, locais públicos por excelência. Enquan-
138 to a rua anuncia o movimento, a praça renuncia a ele. Essa for-
ma arquitetônica acompanhou o desenvolvimento das cidades.
A ágora, na Grécia Clássica, é lembrada como espaço reservado
à manifestação da opinião pública. Situava-se, em comparação
à Acrópole, nas áreas baixas. Como local público permitia a vi-
sibilidade. Já a praça, na Idade Média, favorecia o encontro em
duas escalas espaciais. A primeira era a da própria cidade, em
encontros casuais e rotineiros, ou mesmo programados pelos ca-
lendários festivos e religiosos. A segunda era a escala do campo.
É também a partir da praça, segundo Le Goff (2000, p. 206), que
o “mundo camponês penetra na cidade”. A maior função da pra-
ça refere-se ao comércio, seja no mercado ou nas feiras, sejam
elas permanentes ou temporárias. A Place de Grève, localizada
às margens do rio Sena, importante local de contato, demonstra
esse fato histórico. Esse quadro de contatos cotidianos para o co-
mércio de mercadorias é o que explica a expressão “nome sujo
na praça”, forma utilizada para denunciar práticas de calote no
comércio urbano.
Mas a experiência com os espaços públicos não é condi-
cionada apenas pela forma urbana. Os medos produzidos pela
sociedade influenciam sobremaneira as formas contemporâneas
de deslocamento e ocupação do espaço urbano. Também são
componentes da valorização imobiliária. Souza (2008) cunhou o
termo “fobópole” com o propósito de caracterizar cidades cuja
população vive, constantemente, sob o medo da violência ou com
sensação de insegurança. Bauman (2009, p. 63), por sua vez, afir-
ma que a “arquitetura do medo e da intimidação espalha-se pelos
espaços públicos das cidades”. O autor cita, a partir do relato de
Nan Ellin, os engenhos à prova de mendigos que povoam as ci-
dades norte-americanas. Nas cidades brasileiras, em locais que
poderiam oferecer abrigo do sol e da chuva, é comum a instalação
de pinos de ferro, alinhados verticalmente, para perfurar qual-
quer um que se atreva a se proteger do calor ou do frio.
Em As prisões da miséria, Loïc Wacquant (2001) relata que o cotidiano

uma das justificativas das elites para apoiar a chamada “tolerân- 139
cia zero” ancorou-se na ideia de “recuperar” os espaços públicos,
excluindo a legião de indesejados. A gentrificação, no caso de
Nova York, fez par com a criminalização da miséria, alterando
o cotidiano da cidade. A retomada das áreas centrais das cidades
pressupôs o entendimento de um direito nato, como se, histori-
camente, tais áreas fossem reservadas apenas para as elites locais
e globais. Há, na verdade, uma luta silenciosa pelos espaços cen-
trais que opera entre o mercado imobiliário em associação com o
Estado, de um lado, e grupos sociais excluídos, de outro. Espaços
com vantagens locacionais não podem ser ocupados por grupos
sociais marginalizados, afinal quem duvidaria que o interesse
imobiliário coordena o processo de reformulação das áreas cen-
trais de Nova York ou de São Paulo?
Essa sensação de insegurança ainda pode, no caso de vá-
rias cidades, ser acrescida de um cotidiano de medo produzido
pelo terrorismo. Um cotidiano parecido com aquele das cidades
envoltas nas batalhas dos cruzados do século XII. Tomada ora
por muçulmanos, ora por católicos, Jerusalém, como outras cida-
des do Vale do Jordão, permaneceu sitiada por longos períodos.
As cidades contemporâneas, na condição de espaços públicos que
abrigam os ícones da engenharia urbana, também convivem com
um cotidiano de tensão. São constantemente ameaçadas ou até
mesmo atingidas por atentados terroristas, a exemplo de Nova
York, Londres, Boston e, mais recentemente, Paris. Se o cotidiano
dessas cidades, em função do terrorismo, é atingido nas veias, o
mesmo ocorre, de forma ainda mais violenta, nas cidades sírias,
para citar um exemplo correlato. Em muitas delas, os conflitos
não são pontuais, mas sistêmicos e perenes. A paisagem de Koba-
ne, pequeno assentamento sírio que não viu sua população che-
gar a setenta mil pessoas, em um sítio localizado no vale do rio
Eufrates, foi totalmente devastada pela guerra civil. Aos olhos da
seis modos guerra não há inocentes. O smog urbano não tem natureza climá-
de ver a cidade tica. É produto da poeira emergente do concreto armado, depois
140 de ser atingido por bombas e artilharia pesada.
Os conflitos armados nas cidades acarretam, sempre, uma
interferência radical na ordem cotidiana. A cada conflito, a cada
ocupação estrangeira, o cotidiano é afetado em várias escalas.
Providência comum, na Paris ocupada durante os anos da Se-
gunda Guerra Mundial, foi a inclusão do idioma alemão nas pla-
cas de sinalização da cidade. O racionamento também foi uma
consequência inevitável, assim como, no caso das cidades bom-
bardeadas, o aniquilamento da infraestrutura urbana. A área cen-
tral de Paris livrou-se das bombas, mais pela desobediência da
linha de comando militar do que pelo desejo de Hitler. Situações
aparentemente banais como o roubo de bicicletas atingiram índi-
ces alarmantes, talvez porque esse veículo não demandasse com-
bustível e não comprometesse, assim, o esforço de guerra. Jones
(2013), citando Paris, aponta que cerca de 22 mil bicicletas foram
roubadas nos primeiros meses da ocupação. A evolução do rou-
bo, igualmente registrado em cidades como Roma e Amsterdã, é
um sintoma das restrições da mobilidade cotidiana em tempos
de guerra.
A história contemporânea de cidades como Berlim, Tó-
quio, Londres, Stalingrado e Bagdá enquadra-se no exemplo de
reconfiguração do espaço urbano provocada pela guerra. A Se-
gunda Guerra Mundial teve uma epiderme, inegavelmente, urba-
na. Os conflitos destruíram várias cidades francesas, polonesas,
inglesas, alemãs, russas etc. Segundo Werth (2015), entre 1942 e
1943 aproximadamente 140 mil alemães morreram em combate,
de fome ou de doenças no conhecido cerco de Stalingrado. No
rigoroso inverno russo, anunciado pelo congelamento do rio Vol-
ga, não restou outra opção para os combatentes de Hitler, antes
da rendição, a não ser incluir no seu cardápio diário gatos, cães e
cavalos (Werth, 2015). A 1.600 km a noroeste de Stalingrado, nos
Bálcãs, outra cidade russa resistiria ao cerco alemão por quase
três anos: Leningrado, atual São Petersburgo. Vallaud (2012) es-
tima em um milhão o número de mortes durante o cerco, sendo o cotidiano

oitocentas mil resultantes da associação entre fome e frio. 141



Aleppo é uma cidade O cerco respondeu por uma estratégia de Hitler no âmbito
localizada na Síria.
A cidade, uma das da Operação Barbarossa: aniquilar a infraestrutura, impedir a en-
mais povoadas do trada de víveres, amedrontar a população e vê-la, vagarosamen-
país, assistiu a um
intenso processo te, perecer diante de temperaturas que chegaram a insuportáveis
de esvaziamento,
provocado pelos
trinta graus Celsius negativos. O esforço cotidiano descomunal
conflitos armados. Seu para se aquecer e se alimentar implicou a busca cotidiana de
cotidiano é refém, por
um lado, do Estado madeira e comida. A utilização de carne de animais domésticos,
Islâmico e, por outro, como cães e gatos, além de roedores e cavalos atingidos pela arti-
das forças contrárias
que povoam a cidade lharia ou até mesmo de animais do zoológico, foi prática comum
de bombas.
Foto: Gabriel Chaim,
nos piores tempos do cerco. Mas o pior, registrado por Vallaud
2015. (2012, p. 161), foi uma espécie de canibalismo conjuntural, puni-
do com mão de ferro pelo regime stalinista.
Nos seis meses seguintes ao final do ano de 1941, a polícia
prendeu cerca de 2 mil pessoas por terem consumido carne
seis modos humana. Vasili Yerchov, oficial em ação no sul de Leningrado,
de ver a cidade
relata o caso dos médicos que não hesitaram em consumir
142 membros amputados de seus pacientes. Outros assassinam suas
vítimas para devorá-las. Há bandos que fazem comércio desse
alimento um pouco particular. Os fornecedores? Os coveiros,
mas também verdadeiros “caçadores” humanos que matam para
cortar em pedaços e revender.

Os conflitos em tempos de guerra também nos fazem lem-


brar como a ordem cotidiana urbana é afetada por um intenso
processo de segregação espacial envolvendo grupos minoritários.
O tratamento dispensado aos judeus, seja nos guetos de Berlim,
seja nas cidades ocupadas, é um exemplo clássico de como a
guerra impõe duras restrições ao cotidiano. O direito de ir e vir,
de frequentar e permanecer nos espaços públicos foi, no caso dos
judeus, progressivamente restrito. O conhecido diário de Anne
Frank (2016), escrito entre junho de 1942 e agosto de 1944, é um
dos relatos mais comoventes dessas restrições. Em seu Anexo Se-
creto, na região central de Amsterdã, Anne, ainda sem completar
catorze anos, enxerga as progressivas restrições ao povo judeu.
No registro de 20 de junho de 1942, antes, portanto, de se reco-
lher para o exílio no Anexo Secreto, ela escreve:
[...] os judeus deveriam usar uma estrela amarela; os judeus
eram proibidos de andar nos bondes; os judeus eram proibidos
de andar de carro, mesmo em seus próprios carros; os judeus
deveriam fazer suas compras entre três e cinco horas da tarde
[...]. Você não podia fazer isso nem aquilo, mas a vida continuava.
(Frank, 2016, p. 18)

Os ambientes de conflitos militares em cidades ocupadas


na contemporaneidade também geram segregação espacial e con-
sequente fragmentação do tecido urbano, o que resulta, até mes-
mo, em interferência direta na soberania estatal. A Zona Verde,
em Bagdá, é um exemplo notório. Segundo Marozzi (2014), ela é
considerada, desde 2003, uma “Pequena América”, ocupada por
forças militares, empreiteiros e toda a gama da burocracia externa
alojada em um espaço de 15 Km², afastados da então Zona Ver-
melha, que inclui os demais fragmentos de Bagdá. A Zona Verde, o cotidiano

pode-se dizer, era uma espécie de Guantánamo às avessas. O au- 143


tor narra um episódio ilustrativo de como o cotidiano nesse lugar
estava deslocado do cotidiano da cidade:
O que acontecia dentro da Zona Verde tinha muito pouco a ver
com o que estava acontecendo do lado de fora. Quando tiros de
metralhadora explodiram numa noite abafada de maio de 2004,
funcionários da CPA que bebiam à beira da piscina acharam
que insurgentes estavam invadindo a Zona Verde e fugiram,
em pânico, para o porão reforçado do palácio, em busca de
segurança. O barulho eram tiros comemorativos. O time de
futebol iraquiano tinha acabado de vencer a Arábia Saudita
por 3 x 1 num jogo crítico, garantindo assim um lugar nas
Olimpíadas. (Marozzi, 2014, p. 416)

É nesse cotidiano, entre conflitos urbanos locais e interes-


ses geopolíticos globais, que muitas cidades conviveram e con-
vivem diariamente com o medo. A sinergia entre as escalas do
medo, territorializadas na cidade, é característica daquilo que
Stephen Graham (2016, p. 26) classificou como novo urbanismo
militar:
A transição entre o uso militar e civil da tecnologia avançada
– entre a vigilância e o controle de vida cotidiana nas cidades
ocidentais e as agressivas guerras de colonização e recursos –
está no cerne de um conjunto muito mais amplo de tendências
que caracteriza o urbanismo militar.

O controle da cidade, nesse tempo do urbanismo militar,


responde por um conjunto de estratégias alimentadas pelas novas
tecnologias de vigilância e registro instantâneo de dados. A esca-
la doméstica passa a ser permeada pelos interesses geopolíticos
internacionais com franca participação da indústria bélica. Não
parece exagero, pelo ângulo do urbanismo militar, o frenético
cotidiano, em Los Angeles, do agente Jack Bauer, no seriado 24
Horas. Bauer se utiliza dos insumos tecnológicos centralizados na
seis modos UCT (Counter Terrorist Unit). Fora da ficção, o Bureau of Coun-
de ver a cidade ter terrorism and Countering Violent Extremism (Departamen-
144 to Contra Terrorismo e Combate ao Extremismo Violento), cuja
origem remonta ao ano de 1972, após os eventos de terrorismo
nos Jogos Olímpicos de Munique, está vinculado ao Departa-
mento de Estado dos Estados Unidos, estando presente em várias
partes do mundo (U.S. Departament of State, 2016). O potencial
explosivo da urbanização, assim como a demanda pelos sempre
novos modelos de vigilância propiciados pela indústria militar,
exigem, cada vez mais, uma cartografia instantânea cujo foco vai
muito além da proteção contra o terrorismo. Jack Bauer só ven-
ceu com a ajuda da tecnologia.
Nessas situações, o cotidiano é programado por intervalos
da artilharia, pela espera do cessar-fogo ou, simplesmente, como
ocorreu nas cidades ocupadas pelas tropas nazistas, pela espera
de que militares batam à sua porta e vasculhem seus porões. O
espaço público, por dois motivos, foi a primeira vítima dessas
situações. O primeiro é que a materialidade do espaço público,
manifestada pelos locais de reunião e encontro, é frequentemente
destruída. Praças, ginásios, ruas, mercados, são alvos, aleatórios
ou não, dos bombardeios e da artilharia. O segundo motivo é
que a arena política, expressa pela convergência e divergência de
ideias e opiniões sobre a própria vida cotidiana, passa a ser condi-
cionada pela conjuntura política. O que pensaram os parisienses
quando Hitler, em 23 de junho de 1940, regozijou-se para o mun-
do a partir da Champs-Elysées? O que pensaram os parisienses
quando, em 25 de agosto de 1944, Charles de Gaulle, na mesma
Champs-Elysées, celebrou a libertação de Paris? São dois exem-
plos, em curto intervalo de tempo e ocorridos no mesmo espaço,
de que a cena pública não prescinde da dimensão material do
espaço, mas também de que essa dimensão não é suficiente para
afirmar a natureza política do espaço público.
O espaço público, com seus códigos de conduta, tornou-se
fundamental para a compreensão do cotidiano urbano. É um sítio
genuíno do fazer político. Não é sem razão que Hannah Arendt
(2002) estabeleça que a pluralidade e a convivência entre diferentes o cotidiano

sejam os principais predicados do fazer político. É nelas que se 145


constrói a política. É de onde germina a opinião pública, no exato
sentido atribuído pelo historiador medievalista Le Goff (1998).
É a cena pública que oferece, ao mesmo tempo, visibilidade para
as agendas coletivas e anonimato para as massas que reivindicam
seus direitos. Rolnik (2015, p. 376) declara, analisando a ocupa-
ção dos espaços públicos em uma agenda de sintonia com outros
eventos ao redor do planeta:
Mas, nessas rebeliões contemporâneas, o espaço público – tanto
em seu sentido físico, material, como em sua acepção política
– é mais do que objeto de reivindicação e cenário inerte onde
se desenrolam as batalhas. As “ocupações” – de ruas, praças e
edifícios – vêm se multiplicando nas cidades brasileiras através
de intervenções de coletivos culturais e movimentos sem-teto,
muitas vezes em alianças estratégicas.

Há uma inegável película urbana nas revoluções. Por ve-


zes, derrubar o poder significou lutar pelo controle das grandes
cidades. Isso ocorreu tanto em Praga, durante a ocupação russa,
quanto no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires, no auge dos go-
vernos militares. De fato, o Ato Institucional n° 5, publicado em
13 de dezembro de 1968 (Brasil, 1968), previa, no seu artigo 7°,
a decretação de “estado de sítio”. Esse traço parece atemporal no
desenvolvimento das cidades. Tivesse o julgamento de Sócrates
ocorrido em um recinto fechado, sob o olhar vigilante de uma
confraria qualquer, não teria sido eternizado. Três breves exem-
plos de conflitos urbanos, em períodos históricos distintos, são
suficientes para indicar o potencial transformativo do cotidia-
no urbano.
A Comuna de Paris não foi a primeira experiência de bar-
ricadas testemunhada pelos parisienses. A história da cidade é
densa quando tratamos da valorização da opinião pública, seja
traduzida nas barricadas, nos desenhos de Honoré Daumier ou
seis modos no uso da guilhotina. O objetivo da Comuna, que durou pou-
de ver a cidade co mais de dois meses do ano de 1871, não era simples. Não se
146 tratava mais de uma oposição entre república e monarquia, que

motivara as barricadas anteriores. Tratava-se, sim, de uma revo- Perfil topográfico de
Montmartre, na região
lução sem precedentes históricos que pressupunha a instituciona- norte de Paris, captado
lização de novas formas de produzir e distribuir a riqueza social, pelo Google Earth. O
bairro, situado entre
além de novas formas de participação política. As propostas de as ruas Caulaincourt
autogestão das fábricas e oficinas, de abolição do trabalho notur- e Clignancourt, dista
aproximadamente 3,5
no e de suspensão do pagamento de aluguéis, para nos fixarmos km da Île de la Cité.
É possível observar a
em alguns exemplos, desagradavam tanto os segmentos simpati- elevação do terreno,
zantes da monarquia quanto os segmentos burgueses associados com destaque para a
colina. Nessas áreas
à república. Marx (1999, p. 110), vendo de longe o comportamen- foram instalados,
to dos burgueses diante da Comuna, assim descreveu os eventos segundo Merriman
(2015), 171 canhões, e
da cidade sitiada: outros 74 em Belleville.
Nota: Perfil construído
A Paris para a qual a guerra civil não era senão um divertido pelo autor.
passatempo, a que acompanhava as batalhas por meio de
binóculos, contando os tiros de canhão e jurando por sua própria
honra e a de suas prostitutas que aquele espetáculo era muito
melhor do que os que representavam em Porte-Saint-Martin.

A Comuna de Paris, vista a partir do sítio urbano, oferece


uma leitura das estratégias de apropriação das ruas e becos pelos
communards. Merriman (2015) lembra os leitores das lutas nas re-
giões de Montmartre e de Belleville. Duas características comuns
unem os dois sítios: a topografia, uma vez que ambos situam-se o cotidiano

em colinas, e a ocupação majoritária por indivíduos de classes 147


operárias, muitos oriundos das reformas de Paris. Victor Hugo se
referiu dessa forma a um desses subúrbios: “O subúrbio de Saint­
‑Antoine é um reservatório de povo. Os tremores revolucionários
abrem nele fendas por onde corre a soberania popular” (2014,
p. 894). As ruas de topografia irregular, em oposição às planícies
do Sena, favoreceram a instalação de barricadas e canhões. Ali
foram travadas batalhas ferozes pelo domínio da cidade. Diante
dos muros do cemitério Père-Lachaise celebra-se, anualmente, o
aniversário da Comuna de Paris, simbolizado pela lembrança da
Semana Sangrenta. As cores vermelhas predominam, enquanto
os visitantes cantarolam hinos operários.
Mais de um século depois, em 1989, sob o olhar do Partido
Comunista Chinês (PCC), a Praça da Paz Celestial, em Pequim,
cobriu-se de vermelho. Aquele espaço público suportou, durante
dias, um forte esquema de repressão. A imagem mais chocante,
certamente, é aquela de um jovem acenando bandeiras diante de
uma fila de tanques de guerra. No primeiro plano o estudante
aparece isolado, anônimo, mas não solitário, uma vez que o espe-
táculo público não permite intimismos. Os eventos subsequen-
tes, que ocorreram a partir de abril de 1989, foram registrados
por Fiore (1990) em crônicas diárias publicadas no livro Tien An
Men. À greve de fome de estudantes e a perseguições em bicicle-
tas e barricadas, o PCC respondeu, primeiro, com a decretação
do estado de sítio, e depois com um forte aparelho repressivo,
alimentado por metralhadoras, tanques e soldados de outras lo-
calidades, menos sensíveis às demandas locais. Estima-se a morte
de centenas de pessoas.
A China, politicamente, não mudou muito desde então.
Havia nesse país, em 2014, dezesseis aglomerações urbanas com
mais de cinco milhões de habitantes. As catorze maiores cida-
des agrupavam mais de 123 milhões de habitantes. Em relação
seis modos à urbanização, entretanto, as mudanças foram demasiadamente
de ver a cidade significativas para se imaginar que o domínio público possa con-
148 tinuar a ser reprimido por tanques.

O movimento Occupy Wall Street, por sua vez, iniciou-se Wall Street não é uma
rua qualquer. Local
em setembro de 2011. O nome é bastante apropriado. Assim Har- de assentamento
vey (2014, p. 281) o caracteriza: dos ícones do capital
financeiro, tornou-se
Em Wall Street, a “rua” está sendo ocupada – horror dos símbolo de protestos
contra o capitalismo
horrores – por outros! Espalhando-se de uma cidade a outra, as global. Wall Street está
táticas do Occupy Wall Street consistem em ocupar um espaço em todo lugar.
público central, como um parque ou uma praça, perto dos quais Fonte: Eckholm e
Williams (2011).
se concentram muitas das alavancas do poder e, ao colocar os
corpos humanos nesse lugar, transformar o espaço público em
comuns políticos – um espaço para debates e discussões abertas
sobre o que esse poder está fazendo e qual seria a melhor maneira
de se opor a ele.

Diferentemente do que ocorreu em Pequim ou na Comuna


de Paris, há muitos registros visuais sobre o movimento Occupy
Wall Street. Ele apresenta uma agenda ambiciosa que permite
unificar uma manifestação aparentemente espontânea, própria o cotidiano

do tempo das redes. Se as cidades globais, “nós” do capital e cen- 149


tros das bolsas de valores, utilizam a rede e a instantaneidade
para os imperativos econômicos, essa é também a estratégia para
conter a repressão. Occupy é uma metáfora que pressupõe a co-
munhão para a celebração de um projeto comum que aspira a
mudanças sociais.
Sennett (1998), em O declínio do homem público, reconhe-
ce, com certa decepção, que caminhamos para um projeto de so-
ciedade intimista. Mais de dois mil anos antes da publicação de
Sennett, Aristóteles (1985, p. 36) asseverou que uma cidade “é
composta por seres humanos especificamente diferentes”. O que
demarca sua pluralidade é a publicidade dos atos, sejam aque-
les mais ordinários, como caminhar no centro da cidade, sejam
aqueles mais burocráticos, como a aprovação de um plano de
zoneamento. A cidade intimista, com espaços públicos cada vez
mais erodidos, reclusa em condomínios fechados ou em torres de
concreto que deixariam os engenheiros de Babel envergonhados,
é uma cidade estéril. Mas Sennett acredita, com todo o seu reper-
tório histórico, que as possibilidades de fazer política na cidade
estejam adormecidas. Estamos em um momento de pausa. Esse é
um modo um pouco mais otimista de ver a cidade. O cotidiano,
antes de ser algo programado, sempre reserva aquele quinhão de
imprevisibilidade capaz de aborrecer os analistas mais perspica-
zes. Espero que Sennett esteja correto.

seis modos
de ver a cidade

150
conclusão
H
avia, em 2014, 83 aglomerações urbanas no planeta
que agrupavam, cada uma, mais de cinco milhões de
habitantes. Residiam, nesses espaços, 971 milhões de
pessoas. No final do século XVIII a população mundial não che-
gava, segundo estimativas popularizadas, a novecentos milhões
de pessoas. Nenhuma cidade ou aglomerado de cidades alçou,
até o século XIX, a dimensão demográfica de uma dessas aglo-
merações contemporâneas. O mapa do mundo é, cada vez mais,
urbano. Um mapa não com uma mancha vermelha uniforme,
mas pontilhado por formas geométricas aparentemente aleató-
rias. Os contextos ecológicos e a história regional particularizam
cada cidade. A política, demonstrada por um modo hegemônico
de produzir o espaço e de se inserir na ordem econômica hege-
mônica, para recorrer ao filósofo Henri Lefebvre (2000), é o que
dá universalidade ao fenômeno urbano contemporâneo.
Em certa medida, o mundo sempre foi urbano. Em todos
os períodos históricos identificamos o protagonismo político,
econômico ou cultural de alguma cidade ou conjunto de cida-
des. Babilônia, representação dos pecados humanos, ou Atenas,
modelo ovacionado pelo ideal democrático. A partir do ideal ro-
mano, passou-se a construir cidades à semelhança, mesmo em
escalas menores, de Roma. Paris e Veneza despertaram desejos e
ambições na Idade Média. Jerusalém rompeu cada período histó-
rico com sangue e vinho. Londres anunciou a modernidade, sen-
do considerada não o coração, mas o cérebro do mundo coloni-
zador. Em torno da palavra “cidade”, transformada em metrópole,
gravitou uma aura de dominação, de uma ordem geopolítica hie-
rárquica. O século XX viu Nova York celebrar sua hegemonia,
alçando voos em edifícios que seriam vencidos por outros em
cidades como Dubai. “Babilônia” voltou para sua região, agora no
outro extremo do Golfo Pérsico, representada por Burj Khalifa,
escalado com expertise por Ethan Hunter, no filme Missão Impos-
sível – Protocolo fantasma.
O que não deve escapar desta análise é que a cidade nun­
ca foi um assentamento qualquer, mas um repositório de vida
e de criatividade, ambiente de conflito. Mumford, mesmo com
sua carga de ceticismo diante da grande cidade, nunca deixou de
reconhecer que ela exala energia transformativa. A megalópole
está na sala de estar da necrópole. A primeira tem, de acordo
com o historiador, muito da tradição romana, fundada, nas suas
palavras, em “tolices efêmeras”. Da cidade romana, aberta ao
mundo por intermédio das conquistas, erodida por sua própria
ambição colonizadora, emergiu uma sociedade fundada no
claustro, com fundamentos religiosos que ordenaram, durante
séculos, a forma e o cotidiano urbano. Mas, como dissemos, a
cidade não é um assentamento qualquer. A reprodução da vida,
mesmo no interior das muralhas, pressupôs uma socialização
sem precedentes de experiências as mais diversas. Na periferia da
Idade Média, nos becos, nas pontes, nos pátios das igrejas, entre
seis modos muralhas e portões, nas margens dos rios, emergia não somente
de ver a cidade uma opinião pública, mas também uma ação pública, no sentido
154 de Arendt (2014).
Arte, técnica, cultura, religião, rebelião e política são ati-
vidades que necessitam, para o seu pleno desenvolvimento, do
agrupamento de pessoas. Do olhar público. Quando percebe-
mos que tudo isso, somado às necessidades de reprodução da
vida diária, é feito em um sítio comum, começamos a entender
o significado da palavra “cidade”. Um conceito polissêmico. Mas
a polissemia não deve nos desviar da ambição de pensar sobre
ele, submetendo-o à nossa experiência cotidiana. Se a cidade não
é só pedra, concreto e madeira, é justamente porque o homem
não é apenas carne, sangue e suor. Foi isso, talvez, que comecei a
perceber quando olhei a cidade a partir do décimo andar daquele
edifício que ajudei a construir.

conclusão

155
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Lista de filmes
Metropolis. Direção: Fritz Lang. Alemanha, 1927.
Chico Fumaça. Direção: Victor Lima. Brasil, 1958.
Alphaville. Direção: Jean-Luc Godard. Itália/França, 1965.
Chinatown. Direção: Roman Polanski. Estados Unidos, 1974.
007 contra o foguete da morte. Direção: Lewis Gilbert. Reino Unido,
1979.
Blade Runner – o caçador de androides. Direção: Ridley Scott. Estados
Unidos, 1984.
Cortina de fumaça. Direção: Wayne Wang. Alemanha/Estados Unidos,
1995.
Matrix. Direção: Andy Wachowski e Lana Wachowski. Estados Unidos/
Austrália, 1999.
Crash: no limite. Direção: Paul Haggis. Estados Unidos, 2004.
As crônicas de Nárnia: o leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Direção:
Andrew Adamson. Estados Unidos, 2005.
Batman - o cavaleiro das trevas. Direção: Chistopher Nolan, EUA/Reino
Unido, 2008.
Foi apenas um sonho. Direção: Sam Mendes. Estados Unidos/Reino
Unido, 2009. referências

Guerra ao terror. Direção: Kathryn Bigelow. Estados Unidos, 2010. 169


Zona Verde. Direção: Paul Greengrass. Estados Unidos, 2010.
Contágio. Direção: Steven Soderbergh. Emirados Árabes Unidos/
Estados Unidos, 2011.
Missão Impossível – Protocolo fantasma. Direção: Brad Bird, Estados
Unidos, 2011.
Men at lunch (documentário). Direção: Seán Ó Cualáin, 2012.
Guerra Mundial Z. Direção: Marc Forster. Estados Unidos, 2013.
A grande aposta. Direção: Adam McKay. Estados Unidos, 2015.
As sufragistas. Direção: Sarah Gavron. Reino Unido, 2015.
Aquarius. Direção Kleber Mendonça Filho. Brasil / França, 2016.
Brooklin. Direção: John Crowley. Irlanda, Reino Unido, Canadá, 2016.

Séries citadas

24 Horas. Criada por Joel Surnow e Robert Cochran. Estados Unidos,


2001.
House of Cards. Criada por Beau Willimon. Estados Unidos, 2013.

seis modos
de ver a cidade

170
anexos
Localização das cidades citadas no livro

Localização das cidades citadas no livro (relevo)


Esta obra foi composta em Minion Pro
no ateliê da Cânone Editorial; a impressão se fez sobre
papel Pólen Soft 80g, capa em Cartão Supremo 250g/m2,
em 2017.

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