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ÁNGEL CALVO ULLOA

2021

VOLTAR

"Por anos as pessoas se preocuparam com o que estava dentro do quadro. Pode ser que algo
esteja acontecendo fora dele."

— Robert Barry

Para nos situarmos: em 2019, um grupo de artistas residentes no centro de São Paulo
promoveu, sob o denominador ali (Arte Livre Itinerante), um projeto cujo objetivo era ativar uma
escola livre destinada a transitar por bairros periféricos da cidade. Surgiu então a possibilidade
de colaboração com um grupo de pessoas vinculadas a coletivos centrados em disciplinas como
a pixação, a poesia, a música, o teatro, o circo e o ativismo social na subprefeitura de Cidade
Tiradentes, extremo da Zona Leste da cidade, com os quais se deu partida no projeto por meio
de encontros baseados no ensino artístico não regulamentado e no compartilhamento de modos
de fazer, criando laços pessoais que logo ultrapassaram os objetivos iniciais.

Talvez um dos vínculos mais fortes que derivou dessa experiência tenha sido o do MUSEUL*RA,
fruto do encontro entre os artistas Rodrigo Andrade e Link* Museu (Diego de Jesús Bezerra),
construído a partir de diversas colaborações nos muros da cohab Juscelino. As intervenções de
Link*, realizadas como uma forma evoluída do pixo museu – usado por um grupo de pixadores
formado em 1989 e ao qual Link* se juntou em 2001, sendo atualmente seu “dono” e membro
mais ativo –, instaram Rodrigo Andrade a buscar uma grafia que lhe permitisse dialogar com
museu de um modo diferente, sem pretender ou aspirar a se tornar um pixador, porém,
assumindo a necessidade de se manifestar de maneira simples e enfática em um espaço como
o urbano, em que o número de pessoas atingidas pela mensagem é infinitamente maior do que
em uma sala de exposição, mas no qual o tempo de observação é reduzido e as expectativas e
opiniões acerca do valor artístico da proposta são questionadas.

MUSEU pode ser lido em todo tipo de arquitetura em São Paulo, mas sobretudo ao longo de
todo o cansativo trajeto que separa Cidade Tiradentes do centro da cidade. É nesse território
que Link* opera todas as noites, há quase vinte anos, e com o qual justifica sua já histórica
decisão de usar esse conceito como modo de formalizar uma “intenção de ficar como coisa
antiga”. Isso nos permite entender a estagnação da instituição museu com relação à maior
parcela da sociedade, bem como a decisão de Link* de fazer com que esse título não pertença
mais exclusivamente a fachadas de edifícios pomposos do século xix, o que torna seu gesto
algo que ultrapassa qualquer outro pixo indecifrável que encontremos pela cidade. MUSEU é
entendido por todos, embora seu significado varie de norte a sul e de leste a oeste. E é nisso
que reside sua importância.

Em 2019, quando os encontros promovidos por ali em Cidade Tiradentes se tornaram mais
frequentes e as viagens ao Leste começaram a aproximar a realidade da periferia a diversos
agentes ligados à cena artística do centro, a proposta de trabalhar de maneira coletiva acabou
resultando, entre outras coisas, numa convocatória de convivências e intervenções pictóricas
que conectaram de maneira especial Link* e Rodrigo Andrade.

Embora em todos os aspectos a distância entre ambos chegue inclusive a ser surpreendente, de
tão extrema, talvez tenham sido todos esses condicionantes que transformaram esse vínculo em
um acontecimento calcado no respeito mútuo e na constante aprendizagem com o que um tinha
a contribuir com o outro. Se Andrade vem de um contexto artístico institucionalizado, no qual
desde o começo dos anos 1980 tem se afirmado como um dos pintores mais importantes de sua
geração, Link* tem uma bagagem de igual destaque dentro da pixação paulistana, na qual seu
nome já é uma referência e em cujo meio é, além do mais, exemplo de conexão intergeracional
e de compromisso com o devir cultural e social de uma população sistematicamente excluída
dos planos dos governos.

O interesse de Andrade em trabalhar em espaços do cotidiano popular não surpreende: basta


olhar para trás, mais especificamente para uma intervenção realizada em 2001 – mesmo ano
em que Link* começou a ocupar as ruas, transformando tudo em museu –, quando o artista
instalou espessas placas de tinta a óleo nas paredes azulejadas do Lanches Alvorada, um bar
no bairro de Santa Cecília. Mas talvez essa relação entre o interior e o exterior, entre o que é
vulgar e o que é nobre, possa ser melhor compreendida na analogia que o próprio Andrade cria
quando, na esteira da influência que Philip Guston exerceu sobre ele e o conjunto de artistas da
Casa 7, afirma que “era um prato cheio para quem gostava de Morandi e Crumb ao mesmo
tempo”. Por isso, a decisão de trabalhar com aquelas formas ornamentais extraídas do popular,
que se repetem como um mantra, do mesmo modo que se repetem MUSEU ou MSU, e que são
pura e simplesmente uma evolução desse marco zero a que Andrade chegaria em fins dos anos
1990, quando, após um período de grande gestualidade pictórica, ainda que conciso em termos
cromáticos, sua prática derivou em composições de planos monocromáticos que aos poucos
foram adquirindo grande densidade, ocupando telas e espaços como o mam ou o supracitado
Lanches Alvorada, levando-o inclusive, em 2007, ao formato cinematográfico, com o
curta-metragem Uma noite no escritório. De repente, as manchas se tornaram arabescos,
motivos de grande simplicidade que Andrade combina, às vezes saturando, outras reduzindo ao
máximo, forçando o instante em que a composição salta para o ar. Sobre essas formas e sobre
o encontro com Link*, o próprio escreveu em 2020: “E quis o destino que eu conhecesse o
artista Link e fizesse uma parceria com ele, e assim essas criaturas puderam se desenvolver
nos muros longínquos de Cidade Tiradentes, enfrentando crocodilos, chapiscos e blocos sob o
sol inclemente de dezembro. E as criaturas unilineares tornam-se grandes répteis cascudos”.

Minha experiência no local da obra inclui, além das longas trocas de e-mails e das constantes
reuniões virtuais, uma viagem a Cidade Tiradentes, no último dia 30 de janeiro, e um encontro
noturno de “dedos sujos” com Link*, Evandro César, Joaquim Pinkalsky e Andrade em 31 de
julho, no estúdio que este último dirige na Vila Romana. No ateliê, pude entrever as condições
de profunda cumplicidade pelas quais todas as pinturas que agora observamos tomam forma.
Cada uma é o resultado de limites que só são ultrapassados se a investigação formal de ambos
o exigir. Os espaços de atuação são respeitados, do mesmo modo que ocorre nas ruas,
sobrepondo-se somente na presença de todas as partes envolvidas.

De minha visita a Cidade Tiradentes, destaco a enorme impressão causada em mim pela Horta
Urbana Riacho Doce, um lugar onde, para minha surpresa, um pomar – cultivado e limpo por
aquele coletivo – brota da dureza da periferia, sendo atravessado pela nascente de um rio.
Nesse local acontecem, além dos encontros do grupo Luau dos Loucos – que atua há mais de
dez anos no bairro através de ações de caráter social e cultural –, também as aulas de pintura
ao ar livre promovidas por Andrade, que configuraram desde o ano passado uma escola de
plenaristas que dedicam dias inteiros à pintura paisagística.

Introduzir a pixação em um cenário artístico institucionalizado, como o que museus e galerias


representam, requer um cuidado especial em estabelecer limites de respeito e compreensão
que, mesmo sendo flexibilizados aos poucos, convém não forçar. Não podemos esquecer que,
com a aprovação da lei no 14.223, em setembro de 2006, promovida pelo prefeito Gilberto
Kassab, e com o respaldo do artigo 65 da lei no 9.605/985, justificava-se a tentativa de acabar
com manifestações como a pixação e mesmo com práticas já institucionalizadas como o grafite,
lançando mão de argumentos perversos como “o bem-estar estético, cultural e ambiental da
população”, ou “a preservação da memória cultural”. Iniciou-se, a partir de 2008, uma
perseguição voraz a todas essas manifestações, caracterizada pelo uso da cor cinza para cobrir
não apenas os muros do centro da cidade, mas também de todas as periferias em que o
fenômeno da pixação se originara nos anos 1970, ganhando enorme força e consolidando sua
estética a partir da década de 1980. Também em 2008 aconteceu, durante a inauguração da
28a Bienal de São Paulo, a invasão do Pavilhão Ciccillo Matarazzo por um grupo de cerca de
quarenta pixadores, que pixaram a Planta Livre, o assim denominado segundo piso do edifício,
que havia sido desocupado pela equipe curatorial daquela edição. “Esse é o espaço em que
tudo está em um devir pleno e ativo, criando demanda e condições para a busca de outros
sentidos, de novos conteúdos.” Depois chegaram os convites para participar da 29a Bienal, em
que a pixação foi mostrada a partir de material documental, e, ato seguido, da 7a Bienal de
Berlim, na qual ocorreria a famosa cena em que o curador geral, o artista Artur Zmijewski, foi
coberto por tinta amarela pelo pixador Cripta Djan após um embate entre eles. No nível político,
nenhum dos sucessores de Kassab soube ou quis gerar um debate real acerca do que o
fenômeno da pixação pressupõe hoje em dia para a cidade de São Paulo.

A despeito da profunda desigualdade social de um país como o Brasil, do racismo estrutural e


da violência que invade a vida, especialmente a dos subalternos, de tudo isso, acrescido nos
últimos anos pelo golpe político de 2016 e pela posterior chegada ao poder de Bolsonaro,
aparecem, por vezes, pequenas faíscas de esperança que se originam na solidariedade entre
classes e que operam às margens da solidariedade institucional – aquela cujo objetivo é, a partir
de um clima de imobilidade, limpar a consciência de um reduzido grupo de privilegiados, sem
que se ambicionem, de fato, mudanças sociais. Por isso, soma é, agora, formulada desde um
plano que privilegia as afinidades formais entre os dois artistas, acima de questões que atingem
exclusivamente o plano político, uma tentativa de resumir tudo o que produziu o feliz encontro
entre Andrade e Bezerra. Somente assim seria possível entender que essa colaboração,
inserida em um espaço que se encontra a meio caminho entre a pintura e o grapixo – uma
evolução estetizada do pixo, que aplica cores e gradientes, mas que em essência continua
sendo pixo –, se configure, assim, como um projeto que evita os abomináveis julgamentos de
valor a partir da já abominável divisão entre alta e baixa cultura. Rodrigo Andrade e Link*,
ambos com trajetórias bem diferentes, atuaram até agora com colaborações em seus
respectivos campos de trabalho e é neste momento, quase dois anos depois de ter início essa
colaboração, que, em vez dos muros de Cidade Tiradentes, são as paredes desta galeria que
acolhem os arabescos de um e o gesto reiterativo de quem decidiu que tudo é museu, e que,
portanto, nada o é.

EVANDRO CÉSAR

2021

VOLTAR

A arte, onde ela nasce, une e fica. E, na contramão da linha do destino, ALI Rodrigo e Link se
conheceram. Rodrigo Andrade, artista com uma bagagem enorme na cena das artes plásticas,
com suas formas ornamentais, que são mesmo enganosamente simples, ocupando diversos
espaços, saindo do comodismo, seja lá qual for sua matéria — e muitos se apegam à matéria e
se esquecem da humana, que é a matéria da resistência. O que mais me chamou a atenção é: o
que você faz com seu conhecimento, SOMA.
Link, nascido e criado na Zona Leste de São Paulo, antes mesmo de saber escrever, quando
garoto, a pixação já lhe chamava atenção. As letras, as palavras, as cores, as superfícies onde
sabemos que o Estado nunca atuou e, com a arte maloqueiristíca, foi no PIXO que ele se
encontrou. Fazendo jus à sua passagem, seja pelas ruas do centro, seja nas diversas regiões
periféricas, fazendo dos muros MUSEU, resistência da palavra, porque o pixo sempre será o
grito da revolta. Quem conhece sabe o amor que Link tem pelas tintas, o pixo lhe abraçou e ele
abraçou o pixo. OS + IMUNDOS, A UNIÃO É RACIAL, DEAD KENNEDYS, OS MALCRIADOS,
artistas não, arteiros. Por onde eles passam, estão aprontando, e nessa somatória, com caráter
de eterno aprendiz, dividem os saberes. Como costumamos dizer, “é na rua que as coisas
acontecem”, e um começa a entrar no universo do outro. Rodrigo, no solo sagrado de Link, as
ruas; Link, no solo sagrado do ateliê de Rodrigo Andrade, conhecendo as tintas a óleo e
pintando suas primeiras paisagens na horta onde ele e seus amigos deram vida a um espaço
chamado Riacho Doce, já consequência do histórico Luau dos Loucos. Desses encontros, Link
foi parar em UM LUGAR LUGAR NENHUM, sua estreia em galeria de arte, junto a outros
artistas, aprendendo, aperfeiçoando e evoluindo.

Tintas e rolos, pincéis, espátulas e rodos, óleo e látex na mesma parede ou na mesma tela, seja
no centro ou na favela, seja lá qual for sua matéria, ser mais humano, mano, é que forma a
soma dessas duas pessoas. Hoje coração pulsa, novo ciclo, nova fase. Viva os dedo sujo, e que
se abram os caminhos. Axé e tinta neles! E como já dizia Mauro Matheus, “UM BOM LUGAR se
constrói com humildade”.

RODRIGO ANDRADE

2020

Inaugurei a exposição Criaturas ornamentais no dia 4 de março de 2020. Dez dias depois, a
mostra foi fechada, em razão da pandemia de Covid-19, doença causada por um vírus que
paralisou o mundo e expôs a fragilidade da sociedade humana de modo cabal. O corte no fluxo
da vida social, econômica e cotidiana foi como o despertar de um sonho e logo perceber que o
sonho não era real. Já a vida durante a pandemia mais parece um sonho que não parece ter
fim. Seja como for, a vida humana no planeta mudou, embora ainda não saibamos exatamente
como. O corte, o despertar, quebraram o encanto da vida comum que segue dia após dia.
Desde as primeiras semanas de confinamento, instaurou-se o absurdo de uma situação
inimaginável, em um mundo travado, que há pouco parecia lógico e eficiente, mas que de
repente mostra-se como uma enorme máquina disfuncional.
Quando voltei à galeria dois meses depois, a exposição ainda estava fechada. Ao entrar na sala,
fui golpeado pela estranheza de vê-la ainda intacta, idêntica, alheia ao mundo que havia
mudado em poucas semanas. Senti-me como se estivesse entrando em um mausoléu egípcio
ou um salão romano, observando aquelas pinturas pela primeira vez. Pareciam pinturas de outra
era! O mundo era diferente quando foram feitas, era outro mundo havia poucas semanas. A
disparidade entre a proximidade temporal e a distância histórica gerou uma sensação de
atemporalidade; talvez até de eternidade, como convém a pinturas de mausoléu.

Se pertencem a outra era, foram também feitas por outra pessoa. De fato, percebi uma
experiência de alteridade com minhas próprias pinturas. Estas mostraram-se estranhas aos
meus olhos por um momento e, nesse contexto, eu não poderia mais apagar esta experiência,
que já havia se tornado consciência. Talvez o espírito expansivo e público das pinturas
favorecesse o contraste com o recolhimento imposto pelo isolamento social, mas, para além do
âmbito global, esta situação é capaz de revelar dimensões existenciais profundas. Esse outro
que fez as pinturas poderia ser “o estranho que vem ao nosso encontro num espelho…” de
Camus em O mito de Sísifo: “o familiar e no entanto inquietante… o absurdo”.

Vivemos o absurdo da pandemia: “em que o vazio se torna eloquente, em que a cadeia dos
gestos cotidianos é rompida”, em que “o mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo.
Esses cenários mascarados pelo hábito tornam a ser o que são. E se afastam de nós”, como
uma vez escrito pelo mesmo autor. No caso do Brasil, ao absurdo da pandemia soma-se o
absurdo de um governo de extrema direita eleito em 2018. Parece mesmo que “a primitiva
hostilidade do mundo, através dos milênios, se levanta de novo contra nós”. Voltamos à era dos
impérios coloniais, o país volta a ser ele mesmo. Os mais de trinta anos de democracia, firmeza
institucional, modernização, prosperidade e inclusão social, que pareciam sólidos, afastam-se de
nós, desmancham-se em um só golpe, devolvendo o Brasil à sua condição de quintal
norte-americano.

Já não estamos mais, entretanto, falando da pandemia. Falamos agora da era do capitalismo
improdutivo, em que o capital financeiro internacional drena a riqueza produzida pelas
sociedades e violentamente esgota os recursos naturais do planeta, inviabilizando qualquer
administração pública. Tal era foi descortinada pela crise ocorrida em 2008. Estudos realizados
desde então (e somente desde então) apontam que existem hoje entre 20 e 30 trilhões de
dólares em paraísos fiscais fora de qualquer legislação e tributação, sendo que o PIB mundial é
de cerca de 80 trilhões de dólares; que o 1% mais rico da população mundial detém a mesma
riqueza que o resto do mundo; que atualmente oito indivíduos detêm a mesma riqueza que a
metade mais pobre da população (Ladislau Dowbor). A crise de 2008 descortinou este abismo,
mas ainda assim os cenários mascarados pela doutrina neoliberal onipresente voltaram a velar
o que já havia sido visto, ainda que não propriamente reconhecido: o colapso para o qual o
mundo avança. A pandemia escancarou ainda mais a visão do absurdo desse sistema, o que
apenas revela o enorme vazio diante da nossa incapacidade de mudar a realidade “porque
durante séculos só compreendemos nela as figuras e os desenhos com que previamente a
representávamos”, para citar Camus novamente.

À dissimulação do cenário brasileiro, soma-se o oceano de fake news, que decidiu a eleição de
2018 e que continua afogando a realidade em águas turvas. Afinal, as fake news não apenas
tornam mentiras verdades, como também o contrário, até que por fim não há como identificar
nem verdades e nem mentiras - acaba tudo por se resolver através da força. Vemos o capital
financeiro internacional aliado às milícias, às igrejas neopentecostais e aos ditos terraplanistas,
que juntos são 7%. De repente, tudo se desfez e o vazio (mais eloquente do que nunca), a
desconfiança, encontram-se hoje na mesma chave do medo da morte, em uma vida sob o
contexto pandêmico. A morte, ou a sensação dela, que ainda segundo Camus, “… nunca nos
espantaremos o suficiente com o que todo mundo vive como ‘se não soubesse” e que a
pandemia, em alguma medida, nos obriga a saber, ou pensar, ou imaginar, pois ela pode estar
em uma maçaneta contaminada.Enquanto isso, as pinturas permanecem atemporais, sublimes.
Perfeitas. Como se tanto fizesse a qual era pertencessem. Podem pertencer a qualquer tempo,
ainda que saibamos o quanto obras de arte são produtos históricos em nossa cultura ocidental.

Em um salto na dimensão histórica, pensar a escala a crise de 2008 junto da ascensão da


extrema direita no mundo e da pandemia de 2020, todos os eventos parecem ocorrer no mesmo
processo e marcar a mesma mudança de era. Inauguram a era do absurdo! A dimensão
atemporal da arte, apesar das urgências contemporâneas que a movem, pressupõe uma
dimensão essencial humana, em que formas, cores e configurações espaciais produzidos por
um ser humano possam despertar alguma emoção em outro ser humano pela empatia,
independentemente das culturas de um e de outro. Isso é um ideal de arte, assim como é
também da aspiração dos artistas ultrapassar a si mesmos através dela - sair de si, adentrar
outra dimensão além do eu. Para John Cage, “quando você começa a trabalhar todo mundo
está em seu estúdio – o passado, seus amigos, inimigos, o mundo da arte, e sobretudo suas
próprias ideias – todos estão lá. Mas enquanto você continua pintando, eles começam a sair, um
por um, e você é deixado completamente sozinho. Então, se você está com sorte, até mesmo
você sai.”

Mas uma prática que ultrapasse o tempo, que ultrapasse o eu, que supere a cultura, que
descubra algo novo, que toque o eterno, que busque o original (tanto no sentido de ser algo
nunca antes feito quanto no sentido de atingir as origens), que retire da história os meios de
romper com o passado, em que idiossincrasias sejam atalhos para o universal, é na verdade
uma arte baseada em valores historicamente construídos, valores modernos. Não por acaso,
Picasso foi buscar nas máscaras africanas alguns dos modelos primordiais para sua produção.
Nem também por capricho que o minimalismo tenha abolido o gesto manual do fazer artístico,
buscando na indústria seus modelos. Enquanto o primeiro aspirava escapar da sufocante
academia europeia e de seu virtuosismo técnico, o segundo buscava desprender-se da arte
propriamente dita e sua auto-mistificação. Procuravam, de uma maneira ou de outra, escapar de
si, no mesmo sentido da máxima de Merleau Ponty: “jamais somos livres de nós mesmos”.

Assim, a atemporalidade e impessoalidade que vi em minhas pinturas nada mais são do que
projeções dos meus próprios ideais artísticos em uma situação excepcional, onde aflorou
subitamente o caráter absurdo através da sensação de deparar-me com um outro eu e um outro
tempo. Com isso, declaro meu modernismo, minha concepção de forma significante - em que
forma e conteúdo são inseparáveis - e de radical autonomia da arte.Que o modernismo de hoje
não seja igual ao de Picasso e mesmo o do minimalismo, isto mostra-se óbvio. Há, porém, o
chamado pós-modernismo, que revela ser ainda modernismo, mesmo que desprovido de
qualquer conteúdo revolucionário ou valores universais. A prática de Mondrian não é mais
possível em nossa cultura de massas e realidades virtuais, mas nessa perda há também
ganhos. Mondrian viveu duas guerras mundiais e o nazismo e, frente a isso, deve-se admitir
que, em termos de colapso da civilização, estamos ainda em realidades muito diferentes.

Ainda assim, sinto-me de um tempo que se recusa a permanecer no nosso. Não sou o único a
estar perplexo diante desta era do capitalismo improdutivo somado à boçalidade e à truculência
verde e amarela. Enquanto boa parte da arte de hoje é instrumentalizada por questões sociais,
reafirmo a autonomia das minhas pinturas em relação a qualquer ideia de pertinência temática,
e assim reafirmo também seu absurdo intrínseco. A sensação de estar fora do tempo ao
deparar-me com minhas pinturas, é, na verdade, uma enorme satisfação. Com esse sentimento,
digo: ainda bem que existe a arte! Não sei definir de que tempo eram antes da pandemia, mas
agora os trabalhos aqui apresentados são pinturas da era do absurdo.

RODRIGO ANDRADE

2020

VOLTAR
Oriundas do arabesco, essas criaturas nasceram em tramas e padrões ornamentais, mas só
passam a existir quando se destacam dessas tramas, tornando-se unidades corpóreas
autônomas, figuras soltas no espaço. Figuras que logo conectam-se entre si, pois é impossível
existirem sozinhas. Precisa haver, no mínimo, um par. Este par de elementos forma uma
unidade, que é, portanto, uma relação entre formas. Figuras, formas, coisas, seres. Essas
criaturas polimórficas teimam em parecer coisas e seres à minha revelia! Sejam do reino
vegetal, do reino animal ou mesmo do reino dos símbolos, como naipes de baralho e colunas do
Niemeyer. Quando percebo a semelhança, esta já se instalou.

Fiel a um certo princípio, eu aceitei todas essas aparências, sem julgar sua possível
deselegância, vulgaridade ou idiossincrasia. Que pareçam o que for! Como puro significantes
que são, se prestam a significar qualquer coisa, o que me parece condizente com sua natureza.
Natureza sintética, diga- se. São frutos de uma síntese mental, imaginativa e manual. Ideia -
mão - matéria - forma. Síntese formal, espacial e cromática. Síntese onírica e não se fala mais
nisso… Simétricos como organismos vivos, tão simples que parecem amebas ou divisões
celulares e tendem ao espelhamento. Seres simétricos refletidos por espelhos. Talvez assim se
reproduzam: um casal de seres unilineares simétricos duplicados num espelho, como no
desenho animado Dança Cosmogônica. Tais seres tendem também a conectar-se entre si, como
sinapses nervosas, em agrupamentos axiais. Alguns desses agrupamentos, por sua vez, num
estágio mais avançado da evolução dessa espécie, formam figuras únicas, como na série
Homenagem ao palhaço, que lembram um Arquimboldo psicodélico abstrato, feito de um
punhado de recortes planos e oriundos de um arabesco imaginário pseudo-arquetípico. São
organizados em um rigoroso sistema cromático de três ou quatro cores, em que o maior desafio
é vencer a força centrípeta do tirânico quinto elemento central, um Maelstron que tudo engole…
São habitantes de paredes, muros, telas, superfícies planas.

Entre as tantas aparências que assumem, uma destacou-se: o pixo. Assim que reconheci a
semelhança, as criaturas foram, como Zelig, se tornando mais parecidas com a tipografia
estilizada das tags. Se já tinham se expandido num fluxo helicoidal pelas paredes das
escadarias da Casa do Povo, agora quiseram conquistar os muros da cidade. Quis, então, o
destino que eu conhecesse o artista Link e que juntos fizéssemos uma parceria e assim essas
criaturas puderam se desenvolver nos muros longínquos de Cidade Tiradentes, enfrentando
crocodilos, chapiscos e blocos sob o sol inclemente de dezembro. As criaturas unilineares
tornam-se, pois, grandes répteis cascudos. De volta às telas, em nova síntese, através tinta
latex acrílica, o rolinho de três e a tag, que vêm da rua.

Assim o ornamento torna-se um pouco linguagem escrita, um alfabeto ornamental. O be-a-bá


começa traçando-se uma linha no papel, bem como nasceram essas criaturas: de balbuciantes
linhas arabescas. A distância entre uma ideia e o traçar uma linha é a menor que existe, como
entre uma ideia e uma forma. Uma linha realiza um desenho em poucos segundos, e em poucos
minutos pode-se fazer vários desenhos, até que em uma tarde é possível desenvolver um
sistema de desenhos. Quando pensamento e linha se conectam, o processo torna-se muito
rápido, e todas as variantes podem ser experimentadas. À certa altura, ainda no começo do
processo, dei-me conta que havia mais de mil desenhos e que, entre a monótona repetição de
temas com suas variações, havia algumas ótimas ideias, claras e distintas - uma mina de ouro.
A impureza das linhas traçadas por reflexo dá brilho e dignidade bruta aos desenhos, mas para
sua plenitude foi necessária uma depuração.

Os desenhos foram, afinal, ensaios. Na forma de monotipias em óleo sobre papel arroz, em
duas ou três cores. Traçados em finas linhas de tinta a óleo, em uma miríade de cores, os mil
desenhos depurados resultaram em cem trabalhos finais - a base para essa exposição. Se não
sua origem, o grande salto evolutivo de notáveis répteis ornamentais.

MICHAEL ASBURY

2017

VOLTAR

Para esta exposição retrospectiva, Rodrigo Andrade e a equipe curatorial da Pinacoteca do


Estado de São Paulo discutiram, a princípio, a instalação de uma obra em um bar nos Campos
Elíseos, bairro que circunda o museu. A proposta procurava “remontar” uma exposição de 2001,
quando várias pinturas foram instaladas em um boteco local chamado Lanches Alvorada [p.21].
Naquela ocasião, Andrade, após um longo processo de negociação, persuadiu o dono do
estabelecimento a permitir que uma série de monocromos fossem “engessados” diretamente
nas paredes do bar. As obras foram exibidas ao lado de uma confusão de decorações e
parafernálias típicas de botecos: arranjos com garrafas de cachaça de qualidade duvidosa, uma
televisão pendurada na parede, pôsteres promocionais de cerveja, listas de preços, cartazes
alertando para a inutilidade de pedidos de vendas adas e um aviso escrito à mão avisando aos
clientes que não tocassem na tinta fresca (uma referência às estranhas pinturas adicionadas ao
décor).

A ideia parecia simples: colocar arte em um cenário da vida real. O que parecia discrepante era
o tipo de arte proposta para realizar tal tarefa: campos monocromáticos de cor apresentados em
camadas únicas e grossas de tinta a óleo que possuíam uma massa substancial.
Historicamente, o impulso vanguardista de integrar a arte à vida afetou de maneira radical a
forma que a obra de arte assumiu. Em tais circunstâncias, a necessidade de se comunicar com
o público era muitas vezes a questão central, tanto por meio do desejo de chocar, com slogans
explícitos e provocativos, quanto num convite à ação participativa, como ocorreu mais tarde. A
diferença na proposta de Andrade era que o trabalho não parecia buscar nenhuma dessas
soluções, mas somente apresentar‐se, com toda sua pureza e simplicidade implícitas, em um
lugar tipicamente associado à classe trabalhadora. Portanto, o trabalho de arte invadiu um lugar
ao qual supostamente não pertence, enquanto o próprio lugar invadiu o trabalho em um
processo de contaminação recíproca.¹

Para ilustrar a imprevisibilidade da proposição, Andrade se recorda de um episódio que ocorreu


logo após a inauguração daquela intervenção no Lanches Alvorada. Tentando convencer um
amigo reticente a visitar o bar, o artista insistiu que se ele o fizesse testemunharia algo que
nunca tinha visto antes. O argumento foi o suficiente para que o amigo decidisse fazer a visita.
Enquanto estava no bar, assistiu surpreso na televisão, instalada ao lado das massas de tinta a
óleo ainda frescas, os ataques às Torres Gêmeas em Nova York no dia 11 de setembro de 2001.
Mais tarde, o amigo brincaria que a declaração de Andrade estava absolutamente certa.²

A atual proposta de “remontagem” dessa instalação iria associá‐la a outro conflito político, mais
previsível, que está se desenrolando neste exato momento e cujas consequências irão afetar o
futuro próximo. Desta vez, a arena é local, ao invés de internacional, e o artista tem total
consciência da natureza da relação recíproca que está sendo proposta. A região ao redor da
Estação Pinacoteca não é uma área urbana neutra. É um espaço social, cultural e, acima de
tudo, politicamente carregado. Na manhã de 21 de maio de 2017, o atual prefeito de São Paulo,
João Doria, em um ato de truculência e completo descaso contra outros seres humanos,
ordenou que a tropa de choque evacuasse uma área dos Campos Elíseos, conhecida como
Cracolândia. O próprio prefeito estava presente, usando uma jaqueta preta, falando com
equipes de lmagem simpatizantes sobre uma cidade limpa, dizendo “agora basta” etc., enquanto
a operação prosseguia demolindo prédios com seus habitantes ainda dentro.³

A proposta de Andrade de intervir em um pequeno bar local inserido em uma arena tão
carregada não foi, portanto, incidental. Não era uma mera questão de remontar um trabalho,
mas incorporar nessa nova versão as tensões muito específicas desse lugar. Os habitantes
locais e os visitantes da Pinacoteca, cuja classe social e muito possivelmente as opiniões sobre
o futuro da área se diferenciam de modo considerável, estariam reunidos de um jeito totalmente
distinto da maneira como a instalação original sobrepôs seus públicos. Essa teria sido, de fato,
uma ocasião muito rara.
Digo “teria sido” porque o museu, tendo considerado o atual estado volátil da região que sofre
com intervenções policiais frequentes e não anunciadas (assaltos casos esporádicos de
violência diurna) decidiu que seria perigoso demais propor que seus visitantes frequentassem a
área. Assim, o artista adiou o projeto e espera realizá‐lo em um outro momento no futuro
próximo.

Neste caso, mesmo que as ações dos diretores do museu não tenham levado à interdição e se
mostrem uma consequência de algo que vai além de seu controle, as tensões que o evento
proposto por Andrade teriam levantado não são inteiramente externas à natureza de sua obra.
Pelo contrário, meu argumento neste ensaio é que na própria raiz do processo criativo de
Andrade há um desejo de criar várias espécies de relações, algumas mais tensas do que outras.

Nesse sentido, Alberto Tassinari afirma com precisão que esses trabalhos de Andrade se tornam
metáforas de uma sociabilidade, já que cada bloco de tinta “é definido pelas discrepâncias entre”
si e outro bloco. A descrição que o crítico faz dessa condição, como “o outro do outro” poderia,
de forma simultânea, ser aplicada tanto à obra de arte quanto às relações causadas pelo ato do
artista colocá‐la no mundo.4

Em View of Delft (óleo sobre Vermeer) (2007/2017) [p.1], um grande retângulo azul e um
retângulo amarelo menor ocupam uma parte do céu em uma reprodução da pintura de Vermeer.
Vemos ali a sociabilidade metafórica que Tassinari sugere. A relação de alteridade efetivada
entre cada bloco de tinta é multiplicada na relação anacrônica entre histórico e contemporâneo,
entre representação e monocromo, entre a reprodução fotográfica e a tinta fresca.

Recentemente, Andrade explorou mais a fundo a relação entre fotografia e pintura em uma série
de trabalhos que justapõe o campo monocromático com uma representação de paisagens, bem
como acontecimentos e líderes mundiais feitos com técnicas de grafite em estêncil. Em suas
escuras composições que parecem fotografias, tais como Bicicletaria, de 2011 [p.128–129],
Grade, de 2010 [p.135], e Rua deserta com viaduto, de 2010 [p.131], vemos as repercussões
sutis de sua exploração de dualidades em tensão. Já faz algum tempo que Andrade trabalha
com a relação entre pintura e fotografia, esse par de disciplinas que poderiam ser descritas
como “o outro do outro”. Tais obras também demonstram a profusão de possibilidades que ainda
podem ser exploradas. Aqui, em retrospecto, nós podemos traçar como essas relações
emergiram.

Em Office at Night (óleo sobre Hopper), de 2006 [p.7], o artista aplicou, sobre uma reprodução
que parece ter sido tirada de uma página de catálogo, massas de tinta preta e azul que ocupam
a parte superior de uma parede em uma pintura de Edward Hopper retratando uma cena em um
escritório. A estratégia de criar relações parece ser a mesma do trabalho a partir de Vermeer,
mas nesse caso uma outra relação é criada. Naquele mesmo ano, Andrade produziu uma
instalação intitulada Paredes da Caixa [p.22], na qual blocos de cor ocupavam espaços
discretos em um escritório real: a antiga sede de um banco que foi transformada ou preservada
pela instituição como um museu de seu passado. Agora, o artista justapõe o espaço real com o
espaço de sua reprodução. O termo “real” deve ser usado aqui com cautela, já que o trabalho
intervém dentro de um espaço “preservado”, um espaço que, como na fotografia, está
congelado no tempo. Portanto, a obra traz o museu e seus conteúdos de volta à
contemporaneidade, de volta à vida. Em vez de habitar o mundo, leva‐o consigo. No entanto, o
espaço real também é trazido de volta para o espaço ficcional da pintura de Hopper, um fato que
a manobra posterior proposta pelo artista visa explorar mais a fundo.

Andrade também produziu o filme Uma noite no escritório (2007), no qual a instalação serviu de
cenário. Nele, o papel do personagem do gerente do banco – um homem amaldiçoado por
alucinações pictóricas – é representado pelo diretor do filme, o próprio Andrade.5

Os universos profissional, administrativo e artístico, fictícios e reais, são inseridos em relações


discrepantes, tanto literal quanto conceitualmente, enquanto uma conjunção similar é
dramatizada entre pintura e filme.

Antes da instalação Lanches Alvorada, o Projeto parede, de 2000, foi instalado no corredor do
Museu de Arte Moderna de São Paulo. A arquitetura do museu foi trazida para a obra de forma
similar, como nos outros exemplos subsequentes. Em vez de o museu impor uma interpretação
particular à obra, é a própria obra que descola referências óbvias da história da arte. É
impossível não pensar em Mondrian, por exemplo, quando olhamos para as fotografias que
documentam o trabalho, tiradas através dos painéis divisórios de vidro da cafeteria do museu.

A dualidade intrínseca, “o outro do outro”, que emana desses trabalhos, revela a abordagem
criativa pessoal de Andrade, que busca problematizar relações múltiplas e antagônicas: o
espaço real e o simples, mas sofisticado, artifício do monocromo; a justaposição da abstração
em sua forma mais pura e a imagem fotográfica; o cinemático e a imobilidade da foto individual;
o espaço social e o universo cultural; o contemporâneo e o histórico. Essa lista poderia continuar
ad eternum, no entanto, em todas essas situações, a tensão deriva, essencialmente, de uma
justaposição inicial: colocar duas massas de cor contra e em relação uma à outra.

Há uma peculiar “realidade” nos próprios blocos de pintura, na forma como parecem “vivos” e
ainda ativos em sua materialidade pastosa. Suas bordas mantêm os traços deixados pela
remoção dos moldes, essas marcas feitas pelo instrumento que as continha. Como a
advertência nos avisos improvisados da lanchonete Lanches Alvorada, essas superfícies
parecem ainda não ter secado, como se sua massa ainda estive ativa, fresca, orgânica. Fica
muito claro que essas áreas de pura cor e volume, que às vezes ocupam espaços diferentes na
cidade, emergiram de explorações pictóricas do espaço e da cor, primeiro plano e pano de
fundo. Podemos traçar seu desenvolvimento desde uma série de pinturas que materializou uma
simplificação gradual da representação de espaços interiores e objetos.

Sem dúvida a série mais longa na trajetória de Andrade até agora, esses trabalhos são
compostos por pares de blocos de cores contrastantes que emergem de algo que parece, em
retrospecto, ser uma progressão natural. A transição em si parece ter ocorrido entre 1998 e
1999, mas as origens do processo que levaram a esse salto são anteriores, possivelmente de
1990. Em 1999, acontece uma transição clara de espaços interiores figurativos soltos em
direção a blocos de cor abstrata.

Em muitas obras da década de 1990, a crescente uniformidade e planura dos fundos junto com
a redução da gama de cores – reduzida para duas ou três, com o predomínio de verdes,
amarelos, pretos e vermelhos –, servia para enfatizar um ou dois objetos muitas vezes
discrepantes na composição. Talvez em referência a Vincent van Gogh, várias vezes uma
cadeira acompanha a figura de uma árvore solitária e ambas assumem uma posição central nas
pinturas, gerando a dúvida se são espaços interiores ou exteriores. Conforme essas pinturas
progrediram ao longo daquela década, as figuras enigmáticas foram perdendo suas associações
gurativas, transformando‐se em blocos planos, monocromáticos.

Em seu comentário sobre a exposição individual de Andrade de 1995, Lorenzo Mammì afirmou
que, entre sua geração, sua obra parece ser aquela que permaneceu associada de maneira
mais forte ao legado do expressionismo.6 No entanto, o crítico defende que, embora Andrade
explore nuances que são específicas a referências brasileiras dentro dessa tradição, como
Oswaldo Goeldi, ele se diferencia de seu predecessor por meio da própria materialidade da
pintura, em vez dos grafismos planos da gravura. A observação de Mammì capta esse momento
particular na trajetória de Andrade: o ponto médio no processo sintetizador de suas referências
expressionistas e neoexpressionistas formativas que, como veremos a seguir, dá lugar à
simplicidade elegante dos blocos de cor que já mencionamos. Podemos agora pensar nessa
transição como o abandono gradual da iconografica do expressionismo em prol da materialidade
da pintura que é apresentada na tensão entre planura e volume.

Hoje, falar em uma evolução da figuração em direção à abstração no trabalho de qualquer


artista quase não faz sentido. No entanto, como pintor, o legado da história da arte não só se
encontra fortemente presente no trabalho de Andrade, mas é também sua própria força
movedora, proporcionando os próprios problemas que ele tenta resolver de forma incessante.
Abstração e figuração, o problema do primeiro e segundo planos, a relação entre diferentes
campos de cor, todas essas questões evoluíram em seu trabalho de forma anacrônica, contudo
assim o fazem dentro de uma trajetória pessoal muito clara e coerente, uma trajetória que
registra a resolução desses conflitos, ora gradual ora abrupta, que o artista impõe a si mesmo.
Essa é de fato uma condição muito contemporânea. A evolução do trabalho, portanto, não
segue qualquer máxima preestabelecida, mas revisita momentos passados (sejam eles em sua
trajetória ou dentro do cânone mais abrangente da história da arte), quando necessário ou
desejável.

A pintura, pela sua própria natureza e tradição, é autorreferencial. Não em um sentido


greenberguiano da autonomia e especificidade da obra, mas em relação ao fato de que é um
meio condenado a carregar sua própria história. Se a crise da pintura provém da compreensão
de que, após os monocromos de Malevich, a pintura estava fadada a citar seu próprio passado,
o retorno da pintura na década de 1980 marcou a aceitação final e a adesão a tal fato. Se
naquela época isso foi anunciado por muitos como uma característica da era pós‐moderna,
hoje, parece mais coerente argumentar, segundo Giorgio Agamben, que tal fato pertence à
natureza anacrônica da contemporaneidade.

Crescemos acostumados a pensar sobre a “arte contemporânea” como algo que emerge da
ruptura conceitual do expressionismo abstrato. Ou seja, uma nova forma de fazer arte que surge
de uma certa genealogia da arte moderna, que se legitimou ao se rebelar contra o ideal de
progresso em direção à abstração ou, mais especificamente, contra a especificidade da própria
pintura como meio. Sob essa perspectiva, arte pop, conceitualismo e minimalismo são, por
conseguinte, entendidos como três ramos inaugurais distintos, porém ligados, do
contemporâneo. Cada um desses ramos rejeita aspectos específicos de seu predecessor
comum e imediato, o expressionismo abstrato. No entanto, em cada um desses movimentos
pode‐se dizer que a ruptura foi somente parcial e se deu por meio da referência a momentos
anteriores dentro da longa duração da história da arte. Portanto, a arte pop aboliu a abstração
mantendo a pintura e o plano bidimensional como seu principal suporte. Trouxe à tona
referências claras à mídia de massas, mas cuja presença germinadora já podia ser encontrada
no cubismo e no dadaísmo. O conceitualismo negou a especificidade do meio que havia definido
a ideia de Greenberg sobre pintura modernista, mas o fez sem descartar a abstração por
completo. Pelo contrário, pode‐se argumentar que levou a abstração ao seu limite, ao nível da
linguagem e do pensamento. Isso foi conquistado invocando o legado de Marcel Duchamp e o
ready‐made. O minimalismo também rejeitou a especificidade do meio, mas sem deixar de ser
abstrato em sua natureza, revivendo de maneira explícita o legado do construtivismo europeu.
Sendo assim, deve‐se concluir que aquilo que foi rejeitado em comum por essas três tendências
rebeladas não foi o expressionismo abstrato em si, mas a ideia de um progresso linear da arte
moderna.

Periodizar esses movimentos como uma sucessão de rebeliões traz suas limitações não apenas
em termos do anacronismo presente na denominação do expressionismo abstrato, mas, acima
de tudo, na especificidade, ou provincialismo, dessa linha genealógica em particular. Se Alfred
Barr institucionalizou a ideia de arte moderna com a criação do Museu de Arte Moderna e a
noção de uma trajetória em direção à abstração, Greenberg transpôs essa ideia para sua
culminação lógica e obviamente americana.

Portanto, surge a questão de como considerar os casos em que a arte se desenvolve fora dessa
genealogia. Devem ser considerados menos contemporâneos do que aqueles que seguiram a
arte pop, conceitual ou minimalista? O fato é que parece que artistas do mundo todo
encontraram e responderam à chamada crise da pintura entre o final da década de 1950 e a
década de 1970 por meios diversos e múltiplos. Esses artistas passaram a articular suas
variáveis e múltiplas tradições pictóricas locais com o ressurgimento internacional da pintura nos
anos de 1980.

No Brasil, no início da década de 1980, uma nova geração de artistas foi quase imediatamente
associada a esse chamado retorno da pintura. Essa prontidão se deveu em grande parte a
tendências internacionais da época, como o neoexpressionismo alemão, a transvanguarda
italiana e a bad painting nos Estados Unidos. Essa associação foi reforçada na Bienal de São
Paulo de 1985, que ficou conhecida pela exibição de pinturas em um mesmo corredor
compondo uma “Grande tela”. Esse evento colocou jovens artistas brasileiros, como Andrade,
lado a lado com colegas internacionais.

Esses artistas são frequentemente descritos como uma “geração”, pois sua chegada em cena
também coincide com um momento crítico nas transformações da política brasileira, que passou
de um regime militar para o retorno da democracia, além de mudanças significativas na cena
artística local. Uma consolidação relativa do mercado de arte contemporânea e um sentido de
renovação trazido pela Bienal de São Paulo marcaram uma mudança significativa no ambiente
cultural das décadas anteriores, após tantos anos de isolamento imposto e da repressão da
expressão.

A “marca” geracional foi reforçada também por uma exposição realizada em 1984 na Escola de
Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, que mostrou o trabalho de jovens artistas
emergentes, muitos deles pintores, intitulada Como vai você, Geração 80?. No entanto, com o
poder da visão retrospectiva, podemos ver certas distinções regionais e/ou individuais,
especialmente na forma como esses artistas (pois muitos deles não são mais pintores) foram
incorporados ao cânone nacional da história da arte.

Se naquele momento o rótulo serviu como uma forma positiva de identificação, hoje, três
décadas depois, pode ter se tornado uma espécie de maldição. Tais associações muitas vezes
restringem a contextualização crítica e histórica dentro de uma genealogia específica, que por
sua vez traz o risco de aprisionar o artista dentro de um entendimento particular da década,
negando ou, no mínimo, obstruindo qualquer sentido de progressão que o trabalho possa ter
experimentado desde então.

Mais preocupante ainda é o fato de que quando generalizações internacionais e nacionais são
combinadas, o sentido sugerido de renovação cultural nacional parece ser baseado na ideia de
que princípios, tendências e modismos importados são de alguma forma adaptados aos locais
de forma não crítica. Em resumo, implica a noção de tabula rasa que incentiva certa desconexão
com o que aconteceu antes, seja em um nível local ou nacional. Parece‐me que esse conceito
deve ser contestado em sua totalidade ou, pelo menos, reavaliado ou reconsiderado à luz não
apenas das conquistas subsequentes do artista em questão, mas em termos do período
histórico como um todo. Portanto, há de se ter cautela com generalizações abrangentes. É com
esse aviso de cautela que devemos distinguir o surgimento e o desenvolvimento do trabalho de
Andrade.

Andrade insiste em distinguir a si e a seus colegas imediatos de outros artistas que emergiram
na década de 1980 em termos de sua educação artística e as relações que ocorreram a partir
do estabelecimento de um ateliê conjunto, a Casa 7, que era formado por ele, Antonio Malta,
Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Paulo Monteiro (e Nuno Ramos que, mais tarde, substituiu
Malta). Os artistas eram amigos que se conheciam desde a escola, o Colégio Equipe, onde se
reuniam ao redor da produção de histórias em quadrinhos, seu entusiasmo comum pelo rock e
mais tarde pelas aulas de arte informais com Sergio Fingermann. Segundo Rodrigo Andrade:

Quanto à Geração 80, éramos totalmente à parte dela. Queríamos nos diferenciar. Todos que
participaram da expo no Rio eram estudantes de faculdade, Parque Lage, Faap. A gente não,a
gente tinha nosso grupo meio autossuficiente, a Casa 7 foi como a nossa faculdade […]
Andávamos com amigos da música, do rock. A gente só conhecia os colegas de geração de
longe, e só soubemos da exposição no Rio quando ela já estava aberta. Depois nos integramos,
mas sempre à parte. Achávamos aquelas pinturas muito alegres e fúteis, decorativas […] e a
futilidade do mundo da arte que adentrávamos e que nos deprimia só reforçou essa vontade de
diferenciação (e mais ainda com a aproximação com críticos como Alberto Tassinari, Rodrigo
Naves e Lorenzo Mammì). Queríamos algo mais consistente, tínhamos uma relação com o fazer
e a tradição da pintura que os outros da geração não tinham. Ao mesmo tempo, tínhamos
aquela velha relação adolescente com as histórias em quadrinhos (mas daí veio o Guston e
resolveu o conflito).7

Além das referências estéticas e das histórias em quadrinhos, a própria carreira de Philip
Guston teria chamado a atenção do jovem Rodrigo, que ainda tentava afirmar sua própria
identidade criativa. Para Andrade, a transição entre ser um adolescente que gostava de
desenhar quadrinhos e ser um artista profissional ocorreu quando a arte não era mais um
prazer, mas um problema.8 Naquele início, o problema em questão parecia ser como articular
sua formação com as influências internacionais a que ele era exposto, muitas vezes como
consequência de visitar o ateliê do próprio Fingermann. Assim como Guston, Andrade parece se
valer de seu passado, revisitando interesses antigos para então caminhar adiante.

Guston é um exemplo interessante de como os discursos predominantes da arte moderna


colapsaram e foram redefinidos entre as décadas de 1970 e 1980. Tendo frequentado o
segundo grau com Jackson Pollock, ele também viria a ser um celebrado pintor expressionista
abstrato. Antes disso, Guston havia respondido ao expressionismo de Max Beckmann e à
pintura metafísica de De Chirico. É para essas influências formadoras que ele retorna, de forma
peculiar, em 1968, quando abandona radicalmente a abstração, adotando uma forma de
figuração grotesca, metafísica ou do tipo história em quadrinhos existencialista. Guston faleceu
em 1980 e sua morte motivou uma celebração mundial de seu trabalho, incluindo sua
participação na Bienal de São Paulo de 1981. É nesse momento que Andrade e muitos outros
de sua geração entram em contato com seu trabalho.9 Conforme defende Robert Storr, com sua
morte e a retrospectiva itinerante que a seguiu entre 1980 e 1981, Guston se tornou um
paradoxo do mundo da arte, sendo ao mesmo tempo um grande mestre do passado e uma
importante referência para uma jovem geração de pintores.10

Uma considerável distinção também existia entre a abordagem geral da pintura e a abordagem
de Andrade e do grupo que divida o espaço do ateliê na Casa 7. Andrade refuta o rótulo de
“Geração 80”, pois este sugere um momento apolítico em que artistas, após a aparente
seriedade dos anos de 1970, celebraram o prazer do ato de pintar. Para Andrade, os artistas da
Casa 7 estavam mais interessados em produzir uma forma de pintura que fosse “pesada e
antidecorativa”.11 O conceito de tensão entre a obra e seu público já se nota em sua
abordagem desinteressada do circuito artístico local, um aspecto que eu identifico mais com o
grupo COBRA do que com os movimentos transvanguardista e neoexpressionista da época.12
Nesse sentido, a adoção de materiais baratos, como papel kraft e esmalte sintético, oferecia a
possibilidade de produzir grandes pinturas com gestos largos, livre da preciosidade do suporte
da tinta a óleo sobre tela.

No catálogo que lançou o grupo Casa 7 em 1985, que de fato cunhou a expressão após a
identificação do grupo com seu ateliê compartido, a curadora Aracy Amaral apontou como sendo
um tanto problemática a discrepância entre a seriedade daqueles ambiciosos artistas jovens e a
precariedade do papel kraft como meio.13 Ainda assim, como já vimos, essas discrepâncias se
tornaram inextricavelmente associadas ao trabalho de Andrade, mesmo que de formas
imprevisíveis na época.

Enquanto suas pinturas aumentavam em dimensão, seus temas se associaram a tópicos


vulgares. A tinta barata era aplicada de uma maneira bruta, violenta e imediata no papel frágil.
Apesar disso, seria errôneo pensar em uma ruptura absoluta com seus predecessores, pois
vemos tanto temas sutis que decorriam da tradição do Grupo Santa Helena quanto referências,
cada vez mais presentes, às xilogravuras de Goeldi.

A descoberta de artistas transvanguardistas e neoexpressionistas agiu sobre Andrade não tanto


como uma influência direta, mas como a confirmação de uma necessidade interior, uma
necessidade de resolver o conflito entre sua formação em gravura, pintura, naturezas‐mortas e
sua obsessão infantil por histórias em quadrinhos, rock etc. Nesse sentido, a introspecção de
Goeldi e a tradição do Grupo Santa Helena se encontraram com a pintura narrativa, existencial e
metafísica de Guston. Tal conjunção é evidente em O gabinete do senhor Oliva e Atelier
abandonado [pp.112–113], ambos de 1985, que exploram o tema recorrente do interior
(escritório, ateliê, etc.), mas aqui com uma referência explícita ao crítico de arte
transvanguardista Achille Bonito Oliva. Em comparação com o gabinete do crítico abarrotado de
telas, na pintura do ateliê abandonado, ele deixa a cargo de nossa imaginação desvendar por
que o ateliê foi esvaziado: se foi pela forte procura dos trabalhos ou devido à própria indiferença
do artista. Uma relação entre as pinturas parece ser incentivada, dada suas dimensões comuns
(50 × 60 cm) ou pela oposição, o cheio e o vazio, que a justaposição implica.

Os porões da academia e Sem título [pp.118–119], ambos de 1984, também compartilham as


mesmas dimensões (110 × 130 cm). Marrons, laranjas e vermelhos‐escuros são as cores
predominantes nessas representações de interiores atulhados. Ambos são lugares
claustrofóbicos, sujos e bagunçados. No primeiro, vemos uma variedade de objetos não
relacionados: um animal empalhado ou um molde de gesso de uma águia com as asas abertas;
um globo; o braço cortado da estátua da liberdade ainda com a tocha na mão; um livro; um
esquadro; um brasão e telas com molduras elaboradas, seus conteúdos escondidos já que
estão viradas para a parede. Todos esses elementos competem por espaço no interior lotado.
No segundo, notamos os destroços de alguma forma precária de habitação, talvez um artista
fumante inveterado e grande consumidor de álcool. As paredes estão desmoronando e o chão
está coberto de restos de objetos não identificáveis, potes de cerâmica e talvez rolos de papel.
Os móveis mal se encaixam no espaço e cobrem em parte um pequeno quadro na parede ao
fundo. Um relógio de parede e um relógio de pulso descartado parecem referências supérfluas
da passagem do tempo, dada a quantidade de bitucas de cigarro espalhadas pelo local.

Quando Andrade fala sobre o impacto decisivo que o catálogo da Documenta 7 teve em sua
produção inicial, é natural pensá‐lo como um meio pelo qual ele entrou em contato com a
ressurgência da pintura em sentido mais amplo. A exposição de 1982 incluía trabalhos de Georg
Baselitz, Francesco Clemente e Markus Lüpertz, para citar apenas alguns artistas que Andrade
reconhece como influências. Contudo, ele fala do impacto que a descoberta desses artistas teve
na forma como ele havia sido treinado e na dificuldade de articular essa formação com seus
interesses anteriores, tais como as histórias em quadrinhos. Além disso, ele confessa que mais
do que nenhum outro pintor, foi a descoberta da obra de Richard Long, na natureza e sobre a
natureza, que teve o maior impacto em sua maneira de pensar a arte.14 Ao justapor, como fiz
acima, suas primeiras pinturas em pares, relações narrativas aleatórias parecem emergir
espontaneamente. O estúdio e o depósito de peças acadêmicas descartadas passam a se
relacionar de maneira estranha: talvez se tornem ou já sejam “o outro do outro”.

Em uma tentativa de concluir ou fechar um padrão cíclico particular na trajetória de Andrade,


sugiro que revisemos um de seus trabalhos mais antigos (o mais antigo nesta exposição) à luz
das últimas manifestações dessa trajetória, com a qual este ensaio foi iniciado.

Em 1983, Andrade produziu uma pintura sem título de tamanho modesto (33 × 46 cm)
representando o interior de um lugar que parece ser o ateliê de um artista [p.115]. Nesse espaço
é exibido um conjunto de pinturas, colocadas nas paredes ou contra elas. Embora isso não
esteja definido de forma clara, as pinturas representadas na composição parecem em geral
abstratos coloridos com fortes amarelos e vermelhos. Uma delas assume uma posição central
apoiada em uma cadeira, compondo uma pintura dentro de uma pintura, enquadrada pelo
ambiente.

Sem título (1983) é uma obra que parece anunciar uma transição que é representada em si
mesma e sobre si mesma. Ela apresenta a diferença entre sua própria estética e a das pinturas
representadas nela. Nenhuma das pinturas dentro da pintura parece representar ambientes
fechados, e sua escala cromática se diferencia fortemente da representação do espaço interior
que os contém.

Uma exceção é a pintura em frente à janela veneziana ao fundo. É uma obra de cores sóbrias
que parece representar uma paisagem, talvez o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, ou uma
pessoa nua reclinada – é difícil dizer ao certo. A própria janela parece separar o ateliê no
primeiro plano de outro mais ao fundo, talvez de outro artista. Ali, podemos observar pela janela
o que parecem ser várias telas quadradas penduradas na parede oposta. Na realidade,
conforme descobri depois, a janela reflete de maneira muito pertinente os trabalhos do próprio
Andrade, estes que são colocados na parede oposta e revelados pelos painéis de vidro que
atuam como espelhos.

A pintura de 1983 é claramente expressionista em seu estilo, mas contrasta bastante com outros
trabalhos que Andrade viria a produzir no ano seguinte. Seu espectro de cor é mais vasto e o
ambiente interior retratado parece bem menos desolado do que o ambiente nas obras
subsequentes que discutimos aqui.

Além disso, apesar de invertida, uma relação direta se estabelece entre os interiores
abarrotados de seu trabalho inicial e os ambientes atulhados nos quais ele agora escolhe
colocar seus simples, mas sofisticados, monocromos.

Também podemos pensar nessa separação causada pelo espelho em termos da dualidade que
marcaria o trabalho posterior de Andrade. Talvez uma obra específica venha à mente, tal como
Interior escuro [p.134], de 2010, que pode ser entendida, nesse sentido, como o artista
retornando ao quadro de 1983, aos painéis espelhados, somente para perceber que o tempo lhe
tornou opaco. Esse não é um argumento absurdo como pode parecer à primeira vista.

Sem título (1983) é uma pintura que funciona como uma espécie de manifesto pictórico, pois
além de anunciar uma ruptura entre ela e as outras pinturas representadas dentro dela, também
é desconcertante ao se mostrar como uma premonição de certos temas que emergiriam muito
mais tarde na carreira de Andrade, tal como o tema da janela ou a justaposição de dois campos
ou massas de cor que apareceria ainda depois. O artista mal poderia visualizar essas
associações quando produziu esse pequeno quadro em seu estúdio na Casa 7, a única obra
presente nesta exposição pintada a partir de observação. No entanto, essas são qualidades que
o artista, quando mais maduro, percebeu ao compilar as imagens para uma publicação de 2008
sobre seu trabalho, a qual estou usando para descrevê‐lo. Em outras palavras, o artista mais
velho agora entende os aspectos de uma pintura inicial, mostrando certos impulsos que ele
agora reconhece como desdobramentos em sua produção atual.
Se em As meninas, de Velázquez, o espelho revela o tema (o rei e a rainha) de uma pintura
cujas costas estão viradas para o espectador, as janelas espelhadas nesse pequeno quadro de
Andrade de 1983 revelam seu tema (embora seu tema mais recente): a retrospecção. Agora, a
pintura não é mais uma representação de um estúdio, mas uma obra cujo tema é a
representação simultânea de seu futuro, presente e passado.

Michael Asbury é crítico de arte, curador e professor de história da arte.

¹ O termo “contaminação” foi usado por Taisa Palhares em seu texto sobre essas intervenções.
Ver: PALHARES, Taisa. “Espaços contaminados: a pintura como experiência de diferenciação”.
In: Rodrigo Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 159.

² ANDRADE, Rodrigo. Palestra na Escola da Cidade: minha pintura no contexto da arte


contemporânea. Disponível em: <https://www. youtube.com/watch?v=nA97‐e92YB8>. Acessado
em 28 de setembro de 2017.

³ Ver: Blog da Raquel Rolnik. Disponívelem: <https://raquelrolnik.wordpress.


com/2017/05/25/intervencao‐na‐cracolandia‐ luz‐para‐quem/>. Acessado em 28 de setembro
de 2017. Ver também: Artur Rodrigues, “Doria quebra o silêncio, volta a falar de cracolândia e
promete não recuar”. Folha de S. Paulo, 29 de maio de 2017. Disponível em: <http://www1.folha.
uol.com.br/cotidiano/2017/05/1888484‐doria‐ quebra‐o‐silencio‐volta‐a‐falar‐de‐cracolandia‐
e‐promete‐nao‐recuar.shtml>. Acessado em 21 de outubro de 2017.

4 TASSINARI, Alberto. “Figurações pelo outro”. In: Rodrigo Andrade, op. cit., p. 12.

5 O filme foi codirigido por Andrade e Wagner Morales.

6 MAMMÌ, Lorenzo. In: Catálogo da exposição, Camargo Vilaça, São Paulo, 1995, p. 7.

7 E‐mail do artista (15/09/2017).

8 Palestra de Rodrigo Andrade na Escola da Cidade: minha pintura no contexto da arte


contemporânea, op. Cit.

9 Andrade menciona que descobriu Guston em catálogos, e não na bienal. Ibid.

10 STORR, Robert. “Phillip Guston: Hilarious and Horrifying”. In: The New York Review of Books,
8 de março de 2015.
11 Ver “Cronologia”. In: MESQUITA, Tiago (org.). Resistência da matéria. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2014, p. 213.

12 Andrade recorda‐se de ver uma exposição do grupo COBRA no MASP. Eles também
estavam presentes na Bienal de São Paulo de 1985.

13 AMARAL, Aracy. “Uma Nova Pintura e o Grupo Casa 7”, catálogo da exposição, Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 1985. In: AMARAL, Aracy. Textos do
Trópico de Capricórnio: artigos e ensaios (1980-2005), vol. 3, Bienais e artistas contemporâneos
no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 141.

14 Andrade, em um e‐mail para o autor (01/10/2017), disse, por exemplo: “No catálogo da
Documenta 7, um trabalho me marcou especialmente, não foi o de nenhum pintor da
transvanguarda, e sim o de Richard Long e seus arranjos de pedras em locais ermos como o
topo de montanhas etc. […] Aquilo me deu uma sensação de vazio, de ar rarefeito da arte, que
me deu medo e causou uma crise forte que me obrigou a tomar providências que culminaram na
invenção dos painéis de esmalte sintético sobre papel kraft…”.

Texto publicado originalmente no catálogo Rodrigo Andrade: pintura e matéria (1983-2014)/


curadoria e texto Taisa Palhares ; texto Michael Asbury. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo,
2017. Exposição realizada na Estação Pinacoteca, de 9 de dezembro de 2017 a 12 de março de
2018.

TAÍSA PALHARES

2013

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Espaços contaminados: a pintura como experiência de diferenciação

No ano 2000, Rodrigo Andrade foi convidado a participar do “Projeto Parede”, no Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM-SP). O desafio consistia em intervir temporariamente no corredor
entre o saguão de entrada do museu e a sala principal de exposição. Pela primeira vez, o artista
se viu confrontado com a possibilidade de dar uma dimensão ambiental às pinturas com blocos
de cor que vinha realizando desde 1999. O local, que servia ainda como passagem para o café
e restaurante, era extremamente ruidoso. Rodrigo decidiu colocar dois pares de formas
geométricas retangulares de massas de tinta a óleo (rosa e laranja; vermelho e azul)
diretamente na parede e deslocados de tal modo que se tornavam visíveis frontalmente de
maneira parcial ou a partir do saguão de entrada ou do interior do café.

Mesmo que sua pintura já não se restringisse aos limites da tela, realizá-la na parede trazia
novas questões. Assim tão próxima do espaço do espectador e em um lugar onde era preciso
lutar pela atenção do passante, ela curiosamente assumia seu caráter de mais uma coisa entre
as coisas, uma ordinariedade que Andrade parecia almejar também nas telas. Não era mais
somente dentro de um sistema visual puramente pictórico que os blocos monocromáticos de
cores eram percebidos. De alguma forma, agora era preciso lidar com uma série de
características físicas e culturais que na tela ainda podiam ser mantidas à distância. De par com
isso, fazer pintura. Pois a materialidade dos blocos, a potência das cores e das relações entre
elas deixavam bem claro que o desejo do pintor estava ali, condensado naquelas massas
coloridas.

O procedimento inseria-se coerentemente na produção que o artista vinha desenvolvendo desde


o ano anterior e que sugeria um processo de esvaziamento do campo pictórico. A partir de uma
lógica binária, a pintura de Rodrigo se concentrava na exploração de um sistema relacional no
qual placas de tinta eram aplicadas sobre a superfície branca da tela,1 sem que uma
composição prévia determinasse a sua localização. De espessuras diferentes, ora de superfície
pegajosa ora lisa, as placas tinham uma colocação que parecia obedecer a uma ordem casual;
impressão reforçada pelos deslocamentos, irregularidades e assimetria com que surgiam no
espaço. Não sem certa ironia, era como se as pinturas respondessem à questão sobre sua
especificidade de maneira simples e direta: a pintura se resume à matéria, à cor e à relação
entre formas pouco expressivas sobre um anteparo neutro e nada mais além. O procedimento,
que segue uma regra comum básica, torna-se infinitamente diversificado na medida em que
nunca sabemos como as cores, por vezes tão alheias entre si, irão reagir lado a lado. É a cor
que singulariza, ou melhor, introduz diferenças infinitas, nesse fazer padronizado.

A escolha da forma, que com o decorrer do tempo recai com frequência sobre o retângulo (com
variações de tamanho, volume e no desenho das arestas), também parece aleatória.

Em um primeiro momento, essa superfície poderia receber alguma cor, como cinza ou azul, que
funcionavam como fundo. Contudo, tal procedimento parece ter sido pouco a pouco
abandonado, predominando as telas preparadas em branco.
Mesmo que seja possível reconstituir a trajetória de sua geometria na pintura de Rodrigo
Andrade dos anos 1980 ou em momentos particulares de séries dos anos 1990, enquanto forma
em si ela não possui um valor especial. Sua reiteração e inexpressividade sugerem uma espécie
de “forma ready-made”. Seu desenho é universal não por algum significado metafísico que
possa conter, mas pela facilidade com que pode ser encontrado. O retângulo remete ao universo
urbano, às telas de cinema e televisão, ao design gráfico, às formas modulares da indústria, às
placas de sinalização e propaganda. Naturalmente, também pode ser associado, no âmbito
restrito da história da arte, à Abstração Geométrica, ao Construtivismo, ao Minimalismo, etc.
Contudo, o artista se apropria dele enquanto forma gasta, banal, e por isso em si não assume
nenhum significado particular para a compreensão de seu trabalho.

Se essa forma geométrica não se apresenta como a medida de algo, sua presença na superfície
da tela se justifica enquanto aquilo que plasma a cor. E é dessa presença ostensiva da cor
simultaneamente como matéria e como sensação visual, o cruzamento entre a percepção tátil e
óptica, que o trabalho retira parte de seu interesse. Pois não podemos deixar de pensar que, em
um país cujo estabelecimento de uma tradição plástica se dá de maneira tão rarefeita, sobretudo
no âmbito da pintura, tal ostentação não é ingênua. Como artista que iniciou sua produção nos
anos 1980, no momento da “volta à pintura”, e que continuou pintando a despeito de sua morte
tantas vezes anunciada, o caráter afirmativo e de prazer vital desses blocos de cor fala por si só.

Por outro lado, mesmo antes de migrar para as paredes do museu, a produção de Rodrigo
Andrade almejava a conquista de um espaço não mais restrito aos limites físicos da tela. A
trajetória desenvolvida por sua pintura indicava a busca de um espaço visual que se
concretizava, de maneira real e não apenas metafórica, a partir do embate entre as formas no
quadro e o corpo do espectador. Na esteira de uma corrente da arte contemporânea para a qual
o espaço da obra de arte apresenta-se aberto, ilimitado fisicamente, o artista procura eliminar
toda espécie de interioridade, restando a relação objetiva e corporal entre as placas de cor e sua
percepção.

Sendo assim, seria natural que buscasse encontrar um espaço para essa pintura que não fosse
mais somente aquele em geral destinado originalmente a ela. Seria preciso confundi- la com o
mundo, para que neste embate ela mantivesse sua identidade. Após a parede do MAM,
Andrade realizou em um boteco, no bairro paulistano de Santa Cecília, a pintura Lanches
Alvorada (2001). Sobre as paredes de azulejo do bar, ele instalou blocos de tinta a óleo em
cores que se confundiam, apesar da discordância entre si, com elementos visuais bastante
poderosos e característicos de um estabelecimento desse tipo: tabelas de preço pretas com
letras amarelas, caixas de cerveja em plástico vermelho, a televisão pendurada próxima ao teto,
as cadeiras de metal pintadas de vermelho, o azulejo antigo com desenhos em rosa, laranja e
amarelo. O que nas telas era uma relação entre cores, aqui se torna uma conversa mais ampla
e contaminada.

Pinturas decorativas, alguns poderiam retrucar. Mas ocorre que a presença daqueles corpos de
cor não era apenas bem-humorada. Havia algo que intrigava (o trabalho foi destruído em parte
pelo desejo irresistível que provocava de ser tocado). Se, por um lado, pareciam estabelecer
uma relação quase mimética com o ambiente – e pode-se dizer que sua superfície adquiria,
como que por osmose, o aspecto engordurado do bar –, em algum momento o elo era
interrompido e se impunha uma estranheza, uma realidade que era concreta e ao mesmo tempo
paralela, artificial.

A pintura não era absorvida pelo espaço, ao contrário, apesar da curiosa convivência,
mantinha-se como um corpo estranho que mudava toda relação que nós, fregueses, tínhamos
com ele. Em primeiro lugar, ela potencializava visualmente nossa experiência. Depois era outro
tempo, a realidade constituída pelo diálogo visual entre as cores que surgia. Mas o mais
revelador é que a singularidade dos objetos no espaço e dos blocos de cor na parede se
construía dentro desse sistema de contaminação. Como se o individual, a identidade, só fosse
plenamente conquistada dentro do coletivo, do conjunto, em relações de proximidade e
contraste entre as coisas, a pintura e a presença das pessoas no bar.

Em 2003, a contaminação do espaço da pintura pelo espaço exterior é trabalhada a partir da


projeção da rua no interior da galeria na exposição “Passagem”. Em um espaço retangular de
10,20 x 3,60 m, Andrade instalou nas duas paredes laterais, frente a frente, quatro retângulos
enormes de tinta a óleo, que eram multiplicados pelo espelho localizado na parede do fundo da
galeria. É preciso dizer que, localizada em um bairro popular de São Paulo, a Galeria 10,20 x
3,60 tinha como característica principal sua relação direta com o espaço urbano, pois apenas
um vidro separava seu interior da calçada. Andrade então resolve potencializar essa relação
entre exterior/interior através do espelho, que, assim como a tela branca na pintura, projetava o
espaço da obra para fora, estabelecendo um vínculo intenso com o corpo do espectador e uma
articulação estimulante entre os limites dos diferentes espaços (da pintura, do corpo, da galeria
e do público).

Em Paredes da Caixa (2006), a mais recente instalação de Rodrigo Andrade, os mesmos blocos
de cor de tamanhos, formas e espessuras diferentes são instalados em algumas salas do
Museu da Caixa Econômica Federal. Não mais o espaço da galeria, mas, como em Lanches
Alvorada, trata-se aqui de explorar o vínculo entre a pintura e o universo dos objetos cotidianos.
O museu, cujo ambiente reconstitui a primeira agência bancária da instituição em São Paulo no
final dos anos 1930, é caracterizado pela decoração pomposa e austera, em tonalidades de
verde e vermelho, com paredes parcialmente revestidas de diferentes padrões de madeira
envernizada. Testemunho de um passado de riqueza e progresso do estado de São Paulo, tudo
aqui parece respirar outra realidade. É como se o passado estivesse preservado nos objetos e
vivesse em suspensão no sexto andar do edifício, na praça central da cidade. Espalhados
pelas paredes, retratos em estilo acadêmico de personalidades marcantes da história do banco:
nomes como o do imperador dom Pedro II, do presidente Getúlio Vargas e do jovem político
Paulo Maluf. Os retratos convivem com grandes estantes de livros, mapas, cartazes, peças de
mobiliário de época, máquinas de escrever, calculadoras e uma estranha sala de atendimento
médico.

Apesar da total diferença em relação ao ambiente do bar, aqui os blocos de tinta, que estão
espalhados por diversas salas, e nem sempre são percebidos em uma primeira visita, também
se relacionam de modo ambíguo com o lugar. Certamente introduzem, com sua presença
marcante (os maiores retângulos, colocados na Sala da presidência, medem entre 110 x 180 x 2
cm e 175 x 215 x 4 cm), uma espécie de força vital nesse local congelado no tempo. Eles
também são percebidos enquanto corpos intrusos, mas simultaneamente encontram-se muito à
vontade no espaço.

Para o espectador, é quase impossível abstrair a peculiaridade do lugar e se concentrar “na


pintura”. Quase de maneira inconsciente, o olhar é lançado às salas, no intuito de encontrar
alguma similaridade entre as cores escolhidas pelo artista e os objetos encontrados no espaço.
Como se uma subordinação indicial entre os elementos físicos do museu e a pintura pudesse
fornecer a chave do enigma. Se por um lado, ela é reativa a qualidade pictórica dos objetos e
dos revestimentos (que também há muito perderam sua vida útil para se tornarem peças de
antiguidade), por outro, a relação entre os blocos de tinta mantém-se autônoma, não se
resumindo a possíveis vínculos espaciais.

Essa passagem física contínua entre dois universos, a tentativa de fruir da cor como algo
autônomo, experiência puramente estética, desvinculada do espaço circundante e, ao mesmo
tempo, a atitude incontrolável de procurar na sala outros elementos reagentes e ativadores da
relação entre as massas coloridas, ampliando dessa forma o campo de reverberação, revela a
potência da intervenção de Rodrigo Andrade. Novamente aqui estão as permutações entre, de
um lado, blocos retangulares e monocromáticos de cor e, de outro, o museu que, vistos em
conjunto e em constante ação, se afirmam individualmente. O tecido de relações que eles criam
propicia uma abertura a novas significações.2
Em paralelo à produção de pintura sobre tela, essas breves instalações pictóricas (ou pinturas
ambientais), buscam tensionar a fronteira entre a experiência da arte e a percepção do mundo
(e, diga-se de passagem, não como exercício formal). Evidentemente, desde o princípio Rodrigo
Andrade não questiona a potência individual de suas massas de cor. Contudo, essa certeza não
autoriza que, num gesto prepotente, elas existam como unidades ideais. A libido, energia motriz
de toda ação, encontra-se plasmada nessas formas geométricas à espera de um detonador. O
contato entre elas e o entorno irá ativar essa energia. O resultado é um curioso processo de
singularização que se dá por meio de troca e contaminação. De certa forma, esses blocos
reabilitam, para o espaço cotidiano, no qual prevalece uma experiência limitada e de certo modo
empobrecida do mundo, a força de uma experiência mais vital. Ao distender as fronteiras de sua
pintura, Rodrigo Andrade assume um risco. Tudo poderia resultar em puro efeito decorativo, se
não se acreditasse na possibilidade de diferenciação.

Rodrigo Andrade explorou uma possível interpretação do seu trabalho no filme Uma noite no
escritório. A partir da instalação Paredes da Caixa, ele realizou um vídeo que conta a história de
um funcionário exemplar, o jovem gerente de banco protagonizado pelo próprio artista, Dr.
Wilson, que começa a sofrer de uma desconhecida “moléstia nervosa”. Associando a pintura
Office at night (1940), de Edward Hopper, ao Museu da Caixa, o filme desconstrói, de maneira
extremamente cômica, todo o realismo inspirado pelo ambiente do museu, tomando os blocos
de cor como protagonistas principais do filme. Em uma noite de serão, Dr. Wilson começa a
sofrer alucinações que colocam em perigo “uma carreira exemplar”. De repente, esse dedicado
e responsável funcionário passa a se comportar de modo estranho depois que começa a ver
“formas, cores e matéria”, ou seja, “abstrações”, em locais inusitados (nas paredes, no telefone,
no corpo dos outros funcionários). O fantástico, o desconhecido, o desejo reprimido,
representados por essas massas de cor, irrompem enfaticamente como uma espécie de mundo
paralelo que ameaça a realidade padronizada e bem administrada do jovem gerente de banco.
Um universo subterrâneo ou inconsciente que reclama também seu direito à existência.

ALBERTO TASSINARI

2008

VOLTAR

1. Quanto mais singulares nos tornamos, quanto mais para nós nos voltamos, por nossas
lembranças, nossos desejos, serenos ou agitados, o que quer que seja, mais dos outros somos
feitos. Para um sociólogo, isso não é novidade alguma. Para um artista, porém, é preciso que
crie, invente, até que, no ponto final, na obra pronta, o olhar do outro, desde sempre
pressuposto, venha enfim depositar-se sobre o que, desde o início, a ele já se destinava. Mas
também nisso não há novidade. O dom da arte é esse mesmo. O espectador recebe presentes
que desfruta, se as obras valem a pena, como se fossem o dom maior, o dom da vida. Desta,
temos pouco controle, inventamos uma história, tão coesa quanto possível, e apagamos, quanto
der, os pecados originais, os outros que nos moldaram, a língua que falamos, a época em que
nascemos… E tampouco isso é novidade.

2. Se a arte é feita para o outro, nem sempre seu assunto é esse. Muito menos o outro, como
medida que nos conforma, costuma ser um tema evidente da arte. Que isso seja possível, que
seja o tema por excelência da arte, por meio de uma pintura abstrata feita de dois ou quatro
tijolinhos de massas de tintas coloridas sobre um fundo branco, isso sim é uma novidade. E uma
das novidades mais felizes da arte brasileira da década que transcorre. Tudo é muito simples e
ao mesmo tempo variado. Detém-se o olhar em uma das massas e logo outra ao lado começa a
ser considerada pelas diferenças em relação à primeira. A primeira, assim, torna- se um padrão
para a segunda. E é nesse ponto que as sutilezas começam a surgir. Tudo que na segunda
difere da primeira salta à vista. E como tudo acaba por diferir, com exceção dos tamanhos
próximos, uma marca é, desse modo, definida pelas discrepâncias entre esta e a outra.

3. Muito na arte, na sua apreciação, mesmo que não de maneira explícita, vem de
comparações. Nas obras de Rodrigo Andrade feitas a partir do final de 1999 ocorre, porém, que
as pinturas mesmas, de pronto, são comparações. Uma marca sempre é tomada como padrão
para que as diferenças de outra se salientem. A escolha da marca que servirá de padrão,
entretanto, é arbitrária. Medimos a da esquerda (ou a de baixo) pela da direita (ou pela de cima).
Mas também o sentido oposto logo pode entrar em cena. O que era padrão passa então a ser o
que é medido. E assim, coisa nem sempre considerada, assume a condição de outro do outro.
Se a expressão “outro do outro” é um tanto abstrusa, descreve, porém, a sociabilidade da qual
essas marcas são metáforas precisas. Pôr-se no lugar do outro é um exercício que, mesmo
quando difícil, reiteramos ao longo da vida. Mais difícil se considerarmos que há sempre uma
âncora na solidão, nos obstáculos que não controlamos; é ter-se como o outro que o outro nos
desvenda. É algo raro, quase impossível. Contudo, como outro dom da arte é não o ser, mas o
que poderia ser, é algo que o ir-e-vir incessante do olhar entre essas massas de cor tão
semelhantes, tão próximas, mas também tão diferentes, deixa entrever.

4. É comum que um artista alcance o que há de mais inovador na sua arte transpondo para o
interior de suas obras mais inventivas aquilo que antes só era perceptível pela sua trajetória. Se
as formas que se dispõem nas pinturas de Rodrigo Andrade há cerca de dez anos encontraram
uma espécie de sociabilidade, isso se deu ao mesmo tempo que o artista libertou-se de duas
constantes de seu percurso: uma temática da solidão e as sucessivas influências de artistas de
índole quase sempre expressionista. Uma coisa é mesmo afim com a outra. De acordo com o
tema abordado – fossem acúmulos de objetos, colagens de materiais diversos, persianas,
paisagens mais ou menos abstratas, peças de mobiliário –, um ou outro artista participava de
um diálogo com as obras. O tema – de modo breve, a solidão – possuía, desse modo, na obra
de um artista que funcionava como paradigma, uma medida exterior à obra, embora
reinterpretada de modo livre e inventivo. A partir do final de 1999, porém, as pinturas de Rodrigo
Andrade ganharam tal autonomia que as formas, de solitárias, passaram a ser relacionais, e o
ir-e-vir entre obra e influência também foi ultrapassado pelo vaivém do aspecto relacional das
formas. E o que há de extraordinário nisso é como sua pintura, que sempre foi direta, algo
gráfica, ganha ainda mais com esse aspecto, exibindo um frescor e uma economia de meios
inusitados nos dias de hoje.

5. Não é de todo correto chamar as primeiras influências das pinturas de Rodrigo Andrade de
expressionistas. Descontados os anos de estudo e aprendizado, seus primeiros trabalhos, as
pinturas em esmalte sintético sobre papel kraft, de 1984, foram mais influenciadas pelo
neo-expressionismo de Lüpertz do que pelo expressionismo. O neo-expressionismo, porém, é
um movimento da pintura contemporânea. Muito pouco tem do espaço expressionista de inícios
do século XX. Movido pelo em tudo problemático revival da pintura – e que era mais uma
contraposição à pintura (a qual nunca realmente deixara de existir para precisar voltar)
minimalista –, o neo-expressionismo muito mais reciclava signos expressionistas – seus
códigos, não sua poética – do que os criava. Algo das colagens pop, que também reutilizam
signos, rondava o neo-expressionismo. Daí, talvez, a interpretação vivaz e leve, por meio do
esmalte e do papel kraft, que Rodrigo Andrade – e seus companheiros da Casa 7 (Carlito
Carvalhosa, Fábio Miguez, Nuno Ramos e Paulo Monteiro) – deu daquilo que para a pintura
alemã da época era grave e carregado de história. O sucesso súbito do grupo Casa 7, além do
ambiente propício da “volta à pintura”, se deve em boa medida ao uso desses materiais sem
pretensão e ao aspecto direto, quase gráfico, e comunicativo – do qual Rodrigo Andrade nunca
abriu mão – das pinturas de então.

6. Além de Lüpertz, ou mesmo mais do que ele, a grande influência, em 1984 e 1985 – ano em
que expõe na Bienal de São Paulo pinturas a óleo sobre tela, e não mais em esmalte sobre
papel kraft –, das pinturas de Rodrigo Andrade é Philip Guston. Este, porém, com sua pintura
refinada ao extremo, em contraposição aos temas repletos de violência e detritos, e algo
alucinatória, era um modelo próximo demais de Rodrigo Andrade, com a mistura das
experiências que tinha como desenhista de história em quadrinhos e estudante de arte. Tão
próximo quanto distante. O Brasil não é a América (do Norte) e Guston, antes de sua singular
pintura figurativa, era um excelente pintor abstrato. Que em 1986 as pinturas de Rodrigo
Andrade se tornem abstratas, com colagens de papéis e pentimentos em forma de rasuras, diz
muito do ambiente da jovem pintura dos anos 1980. De Lüpertz e Guston a uma espécie de
junção de Rauschenberg com o novo realismo é uma virada e tanto. E nisso não há nada de
modismo ou qualquer outra intenção não artística por parte de Rodrigo Andrade. A “volta à
pintura”, cujos principais representantes em São Paulo eram os membros do grupo Casa 7,
participava de um movimento mais amplo que se convencionou chamar Geração 80. Com
exceção de Jorge Guinle, cuja obra já vinha dos anos 1970, quase todos os artistas da Geração
80 atingiram momentos mais autônomos na virada dos anos 1980 para os 1990. A melhor
pintura dos anos 1980 continuava a ser a dos artistas da que poderia ser dita geração dos anos
50: Iberê Camargo, Mira Schendel e Eduardo Sued, para ficar apenas em três exemplos. Os
artistas jovens atiravam um pouco para todo lado, pois, repentinamente reconhecidos, tiveram
de constituir sua trajetória em público muito mais rápido do que é costumeiro.

7. Entre 1989 e 1997, as pinturas de Rodrigo Andrade ganham uma intensidade poética nova.
As experimentações cessam. Já antes, em 1988, ele como que cava o quadro com tons
leitosos, opacos, tentando extrair da pintura aquilo que ela pudesse dar sem nenhum
subterfúgio, nenhuma influência, num jogo em que o artista estivesse só diante da tela e nada
mais. Mas, assim sendo (não atribuo intenções, aqui, ao artista, mas ao que tento depreender
das obras), essas pinturas dominadas, em geral, por um matiz (azulado, esbranquiçado, areia
são exemplos) se fragmentam em gestos com várias direções e perdem, ainda que portadoras
de uma beleza surda, o caráter direto, franco, de toda a trajetória do artista.

8. A interpretação anterior talvez esteja correta tendo em vista que, em 1989, Rodrigo Andrade
realiza uma série de pinturas em que o aspecto gráfico (abandonado em 1988) retorna por meio
de persianas coladas no quadro que servem de guia e contraponto para conjuntos de pinceladas
mais nítidos e mais amplos. Tudo se passa como se pudéssemos ver, além do que as persianas
deveriam ocultar, silhuetas de móveis, de seres na noite, de um reflexo do sol, pintadas sobre as
persianas e não nos intervalos entre elas. Um pouco como Kiefer, que usava então as linhas de
fuga de uma paisagem para aderir coisas sobre ela, Rodrigo Andrade toma como baliza as
persianas dispostas horizontalmente. Não replica, como Kiefer, porém, adereços e outros
procedimentos sobre o que é plano embora também perspectivado. Outro tanto como o
Schnabel dos fins de 1970 e início de 1980, Rodrigo Andrade empastela as persianas sobre o
quadro assim como Schnabel espatifava pratos e colava seus pedaços. Essa dupla
interpretação dos que eram os dois melhores pintores da “volta à pintura” é, em tudo, apenas
interpretação. Não se trata mais de influências. Mesmo porque a cor não é de nenhum deles. O
pincelar também não, com suas tramas algo quebradiças de cores puras, desenhadas em linhas
paralelas e irradiando sol ou noite sem que já se saiba se aquém ou além do entreabrir das
persianas.

9. Os reticulados de faixas de tinta e cor que as persianas, por suas formas, criavam continuam
entre 1992 e 1993, mas as persianas se ausentam das pinturas. Já não são mais necessárias,
embora tenham ajudado a produzir uma série de pinturas únicas, em que o linear e o pictórico, o
luminoso e o sombrio, o visto e o entrevisto se conjugam numa dosagem difícil de encontrar
entre essas dimensões quase antagônicas. Esses aspectos, embora de um modo mais
desarranjado, mas nem por isso menos potente e comunicativo, se intensificam nas pinturas de
1992 e 1993. De novo, há um alter ego artístico. Como os demais, não é casual. Porém, como
nas pinturas de 1989, o artista mais interpreta do que se influência. Uma pintura que desenha
enquanto pinta, e vice-versa, uma pintura, digamos, quadriculada, tem em Van Gogh seu mestre
e seu inventor. E é assim, em paisagens entre figurativas e abstratas, não sem um corvo aqui e
ali, em cenas oníricas em que o espaldar das cadeiras de Van Gogh vagueia, troca de cor, em
que seus campos se verticalizam, vagueiam também, e em que noite e dia se confundem, que
as pinturas se movem. Há uma beleza contorcida nessas telas, uma espécie de bate e rebate,
como se precisassem andar de lado em um momento, de viés em outro, simplesmente se
perder em mais outro, pois a conversa não é com qualquer um. São quadros tristes e ao mesmo
tempo radiantes, e nisso há mais um tanto de Van Gogh. Mas há também a força que irradiam
ou, ao contrário, a vagueza com que se deixam ir. Há a luta, sujeita a alguma vitória e muitos
fracassos, para interpretar – e nisso os fracassos se igualam aos sucessos, como dois lados da
mesma coragem – talvez o mais pleno dos pintores.

10. Nas pinturas de 1994 a 1997, o rastro de Van Gogh abandona a cena. É como se um périplo
tivesse sido cumprido. Desde as primeiras influências neo-expressionistas, e que de
expressionistas pouco tinham, como se viu, até o embate com a fonte de todo o expressionismo,
o aspecto direto, gráfico, colorístico e comunicativo das pinturas de Rodrigo Andrade variou, e
muito, fortalecendo-se cada vez mais. Retorna então aos seres solitários das pinturas de 1984 a
1986. O traço é trocado por grandes áreas de cor. E se ainda há traço, e há, é porque o
contorno das coisas é delineado. As grandes massas coloridas, sem meias medidas, diretas
como sempre, passam a moldar o quadro. São volumes, bagagens deixadas pelo caminho,
quem sabe, seres na sombra, isolados, sós, e quanto mais juntos estão, mais sós. Algumas
dessas pinturas são de uma simplicidade de composição extrema. Algumas áreas de cor,
algumas coisas, e só. O mundo todo cabe nisso, e o mestre aqui é Goeldi. Mas não são
gravuras ou desenhos. São pinturas amplas. Tudo está quieto. Nada quase comunga com nada.
Tudo é só e só. E o caminho a seguir quem sabe seja abstrair essas formas. Ver no que dão.

11. Uma das coisas mais gratificantes para quem observa o caminho de um artista é assistir à
transmutação do que, já sendo excelente arte, passa a um nível mais alto de invenção. Entre
1998 e o final de 1999, Rodrigo Andrade depura as formas goeldianas dos anos anteriores.
Goeldi lhe deu o sossego, ainda que solitário, das coisas aquietadas. Sem saber no que vão dar,
o pintor passa a simplificar essas formas. Elas são quietas. Elas têm lugar. São manobráveis.
Não importa que uma mancha preta vertical mal lembre uma porta. Ou que dois cubos mal
lembrem dois baús. As formas ocupam o mesmo espaço, isso é o que importa. Porém, não
interagem. O artista as aplaina. Viram quadrados. E nada, ainda. Bóiam no espaço agora, como
que sem a força que já tiveram. Um único cubo preto, então, é posto no espaço. Ele se assenta.
Mas está só. Retorna-se aos quadrados. Tentam-se tons muito próximos, numa espécie de
exacerbação de Morandi, para que também os quadrados, quem sabe, se comuniquem. E nada.
Retorna-se aos contrastes. Também as formas ganham mais regularidade geométrica. Talvez
seja o caso. Mas o que faz esse fundo violeta no quadro? Volta-se ao fundo pálido, à
tonalização. Tudo é branco e cinza. Nada. A não ser um quadrado laranja na lateral da pintura,
como se dissesse: contraste! Parte-se então de um fundo cinza-claro. Sobre ele, duas massas
retangulares de amarelo. Aqui há algo. No amarelo sobre o cinza-claro, praticamente branco, há
um contraste novo. Mas as massas amarelas ainda são solitárias. Que assim sejam? Sim.
Porém o contraste do amarelo sobre o branco instiga. Ao contraste de uma cor sobre o fundo
branco não seria o caso de acrescentar o contraste de uma cor em relação à outra?

E as portas se abrem. Tão desenhadas, coloridas, diretas e separadas, e, no entanto, agora as


formas se medem umas pelas outras sem cessar. O grito de O grito, que reverbera por todo o
espaço em ondas, emblema do espaço expressionista em que as formas se puxam e repuxam –
diferente da outra matriz do espaço moderno, a cubista, em que as formas penetram umas nas
outras –, encontra aqui uma versão inusitada: a forma amarela, quase retangular, de cantos em
meia-lua é isso e mais aquilo porque se vê empurrada, repercutida na outra, e assim se
compara com a forma quase quadrada, marrom, e com limite irregular. E para que, com os
contrastes entre o fundo e as formas e entre as formas, se ganhe mais contraste ainda, as
formas vão ganhando espessura. Destacam-se ainda mais do fundo e mais se diferenciam
umas das outras, assim como o fundo passa a ser quase sempre branco, contrastante,
adquirindo, ele também, a figura de um tablete sobre a parede. Enfim a vitória. E, como em um
Mondrian, uma vitória que qualquer um conquistaria. Desde que fosse, é verdade, Mondrian.
12. Rodrigo Andrade não é Mondrian. Isso é certo, e não pretende sê-lo. Mas os grandes
exemplos também servem, entre tantas coisas, para ser exemplos. E se penso aqui em
Mondrian é porque Mondrian é um artista cujas composições também possuem formas
relacionais, em que um quadrado amarelo assinala, enfaticamente, seu peso na composição,
assim como esta é clara função de suas partes. Além disso, e sem afirmar, pois não é o caso,
que Mondrian seja um expressionista, sua trajetória tem momentos expressionistas evidentes.
Foi preciso o encontro com o cubismo para que o maior pintor construtivista do século XX
começasse a investigar novas formas a partir do que já tinha em mãos. E o que tinha em mãos
eram pinturas com forte simbolismo. Simbolismo do qual, num sentido amplo, nunca abriu mão.
O uso apenas de verticais e horizontais e cores primárias para compor seus quadros, se hoje
pode soar arbitrário, é sempre motivo para pensar duas vezes, pois quem escolhe o arbitrário
não escolhe o básico. E aqui a comparação pode dar frutos.

Nas formas básicas e relacionais de Mondrian havia um ideal estético de uma sociedade em
que as relações funcionais também vigorassem (e capitalismo e socialismo atendiam, ainda que
em tese e de formas diferentes, a esse requisito). E, mais ainda, vigoras- sem também nas
relações entre as formas sensíveis, e não apenas na racionalidade científica e técnica
moldadora do mundo. A arte, nesse sentido, também moldaria o mundo. Nas suas reflexões
sobre a arte moderna, as quais estou apenas parafraseando, Argan aprofunda esses temas.
Mas se a situação mudou, se não é mais ao básico que devemos nos ater, não haverá perda e
ganho nisso?

Entram os matizes, as formas oblongas, relações secundárias, diferenças pequenas. Sobretudo,


pela espessura exagerada das massas de tinta, vêm habitar a tela coisas que sempre com ela
foram coniventes, enfim, uma cor e seu veículo, mas aqui de um modo em que a tinta não pinta,
ao contrário, coagula. Se seus limites tendem à regularidade, mesmo assim a massa de tinta se
rebela, afunda, trinca, deforma-se, como se fosse pedaços de outro grito, não mais o grito
expressionista da natureza como em Munch, e antes aqui aludido, mas gritos curtos, algo
surdos, de seres já amalgamados de cultura e cujo emblema já não é mais Munch, mas o
empastelamento das camadas de cor de Andy Warhol.

Tudo perde, assim, uma universalidade evidente, e tudo como que se apequena. Mas será
apequenamento ou lucidez? De outra forma, como se mediriam, um pelo outro, um retângulo
com borda irregular, de uma coloração de um salmão esbranquiçado, com um retângulo mais
regular, de um laranja algo terracota e um tanto saturado? Bem, não passam de pelotes de tinta
belos e estranhos, quase nada e, no entanto, plenos de diferenças. De minha parte, embora
sejam pelotes quem sabe anódinos, mas também como se fossem seres estrangeiros que
visitam e se agarram à tela branca, não canso de olhá-los, comparar e refletir sobre o que não é
certo, se são defeitos ou qualidades.

E se a arte promete mesmo a felicidade, não canso então de refletir sobre quanto são felizes
encontros tão contingentes. No lugar de um ideal construtivista que era ao mesmo tempo
aspiração e crítica à sociedade, e segundo o qual seríamos exemplares de relações livres e
universais (penso aqui, de novo, em Mondrian), o que a pintura de Rodrigo Andrade nos oferece
é bem mais a figura do já possível e, assim, do que é contingente, ocasional. Nas suas pinturas
de 1999 em diante, uma forma só existe na companhia de outra e na comparação que
estabelece com ela. São outras uma da outra. Só nesse espelhamento existem. São mesmo,
antes de tudo, esse espelhamento. Antes de cada forma, é o par que constitui as formas.

E são formas divergentes, diversas, que não são exemplares de nenhuma universalidade, mas
partes, sempre partes, de um estar com o outro, este também uma parte. É mais por um
encadeamento de seres e coisas que uma universalidade se insinua, aberta, nunca completa e
dominável por um único olhar. O ideal de ser igual a algo é substituído pela possibilidade de
estar junto a algo. O outro nos dá parâmetros que nos formam, assim como na trajetória do
pintor entre 1984 e 1998. Na hora mais livre, porém, as identidades trocam propriedades sem
cessar. Antes do si, do eu, há o emparelhamento, algo amoroso, como, talvez, em toda arte.
Mas aqui, nessas pinturas, de um modo evidente, do qual nada é excluído, com suas
idiossincrasias ou com suas qualidades. Já não importa o que é mais essencial ou mais
acidental. O par vem antes (e essas pinturas só aceitam números pares). E a cor-de-burro-
quando-foge encontra-se, enfim, em pé de igualdade com o azul mais puro e luminoso.

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