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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades - C.E.H


Faculdade de Formação de Professores
Pós-graduação em Estudos Literários

Caroline dos Santos Cunha de Araujo

“Porque Faublas tem mais leitores que Homero”:


estudo sobre o romance Amores de um libertino, de Louvet de Couvray,
e sua trajetória no Brasil no século XIX.

SÃO GONÇALO
2015

Caroline dos Santos Cunha de Araujo

“Porque Faublas tem mais leitores que Homero”:


estudo sobre o romance Amores de um libertino, de Louvet de Couvray,
e sua trajetória no Brasil no século XIX.
Monografia apresentada como requisito
parcial para conclusão da especialização
em Estudos Literários, da Faculdade de
Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro

Orientador: Prof. Dr. Leonardo Mendes

SÃO GONÇALO
2015

Caroline dos Santos Cunha de Araujo

“Porque Faublas tem mais leitores que Homero”:


estudo sobre o romance Amores de um libertino, de Louvet de Couvray, e
sua trajetória no Brasil no século XIX.

Monografia apresentada como


requisito parcial para conclusão da
especialização em Estudos
Literários, da Faculdade de
Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro

Aprovada em __ de _________ de 2015

Banca Examinadora:

_______________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Mendes (Orientador)
Xxxx

_______________________________________________
Xxxx
xxxx

_______________________________________________
Xxxx
xxxxx

SÃO GONÇALO

2015
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho...
AGRADECIMENTOS

A...
RESUMO

A proposta do presente trabalho é uma leitura de resgate de um personagem que já foi


referência na cultura letrada do Brasil, o cavaleiro de Faublas. A obra Amores de um Libertino
ou Les Amours du chevalier de Faublas (1787), do autor francês Louvet Couvray (1760-
1797) , é um romance que já ocupou um lugar significativo entre leitores e críticos ao longo
dos séculos XVIII e XIX, constituindo-se como veículo importante de difusão e construção de
valores. A fim de compreender que razões levaram ao esquecimento uma obra de tamanha
importância nos séculos já mencionados, visamos, através do levantamento de fontes
primárias encontradas em periódicos oitocentistas digitalizados, realizar um breve
mapeamento histórico que evidencia a popularidade da obra e seu autor.

Palavras-chave: Romance Libertino. Libertinagem. Faublas. Erotismo.


ABSTRACT

The purpose of this work is a rescue reading a character reference has already been in
the literate culture of Brazil. In Loves of a Libertine or Les Amours du chevalier of the French
author Faublas Louvet Couvray, it is understood that this novel already occupied a significant
place among the periods of the eighteenth and nineteenth centuries, expressing and
establishing itself as an important vehicle for the dissemination and construction values. And
we propose to identify possible reasons for its abandonment using a brief historical mapping.

Keywords: Romance Libertine .Vice. Faublas. Eroticism.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.............................................................................
p
9

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 09

1 XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX........................................................................................ 10

1.1. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx....................................................................................... 11

2 XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX........................................................................................ 12

3 XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX........................................................................................ 13

CONCLUSÃO........................................................................................................................ 14

REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 15
10

Introdução

A literatura do passado ainda é um campo que fornece grande material de pesquisa.


Isso acontece porque muitos autores e obras se perderam ao longo dos séculos, fazendo com
que apenas autores de significativo “capital simbólico” (BOURDIEU, 1996) fossem
lembrados pelo seletivo cânone que determina a historiografia tradicional. Entretanto, uma
série de estudos recentes, como os dos pesquisadores Alessandra El Far (2004), Márcia Abreu
(2007), Leonardo Mendes (2014) – orientador dessa monografia – entre outros, revela que
ainda há muito o que se descobrir sobre escritores que, mesmo vendendo muitos livros (ou
talvez por causa disso), foram esquecidos por não possuírem “capital simbólico”. O romance
libertino francês Les Amours du Chevalier de Flaubas (1787), do escritor Jean-Baptiste
Louvet de Covray (1760-1797), que será objeto de estudo dessa monografia, foi uma dessas
obras.
Ao parafraserar o verso produzido pelo poeta Álvares de Azevedo “Faublas tem mais
leitores que Homero” iremos propor que a obra produzida por Louvet de Couvray foi um
marco literário de sua época e popular ao longo de todo o século XIX. O romance foi
publicado originalmente em Paris no final do século XVIII. Ele aborda a educação e
introdução de um jovem herdeiro do sistema de aprendizagem das Luzes na vida mundana,
relatando suas formas de sedução, disfarces e aventuras picantes. A história foi contada em
três partes: Les Amours du Chevalier Faublas (1787); Six semaines de la vie du Chevalier du
Faublas (1788); e La Fin des amours dus Chevalier Faublas (1790), das quais foram
retirados trechos para uma tradução brasileira de 1969, num único volume, chamada Amores
de um libertino, que servirá de base para esse trabalho. Como sugere o título, a obra pertence
à tradição da literatura libertina – uma forma de literatura que merece ser estudada, pois sua
importância é ímpar para o romance europeu do século XIX, e especialmente para o
naturalismo. No Brasil do século XIX a obra de Louvet fazia muito sucesso e era lida como
literatura pornográfica.
Na romance, Faublas penetra a passos tímidos na idade adulta, com sua masculinidade
ainda imperceptível, um jovem em pleno aprendizado mundano transfigurou-se para a
imaginação literária, aproveitando-se de sua aparência ambígua e valendo-se do crossdressing
para penetrar em festas e eventos, onde vive amores picarescos e trágicos. No decorrer da
história, Faublas não pode deixar de se apaixonar pelas mulheres que seduz, sendo assim
muitas vezes infiel ao seu amor de juventude, que por fim viria a ser sua esposa. Em suas
aventuras, Flaubas aprende e ensina os chamados “prazeres de Vênus”, vivenciando sempre a
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loucura da libertinagem do século das Luzes. Mas, como uma ironia final, depois de todos
esses acontecimentos, o grande libertino acaba casado.
Apesar de um dia ter estado presente nas bibliotecas de grandes escritores europeus do
século XIX, desde Musset, Stendhal, Balzac a Flaubert, Scott Carlyle, de Wieland a Jean
Paul, de Pushkin a Herzen (SPADON, 1970), e de serem bastante conhecidas no Brasil, as
Aventuras do Cavalheiro de Faublas foram esquecidas. A proposta desta monografia é fazer
uma leitura de resgate deste personagem e de sua história, que já foram referência na cultura
letrada do Brasil. O romance ocupava um lugar de importância entre os leitores do século
XIX, expressando e constituindo-se como um veículo importante de difusão e construção de
valores, quase todos em confronto direto com a moralidade patriarcal e burguesa.
A monografia será dividida em 3 capítulos. O primeiro subdivide-se em três partes:
inicialmente, apresentamos uma breve biografia de Louvet de Couvray; a seguir,
apresentamos um panorama da cultura libertina; finalmente, tratamos do romance libertina,
seus temas, personagens e configurações. No segundo capítulo descrevemos o enredo da obra
de forma a conhecer uma história esquecida. Nesse capítulo fazemos a apresentação das
personagens femininas, destacando suas ações e discursos. No terceiro capítulo, apresentamos
a história da publicação da obra, assim como diferentes reedições durante o século XIX;
compartilhamos fontes levantadas pela pesquisa e por fim apresentamos parte do legado
deixado pelo autor e sua obra.
A confecção desse trabalho tornou patente que, devido às limitações inerentes a uma
monografia, um tema de tamanha amplitude como a literatura libertina e, principalmente, a
análise e o resgate das Aventuras do Cavalheiro de Faublas, ainda poderá ser explorado em
trabalhos futuros, a fim de ser apreendido toda a sua complexidade.
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1 O ROMANCE DO LIBERTINO NO SÉCULO XVIII

1.1 O caminho do Cavalheiro

Filho de comerciantes, oriundo de uma infância infeliz, Jean-Baptiste Louvet de


Couvrai (Couvray na edição em Português de 1969) teve sua vida envolta em estudos, artes e
revolução. Tornou-se romancista e revolucionário de muito sucesso, tendo em sua vida
momentos tão escandalosos e interessantes quanto o seu então famoso
personagem(COUVRAY,1884). Na faculdade de Direito, adquire bom conhecimento dos
autores latinos e antes de se fornar, aos 17 anos, já trabalhava como secretário do
mineralogista Philippe-Frédéric de Dietrich da Academia de Ciências, e, em seguida, com o
livreiro-imprimeur Prault, impressora Enciclopédia metódica, o Quai des Grands Augustins.
Apesar de seu envolvimento na Revolução Francesa, Covrai continuou a dedicar-se à
literatura. Em 1791, publicou seu segundo romance, Émilie Varmont, ou le Divorce
nécessaire – a favor do divórcio – e Les amours du curé Sévin. Tentou uma carreira teatral
com la Grande Revue des armées blanche et noire, l’Anobli conspirateur, l’Élection et
l’audience du grand Lama Sispi (isto é, o Papa Pio VI) (1884.p.5). No mesmo ano, aparecem
duas óperas baseadas no seu primeiro romance sobre o cavalheiro de Faublas: Lodoiska de
Cherubini, que estreou em 18 de julho, no teatro Feydeau; e Lodoiska ou O Tártaros,
Rodolphe Kreutzer, que estreou em 01 de agosto, no Salle Favart.
Como político teve atuação marcante junto aos jacobinos, sendo nomeado para o
Comitê de Correspondência com um discurso em favor da Revolução, lançando em março, la
Sentinelle, um jornal financiado pelo Ministério do Interior(1884.p.8). Em 10 de agosto de
1792, participou da revolta que levou à queda da monarquia. Participou do julgamento de
Luís XVI (1754- 1793), no qual decidiu sobre o recurso para o povo contra a pena de morte e
para a suspensão da pena capital. Fez parte da revisão da constituição no período do Terror.
Na vida pessoal, Louvet de Covrai foi apaixonado desde a infância por Marguerite
Denuelle, que, no entanto, foi obrigada a se casar contra a vontade com outro homem, M.
Cholet. Entre os anos de 1787 e 1790, ano de publicação do último volume das Aventuras do
cavaleiro de Faulblas, Couvray reúne uma pequena fortuna em consequência das vendas do
livro e estabelece-se, em 1789, em Nemours, onde Madame Cholet, ao qual ele chama
Lodoiska (referindo-se a uma das heroínas de seu romance), se juntou a ele depois de
abandonar o marido(1884.p.22). Lodoiska, ao separar-se legalmente de seu marido, graças à
introdução do divórcio, tornou-se sua esposa.
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Em fevereiro de 1794, o casal entra Suíça através do Jura e estabeleceu-se no vilarejo


de Saint-Barthélemy, onde em 22 de setembro, Lodoiska dá à luz a seu filho, Felix (1794-
1845). Louvet morreu de tuberculose e exaustão em 25 de agosto de 1797, com apenas 37
anos. Devastada pela perda, sua esposa tenta o suicídio com uso de ópio, sem sucesso. Num
ato de apego e desespero, Lodoiska mantém o caixão de chumbo de seu marido em seu
apartamento. Em 18 de Abril 1798 Louvet foi sepultado no jardim do castelo de Chancy, no
município de Presnoy perto de Montargis. Lodoiska morreu 09 de fevereiro de 1827 em um
incêndio em seu quarto e foi enterrada ao lado do marido. Em 1845, com a morte de Félix
Louvet, o castelo foi vendido, e os corpos de Louvet e sua esposa foram transferidos para o
cemitério de Montargis (RIVES,1991.p.347).

1.2 A libertinagem

A obra por nós estudada faz parte da cultura e da literatura libertinas, que situa-se
historicamente entre duas revoluções, a Reforma Protestante no século XVI e a Revolução
Francesa no século XVIII. Para tratar da literatura libertina, devemos compreendê-la,
portanto, como um fenômeno do período que precede a Revolução Francesa. Há registros do
uso do termo libertino ainda no século XVI, com a palavra “libertin”, derivada da palavra
“liberto”, que em seu significado, se opõe ao homem nascido livre. Segundo Raymond
Trousson (1996, p. 165), o termo foi empregado pela primeira vez por Calvino para designar
os dissisdentes originários de seitas protestantes do norte da França. Por isso, no final do
século, pensadores respeitados tentaram reabilitar a palavra libertino, associando-o ao
significado de ateu, e não tardou se tornarem sinônimos, devido a postura anticlerical e de
crítica social que a literatura libertina difundiu.
Na segunda metade do século XVII, em 1661, Luís XIV assume o poder. No reinado
do Rei-Sol, como era chamado, ocorre uma mudança nos hábitos da sociedade aristocrática.
Ao reunir os nobres em Versalhes, afastando-os de Paris e de suas terras e propriedades, o rei
conseguiu domesticar a nobreza contestadora e insatisfeita, convidando-a a uma vida de
ociosidade, envolta em arte e blazé, na qual o prazer da ação era substituído pelo prazer de se
mostrar e de ser visto. Ser fútil era uma arte, e assim a Corte era transformada em espetáculo,
um grande “corpo de baile”. Luís XIV fez com que o luxo e a ostentação das vestimentas e a
preocupação de estar sempre “em evidência” se tornassem a nova identidade desse novo ideal
de homem. Então, ao afastar-se do significado original, a palavra “libertino” sofre um
deslizamento de sentido, adquirindo uma conotação de imoral.
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Após a morte de Luís XIV, em 1715, teremos na França um longo período de


liberação de costumes na regência de Philippe d’Orléans, até o final do reinado de Louis XV.
No reinado de Luís XVI, a libertinagem se dissimula, mas não desaparece. Ela se mascara,
aperfeiçoando seus métodos e influenciando diretamente as obras literárias, criando aquele
que foi chamado de “romance libertino à francesa” (TROUSSON, 1996, p. 167), no qual o
importante eram os caminhos usados para sedução e não propriamente o ato sexual.
Em busca do imaginário libertino, observamos que, influenciado pelas ideais
iluministas, este foi um movimento cultural da elite intelectual europeia do século XVIII. O
Iluminismo procurou mobilizar o poder da razão a fim de reformar a sociedade e o
conhecimento herdado da tradição medieval. Sua influência concretizou-se no pensamento
anticlerical, promoveu o intercâmbio intelectual, contra a intolerância do Estado, crítica à
moral e aos valores estabelecidos. Nesse novo cenário filosófico e social, podemos dizer que a
libertinagem à moda francesa do século XVIII foi uma ruptura nos códigos e representações
sociais e principalmente nas representações sexuais, em que temos, segundo Sergio Paulo
Rouanet, uma dissociação entre saber e prazer.
O pesquisador propõe uma divisão entre libertinagem erudita (ligada às ideias) e
libertinagem dos costumes (ligada às práticas) e defende que havia um acordo, não explícito
ou conspiratório, entre filósofos e libertinos, que levava os primeiros a atacar as bases
políticas do antigo regime, enquanto os segundos atacavam suas bases morais. Segundo esta
linha de pensamento, ambos (filósofos e libertinos) pregavam a liberdade. No entanto, não
podemos fazer uma divisão rígida, pois os filósofos muitas vezes escreviam obras obscenas –
como é o caso de Bijoux indiscrets (1748), de Diderot(1713-1784). A filosofia e a literatura
tinham fronteiras fluidas, portanto, eram libertinos ao mesmo tempo no plano intelectual e nos
planos dos costumes.
Com o passar do tempo, o termo libertino será finalmente utilizado para todos aqueles
que pensavam ou agiam contra os costumes ou contra a ordem social vigente (TROUSSON,
1996). E, assim, a transgressão dos libertinos propunha uma concepção desconcertante de
liberdade, que se confundia com libertinagem e adquiria, no século XVIII, a configuração de
um jogo de sedução que seria amplamente explorado dentro do mundo literário
(CARVALHO, 2009). Este jogo tinha como finalidade preencher a existência ociosa dos
nobres aristocratas, que viviam uma vida de sonhos, cercada de privilégios e de festas.
Entretanto, para a grande maioria deles, a vida era profundamente tediosa, fazendo com que
só no jogo da sedução pudessem se sentir vivos.
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1.3 O romance libertino

O romance libertino foi um discurso ficcional sobre a aristocracia decadente e pré-


revolucionária. Foi um romance com características próprias que se configura, de certa forma,
como uma literatura marginal, já que iremos encontrar enredos, personagens e configurações
narrativas que afrontam o cânone, e, assim, rompem com as normas e os paradigmas estéticos
tradicionais. Segundo Bozon (2004), a libertinagem era uma utopia de um novo estilo de vida
fundamentado no prazer e nas paixões, como parte de uma sociedade hierarquizada e
codificada, representada por tipos humanos diversos. Entre esses tipos, o aristocrata possui
um lugar especial; ele é um arrogante e um cínico, que nunca se entregará ao sentimento, uma
vez que seu único desejo é a conquista, na qual tira proveito de seus privilégios sociais; por
outro lado, ele permanece apenas como conquistador de alcovas. O materialismo estará
presente com sua exuberância, tornando o libertino um ser livre das amarras sociais e
inibições. A alcova e o boudoir são os cenários principais do romance libertino, assim como
os salões onde ocorriam os grandes bailes. Nesses locais, o libertino apresenta-se como o
protótipo do sedutor perigoso, ligado à tradição antiga e temido pelas mulheres.
No livro de Louvet, Faublas, o aprendiz de libertino, assim como seu mestre da
libertinagem Rosambert, jamais se preocupam com a resistência que uma mulher possa fazer,
ou com qualquer outro obstáculo em seu caminho – um marido ou qualquer barreira física. O
libertino é uma personalidade extraordinária. No caso do nosso personagem principal, ele é
um Roué, um rapaz por muitas vezes imprudente, galante, que não se importa com o que os
outros pensam a seu respeito. Paradoxalmente, para a mulher ingênua, isso o torna sedutor.
O libertino precisa de um cenário de convenções – uma corte idiotizada, um
casamento enfadonho, uma cultura conservadora – para brilhar, para ser apreciado. Não se
preocupa em estar indo longe demais, pois a essência do libertino é que ele ousa ir além do
medo ou do conservadorismo dos outros indivíduos. No extremismo da libertinagem existe
uma noção de perigo, de tabu, talvez um toque de crueldade. Geralmente eles são
extremamente cruéis, embora a vítima não perceba.
Além do próprio libertino, a literatura libertina também apresenta a figura não mais
atraente, porém mais difundida, do janota ou roué (na tradição francesa), que é aquele
personagem empenhado em fazer aumentar sua lista de conquistas, sem jamais se fixar em
nenhuma delas. Ele se tornou um personagem mais narcisista que orgulhoso, frequentemente
sarcástico, porém amável. De acordo com Roger Vailland, o roué avança por etapas e sua
ação pode ser classificada em quatro categorias:
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escolha da vítima, que deve ser de preferência casada, fiel a seu marido,
religiosa e bondosa; sedução ou caça, momento de encantamento em que a
vítima se sente rainha de um coração volúvel; queda, etapa que sucede à
conquista, onde o amor do conquistado é respondido com a indiferença do
conquistador; e ruptura, instante ansiosamente esperado, porque a glória do
libertino se faz a partir do espetáculo provocado por rompimentos
sucessivos. (VAILLAND apud CARVALHO, 2009, p. 131, grifos nossos).

Segundo Sonia Carvalho (2009), o grande perigo que ronda o libertino, no decorrer do
processo, será definido por Diderot em seu livro Paradoxe sur le comédien: não se deixar
apanhar no próprio jogo, ou seja, ele é um ator dentro de uma determinada parcela da
sociedade e assim nunca poderá esquercer que é um personagem; essa é a principal
recomendação. Embora não reflita mais o clima descontraído do jogo social, o roué conserva
socialmente as maneiras galantes que encobrem suas verdadeiras intenções, por isso será
recebido em todos os salões. O aristocrata, em ambas as formas, ri do burguês e do seu apego
à virtude, com sua repugnância aos jogos de sedução, mesmo em arte. É o que fará o roué,
trocando o jogo da sedução pelo jogo da guerra, transformando, assim, o glamouroso jogo
social em luta.
Em relação a representação feminina, temos que pensar que a “mulher caçadora ou
caça, é onipresente nesse mundo” (TROUSSON, 1996, p.169). A libertinagem existia para
elas e não era condenada. No entanto, são raras as que podem conduzir sua vida amorosa de
maneira independente, apesar de os romances colocarem, com muita facilidade, heróis em
contato com iniciadoras complacentes, como aristoscratas viúvas ou senhoras com muita
fortuna que se tornam libertinas, desejosas de organizar, elas mesmas, seus prazeres. As
senhoras nobres que eram casadas possuíam “un amant”, e esse comportamento não
representava nenhuma ameaça, ao contrário, eram, em muitos momentos, apoiadas por seus
maridos, que preferiam ver um apaixonado rondando a casa do que vários. Entretanto,
devemos lembrar que não existia igualdade social entre homens e mulheres. Apesar de existir
heroínas percursoras do feminismo vivendo como igual aos homens, Trousson nos diz que
“entre o homem e a mulher, como entre as classes sociais, a desigualdade diante do amor e do
prazer deve engendrar uma relação de senhor e escravo na qual a mulher só pode defender-se
através da dissimulação e do artíficio” (TROUSSON, 1996, p. 171). Portanto, pode-se dizer que
o homem podia saborear suas vitórias publicamante, mas a mulher devia saboreá-las em
segredo.
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O povo não era representado nos romances. Sua participação se limitava aos papéis
subalternos e periféricos à ação, como lacaio, camareira, empregada ou mensageiro. Logo, o
povo era somente figurante do cenário que era elitizado e homogêneo.
Para além das discussões entre os filósofos, Robert Darnton mostra como, no século
XVIII, autores como Rousseau e d’Holbach eram vendidos sob a mesma denominação, e, às
vezes, nas mesmas caixas que obras como Venus dans la Cloître, Charlot et Toinette e outras
que hoje seriam consideradas de cunho erótico ou pornográfico. Todas elas eram
denominadas livres philosophiques e talvez tenham desempenhado um importante papel na
dessacralização da monarquia francesa. Segundo Luiz Carlos Vilalta, no seu texto Dossiê:
Leituras Libertinas (2012), “a libertinagem comportava o uso da razão como crivo básico
para o entendimento e a vivência do mundo. Disso poderia derivar a heresia, e/ou um
desregramento moral, e/ou a contestação política”. Para Marc André Berier,

o romance libertino compreende uma discussão filosófica que se imbrica,


direta e substancialmente, na narrativa de deleites sexuais, não se resumindo,
porém, a eles nem aos efeitos lúbricos que suscitam no leitor. Tratar-se-ia,
além disso, de obras que contêm críticas religiosas e políticas contundentes e
nas quais se utiliza uma retórica que consagra a eloquência e uma maneira
viva, breve e curta de dizer, regida pelo propósito de instruir, divertir e
mover (figura ad docendum, ad delectandum et ad movendum, isto é, “figura
ou forma para ensinar, encantar e mover”). Em nome do combate conduzido
contra o obscurantismo, “libertinagem de espírito” (BERNIER apud
VILALTA, 2012, p. 78).

Assim, compreendemos por que um grande número de publicações se apresentaram


como filosóficas, provando que “não é o romance que é libertino, mas a filosofia libertina que
toma as aparências de romance” (TROUSSON, 1996, p. 106). Os libertinos apresentam, em
segundo plano, a crítica direta à religião, efetuando um movimento contra a moral dominante.
Através do deboche e de uma sexualidade subversiva, a libertinagem filosófica critíca a
hipocrisia das regras e das convenções sociais. Com isso, temos exemplo a obra Teresa
Filosofa, atribuída a Boyer d’Argens e publicada em 1748, em que temos a educação sexual e
filosófica de Teresa, da infância até o seu defloramento. A obra que, segundo Trousson
(1996), dá ao termo libertino o sentido de transgressão, transmite a ideia de ser um
“empreendimento de liberação, nem que seja pela reabilitação do prazer contra as proibições:
libertinos e libertários se juntam” (TROUSSON, 1996, p. 167).
Para Bozon, a libertinagem poderia ser dividida em dois ramos, segundo a linguagem
empregada pelos autores. O primeiro seria o gênero galante; ao falar através de metáforas e
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meias palavras, a galanteria torna-se profissão, uma máscara, e enraíza-se afirmando a


hipocrisia do chamado “romance libertino à francesa”, como já foi referido. É a época de
Tartuffe (1664), em que Molière (1622- 1673), com uso de linguagem cômica, começa a
utilizar o véu do cinismo para revestir um personagem, usando-a a seu “bel-prazer”, visando o
próprio prazer e aquecendo a imaginação dos leitores. O segundo seria o gênero obsceno,
cujas palavras curtas e cruas, principalmente aquelas que descrevem o coito, ocupam o espaço
central do texto, contendo também figuras que ilustram a representação dos atos sexuais. No
entanto, devemos ter em mente que esta divisão é elástica, pois os mesmos autores que faziam
uso da linguagem galante, também faziam uso da linguagem obscena.
No século XVIII, tanto em linguagem galante quanto em linguagem obscena, o livro
libertino é proibido. A clandestinidade tornou-se o tempero do sucesso. A exemplo disso,
podemos citar o processo de Theophile de Viau(1590- 1626), acusado de libertinagem ao
escrever Le Parnasse des Poetes Satyriques (1623), caracterizando-se como um marco na
literatura francesa, a partir do qual as obras eróticas só puderam ser editadas clandestinamente
(ALEXANDRIAN, 1993, p. 28). No período do Antigo Regime, a legislação aplicável ao
setor livreiro distinguia três categorias de livros proibidos: “os que ofendiam a Igreja, os que
ofendiam o Estado e aqueles que atentavam contra a moralidade” (DARNTON, 1998, p. 104).
Os livros libertinos eram um grande sucesso de editoração, podendo alcançar até vinte vezes o
valor da tiragem. Durante muito tempo, segundo Dominique Maingueneau (2010), autores de
textos chamados de pornográficos escreveram no interior de um círculo especializado, embora
o texto fosse frequentemente publicado de maneira anônima e distribuído clandestinamente.
A ideia de pornografia como gênero ocorre em seu sentido moderno somente no
século XIX (HUNT, 1999). No entanto, para prosseguir esta reflexão, devemos considerar a
possibilidade polêmica de não existir diferença relevante ente o erótico e o pornográfico, pois
segundo Maingueneau (2010), a intenção de ser pornográfico é determinada pelo leitor.
Pensar no erotismo ou pornografia é pensar em uma atividade humana. O texto erótico (ou
pornográfico) apresenta-se como uma tessitura de relações significativas com a finalidade de
representar a sexualidade, retratando o sexo com o objetivo de entreter, estimular e envolver o
leitor para fazê-lo participar do contexto, como um dos atores do texto, em busca do prazer.
No Brasil do final do século XIX, os livros pornográficos que circulavam pelo Rio de
Janeiro eram conhecidos, segundo Alessanda El Far (2004), como “romances para homens” e
estes textos eram direcionados exclusivamente para o público masculino, em função de seu
apelo sexual e caráter proibitivo. Os que viviam do comércio de livros proibidos sabiam do
risco que corriam, mas a proibição estava mais ligada a uma conduta moral subjetiva do que
19

propriamente um caso de repressão policial. No entanto, isso não os impedia de negociar estas
obras para um público que era amplo. Entre os “romances para homens” disponíveis, obras da
literatura libertina, como as Aventuras do Cavaleiro de Faublas, ocupavam um lugar de
destaque.
20

2 O CAVALHEIRO FAUBLAS

2.1 Les Amours du Chevalier de Flaubas

Este romance interminável tem uma surpreendente variedade de situações e


personagens. Por outro lado, como muitas vezes acontece na ficção libertina, é possível
perceber uma uniformidade não menos surpreendente na repetição de funções ao longo da
história. O herói incansável destes “combates voluptuosos” é o sensível, o galante Faublas, o
bravo cavaleiro que passa toda a vida pronto a partilhar a cama de todos: as mulheres da alta
sociedade e plebeus, viúvas piedosas, freiras e mulheres de rua e donzelas. Faublas é o amante
clandestino e sem nome na cama dos outros (COUVRAY, 1961, p. 7). Sem ansiedade, ele
prossegue incessantemente aumentando o número de encontros amorosos, correndo toda a
gama de combinações possíveis de forma dinâmica. E para evitar a lentidão e complicações,
usa uma arma secreta: o disfarce. O disfarce é o segredo infalível que abre as portas de
alcovas e boudoirs e o leva através de uma série de metamorfoses incríveis, como amazona
inglesa, menina da alta sociedade, freira, médico, mendigo, mantendo sempre a intenção de
penetrar em todas as camas e obter todos os favores do maior número possível de mulheres.
Podemos observar que o jogo representado por toda obra é a articulação do desejo, da
fantasia e da sedução. Digamos que a articulação desses três elementos resulta na seguinte
semântica: o desejo seria fundamental ao humano, em sua busca de transgredir o existente a
partir de uma inconsistência (o sonho desejante, figurado na fantasia). Conforme, André Luiz
Barros:

o desejo é a seta inconsistente lançada ao futuro, o presente nada garantindo


de sua realização e para realizá-lo na vida concreta do indivíduo há as
representações de imagens ligadas ao prazer máximo (as fantasias) e sua
exploração objetiva com vistas à conquista erótico-amorosa (a sedução).
(2012, p.53 )

Em nossa pesquisa, encontramos no prefácio da edição francesa de 1884 a descrição


da inspiração histórica do personagem. De acordo com o prefácio, houve um certo Marquês
de Lauraguais, que viveu na corte de Louis XIV, e foi chamado “O abade do Escolhido”.
Como sacerdote, não por vocação, mas por interesse, almejou conseguir vantagens ao cortejar
a Marquesa de Maintenon. Esse mesmo abade publicou seu Selecionado de Memórias em
21

nome de uma outra mulher, a Condessa de Bares, a qual também pode ter servido de
inspiração para duas personagens de Faublas, a Madame de B*** e a Condessa de Lignole.
A medida em que a trama transcorre é possível perceber uma relação pedagógica com
os leitores, de modo a promover a observação dos fatos e extrair os princípios para fomentar
discussões filosóficas. Mas a narrativa também parece incentivar e promover os deleites
sexuais do leitor, ao explorar a fantasia masculina expressa em seu maior objeto de interesse:
a mulher. Faublas irá representar esta fantasia masculina, com a riqueza e artifícios, sendo ele
um personagem incansável, não mede esforços para conquistar e estar com aquela que é seu
interesse.
Embora pareça não ter limites éticos, Faublas se envolve emocionalmente. Mais
interessante ainda é que sua personalidade sedutora não permite que ele privilegie apenas um
amor, mas três ao mesmo tempo: Madame de B., que o iniciou nos doces mistérios do amor;
Eléonore de Lignolle, que o apresentou aos tormentos da paixão; e a doce Sophie, sempre
disposta a se sacrificar, que representa o seu amor mais ingênuo. Ao lado dessas três amantes,
Faublas está feliz, mas essa intrincada rede de traição faz com que o cavalheiro tenha
episódios de remorso, pois está sempre dividido entre esses três amores, que lhe afetam de
maneiras diferentes, mas com a mesma intensidade. Seria mais fácil escolher uma das três,
para fugir dessa confusão sentimental que pouco condiz com seu caráter galante, mas Faublas
é incapaz de se decidir, e acaba deixando a cargo do destino desatar esses nós de maneira
trágica.
Madame de B., descoberta em adultério, será morta por seu marido; Eléonore irá pôr
fim a seus dias nas águas do Sena; Capitão da Lignolle, perseguidor da infeliz Eléonore, vai
ser perfurado por uma parte espada “dall'infallibile” de Faublas; La Fleur, o informante servo,
será enforcado; Rosambert, o libertino cínico, está condenado a suportar seus ferimentos
graves; Madame d'Armincour agonizará em um castelo distante; Justine vai pagar a pena de
seu ardor excessivo na prisão de Saint-Martin; e Faublas, finalmente oprimido por tantos
infortúnios, vai ser encarcerado pelo proprio pai, para que não possa mais realizar suas
aventuras, até que com ajuda ele consege se reunir com sua Sophie (filha de Lodoiska), a
noiva extremamente virtuosa; recuperando seus sentidos, Faublas, enfim, irá encontrar a
felicidade que buscou em vão em suas andanças.

2.2 Personagens femininas


22

Ao centrarmos nos personagens temos que dissertar em primeiro ato sobre o núcleo
feminino da obra. A relação entre homens e mulheres na sociedade quase sempre foi vista
como uma verdadeira guerra dos sexos. Na literatura, tradicionalmente, a mulher e a
sexualidade feminina foram representadas por meio de estereótipos correspondentes aos
moldes patriarcais, sendo, muitas vezes, objetificadas, desvirtuadas e relacionadas ao pecado,
à imoralidade, à sedução e tentação, ou consideradas submissas e/ou indefesas, dentre outros
atributos, quase sempre preenchendo um papel inferior perante o homem. A mulher
normalmente é incubida de representar o papel da sonhadora por desejar compromisso e
fidelidade eternos, mas o casamento não proporciona o romance e a dedicação almejados; ao
contrário, representa a rotina e um companheiro sempre distraído ou desinteressado.
A frustração feminina quase sempre se configura como cenário perfeito para o
desabrochar da fantasia, na medida em que a mulher passa a desejar um amante que se
entregue a ela totalmente, mesmo que por pouco tempo. Nesse sentido, podemos dizer que o
cenário de sedução é um processo psicológico que transcende o sexo, revelando os “pontos
fracos” e as particularidades de cada um dos atores no processo da sedução. O ponto fraco
feminino seria o Libertino, com sua promiscuidade e suas palavras sedutoras, sempre
conseguindo o que deseja através da capacidade de sugerir, insinuar, hipnotizar, elevar,
contaminar. Desde que surgiu, o Libertino é aquele que oferece à mulher o que é proibido
pela sociedade: um caso de amor só pelo prazer, tornado picante e excitante justamente pelo
perigo. Assim, tanto a galanteria mundana quanto a libertinagem mais cruel é alimentada pela
busca do prazer pelo prazer, de forma mais ou menos refletida e voluntária como um modo de
vida daquele microcosmo social aristocrático para escapar do tédio provocado pela
ociosidade.
A personagem feminina dentro da literatura libertina é construída a partir do registro
masculino, isto é, não existe um discurso propriamente feminino, mas um produto discursivo
alheio. E é nesse espaço que surge uma “heroína” sempre disposta a realizar todos os desejos
do herói. Nesse discurso ficcional tornado possível pela castração do desejo feminino, cria-se
o fetiche. A voz feminina, então, é mero simulacro, sujeita a qualquer forma de sedução,
constantemente encantada por antigos valores da cortesia. São mantidas as recorrentes formas
rituais e linguísticas que representam a mulher como mero objeto de uso e troca, embora com
a maior civilidade no discurso e nas maneiras.
Em Amores de um libertino, encontramos exemplos de mulheres que, mesmo em voz
de simulacro, assumem um discurso à frente deste tempo, onde o desejo impossível se torna
possível. A presença de personagens femininas que transgridem o código moral, no plano da
23

sexualidade e da sedução, causa, assim, uma ruptura e uma subversão de determinada ordem.
No entanto, mesmo agentes do ato da sedução sofrem com sua própria transgressão. Estas
vozes femininas, dentro do aspecto libertino, ao exercer naturalmente sua sexualidade,
executam uma espécie de exclusão pela culpa, uma vez que ferem a “boa conduta”.
Segundo John Rives (1911), quando de sua publicação na França, Les Amours du
Chevalier de Flaubas, em termos literários, teria desempenhado um grande papel ao longo da
história, pois nenhuma nação até então tinha produzido um tão grande número de personagens
femininas eminentes, que tivessem uma influência tão direta sobre os acontecimentos. Afinal,
foi na França que em 1788, Condorcet, o Marquês de Condorcet (1743-1794) elaborou um
esquema de reforma social e política por meio do qual as mulheres teriam direito a voto na
eleição.
No romance de Louvet, como personagem singular e representante deste período
fantástico, temos a Madame de B, que supostamente inspirou as mulheres francesas a
reivindicar o seu direito de ter uma voz em cada assunto que afetasse o seu bem-estar. O
próprio Faublas admite sua admiração pela marquesa na seguinte passagem:

A marquesa portou-se ajuizadamente na entrevista e eu descobri nela mil


perfeições que ainda não tivera tempo de perceber. Espantou-me com uma
porção de ditos satíricos, engenhosos brilhantes; escaparam-lhe mesmo
alguns pensamentos um pouco filosóficos, mas nem uma reflexão moral.
Admirei sobretudo nela esta linguagem elegante e fácil que o traquejo da
sociedade propícia; este espírito natural e fino que jamais se adquire; um
gosto depurado que faz falta a muitos dos nossos belos espíritos que não cito
e mais saber que tem comumente uma mulher linda ou bonita (COUVRAY,
1969, p. 135).

O princípio libertino é, em parte, representado principalmente por esta figura


feminina. Ela seria a encarnação do que entendemos hoje como uma mulher fascinante, com
uma extraordinária aptidão para debater os assuntos, sejam de cunho político ou de natureza
sentimental. A Madame de B de Faublas é a mulher que utiliza o disfarce, a dissimulação e
uma série de artifícios para alcançar o que deseja. Ela tem uma vontade de ferro e um coração
terno, foi formada tanto para o amor quanto para a intriga. Desde o momento do seu encontro
com Faublas, toda a sua vida é dedicada a tramar para sua felicidade, com um extremo
sentimento de ciúmes, ela está determinada que ele se submeta a sua felicidade e a ninguém
mais além dela. Para alcançar seu objetivo, ela utiliza de todos os meios justos a seus olhos.
Ela faz esforços heroicos para ser generosa com Sophie e Madame de Lignolle, suas rivais,
embora sejam elas o inimigo implacável; e sempre que Faublas tenta romper com ela, o
24

cavalheiro se vê diante de um obstáculo intransponível de seu amor imperioso. O perigo e o


tabu atraem um lado reprimido da mulher, de quem se espera que represente a força
civilizadora e moralizante na cultura. Assim como um homem pode cair em tentação pelo
desejo de se libertar de sua noção de responsabilidade masculina, a mulher pode sucumbir ao
Libertino pelo desejo de se ver livre das repressões da virtude e da decência.
Justine é outra personagem que devemos destacar. Ela está sempre envolvida nas
tramas de Faublas e Madame de B, seja se relacionando com o nosso cavalheiro, seja
tramando ações junto a sua patroa. Justine é uma representante do povo dentro da trama. Com
pontos semelhantes da sua homônima Justine do Marquês de Sade, ela é a personagem que
sente o prazer; ela é a carne, o pecado, o desejo e os beijos escondidos. Sophie, como uma
personagem de ingênuo coração, possui uma modéstia e sinceridade quase infantis. Para o
nosso herói, ela é a encarnação da felicidade doméstica duradoura que para ele é um paraíso
perdido. Sophie é a representação da mulher virtuosa que se apaixona pelo Libertino. Entre as
qualidades mais sedutoras do Libertino, está a sua capacidade de despertar na mulher o desejo
de regenerá-lo, e Sophie, de sua parte, nunca deixa de cumprimentá-lo com um acolhedor
sorriso nos lábios e perdão nos olhos. Faublas, com dinamismo característico, toma isso como
sinal de que ele tenha atingido pelo menos uma etapa para recuperar o seu paraíso, que seria a
paz de um relacionamento estável.
25

3 A PRESENÇA DO CAVALEIRO NO BRASIL DO SÉCULO XIX

3.1 A publicação e censura

As aventuras do Cavalheiro de Faublas são uma sucessão alucinante de cenas íntimas


e sexuais que, nos séculos XVIII e XIX, fascinaram gerações de leitores. No Brasil, conforme
evidências que mostraremos nesse capítulo, o livro era uma referência de literatura popular e
pornográfica até o começo do século XX. Animadas por bailes, constante teatralização,
travestismo, jogo, aventura e a intriga, as histórias de Faublas se configuravam como uma
representação realista de costumes mundanos, descrevendo as práticas sexuais não do povo,
mas da aristocracia, que ainda exercia forte atração no imaginário popular. O advento do
naturalismo literário, que no Brasil ocorreu no final do século XIX, representa o marco na
mudança de interesse do público leitor por uma literatura popular e materialista (MENDES,
2014). É neste período em que temos um aumento do público leitor, e uma consequente
disseminação do livro e da leitura (EL FAR, 2004).
De acordo Martyn Lyons (1999), para o público leitor do século XIX, embora fossem
fonte de lucro para o comércio livreiro, os romances eram vistos como livros perigosos.
Estamos falando de “romance como gênero”, e não de romances libertinos como o livro de
Louvet. Os romances de modo geral eram considerados uma forma perigosa de literatura, pois
poderiam incitar o adultério, já que eram vistos como transgressores das normas sociais e, por
isso, tendiam a ser proibidos para o público feminino no Brasil. De acordo com Paiva,

O romance ocupa um lugar de destaque na lista dos livros perigosos na


virada do século. É ele que deverá ser arrancado das mãos das mulheres.
Com essa prática de leitura, a utilidade moral imediata foi substituída pela
recreação, pelo entretenimento e pela fantasia que ele possibilitava (1999, p.
417).

Segundo Valéria Augusti, ao contrário da literatura religiosa, que era pautada pelo
exemplo positivo da vida dos santos e dos tratados de moral e manuais de conduta, o romance
se aproximava da vida cotidiana e apresentava ao leitor modelos de conduta virtuosos e
viciosos. Mesmo que não representassem explicitamente práticas ou atos condenáveis, estes
livros provocariam sensações físicas que não eram recomendáveis para o leitor (e
especialmente para a leitora), despertando desejos e volúpias, e assim enfraquecendo os
26

valores morais. Uma preocupação daquele período era: “O que fazer se a jovem leitora,
desejando ser a personagem do romance, acabasse por sentir-se insatisfeita com seu
casamento?” (2000, p. 92)? Essa preocupação era tão recorrente que era comum a existência
de manuais de conduta moral como, Novo manual do bom tom, publicado por Eduardo &
Henrique Laemmert (1872) – um tratado em favor da civilidade que circulou no Brasil no
século XIX (AUGUSTI, 2000).
No contexto brasileiro, estes manuais dos costumes aceitáveis e corretos ampliaram
ainda mais as diferenças sociais entre a elite e o restante da população. Entre os conselhos a
respeito da boa conduta e da educação das moças, o manual – traduzido do francês por Luiz
Verardi no ano de 1866, assinado como “Amigo da Mocidade” – alertava aos pais que
proibissem a leitura dos romances a fim de proteger a inocência das filhas. Desta forma, se
isso valia para qualquer romance, mas perigoso ainda eram livros como a história do Faublas,
que precisavam ser censurados e até proibidos. A censura ou a proibição renegava a leitura,
tornando-a uma atividade clandestina. Para poder ler o que era proibido, por atentar contra um
poder político ou religioso, era necessário esconder-se ou esconder os materiais de leitura.
Essa postura determina a memória da época.
Uma das consequências dessa clandestinidade forçada e da tentativa de controlar os
efeitos perniciosos desses livros, podemos observar como as ilustrações que normalmente
acompanhavam os livros libertinos podiam ser alteradas, ao longo século XIX, de modo a
suavizar o efeito pornográfico que provocavam. Com o Cavalheiro de Faublas não foi
diferente, conforme podemos observar nas figuras a seguir, extraídas de dois exemplares
publicados em contextos diferentes: o primeiro, publicado em Paris em 1840, e o segundo
publicado em Lisboa em 1874.
27

Fig. 1: folha de rosto de uma edição francesa de 1840


de Les Amours du Chevalier de Faublas
Fonte: (https://www.lessingimages.com)

Fig. 2: Ilustração de uma edição francesa de 1840


de Les Amours du Chevalier de Faublas
Fonte: (https://www.lessingimages.com)
28

Fig. 3: Ilustração de uma edição francesa de 1840


de Les Amours du Chevalier de Faublas
Fonte: (https://www.lessingimages.com)

Como podemos notar, nas Figuras 1, 2 e 3, atribuídas à edição francesa da obra de


Louvet de Couvray de 1840, a herança da tradição libertina permitia a concepção de uma
iconografia mais erótica e picante.

Fig. 4: Folha de rosto do vol. I de uma edição portuguesa de 1874


das Picarescas Aventuras do Cavalheiro de Faublas.
Fonte: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
29

Fig. 5: Ilustração de uma edição portuguesa de 1874


das Picarescas Aventuras do Cavalheiro de Faublas.
Fonte: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro

Fig. 6: Ilustração de uma edição portuguesa de 1874


das Picarescas Aventuras do Cavalheiro de Faublas.
Fonte: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro
30

Fig. 7: Ilustração de uma edição portuguesa de 1874


das Picarescas Aventuras do Cavalheiro de Faublas.
Fonte: Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro

Já nas Figuras 5, 6 e 7, extraídas do exemplar disponível no Real Gabinete Português


de Leitura do Rio de Janeiro, uma edição traduzida por Luiz Quirino Chaves e publicada em
Lisboa em 1874, podemos observar uma outra forma de apropriação da obra. A mudança no
título com a inclusão do vocábulo “picarescas”, sugere uma aproximação do “romance
libertino” ao “romance picaresco”. De fato, tanto o herói pícaro quanto o herói libertino eram
incansáveis da adoção de estratagemas e disfarces para alcançar seus objetivos, nem sempre
nobres; ambos protagonizavam narrativas mirabolantes e bem humoradas, e ambos eram
espécies de anti-heróis que narram suas próprias aventuras.
Devemos considerar que estamos tratando de momentos históricos diferentes, o que
interfere no significado cultural de cada ilustração. Chamemos atenção para a edição
portuguesa, porque ao manusear o exemplar disponível no acervo do Real Gabinete Português
de Leitura no Rio de Janeiro, notamos que as imagens pouco correspondiam aos contos e não
retratavam cenas de sexo, como ocorria na edição francesa original do século XVIII e na
publicação de 1840. Supomos que a edição portuguesa de 1874 tentava atenuar o caráter
libertino e imoral da obra, fosse na mudança do título, a exemplo do “picaresco” atribuído ao
protagonista, fosse pelas ilustrações que não retratavam as cenas descritas pelo narrador,
como o livro de Louvet estivesse recebendo uma nova identidade, mais amena e adequada ao
leitor do século XIX.
31

3.2 Algumas fontes sobre recepção do Cavalheiro no Brasil

Conhecer esta obra através do olhar do leitor brasileiro do século XIX é compreender
que este livro era “pornográfico”. Ao analisar fontes primárias do período, como notas,
notícias, resenhas, críticas de jornais e anúncios de livrarias, assim como a propria ficção,
percebemos que no século XIX a categoria de “livro pornográfico” se sobrepunha às noções
de nacionalidade, tempo, gênero e escola literária, tradicionalmente adotadas pela
historiografia. O fato de esta ser uma obra da França pré-revolucionária nos leva a crer que
ainda no século XVIII ela já fosse consumida no Brasil. Devemos considerar, também, que
esse consumo era feito em seu idioma original, francês, e que a partir do meados do século
XIX as traduções portuguesas começam a surgir.
Apesar de ter sido um sucesso comercial, reconhecer o mérito do romance dependia da
moralidade de quem lia. Com isso, a obra podia ser atacada em qualquer época, como vemos
nesta crítica citada pelo biógrafo John Rivers, que acusava o autor de produzir um retrato
distorcido de Paris como cidade decadente e pobre:

MISERÁVEL cloaca de um livro; sem profundidade mesmo como uma


cloaca! O que imagem de sociedade francesa temos aqui? Imagem
corretamente de nada, se não da mente que lhe deu como uma espécie de
imagem. No entanto, sintoma de muito; acima de tudo, de que o mundo pode
nutrir-se nela. "Assim falou Carlyleem referência à Faublas. (RIVES, 1911,
p. 18)

Amores de um libertino esteve presente nas bibliotecas e o trabalho de Louvet caiu no


gosto popular de forma ininterrupta até meados do século XIX, com um sucesso escandaloso,
sem dúvidas. Ao traçar referências sobre o personagem, tivemos a surpresa de encontrar no
poema “Um cadáver de poeta”, de Álvares de Azevedo (1831-1852) um comentário que
confirma a popularidade de Faublas no século XIX, que segundo o poeta, era mais lido do que
Homero. Ao afirmar que as aventuras de Faublas eram mais lidas que a literatura clássica, o
poeta sugere que o livro pornográfico possuía mais público que os livros canônicos, tão
populares entre os mais leitores eruditos quanto nas camadas populares:

[…]
Deixem-se de visões, queimem-se os versos.
O mundo não avança por cantigas.
Creiam do poviléu os trovadores
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Que um poeta não val meia princesa.

Um poema contudo, bem escrito,


Bem limado e bem cheio de tetéias,
Nas horas do café lido fumando,

Ou no campo, na sombra do arvoredo,


Quando se quer dormir e não há sono,
Tem o mesmo valor que a dormideira.

Mas não passe dali do vate a mente.


Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!
Faublas tem mais leitores do que Homero...

Um poeta no mundo tem apenas


O valor de um canário de gaiola...
É prazer de um momento, é mero luxo.
Contente-se em traçar nas folhas brancas
De um Álbum da moda umas quadrinhas.
Nem faça apelações para o futuro.
O homem é sempre o homem. Tem juízo:
Desde que o mundo é mundo assim cogita.
[…]

A importância do cavalheiro de Faublas para a literatura brasileira do século XIX


também pode ser verificada na obra de Joaquim Manoel de Macedo 1820-1882), cuja peça
Antonica da Silva foi acusada pelo crítico teatral A. de Lino, na Revista Ilustrada, de ser um
plágio do livro de Louvet. A peça tem como personagem principal um rapaz travestido de
mulher que se envolve em cômicas aventuras. Era uma opereta em quatro atos, nos quais
desfilam cavalheiros idosos e senhoras, dois leigos franciscanos, soldados, homens e
mulheres, escravos e escravas. A peça foi representada pela primeira vez no Rio de Janeiro,
no teatro da Phoenix Dramática, no dia 29 de janeiro de 1880.
33

Fig. 10: Resenha da peça Antonica da Silva, de Joaquim Manoel de Macedo,


acusado de plagiar o livro de Louvet
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira (http://hemerotecadigital.bn.br)

Mesmo que a peça alcançasse objetivo de promover o riso, Macedo é acusado de visar
somente “a imoralidade crua e descabelada” para esse fim. Ao citar outra obra pornográfica
reconhecida no período, a Martinhada de Caetano José da Silva Souto Maior (1694-1739),
34

fica claro que o crítico situa a obra de Louvet e de Macedo numa tradição de literatura
licenciosa bem conhecida. A. de Lino se pergunta se escritores de prestígio como Macedo, a
“Velha Guarda”, teriam o direito de usar a temática libertina no teatro, levando o crítico a
chamar Antonica da Silva de “indecência teatral”.
É possível ainda observar a popularidade da obra de Couvray no século XIX e a
influência que exercia através de recortes de jornais da época. Na coluna “Omnibus”, do
exemplar de 11 de março de 1880 do jornal carioca Gazeta de Notícias, encontramos uma
piada que confirmava a popularidade do livro de Louvet, que era lido em segredo até nos
conventos, e de seu protagonista, cujo nome era conhecido o bastante para ser citado em
contextos não-literários:

Num convento. Uma jovem freira estava lendo um livro. Aparece a


superiora, ela perturba-se.
– O que estava lendo?
– A história sagrada.
– Em que parte?
– Quando Faublas entrou no ventre da baleia.

Por fim, na imagem abaixo, vemos a aparição de Faublas num contexto que não
compreendemos completamente. Aparentemente o espaço do jornal era usado para mandar
recados para desafetos. Seja como for, a fonte comprova outra vez a popularidade do livro de
Louvet no Brasil oitocentista quando insinua que o destinatário da missiva “com certeza” já
leu Faublas. A obra era amplamente difundida e podia ser evocada para transmitir o sentido
de picaresco, falso, conquistador e enganador.
35

Fig. 11: “Já leu Faublas, o amiguinho? Com certeza já leu”.


Gazeta de Notícias, 19/09/1880
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira (http://hemerotecadigital.bn.br)

3.3 O legado de Louvet de Couvray

Além das sucessivas edições do livro Les Amours du chevalier de Faublas em 1806, em
1821, em 1822, em 1842, em 1849 e em 1884, partes do romance podem ter sido
desarticuladas em edições com o nome do autor, tais como: Lodoiska e Lovinski, história
polonesa em Paris (1798) e As aventuras extraordinárias de M. du Portail (1797). É
interessante notar que estas partes desarticuladas inspiraram óperas que não eram de cunho
pornográfico, mas cômico. Eram identificadas como óperas de resgate, com o temática de
livrar o personagem principal do perigo e o ao final uma resolução dramática feliz elevava os
ideais humanistas triunfantes. A ópera Lodoiska é a mais conhecida por ter sido imortalizada
pelo maestro italiano Luigi Cherubini (1760-1842), com sua primeira apresentação em 18 de
julho de 1791. É também uma ópera resgate que conta com a história de amor entre o
cavalheiro Lovinski sua namorada Lodoiska, tendo como antagonista o violento e terrível
Duque de Ordow. Com um enredo repleto de aventuras e desventuras, o Duque tenta matar
Lovinski e aprisionar Lodoiska. Depois de uma revolta popular contra o Duque, o casal pode,
enfim, ficar junto.
Devido ao sucesso do livro, muitas imitações literárias surgiram, ora mais libertinas,
como Faublas jovem cavaleiro, pelo Cavalheiro Nerciat (1788), ou mais sentimentais, como
Madame Lignolle ou End Faublas, por Elizabeth Guenard. No Rio de Janeiro, houve a
publicação do livro intitulado Neto de Faublas, de F.X de Novaes, no final dos oitocentos (EL
36

FAR, 2004, pág. 203). De todos esses romances, o New Faublas, de Jean-François Mimault,
narrativa epistolar na qual se desenrola a história de Florbelle, entre 1788 e 1795, é o mais fiel
ao modelo.
No século XIX, o livro inspirou várias adaptações teatrais e adaptações românticas.
Assim, aparecem Lodoiska e filha (1820), por Karoline von Briest e Aventuras de Victor
Augerol (1838), por Agenor Altaroche. Finalmente, no inicício do século XX uma adaptação
para o cinema foi produzida em 1913 por Henri Pouctal, com o filme mudo Les Aventures du
Chevalier de Faublas. Também pode ter servido de inspiração para diversos artistas, entre os
quais Alfred Grünwald e Fritz Löhner-Beda, com a opereta Eine Frau, die weiß, was sie will
(Uma mulher que sabe o que quer!).

Fig. 12: Eine Frau, die weiß, was sie will (1932).
Fonte: www.youtube.com

Podemos observar que a parte que é frequentemente revisitada é o episódio de Faublas


com Madame de B, o qual ela se traveste como Visconde de Florville para encontrar seu
amante, como mostra a passagem a seguir do romance:

[…] Estava neste ponto quando Jasmin, entrando bruscamente, me anunciou


o Visconde de Florville.— Visconde de Florville! Eu não conheço!Diz-lhe
que não estou.— Senhor,, ele está em seu quarto de dormir.---Como!Deixas
entrar todo o mundo!— Senhor, ele forçou a porta. – Ao diabo Visconde de
Florville!
Receando que esse desconhecido tão pouco educado viesse até seu gabinete
e que, com olhar profano, percorresse o papel de depositário dos meus mais
37

secretos sentimentos, preceptei-me para o quarto de dormir.Soltei um grito


de largria e surpresa. O pretenso Visconde era a Marquesa de B. Meu
primeiro movimento foi por Jasmin para fora; o segundo, trancar a porta; o
terceiro, beijar o encantador cavalheiro;o quarto… Os espiritos perpicazzes
já o adivinharam (1969, p.103).

Supomos que este episódio tenha sido o mais notado porque, ao utilizar trajes
masculinos, Madame B legitima aquilo que dentro daquela sociedade a mulher não tinha.
Usar roupas masculinas, portanto, proporcionava liberdade.
38

Considerações finais

Na nossa pesquisa sobre Les Aventures du chevalier de Faublas, encontramos uma


tradução portuguesa com o título As picarescas aventuras do Cavalheiro de Faublas, e por
fim a edição que foi consultada nesta monografia, Amores de um libertino. No recorte
temporal do século XIX e refletiu em uma leitura cujo personagem já foi referência na cultura
letrada do Brasil, expressando e constituindo-se como veículo de difusão e construção de
valores e referências culturais.
Escrito na Franca do século XVIII, representou um estudo de costumes, revelando
segredos da sociedade descrevendo aquilo que se passava nas alcovas até em espeluncas. Com
a chegada do século XIX a obra como esta aqui estudada recebeu títulos como “leitura de
Sensação “ e “leitura para homens”, e está diretamente ligada ao discurso dos libertinos ao
constituir-se enquanto crítica direta a fundamentos morais. Os libertinos propuseram a
explorar aquilo que definiríamos como imoralidade, porque “ o sexo não é apenas um tema,
mas um instrumento para rasgar o véu que cobre as coisas, ele serve as pessoas comuns como
a lógica serve aos filósofos: ajuda a extrair o sentido das coisas.” (DARNTON,1996. Pág,21).
Ao detalhar o enredo da leitura picante, descrever a experiência de um personagem em uma
leitura dinâmica encanta tanto os leitores comuns despossuídos de cultura literária quantos
leitores profissionais. E podemos provar que a obra foi presente e consumida por grandes
escritores brasileiros como Joaquim Manoel de Macedo e Álvares de Azevedo, com isso,
podemos propor que a literatura libertina e a obra de Louvet de Couvray foi parte integrante e
importante para a formação da literatura brasileira.
Foi observado que a obra, sendo ela pornográfica, percorreu um grande caminho até
chegar a forma editada em 1969. Foi censurada no decorrer dos anos oitocentos a evolução de
suas edições sofreram intervenções e suas ilustrações foram amenizadas e deixando-as
descontextualizadas. Esta censura foi devido o rótulo de leitura perigosa para os costumes,
pois ao envolver descrições de atividade sexual violam a moral convencional, e como
consequência a importação de manuais de conduta com a intenção de limitar o consumo deste
tipo de literatura licenciosa para parte da população, em especial as mulheres, e esta limitação
serviu apenas para contornar o que era evidente ao se tratar de consumo de literatura de massa
ou popular o que nos leva a concluir que segundo o pesquisador pesquisador Jorge de Souza
Araújo afirma que “o brasileiro, se não lia tudo ou bem, ao menos lia. E lia razoavelmente
vário e muito” (ARAÚJO, 1999: 19).
39

Em defesa de Amores de um libertino temos o biógrafo de Louvet, Jonh Rives (1911),


que defende em sua obra biográfica que as aventuras de Faublas não são um livro imoral,
embora também não seja inocente, afinal, nada tem de sutil. Trata-se de um livro furtivo que
traz à luz aquilo que é considerado indecência por uma moral que nos foi pregada e
reproduzida. Com o decorrer do século XIX este sentido de afronta a moral e os
enfrentamentos de tabus dentro da sociedade passará a ser encarado como entreterimento.
Por fim, a trajetória do Cavalheiro de Faublas teria que deixar alguma herança. Além
de suas edições, obras baseadas e intertextualidades a passagem mais revisitada é aquele que
envolve o travestismo. Usar o travestismo como enredo não era novidade dentro da
historiografia, no entranto, o fato de uma mulher utilizar o crossdressing não apenas para
fugir de um apuro ou de um marido ciumento, mas utilizar para alcançar um objetivo tornou-
se significante. Ao representar uma emancipação feminina em forma de simulacro ela
encontra alternativa entre um poder concebido e reconhecido como dominação, passando
então, a denuncia-lo. E assim, averigou-se que este romance é rico ao nos proporcionar junto
a concepção moderna de sexualidade do século XVIII, século da publicação do livro, e as
diversas transformações que ocorreram no século XIX, período em foco neste estudo,
designou em uma série de mudanças individuais e sociais, o que levou a instauração de regras
e normas apoiadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e até médicas, e em
consequência os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres,
prazeres, sentimentos, sensações e sonhos.
Portanto, não devemos julgar esta obra que está permeada pela cultura e valores
simbólicos da literatura do século XVIII e, depois de tudo, é pelo padrão moral da época em
que foi escrita, não por nosso próprio, que toda obra de arte deve ser julgada. Louvet de
Couvray, enquanto autor, não é responsável por aquilo que choca as suscetibilidades de seus
leitores modernos. O que provocou sucesso e repercussão foi a ousadia de um autor
espirituoso, vivaz, e com um pensamento livre como parte da sociedade que retrata.
40

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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