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Dossiê especial Cadernos de Estudos Sociais e Políticos

clássicas
1

Editoras: Marcia Rangel Candido


e Verônica Toste Daflon
v.6, n.11, 2017 (IESP-UERJ)

ENSAIOS SOBRE A AMÉRICA LATINA

“As noivas de Satã”: misoginia e


bruxaria no Brasil colonial
Por Carolina Rocha

O grito de independência das


mulheres latino-americanas
Por Lília Macêdo

ENTREVISTAS

Bila Sorj
Socióloga e pioneira nos estudos de
gênero no Brasil

Hebe Vessuri
Antropóloga e especialista em estudos
sociais sobre a ciência na América Latina

RESENHAS E CRÍTICAS

“União Operária”, de Flora Tristán


Por Felipe da Silva Santos

“Calibã e a Bruxa”, de Silva Federici


Por Mariane Silva Reghim

AUTORAS CLÁSSICAS
Aleksandra Kollontai || Charllote Perkins Gilman || Clara Zetkin || Flora Tristán || Harriet Martineau
|| Harriet Taylor Mill || Mary Wollstonecraft || Nísia Floresta || Olympe de Gouges || Simone de
Beauvoir || Sojourner Trurh || Virgínia Woolf || e mais

TEXTOS POR
Anita Guerra || Lorena Marina dos Santos Miguel || Lolita Guerra || Luna Campos || Nicole Midori
Korus || Teresa Soter || Vaneza de Azevedo
clássicas

editoras autoras
Marcia Rangel Candido Anita Guerra
Verônica Toste Daflon Carolina Rocha Silva
Felipe da Silva Santos
Lília Maria Silva Macêdo
assistente editorial Lolita Guerra
Mariane Silva Reghim Lorena Miguel
Luna Campos
Mariane Silva Reghim
projeto gráfico Nicole Midori Korus
Ana Bolshaw Teresa Soter Henriques
Vaneza de Azevedo

ilustração de capa comitê editorial


Sophia Pinheiro Cadernos de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ)
Anna Carolin Venturini, IESP/UERJ
Cadernos de Estudos Sociais e Políticos Felipe Munhoz de Albuquerque, IESP/
Dossiê especial "Clássicas", v.6, n.11, 2017. UERJ
Leonardo Nóbrega da Silva, IIESP/UERJ
ISSN 2238-3425 Marcelo Borel, IESP/UERJ
Instituto de Estudos Sociais e Políticos Marcia Candido, IESP/UERJ
(IESP) Marina Rute Pacheco, IESP/UERJ
Universidade do Estado do Rio de Mariane Silva Reghim, IESP/UERJ
Janeiro (UERJ) Natália Leão, IESP/UERJ
Rua da Matriz 82, Rio de Janeiro - RJ Raul Nunes de Oliveira, IESP/UERJ
Índice

apresentação artigos e ensaios


MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 6 O QUE É UMA MULHER? VERSÕES E CONTRAVERSÕES DO
ESSENCIALISMO FEMININO
ANITA GUERRA 58
entrevistas
BILA SORJ: SOCIÓLOGA E PIONEIRA DOS ESTUDOS DE GÊNERO “AS NOIVAS DE SATÔ: MISOGINIA E BRUXARIA NO BRASIL COLONIAL
NO BRASIL CAROLINA ROCHA 68
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 8
O GRITO DE INDEPENDÊNCIA DAS MULHERES LATINOAMERICANAS
HEBE VESSURI: ANTROPÓLOGA E ESPECIALISTA EM ESTUDOS LÍLIA MACÊDO 80
SOCIAIS SOBRE A CIÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 10 “MÃE!” (2017) E O MITO DA MULHER ETERNA
LOLITA GUERRA 90
clássicas RETOMANDO O DEBATE IGUALDADE VS. DIFERENÇA A PARTIR DE
HARRIET MARTINEAU: A CONTRIBUIÇÃO ESQUECIDA DA PRIMEIRA AUTORAS CLÁSSICAS: UM ARGUMENTO INTERMEDIÁRIO
SOCIÓLOGA NICOLE MIDORI KORUS 110
LORENA MARINA DOS SANTOS MIGUEL 16

ALGUMAS NOTAS DE PESQUISA SOBRE FLORA TRISTAN: resenhas e críticas


FEMINISMO, SOCIALISMO E VIAGENS “UNIÃO OPERÁRIA”, DE FLORA TRISTÁN
LUNA CAMPOS 30 FELIPE DA SILVA SANTOS 124

GÊNERO, RACIONALIDADE E ESCRITA EM “O PAPEL DE PAREDE “CALIBÃ E A BRUXA: MULHERES, CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”,
AMARELO”, DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN DE SILVIA FEDERICI
TERESA SOTER 40 MARIANE SILVA REGHIM 130

UMA BRASILEIRA ILUSTRE: NÍSIA FLORESTA E A LUTA POR LIBERDADE


E DIREITOS
VANEZA DE AZEVEDO 52
7

Apresentação

Em 1883, nas primeiras linhas de seu ensaio serem apresentadas(os) a nenhuma autora lecionar sobre elas. Agradecemos às muitas
clássico “A mulher como inventora” (Woman clássica. mãos que se uniram ao nosso esforço: as
as an inventor), Matilda Joslyn Gage chamou autoras e autores dos textos dessa coletânea,
atenção para como era comum a alegação Esta revista é resultado de um esforço as entrevistadas, a artista Sophia Pinheiro,
que as mulheres não possuíam atributos coletivo profundamente identificado com responsável pela ilustração que compõe
intelectuais criativos e que não eram capazes a indignação que moveu Gage em 1883: a nossa capa e a designer Ana Bolshaw,
de realizar contribuições originais e úteis à retomar o passado, contestar o presente e idealizadora do projeto gráfico.
vida social. Ciente de que essa afirmação modificar o futuro. No primeiro semestre
era usada para justificar a invisibilização e o do ano de 2017, o Instituto de Filosofia e
não reconhecimento do trabalho intelectual Ciências Sociais da Universidade Federal do
e criativo das mulheres, Gage a confrontou Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) foi cenário de Marcia Rangel Candido e
com extrema perspicácia: além de resgatar debates, apresentações e aprendizados na
grandes feitos femininos em campos como disciplina “Gênero na Teoria Social e Política Verônica Toste Daflon
a ciência, a tecnologia, a literatura, as artes, Clássica”.
mostrando que nada na constituição biológica
das mulheres as tornava inferiores aos Nos debruçamos sobre o trabalho de
homens, ela também descreveu os fatores autoras pouco estimadas em nossos círculos
estruturais que faziam das mulheres uma e a cada leitura nos surpreendemos com
parcela minoritária entre os inventores, o seu pioneirismo, a engenhosidade das
artistas, cientistas etc de prestígio. suas análises sobre conjunturas políticas e
sociais, e sobretudo nos espantamos com a
Para tal, mencionou aspectos como a exclusão injustificável das suas contribuições
legislação social, a subordinação feminina do cânone da sociologia, filosofia, história,
dentro da família e do casamento, a ciência política etc. Com o intuito de ir
dificuldade de acesso à educação, entre além dos limites das salas de aula e dar
outros. Passado pouco mais de um século continuidade à difusão desses trabalhos,
da publicação desse texto, a necessidade apresentamos nessas páginas artigos
de recuperar as reflexões e invenções das produzidos pelas(os) alunas(os) do curso,
mulheres ainda persiste. Na escola, pouco bem como colaborações de pesquisadoras
se fala de cientistas e pensadoras do gênero convidadas. Esperamos que o contato com
feminino. É comum que estudantes de essas autoras clássicas provoque nas(os)
grandes áreas das ciências humanas concluam leitoras(es) o mesmo prazer da descoberta e
suas graduações, mestrados e doutorados sem o deleite intelectual que tivemos ao estudar e
Gênero, racionalidade e escrita
em “O papel de parede amarelo”
Teresa Soter Henriques

resumo
Este trabalho é uma análise do conto “O
papel de parede amarelo”, de Charlotte
Perkins Gilman. Sua leitura contemporânea,
sob ótica feminista, possibilita revisitar
esse clássico a partir de questões sociais
contemporâneas. Dessa forma, o objetivo
é estudar a obra a partir de seus diferentes
aspectos e significados ligados ao gênero e à
leitura de autoras mulheres. Para isso, foram
utilizados tanto o conto em si quanto a obra
teórica “Women and economics” (Gilman,
1998) e “Um teto todo seu” (Woolf, 1990).
Esses textos possibilitam pensar a ficção
a partir de seu aspecto de crítica social,
mas também realizar uma crítica da forma
como a ficção produzida por mulheres é
comumente recebida. O trabalho trata-se
de uma tentativa de releitura de um clássico
da literatura a partir de um viés feminista
que busca não menosprezar a obra de sua
autora. Para tal, aborda a forma como a
noção de racionalidade é perpassada pelos
papéis sociais de gênero e instrumento para a
opressão.

palavras-chave
Feminismo; literatura; Gilman; loucura; gênero
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O conto “O papel de parede amarelo”, de própria biografia de Gilman, dado que a


Charlotte Gilman, foi publicado em 1892. autora recebeu tratamento psiquiátrico similar
Nele, uma protagonista mulher é levada a àquele descrito no conto.
uma casa de campo para tratar o que seu
marido e médico, John, considera ser uma Os debates ao redor da obra se debruçam
“depressão nervosa passageira – uma ligeira em torno de temáticas feministas, como
propensão à histeria” (Gilman, 2016, p. 12). a “histeria” enquanto uma forma de
Ela é colocada em um antigo quarto para patologização da mulher e os horrores
crianças revestido com um papel de parede dos seus tratamentos à época. Além disso,
amarelo que a perturba, mas seu desejo de se abordam as formas como o casamento
mudar para outro cômodo é negado. Dessa tradicional, assim como a maternidade, pode
forma, desenvolve pensamentos obsessivos ser uma opressão para as mulheres. A crítica
sobre o papel, vendo mulheres aprisionadas literária também tratou da a infantilização
dentro dele. Nessa casa, convive com Jennie de mulheres, e a própria autora escreve o
– sua cuidadora – e ocasionalmente com livro como uma denúncia do tratamento que
seu marido. O tratamento da mulher inclui recebeu para a sua depressão.
privação de suas vontades, como a limitação
do convívio social e a proibição de escrever. O aspecto biográfico de Gilman como uma
A despeito disso, a escrita acaba por ser seu mulher que teve piora de sua depressão
subterfúgio, resultando na produção do que quando em contato com o marido (Hedges,
seria o texto do conto. A partir do estilo de 2016), seus escritos sobre a condição de
terror, Gilman desenvolve a evolução do submissão da mulher - que era não só injusta,
processo mental da protagonista ao longo da como improdutiva (Gilman, 1998) - e a
sua submissão ao tratamento imposto pela sofisticação literária de seu conto, quando
autoridade médica e do casamento. combinados, formaram um texto rico em
significados múltiplos.
Desde sua publicação, o texto recebeu
diversas interpretações diferentes. A
primeira, de que seria um exemplo
fundamental do estilo gótico da literatura de A crítica literária
horror, posteriormente deu espaço a uma
interpretação feminista dos temas ali tratados. As interpretações sobre “O papel de parece
Além disso, muitos associaram o conto à amarelo”, ainda que interessantes, não são
42 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017

comumente conectadas umas às outras. A mas, em se tratando de autoras mulheres,


leitura da obra do ponto de vista de seu esse aspecto é sempre exagerado. O texto
estilo – as formas como reproduz e subverte é declaradamente baseado na experiência
o gótico (Johnson, 1993; Ryan, 1988) – não de tratamento da autora, mas foi mediado
dá o devido valor à particularidade simbólica pela análise e criatividade, e fazer derivações
do texto. Analisar a obra de uma autora diretas da biografia ignora a dimensão
meramente pelo seu conteúdo político intelectual do trabalho.
(Haney-Peritz, , 1989; Treichler, 1984), no
entanto, a coloca num espaço também isolado “O papel de parede amarelo” é, então, tanto
de interpretação no qual a literatura feminina uma obra importante de seu período, quanto
comumente cai. Se algo foi escrito por uma um terreno fértil para interpretações sob
mulher, é frequentemente tratado a partir perspectivas feministas e contém temas
dos temas femininos – ou mesmo feministas que podem ser encontrados na biografia da
– e não do rigor estilístico, da elaboração da autora. Nenhum desses aspectos, isolados,
prosa ou de qualquer mérito literário. Essa é fazem jus à complexidade da obra, que
uma forma, ainda que bem-intencionada, de cumpre seu papel – enquanto o clássico que
invisibilizar a arte feita por mulheres em seu é - de fomentar interpretações crescentes
próprio conteúdo. Esse tipo de interpretação e diversas com o passar do tempo. Dada a
não acontece com os homens, cujos textos natureza desse texto, serão trabalhadas aqui
não são vasculhados para que neles se questões ligadas à temática feminista que
encontrem temas ditos “masculinos”. perpassa a obra, sem ignorar, no entanto,
outros aspectos.
A comparação constante com a biografia é
também rara entre autores homens. Ainda
que haja importantes conexões entre a
ficção e a realidade, a supervalorização da Gênero e racionalidade
história de vida de uma autora prejudica
o reconhecimento da criatividade e Há algumas interpretações comuns sobre
capacidade literária de autoras. Derivando a narrativa do conto. Uma delas coloca a
a obra diretamente de dados biográficos, história como meramente o progressivo
ficam invisíveis os esforços artísticos da enlouquecimento da narradora, cujo
autora. Toda escrita é, em certa medida, tratamento para sua condição mental é
autobiográfica, mesmo que simbolicamente, contraproducente. A segunda interpretação
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sofistica essa análise, argumentando que esse vistas nem traduzidas em números” (Gilman,
enlouquecimento possibilitaria uma revolta 2016, p. 12).
contra o marido – e, mais amplamente, o
patriarcado – que a colocou nessa posição Esses polos são, de fato, polos de gênero,
(Treichler, 1984). estabelecendo papéis masculinos e femininos
fixos. Essa estrutura de poder, desde o
Essas duas análises concordam que há de fato começo, incomoda a narradora, que diz
uma perda da racionalidade da protagonista. discordar dos métodos de seu marido. No
Contudo, embora seja evidente que a entanto, ela oscila entre críticas e elogios a ele,
narradora se torna obcecada com o papel de quando, por exemplo, diz que “ele se ocupa
parede e as imagens que vê no seu desenho, por completo de meus cuidados, e, portanto,
em momentos ela própria se confundindo sinto-me uma ingrata por não lhe dar mais
com a mulher que acredita estar presa atrás valor” (2016, p. 16). A narradora, no início
do papel, a evolução da personagem não é do conto, ainda está parcialmente inserida
de todo para um estado de irracionalidade. na realidade que seu marido estabeleceu, na
Ao contrário: a forma de ver o personagem qual ele é um cuidador bem-intencionado
do marido se torna progressivamente mais e ela uma mulher doente que precisa se
racional ao longo do conto. adequar para que se cure. Ainda que dotado
do poder da suposta racionalidade, é possível
A temática da racionalidade, aliás, perpassa a perceber que essa estrutura é inerentemente
história em diversos momentos. A narradora irracional. O tratamento se baseia em ignorar
e seu marido formam um par de oposição no os desejos da paciente, infantilizando-a,
qual, do lado dela, está a doença, a fraqueza, a isolando-a da família e proibindo-a de
irracionalidade, e a submissão. John, unindo a escrever. A progressiva revolta quanto à sua
autoridade de médico e marido, representa o condição não pode, portanto, ser vista como
tratamento, a força, a racionalidade e o poder. enlouquecimento ou perda da racionalidade.
A sua tendência racional e cínica é enfatizada
em diversos momentos e já no início do A racionalidade feminina, no entanto, é
conto a narradora estabelece que “John é subversiva pela sua posição na hierarquia
prático ao extremo. Não tem paciência para social. Pensar racionalmente é um privilégio
questões de fé, nutre um imenso horror à masculino, e a identificação racional de
superstição e zomba abertamente de qualquer que as ações do marido pretensamente
conversa sobre coisas que não podem ser cuidadoso são, na verdade, controladoras e
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causadoras da doença é vista como mais um poder derivado da produção científica que
sintoma de loucura. Desse modo, a união era indissociável da opressão das mulheres.
marido-médico leva a um ciclo no qual a O tratamento desenvolvido por esse médico
discordância a respeito do tratamento é vista real, assim como a sua imposição por um
como irracional, levando, por sua vez, a mais marido-médico e irmão no conto, dependem
tratamento. A narradora identifica que “John da produção de conhecimento por homens
é médico, e talvez (…) talvez seja por isso que sobre mulheres, com o objetivo de anulação
não me recupero mais rápido” (2016, p. 12), da sua individualidade.
e não há nada de irracional nessa percepção.
Mais importante do que questionar se houve O desenvolvimento progressivo da narrativa
ou não enlouquecimento da personagem, dá evidências das formas como a inadequação
ou ainda se esse enlouquecimento é da narradora ao seu papel social contribui
revolucionário, é o fato de que a própria para a sua suposta doença. Quando ela
noção de racionalidade imposta é produzida escreve “Queria tanto ajudar John, ser
enquanto discurso, e não uma condição para ele uma fonte de apoio e conforto, e,
objetiva como se pretende. no entanto, eis-me aqui, convertida num
fardo!” (2016, p. 20), fica claro que há uma
A autoridade do discurso médico é percepção de sua falha enquanto esposa, e
manifestada em três figuras: a do marido, a do uma inversão dos papéis da relação, em que
irmão e a de Weir Mitchell. Os dois primeiros a mulher deixa de ser uma cuidadora para
são os responsáveis pelo seu tratamento ser cuidada. Quando se percebe que, além
atual, imposto sobre a protagonista através disso, há um bebê de quem a narradora
do poder patriarcal. O terceiro é um médico não cuida, apontando para um caso do que
real da época, inventor do “tratamento de seria contemporaneamente chamado de
repouso”, uma forma do que a personagem depressão pós-parto, a ruptura com os papéis
estava recebendo (Poirier, 1983). Gilman tradicionais de gênero fica cada vez mais
foi sua paciente, sendo esse o traço evidente.
autobiográfico mais explícito do conto.A
protagonista é ameaçada de ser levada a A personagem está em um quarto de
Mitchell caso não melhore. Dessa maneira, crianças. Além disso, é tratada como incapaz,
a autora trata, na ficção, do procedimento infantilizada pelo tratamento do marido. O
real para condições similares na época, ao fato de que ela falha em ser mãe de seu bebê
qual ela própria foi submetida, a partir de um não é uma coincidência. Nas atribuições
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de gênero às mulheres, há dois papéis Em “Women and economics”, Gilman


possíveis: de criança, ou de cuidadora. Ao coloca centralmente esse aspecto no princípio
falhar enquanto cuidadora – de seu marido, da humanidade, afirmando que “a energia
mas sobretudo de seu filho –, a narradora é maternal, trabalhando externamente através
condenada a uma regressão à infância. São de nosso organismo elaborado, é a fonte da
duas formas de submissão distintas, uma indústria produtiva, a principal corrente da
na qual não se pode decidir sobre a própria vida social” (1998, p. 126, tradução da autora).
vida, e a outra na qual as decisões se dão em Essa energia instintiva é justamente aquela
função do outro, da família. Ao ser incapaz de em que a narradora do conto não cumpre seu
cumprir uma delas, a mulher é levada à outra. papel, que representa, para a própria autora,
Se torna, portanto, além do estereótipo da o primeiro elo da sociedade. Em “O papel
“mãe ruim” – que é apenas uma metonímia de parede amarelo”, Gilman usa o recurso da
para a incapacidade completa enquanto ficção para colocar em questão a naturalidade
mulher –, o estereótipo da “mulher histérica”. do amor materno do qual ela própria tratou.
Seus desejos são tratados como desejos Para a autora, antes do desenvolvimento da
infantis e as atividades adultas, como escrever sociedade humana, o que fazia das mulheres
ou visitar pessoas próximas, são proibidas. superiores aos homens seria justamente esse
instinto que, apropriado pelos homens, levou
A relação com a maternidade, ainda que não à opressão. Essa associação da opressão
apareça centralmente na narrativa em si, pode derivada da maternidade não é linear, mas
ser lida como o que a levou ao tratamento de está presente em ambas as obras.
repouso. Tem, portanto, grande importância.
A maneira como ela coloca o bebê na Além disso, na ficção Gilman coloca a
narrativa, em uma escolha de estilo própria questão da dependência econômica da mulher
do terror, deixa claro tanto uma preocupação e da união sexual entre homens e mulheres
como um distanciamento. No primeiro como uma união econômica. Em “Women
momento em que o leitor descobre que and economics” (1998), ela trata também dos
ela tem um filho, ela escreve “Um bebê problemas desse modelo para a economia
tão querido! E, no entanto, não posso estar e a indústria, mas não deixa de lidar com as
com ele, fico tão nervosa” (2016, p. 20). A consequências negativas desse modelo de
maternidade é central tanto quanto fator que união para a vida das mulheres no casamento.
a estressa como quanto justificativa para a E o tema da dependência financeira também
necessidade do tratamento. perpassa “O papel de parede amarelo”, dado
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que a narradora é dependente do marido, que Ver uma mulher presa no papel de parede é
faz questão de enfatizar os gastos que teve um delírio, mas também uma metonímia de
que realizar para lhe oferecer tratamento. um processo mental lúcido, a busca pela raiz
do incômodo sentido sobre sua condição. A
A crescente obsessão com o papel de parede, narradora percebe, emocionalmente, que há
ainda que ganhe aspectos fantasiosos e um algo de estranho com a casa, com o papel
grau excessivo, pode ser vista não como de parede – detestado até pelas crianças
um enlouquecimento, mas uma recusa a se que moraram anteriormente no quarto – e
submeter à racionalidade masculina. A razão sobretudo com o comportamento de seu
é uma exclusividade dos homens, e resta às marido, refletindo sobre como “Às vezes
mulheres se sujeitarem a ela. A percepção imagino que, na minha condição, se tivesse
de que essa racionalidade e o conhecimento menos contrariedades e mais convívio social
médico a ela atrelado são injustos e e estímulos...”(2016, p. 13). Dessa forma, a
ineficientes desperta na narradora um narradora se vê obcecada com compreender
desenvolvimento obsessivo de pensamentos os seus incômodos, e encontra uma mulher
alegóricos sobre a sua condição. presa tanto no papel de parede quanto dentro
de si mesma.
Que seja o pensamento obsessivo a forma de
suposta perda da razão da narradora não é A ideia da mulher presa passa a ser a
coincidência. Pensar é uma atividade reservada explicação do que há de errado com o papel
para os homens. A narradora, privada de de parede, e também do que há de errado
escrever, passa a se apoderar do recurso do com o seu próprio tratamento. A obrigação
pensamento e da análise do papel de parede de não pensar sobre a própria condição – e
amarelo. Sua obsessão em “decifrar” o padrão de pensar, no geral – é parte intencional
é uma forma de subverter a sua proibição do tratamento. A narradora comenta que
de pensar ativamente. Primeiro ela tem um “John me advertiu a não me entregar a
desgosto estético e emocional com o objeto, tais devaneios. Ele disse que, com o poder
mas ela vai gradualmente racionalizando esse de imaginação que tenho e meu hábito de
desgosto, identificando os elementos que inventar histórias, uma debilidade dos nervos
a incomodam. O pensamento, símbolo de como a minha só pode resultar em fantasias
racionalidade, é o que leva a narradora a sair exaltadas, e que eu devo usar a minha força de
do papel de parede, em um processo que não vontade e meu bom senso para controlar essa
pode ser reduzido a um enlouquecimento. propensão.” (2016, p. 22) Isto é, uma parte da
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cura para a suposta doença da autora é que pelos próprios instintos conflitantes, que
ela pare de ter ideias próprias. teria decerto perdido a saúde física e mental”
(Woolf, 1990, p. 62), descreve o que tanto
A narradora busca estímulos dos quais foi Gilman quanto sua personagem passam.
privada durante o tratamento. A escrita é um Uma mulher com talento para um trabalho
deles, e o faz escondida, defendendo que intelectual, desencorajada socialmente e,
sempre achou que escrever lhe faria bem. posteriormente, diretamente proibida por
Quando trata das visitas que gostaria de uma figura de autoridade de marido-médico
receber, John “(...) diz também que preferiria de exercê-lo, é levada à degradação de sua
pôr fogos de artifício sob meu travesseiro situação mental. Em última análise, é possível
a permitir que eu desfrute de companhias especular que, se não houvesse essas barreiras
tão estimulantes neste momento.” (2016, p. para a sua produção, não haveria a suposta
23) Essa tentativa de retirada de atividades doença de princípio.
e influências externas deixa o vazio que
a narradora preenche com observação Algumas possibilidades de interpretação
minuciosa e reflexão sobre o papel de dependem da confiabilidade da narradora. Ou
parede, o que depois se torna um delírio. seja, de saber se é viável partir de sua visão
O tratamento imposto por John pode ser dos fatos como dados. Se o for, o desprezo
visto, desse modo, como o que deu espaço às reivindicações da mulher se torna mais
para o agravamento da doença, mas, mais explícita. Para ela, tanto John quanto Jennie
importante do que isso, a formação da crítica também observaram o papel de parede com
à sua condição. espanto. John, inclusive, estava disposto a
trocá-lo, até o momento em que sua mulher
O papel de John, e da sociedade como um parece excessivamente preocupada com
todo, na vida da narradora pode ser descrito a ideia. O desgosto estético inicial pelo
da mesma forma que Virginia Woolf trata objeto poderia, portanto, ter sido banal,
a sua ideia da irmã de Shakespeare (Woolf, ganhando proporção na mesma medida da
1990). Ao afirmar que “Pois não é preciso desconsideração dos desejos da narradora.
muito conhecimento de psicologia para se
ter certeza de que uma jovem altamente Num sentido metafórico, a própria ideia
dotada que tentasse usar sua veia poética do “padrão” do papel de parede do qual
teria sido tão contrariada e impedida pelas a mulher se liberta pode ser interpretada
outras pessoas, tão torturada e dilacerada como um jogo de palavras com o conceito
48 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017

de padrão de comportamento social. Essa A narradora se coloca em contraste com


padronagem do papel de parede é responsável duas formas femininas diferentes: Jennie e a
pela morte de quem tentou sair dele, “Mas mulher – e posteriormente as mulheres – do
não há quem consiga atravessar esse padrão papel de parede. A primeira é a conformidade
— ele é asfixiante; acho que é por isso que com os padrões de gênero, no papel de
tem tantas cabeças” (2016, p. 56). A vida cuidadora da narradora. As segundas são
de uma mulher intelectual, que se interessa justamente o contrário, mulheres rastejantes.
pela escrita e pelo pensamento, na sociedade A narradora chega a se amarrar com uma
vitoriana, pode ser lida como um contexto de corda para não acabar como elas, resistindo a
padrão imposto inescapável, no qual qualquer ser uma das mulheres do papel de parede. Em
tentativa de subversão leva à morte. No caso outros momentos, se coloca como tendo ela
da autora, essa morte é simbólica, uma morte própria saído do interior do papel. Sua relação
de sua vida ativa, da qual foi privada pelo oscilante entre as formas de feminilidade
tratamento da doença mental. apresentadas demonstra uma inadequação
aos seus papéis enquanto mulher, e uma
Quando passa a ver a mulher do papel resistência aos comportamentos das mulheres
de parede sair durante o dia, rastejando, a que tentaram se libertar do papel de parede.
narradora identifica que “Deve ser muito Em última instância, ela acaba como as
humilhante ser flagrada rastejando à luz do outras, rastejando. Sua descrição, no entanto,
dia!” (2016, p. 58). No entanto, ela própria deixa sempre claro que essa libertação vem
passa a rastejar escondida. Essa forma de acompanhada de grande sofrimento.
se mover pode ser vista como um recurso
de estilo, mas é também claramente um Virginia Woolf (1990) chama atenção para
comportamento inapropriado para uma as formas como homens desqualificam a
mulher. A mulher rastejante pode ser vista, possibilidade de mulheres produzirem ficção,
desse modo, não como simplesmente a e como essa opinião se perpetua. No caso da
própria narradora, mas como ela se vê: presa narradora do conto, há unanimidade entre
e incapaz de se comportar de acordo com as os homens – seu marido e seu irmão – sobre
expectativas. É nessa mesma fase que Jennie como tratar a sua condição. Para a autora,
passa a ganhar mais destaque na história, “havia uma enorme maioria de opiniões
como cúmplice de John contra a narradora. masculinas no sentido de que nada se poderia
esperar das mulheres intelectualmente”
(Woolf, 1990, p. 67). A proibição da escrita, o
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isolamento, todos os aspectos do tratamento as dificuldades do puerpério e formas


que efetivamente era proposto na época, são como a restrição da mulher ao lar pode
frutos de uma produção de conhecimento ser psicologicamente negativa. Além disso,
de homens sobre mulheres. Quando quando em “Women and economics” (1996)
concretizado na prática médica, esse saber trata do poder intrínseco da mulher antes da
age de forma a incapacitar o seu pensamento civilização, apresenta argumentos que foram,
crítico e criatividade. de alguma forma, recuperados por feministas
que reivindicam um feminismo da diferença.

A análise aprofundada de “O papel de parede


Considerações finais amarelo” é uma forma de enaltecer a obra
como um clássico, a partir de seus méritos
As questões presentes no conto, embora em literários e políticos, raramente atribuídos a
contexto geográfico e temporal diferentes, mulheres. Além disso, possibilita exploração
permanecem pertinentes. Fica claro, portanto, simbólica que acrescenta ao debate sobre
que a autora captou formas do que chama de a condição das mulheres na época e no
“relação sexual-econômica” (1998) que iam presente.
além da restrição de sua narrativa. Ao abordar
a dependência econômica, a exploração
no casamento, a limitação da maternidade
romantizada e a loucura esteriotípica das
mulheres, Gilman traz à luz temas com
desdobramentos em voga até. Recuperar seus
textos clássicos é, portanto, uma forma de
trazer inovação para o debate atual.

Ainda que trate especificamente de uma


forma de lidar com a “histeria” que é típica
de seu tempo, as maneiras de isolamento
da mulher inadaptada à realidade doméstica Teresa Soter Henriques é graduanda
permanecem sob outras formas. Esse tema no bacharelado em Ciências Sociais
tem conexões com o debate político atual no IFCS-UFRJ.
sobre a desnaturalização da maternidade, Referências bibliográficas
contato: soterteresa@gmail.com
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AS EDITORAS: ASSISTENTE EDITORIAL: sobre a capa:

Marcia Rangel Candido Mariane Silva Reghim Para essa primeira publicação, o
Doutoranda em Ciência Política no Doutoranda em Sociologia pelo Instituto conceito da capa para Clássicas foi o de
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da de Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj). desabrochar uma semente, assim como o
Universidade Estadual do Rio de Janeiro É pesquisadora do Núcleo de Estudos de livro é.
(IESP-Uerj), pesquisadora associada Teoria Social e América Latina (NETSAL). Uma semente que vai germinar e florir
do Grupo de Estudos Multidisciplinares contato: marianesreghim@gmail.com para xs leitorxs e também para as futuras
da Ação Afirmativa (GEMAA) e do edições da coleção com mais mulheres
Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera teóricas.
Pública (LEMEP). ARTISTAS GRÁFICAS: Assim como nos ensina Cora Coralina: “eu
contato: marciarangelcandido@gmail.com Ana Bolshaw sou aquela mulher que fez a escalada da
Mestranda em Design na PUC-Rio, em montanha da vida, removendo pedras e
Veronica Toste Daflon que pesquisa identidade visual de cidades. plantando flores”.
Doutora em Sociologia pelo Instituto de É graduada em Comunicação Social As mulheres que estão aqui rompem
Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj) com habilitação em Cinema na mesma as sementes. Que as ideias cresçam e
e mestre em Sociologia pelo IUPERJ. É instituição. floresçam nesse mundo cada vez mais
bolsista de pós-doutorado do Programa contato: anabolshaw@gmail.com temeroso.
de Pós-Graduação em Sociologia e www.anabolshaw.com
Antropologia (PPGSA, IFCS-UFRJ). Atua
como pesquisadora associada do Núcleo Sophia Pinheiro
de Estudos de Sexualidade e Gênero Mestre em Antropologia Social pelo
(NESEG, IFCS-UFRJ) e do Global Race Programa de Pós-Graduação em
Project Antropologia Social na Universidade
contato: veronicatoste@gmail.com Federal de Goiás (PPGAS/UFG). É
graduada em Artes Visuais e bacharel em
Design Gráfico pela mesma universidade.
Atua como pensadora visual, interessada
acompanhe no youtube o Sobre Elas
nas poéticas e políticas visuais, gênero,
(www.youtube.com/sobreelas), dirigido
processos de criação, na antropologia e/ por Emy Lobo, o canal veicula inúmeras
da arte, culturas e representações das entrevistas com mulheres, além de
imagens. apresentar uma série de curtas com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3686998218403865 pesquisadoras sobre autoras clássicas.
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