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Dossiê especial Cadernos de Estudos Sociais e Políticos

clássicas
1

Editoras: Marcia Rangel Candido


e Verônica Toste Daflon
v.6, n.11, 2017 (IESP-UERJ)

ENSAIOS SOBRE A AMÉRICA LATINA

“As noivas de Satã”: misoginia e


bruxaria no Brasil colonial
Por Carolina Rocha

O grito de independência das


mulheres latino-americanas
Por Lília Macêdo

ENTREVISTAS

Bila Sorj
Socióloga e pioneira nos estudos de
gênero no Brasil

Hebe Vessuri
Antropóloga e especialista em estudos
sociais sobre a ciência na América Latina

RESENHAS E CRÍTICAS

“União Operária”, de Flora Tristán


Por Felipe da Silva Santos

“Calibã e a Bruxa”, de Silva Federici


Por Mariane Silva Reghim

AUTORAS CLÁSSICAS
Aleksandra Kollontai || Charllote Perkins Gilman || Clara Zetkin || Flora Tristán || Harriet Martineau
|| Harriet Taylor Mill || Mary Wollstonecraft || Nísia Floresta || Olympe de Gouges || Simone de
Beauvoir || Sojourner Trurh || Virgínia Woolf || e mais

TEXTOS POR
Anita Guerra || Lorena Marina dos Santos Miguel || Lolita Guerra || Luna Campos || Nicole Midori
Korus || Teresa Soter || Vaneza de Azevedo
clássicas

editoras autoras
Marcia Rangel Candido Anita Guerra
Verônica Toste Daflon Carolina Rocha Silva
Felipe da Silva Santos
Lília Maria Silva Macêdo
assistente editorial Lolita Guerra
Mariane Silva Reghim Lorena Miguel
Luna Campos
Mariane Silva Reghim
projeto gráfico Nicole Midori Korus
Ana Bolshaw Teresa Soter Henriques
Vaneza de Azevedo

ilustração de capa comitê editorial


Sophia Pinheiro Cadernos de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ)
Anna Carolin Venturini, IESP/UERJ
Cadernos de Estudos Sociais e Políticos Felipe Munhoz de Albuquerque, IESP/
Dossiê especial "Clássicas", v.6, n.11, 2017. UERJ
Leonardo Nóbrega da Silva, IIESP/UERJ
ISSN 2238-3425 Marcelo Borel, IESP/UERJ
Instituto de Estudos Sociais e Políticos Marcia Candido, IESP/UERJ
(IESP) Marina Rute Pacheco, IESP/UERJ
Universidade do Estado do Rio de Mariane Silva Reghim, IESP/UERJ
Janeiro (UERJ) Natália Leão, IESP/UERJ
Rua da Matriz 82, Rio de Janeiro - RJ Raul Nunes de Oliveira, IESP/UERJ
Índice

apresentação artigos e ensaios


MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 6 O QUE É UMA MULHER? VERSÕES E CONTRAVERSÕES DO
ESSENCIALISMO FEMININO
ANITA GUERRA 58
entrevistas
BILA SORJ: SOCIÓLOGA E PIONEIRA DOS ESTUDOS DE GÊNERO “AS NOIVAS DE SATÔ: MISOGINIA E BRUXARIA NO BRASIL COLONIAL
NO BRASIL CAROLINA ROCHA 68
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 8
O GRITO DE INDEPENDÊNCIA DAS MULHERES LATINOAMERICANAS
HEBE VESSURI: ANTROPÓLOGA E ESPECIALISTA EM ESTUDOS LÍLIA MACÊDO 80
SOCIAIS SOBRE A CIÊNCIA NA AMÉRICA LATINA
POR MARCIA RANGEL CANDIDO E VERÔNICA TOSTE DAFLON 10 “MÃE!” (2017) E O MITO DA MULHER ETERNA
LOLITA GUERRA 90
clássicas RETOMANDO O DEBATE IGUALDADE VS. DIFERENÇA A PARTIR DE
HARRIET MARTINEAU: A CONTRIBUIÇÃO ESQUECIDA DA PRIMEIRA AUTORAS CLÁSSICAS: UM ARGUMENTO INTERMEDIÁRIO
SOCIÓLOGA NICOLE MIDORI KORUS 110
LORENA MARINA DOS SANTOS MIGUEL 16

ALGUMAS NOTAS DE PESQUISA SOBRE FLORA TRISTAN: resenhas e críticas


FEMINISMO, SOCIALISMO E VIAGENS “UNIÃO OPERÁRIA”, DE FLORA TRISTÁN
LUNA CAMPOS 30 FELIPE DA SILVA SANTOS 124

GÊNERO, RACIONALIDADE E ESCRITA EM “O PAPEL DE PAREDE “CALIBÃ E A BRUXA: MULHERES, CORPO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”,
AMARELO”, DE CHARLOTTE PERKINS GILMAN DE SILVIA FEDERICI
TERESA SOTER 40 MARIANE SILVA REGHIM 130

UMA BRASILEIRA ILUSTRE: NÍSIA FLORESTA E A LUTA POR LIBERDADE


E DIREITOS
VANEZA DE AZEVEDO 52
7

Apresentação

Em 1883, nas primeiras linhas de seu ensaio serem apresentadas(os) a nenhuma autora lecionar sobre elas. Agradecemos às muitas
clássico “A mulher como inventora” (Woman clássica. mãos que se uniram ao nosso esforço: as
as an inventor), Matilda Joslyn Gage chamou autoras e autores dos textos dessa coletânea,
atenção para como era comum a alegação Esta revista é resultado de um esforço as entrevistadas, a artista Sophia Pinheiro,
que as mulheres não possuíam atributos coletivo profundamente identificado com responsável pela ilustração que compõe
intelectuais criativos e que não eram capazes a indignação que moveu Gage em 1883: a nossa capa e a designer Ana Bolshaw,
de realizar contribuições originais e úteis à retomar o passado, contestar o presente e idealizadora do projeto gráfico.
vida social. Ciente de que essa afirmação modificar o futuro. No primeiro semestre
era usada para justificar a invisibilização e o do ano de 2017, o Instituto de Filosofia e
não reconhecimento do trabalho intelectual Ciências Sociais da Universidade Federal do
e criativo das mulheres, Gage a confrontou Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ) foi cenário de Marcia Rangel Candido e
com extrema perspicácia: além de resgatar debates, apresentações e aprendizados na
grandes feitos femininos em campos como disciplina “Gênero na Teoria Social e Política Verônica Toste Daflon
a ciência, a tecnologia, a literatura, as artes, Clássica”.
mostrando que nada na constituição biológica
das mulheres as tornava inferiores aos Nos debruçamos sobre o trabalho de
homens, ela também descreveu os fatores autoras pouco estimadas em nossos círculos
estruturais que faziam das mulheres uma e a cada leitura nos surpreendemos com
parcela minoritária entre os inventores, o seu pioneirismo, a engenhosidade das
artistas, cientistas etc de prestígio. suas análises sobre conjunturas políticas e
sociais, e sobretudo nos espantamos com a
Para tal, mencionou aspectos como a exclusão injustificável das suas contribuições
legislação social, a subordinação feminina do cânone da sociologia, filosofia, história,
dentro da família e do casamento, a ciência política etc. Com o intuito de ir
dificuldade de acesso à educação, entre além dos limites das salas de aula e dar
outros. Passado pouco mais de um século continuidade à difusão desses trabalhos,
da publicação desse texto, a necessidade apresentamos nessas páginas artigos
de recuperar as reflexões e invenções das produzidos pelas(os) alunas(os) do curso,
mulheres ainda persiste. Na escola, pouco bem como colaborações de pesquisadoras
se fala de cientistas e pensadoras do gênero convidadas. Esperamos que o contato com
feminino. É comum que estudantes de essas autoras clássicas provoque nas(os)
grandes áreas das ciências humanas concluam leitoras(es) o mesmo prazer da descoberta e
suas graduações, mestrados e doutorados sem o deleite intelectual que tivemos ao estudar e
O grito de independência das
mulheres latino-americanas
Lília Maria Silva Macêdo

resumo Os processos que culminaram com a


As interpretações historiográficas independência das colônias espanholas e
frequentemente ignoram a participação das portuguesas na América entre o final do
mulheres nas lutas sociais e políticas. O século XVIII e início do século XIX foram
objetivo deste ensaio é evidenciar o papel decisivos em muitos aspectos. Ainda que as
feminino nas lutas por independência na enormes desigualdades da estrutura social
América Latina. Para tal, começamos com tenham sido mantidas (e, em alguns casos, até
um breve panorama histórico dos processos aprofundadas), inúmeras regiões deixaram de
conflituosos na região. Em seguida, relatamos ser reconhecidas como colônias e finalmente
casos de experiências de mulheres e suas começaram a se constituir como nações.
contribuições às dinâmicas de insurgência. Esses processos ocorreram ao menos em
Por fim, discutimos como esses exemplos, termos políticos formais, já que externamente
fomentados por um olhar feminista sobre essas nações ocupavam uma posição de
a história, enriquecem as visões sobre o dependência no sistema capitalista mundial
passado e a construção de nossas memórias. enquanto uma nova forma de colonialismo se
configurava internamente. Assim, iniciava-se
outra etapa no longo processo de construção
palavras-chave da ordem na América Latina, como chamam
Mulheres; revolução; América Latina; atenção Ansaldi e Giordano (2012), o que
independência não deixa dúvidas quanto a relevância de tal
momento histórico.

A luta pela conquista da independência gerou


enormes convulsões sociais. Em muitos
casos, irromperam em sangrentos conflitos
armados e se prolongaram em guerras (com
a notável exceção do Brasil nesse ponto).
As dinâmicas econômicas (sobretudo no
que diz respeito ao comércio), as instâncias
jurídicas e políticas, as novas estruturas do
Estado, as instituições religiosas e as forças
militares sofreram alterações mais ou menos
profundas, conforme ritmos variados, entre
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permanências e transformações. O mesmo entre o exército realista e o chamado exército


se deu na esfera cultural. De acordo com libertador se estendeu durante anos com
Leopoldo Zea (1964) o período de luta pela avanços e recuos, êxitos e fracassos para
independência corresponde ao alvorecer do ambos os lados. Até que finalmente culminou
que se convencionou chamar posteriormente com a vitória definitiva das forças patriotas.
de pensamento social latino-americano, uma Destaca-se nesse aspecto o sucesso das
produção intelectual devotada a compreender campanhas militares coordenadas por Simón
e solucionar os dilemas próprios dessa Bolívar ao norte e por José de San Martin
realidade social. ao Sul. Dois líderes que se converteram em
verdadeiros ícones da independência na
As Reformas Bourbônicas implementadas América Latina.
pela coroa espanhola na tentativa de
reestabelecer o controle sobre as colônias, Considera-se que, apesar da mobilização
que havia sido abalado devido às graves de vários outros grupos sociais, foi uma
crises internas pelas quais a Espanha fração da elite chamada de “criolla” (grupo
atravessava, acabaram produzindo um composto pelos descendentes de espanhóis
enorme descontentamento que impulsionou nascidos na América) que assumiu a liderança
os movimentos pela emancipação. A isto se da luta. Muitos autores/as argumentam que
somaram, alerta Lynch (1991) uma série de o engajamento desse grupo se originou da
tensões que já permeavam as relações entre contradição que marcava a sua condição
a colônia e a metrópole desde longa data. social: os/as criollos/as desfrutavam de
Acrescenta-se ainda a influência das ideias um enorme poder econômico, já que eram
iluministas e os exemplos da independência proprietários de terras e bens, mas estavam
dos Estados Unidos em 1775 e da Revolução desprovidos de poder político no que
Francesa em 1789, o que situa tal processo diz respeito a participação nas principais
como uma das Revoluções do Atlântico. instituições políticas coloniais. Não
podiam ocupar cargos altos na burocracia
A deposição do rei Fernando VII do trono administrativa ou comercial e também
espanhol após a investida napoleônica encontravam muitas limitações na carreira
aumentou a instabilidade política nas colônias religiosa e militar.
e logo se formaram juntas de governo que
reivindicavam maior autonomia política e Não é surpreendente que em muitas obras
administrativa. A partir de então o embate clássicas sobre o tema a atuação dos setores
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populares seja alvo de pouca atenção ou data privilegia, portanto, os antecedentes


seja tomada como meramente auxiliar à criollos e oculta as outras vertentes e formas
atuação de outros setores. Assim, ao fim e assumidas pelo movimento anticolonial. As
ao cabo, as interpretações historiográficas iniciativas que impulsionavam a luta em um
mais difundidas acabaram forjando uma sentido mais radical, visando a transformação
narrativa sobre a independência que das estruturas sociais foram duramente
resulta limitada em muitos sentidos. Ela é reprimidas. Isso não significa, entretanto,
geralmente retratada como uma luta em que que elas não devam ser analisadas. Como
os principais atores são os homens brancos alerta Fernando Mires (1989), ainda que a
das camadas sociais mais abastadas que foram independência tenha se mantido, por fim,
influenciados pelas ideias iluministas e liberais nos limites de uma revolução política, esta
europeias. Desconsidera-se em boa medida tinha como função barrar ou prevenir uma
toda a tradição das lutas populares contra o revolução social.
domínio colonial que vinha se desenrolando
desde o início da colonização pelos povos Em meio a este grupo de excluídos da
originários, pelos escravos africanos e afro- história é patente o apagamento das mulheres,
americanos e pela população empobrecida que se entrecruza com a discriminação racial
que habitava o campo e a cidade e que, nos e socioeconômica. Note-se que os chamados
momentos decisivos, engrossaram as fileiras “próceres da independência”, aqueles que
do exército libertador, garantindo o triunfo da são lembrados e celebrados como os heróis
“revolução”. da pátria, são em geral homens, apesar de os
estudos historiográficos recentes constatarem
Nesse sentido como propõe Gargallo que o engajamento das mulheres no
(2010) cabe questionar por que se considera movimento independentista foi muito além
o ano de 1810 como o marco do início de casos isolados ou excepcionais.
da luta emancipacionista - ano que foi
usado como base para determinar a data Com todas as adversidades, algumas dessas
das comemorações do bicentenário da mulheres lograram preservar os seus nomes
independência - e não o levante dos indígenas ainda que estes só sejam conhecidos por
na região do Peru e Alto Perú (atual Bolívia) um público restrito - sobretudo estudiosos
ou a rebelião dos escravos que culminou ou pesquisadores deste período histórico
com a libertação do Haiti na segunda - e sejam frequentemente associados ao
metade do século XVIII. A escolha desta nome dos homens com quem estavam de
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alguma forma relacionadas como mães,


irmãs ou esposas. Ou seja, quando não
foram completamente eliminadas dos relatos
históricos, elas foram incluídas neles de
maneira secundária e conforme uma série
de estereótipos e enquadramentos sexistas.
Note-se ainda que as poucas mulheres que
obtiveram algum reconhecimento são em
sua maioria brancas e oriundas das classes
altas, o que revela novamente a importância
do recorte étnico e socioeconômico na
constituição desses olhares sobre a história.

Leona Vicario, por exemplo1, é um dos


nomes que alcançou certa visibilidade. Sem
dúvida ela é uma referência importante
quando se trata da independência Mexicana.
Vicario colocou sua fortuna à disposição da
revolução e atuou passando informações
para os insurgentes. Acompanhava as Autor desconhecido, Retrato de Leona Vicario, século
tropas e reportava os acontecimentos da XIX. Óleo sobre tela.
guerra em periódicos, desenvolvendo assim
um trabalho pioneiro como jornalista. Foi
presa e enfrentou situações adversas não só
durante a guerra como também após ela, já
que até o final de sua vida teve de lidar com
diversas tentativas de rebaixar sua imagem
publicamente em função de sua condição de
gênero, defendendo-se obstinadamente dos
ataques machistas dos quais era alvo.

1 Neste exemplo e nos seguintes nos basea-


mos nos relatos biográficos elaborados por Ana
Belén García López (s/d).
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Outro nome de relevo foi o de Manuela Já Policarpa Salavarrieta, conhecida como La


Sáenz. No Peru, ela participou das reuniões Pola, teve um destino trágico que a converteu
conspiratórias dos patriotas agindo em favor em uma mártir para os patriotas colombianos.
destes e colaborando para propagar as novas Nascida em meio a uma camada social mais
ideias. Foi posteriormente condecorada por desfavorecida, ela trabalhava como costureira
San Martin junto a outras mulheres com e por isso frequentava a casa de diversas
o título de “Caballeresas del Sol”, pelos famílias em Santa Fé de Bogotá. Por meio
esforços em prol da causa. Em seguida da rede de contatos que estabeleceu com as
ingressou no exército libertador e atuou mulheres dessas casas ela obtinha e transmitia
em várias batalhas como a Batalha de informações que favoreciam aos patriotas.
Junín e a Batalha de Ayacucho. Trabalhou Ao ser descoberta foi detida e fuzilada pelos
incansavelmente pelos ideais da emancipação, realistas em 1817 e morreu conclamando o
mesmo após ter sido desterrada de duas das povo para unir-se à causa revolucionária.
jovens nações que contribuiu para libertar.
Apesar disso, Manuela costuma ser lembrada
apenas (ou principalmente) como a amante
do “grande libertador” Simón Bolívar.

Pedro Durante, Retrato de Manuela Sáenz, 1825, José María Espinosa, La Pola en capilla. 1857, óleo
Óleo sobre tela. sobre tela.
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Mais ao sul nos deparamos com a história O breve relato da trajetória de cada uma
de outra aguerrida combatente: a mestiça dessas mulheres já evidencia muitos aspectos
Juana Azurduy que liderou ao lado de seu do engajamento feminino e mostra que tal
companheiro, Manuel Padilla, as guerrilhas experiência política configura um fenômeno
contra os realistas na região do Alto Peru bem mais amplo e complexo. De fato, nas
(atual Bolívia). Por sua atuação de destaque últimas décadas, historiadoras e historiadores
em diversos confrontos ela, assim como têm alertado com maior eloquência para
Manuela, galgou diversas posições militares a participação expressiva das mulheres de
até atingir a patente de Coronela. Em distintos segmentos sociais na luta pela
determinado ponto de inflexão das lutas a sua independência das colônias situadas no caribe
sorte mudou radicalmente (outra semelhança e no subcontinente latino-americano. Essas
com Manuela) e ela passou os seus últimos incursões em batalhas assumiram diferentes
anos de vida na pobreza, sem contar com formatos que tiveram impactos decisivos no
o justo reconhecimento pelos inúmeros processo independentista.
sacrifícios e trabalhos prestados à causa.
Diferente dos trabalhos historiográficos
mais antigos, os estudos feministas
contemporâneos (dentre os quais podemos
citar Carosio, s/d; Ciriza, 2000; García
López, 2011; Gargallo, 2010; González,
2010 e Londoño López, 2009) realizam uma
investigação histórica mais abrangente, que
procura preencher a ausência de olhares
específicos sobre a experiência das mulheres
no processo de conquista da independência.
Nessas perspectivas, a vivência feminina
é o foco prioritário de análise cujo
desenvolvimento ressalta a importância
política da participação das mulheres
e reivindica o reconhecimento de suas
contribuições na história latino-americana.

Quadro de Juana Azurduy localizado no Museu


Histórico Nacional da Argentina.
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É difícil mensurar a presença das mulheres trabalho) oferecido pelas mulheres às forças
nesta luta em termos quantitativos. Porém, a militares independentistas. Além de doações
julgar pelas múltiplas formas que ela adquiriu, em dinheiro, elas forneceram alimentos,
é possível que tenha atingido proporções roupas, abrigo e transporte para as tropas
consideráveis. As mulheres foram agentes patriotas e eventualmente acolheram aqueles/
fundamentais, por exemplo, nas atividades de as que sofriam perseguição política.
conspiração pois elas eram responsáveis por
ativar os espaços de sociabilidade em que isto Além disso, não obstante a oposição de
ocorria. Elas organizavam em suas casas as alguns generais, era bastante comum que as
tertúlias nas quais se discutiam as questões mulheres, na condição de esposas ou parentes
políticas correntes, difundindo-se as ideias dos soldados, acompanhassem as tropas em
que formavam o ideário independentista. todas as campanhas da independência. Às
Desempenharam também o papel de espiãs. vezes elas se adiantavam ao exército para a
Por não levantarem muitas suspeitas, elas preparação dos acampamentos de guerra,
podiam penetrar nos círculos realistas para nos quais providenciavam alimentos e
tomar conhecimento de suas ações e planos. acomodações e se mantinham nos arredores
Associada a essa tarefa estava a de transmitir ou na retaguarda para socorrer os feridos e
as informações obtidas para as forças enterrar os mortos após os combates. Por
patriotas. Elas podiam atuar diretamente outro lado, ainda que as tropas libertadoras
como “correios” ou articular redes de tenham sido compostas majoritariamente
comunicação para fazer com que a mensagem por homens, algumas mulheres também
chegasse até o seu destino. foram combatentes, ocupando diferentes
posições na hierarquia militar. Por fim, não
No campo da “propaganda ideológica” podemos deixar de mencionar aquelas que se
deram igualmente contribuições muito converteram em líderes políticas, ou seja, que
relevantes, atuando por exemplo nos jornais detinham autoridade e poder para influenciar
alinhados com a causa e fortalecendo com e mobilizar grupos sociais mais amplos.
isso a imprensa alternativa. Elas também
tomaram as ruas e organizaram protestos A partir deste apanhado de distintas formas
e manifestações, o que fazia ainda mais de engajamento político podemos perceber
importante a sua presença no espaço público. que enquanto algumas atividades estavam
Foi fundamental o apoio material (na forma associadas aos papéis tradicionais de gênero,
de recursos e no emprego da força de ou pelo menos não implicavam algum tipo
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de ruptura do mesmo, outras representavam ideais da ilustração também impulsionaram o


uma subversão mais radical destes. Se por um debate a respeito da cidadania das mulheres,
lado, algumas funções eram desvalorizadas embora tal luta por direitos estivesse apenas
(e além disso tomadas como auxiliares ou começando e houvesse ainda um largo
assessória em relação as dos homens) por caminho a ser trilhado.
serem consideradas “atividades de mulher”,
outras eram consideradas “inadequadas para Com a fundação das novas Repúblicas as
a mulher”. Nesse último caso, ao serem mulheres foram novamente afastadas do
postas em prática por elas, despertavam ódio espaço público, impelidas a assumirem
e perseguição, tornando as mulheres alvo de papéis tradicionais de gênero e recolhidas ao
ofensas e maus tratos. espaço doméstico ou religioso. O período
excepcional das revoluções parece ter dado
Desse modo, como argumenta González abertura às transgressões que, por sua vez,
(2010), ainda que o movimento não perduraram como perspectiva possível
independentista não estivesse comprometido após a restituição da ordem. Em resumo,
com o combate à desigualdade e as opressões as mulheres permaneceram desprovidas de
de gênero, no ser e agir dessas mulheres direitos, aspecto ainda mais grave para as
tais reivindicações estavam presentes de integrantes das classes populares (Carosio,
modo implícito, por assim dizer. Na medida s/d; Ciriza, 2000; García López, 2011;
em que elas se colocavam como sujeitos Gargallo, 2010; González, 2010 e Londoño
políticos, as suas ações já se delineavam López, 2009).
como contestadoras de injustiças sociais.
As mulheres afirmavam e reivindicavam
constantemente o seu direito de participação Entretanto, mesmo que profundamente
na “revolução”. Ao fazerem isso, tinham desolador, esse quadro não pode ser
muitas vezes que questionar, desmistificar tomado para invalidar a importância daquela
e denunciar os preconceitos associados ao experiência histórica. Como afirma Ciriza:
seu gênero. Essa luta interna ao movimento
para que as mulheres fossem reconhecidas
como atores políticos com legitimidade Se a revolução não deixou um saldo
é, por exemplo, uma das possíveis vias imediato de conquista de direitos para
para pensarmos no caráter feminista de tal as mulheres, inaugurou um tempo em
experiência. É importante lembrar que os que a diferença sexual já não podia
ser abertamente convocada, instalou o
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espaço no qual podíamos, com avanços e Lilia Maria Silva Macêdo é doutoran-
retrocessos, colocar a questão dos nossos da em Sociologia pelo Programa de
direitos (2013, p. 154, tradução da autora).
Pós-Graduação em Sociologia do In-
Assim, ao longo de todo o século XIX
stituto de Estudos Sociais e Políticos
as mulheres seguiram lutando para serem da Universidade do Estado do Rio de
reconhecidas como cidadãs com plenos Janeiro (IESP/UERJ) sob orientação do
direitos. professor Breno Bringel. Integrante do
Núcleo de Estudos de Teoria Social e
As considerações aqui apresentadas indicam América Latina (NETSAL).
apenas alguns dos contornos de uma questão contato: liliamaria.sm@gmail.com
muita mais profunda, e apontam para alguns
dos dilemas e debates que a envolvem. É
preciso seguir explorando esses caminhos
e ir colhendo os rastros desses capítulos
esquecidos, porém fundamentais, da história
latino-americana, com a finalidade de desvelar
o significado dessa experiência para as
mulheres e para a sociedade de modo mais
amplo. Mais do que um exercício de revisão
do passado, acreditamos que a abordagem
desse tema implica uma verdadeira
reestruturação do olhar historiográfico e
sociológico que questiona e rompe com
o androcentrismo presente nas ciências
humanas.
89

Referências bibliográficas GONZÁLEZ, Judith. Re-imaginando y re-


interpretando a las mujeres en la independen-cia:
ANSALDI, Waldo; GIORDANO, Verónica. historiografía colombiana y género. Procesos
“América Latina. La construcción del or-den. De Históricos, núm. 17, enero-junio, 2010, pp. 2-18.
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oligárquica.”, 2012. LÓPEZ, Jenny Londoño. Nueve Mujeres del Primer
Grito de Independencia Quiteña. Ponencia al
CAROSIO, Alba. Las mujeres en el proceso encuentro Las Independencias: Un Enfoque Mundial.
independentista nuestroamericano. Disponível em VII Congreso Ecua-toriano de Historia 2009. IV
<http://www.rebelion.org/noticia.php?id=109320 >. Congreso sudamericano de de Historia Bicentenario
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Quito, 27 al 31 de julio de 2009.
CIRIZA, Alejandra. “La formación de la conciencia
social y política de las mujeres en el siglo XIX LYNCH, John. Los orígenes de la independencia
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El pensamiento social y político iberoamericano del Edito-rial Crítica. Barcelona, 1991.
siglo XIX. Madrid: Trotta (2000): 143-168.
MIRES, Fernando. La rebelión permanente: las
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GARCÍA LÓPEZ, Ana Belén. (2011). La
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hispanoamericana a través de los medios de
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GARGALLO, Francesca. Las mujeres, sus ideas,


sus escritos y sus actos en la indepen-dencia
nuestroamericana, ponencia presentada en el
Coloquio Políticas de la Alteridad, organizado por la
Universidad Autónoma de la Ciudad – Plantel Del
Valle, Ciudad de México, 22 de abril de 2010.
138 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 139

AS EDITORAS: ASSISTENTE EDITORIAL: sobre a capa:

Marcia Rangel Candido Mariane Silva Reghim Para essa primeira publicação, o
Doutoranda em Ciência Política no Doutoranda em Sociologia pelo Instituto conceito da capa para Clássicas foi o de
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da de Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj). desabrochar uma semente, assim como o
Universidade Estadual do Rio de Janeiro É pesquisadora do Núcleo de Estudos de livro é.
(IESP-Uerj), pesquisadora associada Teoria Social e América Latina (NETSAL). Uma semente que vai germinar e florir
do Grupo de Estudos Multidisciplinares contato: marianesreghim@gmail.com para xs leitorxs e também para as futuras
da Ação Afirmativa (GEMAA) e do edições da coleção com mais mulheres
Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera teóricas.
Pública (LEMEP). ARTISTAS GRÁFICAS: Assim como nos ensina Cora Coralina: “eu
contato: marciarangelcandido@gmail.com Ana Bolshaw sou aquela mulher que fez a escalada da
Mestranda em Design na PUC-Rio, em montanha da vida, removendo pedras e
Veronica Toste Daflon que pesquisa identidade visual de cidades. plantando flores”.
Doutora em Sociologia pelo Instituto de É graduada em Comunicação Social As mulheres que estão aqui rompem
Estudos Sociais e Políticos (IESP-Uerj) com habilitação em Cinema na mesma as sementes. Que as ideias cresçam e
e mestre em Sociologia pelo IUPERJ. É instituição. floresçam nesse mundo cada vez mais
bolsista de pós-doutorado do Programa contato: anabolshaw@gmail.com temeroso.
de Pós-Graduação em Sociologia e www.anabolshaw.com
Antropologia (PPGSA, IFCS-UFRJ). Atua
como pesquisadora associada do Núcleo Sophia Pinheiro
de Estudos de Sexualidade e Gênero Mestre em Antropologia Social pelo
(NESEG, IFCS-UFRJ) e do Global Race Programa de Pós-Graduação em
Project Antropologia Social na Universidade
contato: veronicatoste@gmail.com Federal de Goiás (PPGAS/UFG). É
graduada em Artes Visuais e bacharel em
Design Gráfico pela mesma universidade.
Atua como pensadora visual, interessada
acompanhe no youtube o Sobre Elas
nas poéticas e políticas visuais, gênero,
(www.youtube.com/sobreelas), dirigido
processos de criação, na antropologia e/ por Emy Lobo, o canal veicula inúmeras
da arte, culturas e representações das entrevistas com mulheres, além de
imagens. apresentar uma série de curtas com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3686998218403865 pesquisadoras sobre autoras clássicas.
140 clá ssicas – Dossiê Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 2017 141

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