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ORNELAS, J. N.

Seção Especial

José Saramago – apresentação geral da obra


José N. Ornelas?
University of Massachusetts, Amherst

LIVROS:
Terra do pecado, Lisboa: Minerva, 1947; edição corrigida, Lisboa: Caminho, 1997.
Os poemas possíveis, Lisboa: Portugália, 1966; edição revisada, Lisboa: Caminho, 1982
Possivelmente alegria, Lisboa: Livros Horizonte, 1970; edição revisada e aumentada, Lisboa:
Caminho, 1985.
Deste mundo e do outro, Lisboa: Arcádia, 1971.
A bagagem do viajante, Lisboa: Futura, 1973.
O embargo, Lisboa: Estudios Cor, 1973
As opiniões que o DL teve, Lisboa: Seara Nova/Futura, 1974
O ano de 1993, Lisboa: Futura, 1975.
Os apontamentos, Lisboa: Seara Nova, 1976.
Manual de pintura e caligrafia, Lisboa: Moraes Editores, 1976; Traduzido para o inglês por
Giovanni Pontiero como Manual of Paiting and Caligraphy, Manchester, UK.: Carcanet, 1994.
Objeto quase, Lisboa: Moraes Editores, 1978.
A noite, Lisboa: Caminho, 1979.
“O Ouvido.” Em Poética dos Cinco Sentidos. Lisboa: Bertrand, 1979.
Levantado do chão, Lisboa: Caminho, 1980.
Que farei com este livro? Lisboa: Caminho, 1980.
Viagem a Portugal, Lisboa: Círculo de Leitores, 1981; traduzido por Amanda Hopkinson e
Nick Caistor como Journey to Portugal: in pursuit of Portugal´s history and culture, New York:
Harcourt, 2000.
Memorial do convento, Lisboa: Caminho, 1982; traduzido por Pontiero como Baltazar and Blimunda,
San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1987; London: Cape, 1988.
O ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa: Caminho, 1984; traduzido por Pontiero como The year of
the death of Ricardo Reis, San Diego: Harcourt brace Jovanovich, 1991; London: Harvill, 1992.
A jangada de pedra, Lisboa: Caminho 1986; traduzido por Pontiero como The Stone Raft ,
London: Harvill, 1994; New York: Harcourt Brace, 1995.
A segunda vida de Francisco de Assis, Lisboa: Caminho, 1987.
História do cerco de Lisboa, Lisboa: Caminho 1989; traduzida por Pontiero como The history of
the siege of Lisbon, London: Harvill, 1996; New York: Harcourt Brace, 1996.
O Evangelho segundo Jesus Cristo, Lisboa: Caminho, 1991; traduzido por Pontiero como The
Gospel according to Jesus Christ, London: Harvill, 1993; New York: Harcourt Brace, 1994.
In nomine Dei, Lisboa: Caminho 1993.

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José N. Ornelas nasceu na Ilha da Madeira, Portugal. Viveu em Nova Iorque, onde completou seus estudos. Em
1976, recebeu o título de Ph. D. em Línguas e Literaturas Hispâniccas, pela City University of New York. É
porfessor de Espanhol e Português na Universidade de Massachusetts Amherst desde 1974. Suas publicações se
concentram em estudos sobre escritores portugueses contemporâneos. em 2007, co-editou com Paulo de Medeiros
um volume sobre José Saramago, Da possibilidade do impossível: Leituras de Saramago.

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Cadernos de Lanzarote, 5 volumes, Lisboa: Caminho, 1994-1998.


Ensaio sobre a cegueira, Lisboa: Caminho, 1995; traduzido por Pontiero como Blindness, London:
Harvill, 1997; New York: Harvill, 1998.
Moby Dick em Lisboa, Lisboa: Expo 98, 1996.
Todos os nomes, Lisboa: Caminho, 1997; traduzido por Margaret Jull Costa como All the names,
London: Harvill, 1999; New York: Harcourt Brace, 1999.
O conto da ilha desconhecida, Lisboa: Expo´ 98/Assírio & Alvin, 1997; traduzido por Christine
Robson como The Tale of the Unknown Island, Lisbon: Expo´98/Assírio & Alvin, 1997; traduzido
por Costa (London: Harvill, 1999; New York: Harcourt Brace, 1999.
Uma voz contra o silêncio, Lisboa: Caminho, 1998.
Discursos de Estocolmo, Lisboa: Caminho, 1999.
Folhas políticas, 1976-1998, Lisboa: Caminho, 1999.
A caverna, Lisboa: Caminho, 2000; traduzido por Costa como The cave, London: Harvill, 2002;
New York, Harcourt, 2004.
A maior flor do mundo, Lisboa: Caminho, 2001.
O homem duplicado, Lisboa: Caminho, 2004; traduzido por Costa como The Double, New York:
Harcourt, 2004.
Ensaio sobre a lucidez, Lisboa: Caminho, 2004; traduzido por Costa como Seing, London, Harvill,
2006; New York: Harcourt, 2006.
Don Givanni ou o dissoluto absolvido, Lisboa: Caminho, 2005.
As intermitências da morte, Lisboa: Caminho, 2005.
As pequenas memórias, Lisboa: Caminho, 2006.
A Viagem do elefante. Lisboa: Caminho, 2008.
O caderno. Lisboa: Caminho, 2009.
Caim. Lisboa: Caminho, 2009
O caderno 2. Lisboa: Caminho, 2010.

OUTRO: “Ouvido”, in Poética dos cinco sentidos, editado por Figueiredo Magalhães, Lisboa:
Bertrand, 1979, PP. 19-26.

Em outubro de 1998, José Saramago tornou-se o primeiro escritor de língua portuguesa a


receber o Premio Nobel de Literatura. A citação a Saramago feita pela Academia Sueca
chamava seus romances de “parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia”,
uma imediata caracterização da importância universal do trabalho do escritor. Em 1997, o
escritor Edmund White já havia declarado que nenhum outro candidato ao Prêmio Nobel
poderia pleitear reconhecimento mais duradouro como romancista do que Saramago. Apesar
de seu primeiro romance Terra do Pecado ter sido publicado já em 1947, ele só começou a ter
reconhecimento nacional e internacional quando tinha quase sessenta anos de idade. Sua ascensão
ao ápice do establishment literário foi meteórica. De fato, durante os anos 1980 e 1990, nenhum
outro escritor português obteve maior prestígio nacional e internacional. Esse dado foi
consubstanciado pelos inúmeros prêmios importantes que Saramago havia recebido tanto em
Portugal como no exterior, pela tradução de muitos de seus trabalhos em mais de trinta
línguas diferentes e pelas várias edições de seus livros em Portugal e em países estrangeiros.

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Embora ele seja mais conhecido por seus escritos posteriores à revolução de 25 de abril de
1974, Saramago já era um autor publicado antes dos acontecimentos de 1974, que derrubaram
a ditadura fascista de António de Oliveira Salazar e seu sucessor Marcelo Caetano. Como
muitos outros escritores da geração pós-revolucionária, Saramago foi afetado pela repressão
e censura associadas ao estado fascista português e pelas longas guerras coloniais africanas nas
quais Portugal estava envolvido durante os anos 1960 e 1970. Essas guerras afetaram tão
profundamente a psique nacional e dilaceraram as vidas de tantos cidadãos, que acabaram
criando as condições para o golpe militar de 1974, evento responsável pela criação do regime
democrático em Portugal e pela independência das colônias portuguesas africanas.

Saramago escreveu seus livros nesse novo contexto político, inicialmente definido pelo fervor
e zelo revolucionário extremo finalmente moderado pela aceitação por parte de Portugal dos
ideais democráticos do parlamento europeu ocidental. O autor, como muitos escritores do
período pós-revolucionário, voltou-se para a história de Portugal como fonte de inspiração
para muitos de seus escritos. A escolha pela história ocorreu por duas razões. Primeiro, um
clima político mais aberto depois da revolução de 1974 permitiu que Saramago lidasse com
um sujeito, a história portuguesa, que estava sem limites durante o período fascista. Segundo,
as transformadoras circunstâncias políticas e sociais criaram a necessidade de reinventar Portugal
através de uma recodificação revisionista e reavaliação da história portuguesa uma vez que o
país emergia de quase cinquenta anos de um discurso fascista nacionalista que tinha distorcido
completamente sua história por motivos políticos e ideológicos. Saramago sentiu que, através
de um envolvimento com a história portuguesa, ele alcançaria um maior entendimento sobre
seu próprio país e seria capaz de contribuir na construção de uma nova imagem e identidade
para a nação.

Saramago nasceu no pequeno povoado de Azinhaga, na província de Ribatejo, cerca de cem


quilômetros ao nordeste de Lisboa, em 16 de novembro de 1922, numa família de trabalhadores
rurais. Seus pais foram José de Sousa e Maria da Piedade, mas o escrivão decidiu, por conta
própria, registrar o nome Saramago na certidão de nascimento. Assim, o garoto foi oficialmente
registrado como José de Sousa Saramago, nome que mais tarde foi encurtado para José
Saramago, quando ele começou a escola primária. Antes de completar dois anos, seus pais
decidiram se mudar para Lisboa. Apesar de ter crescido em Lisboa e lá ter frequentado a
escola, ele passava longos períodos de sua infância e juventude no campo com seus avós, os
quais influenciaram muito sua visão de mundo. Em sua palestra durante a cerimônia de entrega
do Premio Nobel de Literatura, o escritor mencionou a simples, porém significativa vida
camponesa de seus avós, e reconheceu que ficava tão impressionado com seu avô analfabeto
Jerónimo que ele o imaginava ser o mestre de todo o conhecimento no mundo. A vida em
Lisboa era difícil para a família Sousa. Poucos meses depois que a família se estabeleceu na
cidade, o único irmão de Saramago, chamado Francisco, morreu.

Saramago era um excelente aluno no curso fundamental, mas a situação financeira da família
não per mitiu que ele continuasse os estudos visando à formação universitária.
Consequentemente, ele se matriculou em um curso técnico para aprender um ofício. Depois
de terminar os estudos em 1939, trabalhou como mecânico numa oficina de consertos de
carros. Durante esse período ele se ocupou mais com literatura, assunto pelo qual desenvolveu
interesse enquanto estava na escola técnica. Sem condições financeiras para comprar livros,

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começou a frequentar a biblioteca pública no período noturno para ler. Em 1944, quando
trabalhava como funcionário público no Serviço da Previdência Social, casou-se com Ilda
Reis, com quem teve sua única filha, Violante, em 1947. Coincidentemente, naquele mesmo
ano seu primeiro romance, Terra do Pecado, foi publicado.

Terra do pecado, com sua anacrônica dívida ao naturalismo do século XIX, é, principalmente, de
interesse de estudiosos da ficção de Saramago. A maioria dos críticos e o próprio autor o
consideram uma escrita de ficção experimental, uma prática estética destinada a ter vida curta
e escrita por um indivíduo que ainda não estava pronto para ser romancista. Saramago era
consciente das limitações de sua incursão inicial no gênero ficcional, e levou trinta anos para
publicar novamente outro romance, Manual de pintura e caligrafia (1976). Entretanto, ele não se
manteve calado durante esse período, já que publicou várias coletâneas de poesia, crônicas e
ensaios antes de voltar para o romance, gênero que finalmente lhe trouxe aclamação internacional.

Terra do pecado não se encaixa nem nos parâmetros modernistas nem neo-realistas que, à época,
estavam em voga em Portugal. Aparentemente, Saramago não tinha conhecimento da existência
de Jorge Amado, José Lins do Rêgo e Graciliano Ramos, autores do nordeste do Brasil cuja
influência pavimentou o caminho para o desenvolvimento e estabelecimento do neo-realismo
em Portugal. Esse movimento literário tinha o compromisso de produzir trabalhos de arte
socialmente e politicamente engajados, voltados para o fim da repressão, do classicismo, da
alienação, opressão, exploração e censura. O neo-realismo, no qual a representação da realidade
seguia uma perspectiva marxista dogmática, tinha como principal objetivo ideológico o
enfraquecimento e subversão do regime de Salazar. Contudo, Terra do pecado, em sua intenção
política e concepção estética, não pode ser considerado uma arma ideológica na guerra contra
o fascismo do estado. É, ao contrário, um trabalho que tem muito em comum com o romance
do século XIX e suas teorias da evolução, as quais tiveram importante papel no projeto da
narrativa naturalista. Inegavelmente, o romance tem grandes afinidades em termos de trama e
temas (especialmente aqueles associados a tabus sexuais), com os romances de Eça de Queirós
e Camilo Castelo Branco, romancistas portugueses do século XIX que frequentemente
enfatizavam assuntos sexuais sórdidos e a degeneração da burguesia rural e urbana decadente.
Terra do pecado, através da insatisfação sexual da personagem principal, Leonor, e sua cega
obediência aos impulsos sexuais, mostra que segue de perto a estética do naturalismo, na qual
o comportamento de um personagem é subordinado à fisiologia e determinado pelo espaço
social e cultural em que habita.

Saramago, depois de seu debut com Terra do pecado, esperou mais dezenove anos para publicar
outro livro. Sua única desculpa para não ter escrito por tanto tempo era a de que ele não tinha
nada que valesse a pena ser dito. Entre a publicação de seu primeiro romance e sua primeira
coletânea de poesia, Os poemas possíveis (1966), ele teve empregos diferentes; inicialmente,
trabalhou numa empresa de metal e, ao final dos anos 1950, conseguiu um emprego como
gerente de uma editora. Também começou a traduzir livros do francês para o português para
complementar a renda familiar. As atividades de tradutor só terminaram em 1981, quando
sua crescente estatura como escritor permitiu que se dedicasse totalmente ao trabalho criativo.
Entre 1966 e 1975, Saramago produziu três livros de poesia: Os poemas possíveis, Provavelmente
Alegria (1970) e O ano de 1993 (1975). O autor tem dito que sempre que reflete sobre sua
poesia tem um sentimento de inquietação porque parece estar se expressando e criando uma

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identidade através do gênero errado. Num prefácio à segunda edição de Os poemas possíveis
(1982), uma edição significativamente revisada pelo autor, Saramago observa que o livro deve
seu mérito aos temas e obsessões presentes em sua poesia que a liga aos seus últimos romances.
Vários críticos têm mencionado as conexões entre sua poesia e seus romances, especialmente
O ano de 1993, um trabalho visto como um passo fundamental para sua ficção. Mas eles
também apontam uma coerência orgânica intrínseca e uma unidade temática em sua poesia. E
mais, seus poemas têm certo grau de originalidade. Ainda que em consonância com a tradição
da lírica moderna portuguesa, as raízes de sua poesia podem ser encontradas no modernismo
português, especialmente no trabalho de Fernando Pessoa, a voz poética mais ilustre da primeira
onda do modernismo português no início do século XX.

Os poemas possíveis é dividido em cinco seções: a primeira e a última têm, respectivamente,


quarenta e oito e sessenta e sete poemas, enquanto que as outras três têm, juntas, apenas trinta
e dois poemas. Esses poemas são, via de regra, curtos; a maioria são poemas decassilábicos de
uma estrofe. Entre os temas importantes presentes em Os poemas possíveis estão a constante
confrontação e luta com a criação poética, a inabilidade em usar a palavra adequada para
expressar significado num mundo caótico, e a simulação como realidade da poesia. Nas três
seções centrais, o escritor enfoca a opressão, a solidariedade e o amor como uma maneira de
superar a morte e o tempo. Ele ataca a censura e a negação da liberdade e constrói um mundo
onde o ato criativo é devolvido à humanidade uma vez que foi abandonado pelos deuses.
Embora a visão de mundo de Saramago possa parecer extremamente pessimista e sombria
em todo o livro, a última seção restaura um indício de equilíbrio a essa visão. O tom pessimista,
a desilusão e a insistência na incapacidade do mundo de parar o fluxo irreversível do tempo e
construir a unidade do sujeito podem ainda prevalecer na última seção, mas esses temas são
contrabalançados por uma visão mais otimista do mundo, que destaca o amor físico, sensual
e o erotismo como atributos humanos que podem, através de suas qualidades redentoras,
parar o fluxo do tempo e criar o renascimento. Poesia, amor e tempo são bases estruturais
para os livros de Saramago. O autor também parece indicar que qualquer conhecimento
significativo do mundo somente pode ser alcançado através do constante questionamento das
múltiplas possibilidades da linguagem.

Provavelmente alegria estende e aumenta as linhas temáticas estabelecidas no primeiro livro de


poesia do autor. Diferentemente de Os poemas possíveis, esse novo livro não é dividido em
seções, e cada poema não é constituído como parte de um todo. A composição é muito mais
fragmentada, e algumas dessas composições poéticas, especialmente os poemas em forma de
prosa, antecipam a ficção posterior através de suas qualidades líricas e imagística sugestiva. Por
meio do próprio ato de leitura, encontrando imagens que geram novas surpresas, descobertas
e iluminações, o leitor compreende o sentido do texto. Esses poemas, através de sua imagística
visual e do papel desempenhado pelo leitor em descortinar seus significados, revelam em sua
beleza estética muitas semelhanças com os textos maduros de Saramago.

É difícil classificar o gênero de O ano de 1993. Existem indicações de que Saramago prefere o
rótulo de poesia, o que é justificável uma vez que o texto é dividido em trinta partes diferentes
que estruturalmente lembram poemas. Entretanto, alguns críticos discordam da classificação
do autor. Eles acham que o livro se aproxima mais do romance ou da crônica, já que O ano de
1993 lembra uma narrativa com uma trama que se desenvolve até alcançar um clímax e tem

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um tom sentencioso e moralizador. O título desse texto experimental sugere fortes afinidades
com 1984, de George Orwell (1949). Como o romance de Orwell, o trabalho de Saramago
é uma representação de um mundo imaginário, primitivo, futurista e distópico no qual a
repressão e o abuso do poder imperam. Diferentemente de 1984, contudo, O ano de 1993 não
recorre à língua para reprimir seus cidadãos e criar um mundo de pesadelo caracterizado pela
violência, terror e anarquia. O livro começa com a invasão de uma cidade por forças despóticas
sem nome. Os habitantes da cidade já estão doentes, atacados pela peste; até a luz elétrica está
infectada. Subsequentemente, um elevador para de funcionar, e um homem que sai de sua
casa depois do toque de recolher é interrogado por muitos dias. Fazem-lhe uma pergunta a
cada sessenta minutos, para a qual ele dever dar cinquenta e nove respostas diferentes. Sem
explicação alguma, os habitantes da cidade se vêem do lado de fora da cidade, com lobos
agora ocupando suas antigas casas – invertendo, como sugere o autor, a ordem natural das
coisas. Os déspotas ocupando a cidade começam a construir elefantes e águias mecânicas para
caçar os humanos e uma curandeira reduz a cidade ao tamanho de um corpo humano, para
que, quando o comandante das forças ocupacionais chicotear o corpo, todos os seus habitantes
recebam chicotadas. Finalmente, prisões de cristal são construídas com celas em forma de
colmeias para que todos os prisioneiros possam ser observados em seus atos mais íntimos.

Aos poucos, a tribo que ocupa o platô fora da cidade começa a se organizar de modo
humano e fraterno com o objetivo de por um fim à atmosfera apocalíptica na cidade e
derrotar as forças invasoras. Como a tribo luta contra os déspotas, recebe apoio de elementos
da natureza que vêm em sua defesa. Árvores começam a atacar os invasores, e um pássaro
derruba uma águia mecânica, que não pode se defender, já que foi programada para atacar
somente seres humanos. A linguagem, que tinha sido perdida, aos poucos emerge quando um
homem e uma mulher se olham durante o ato sexual, um ato coberto de silêncio, mas que ao
final permite o doloroso nascimento de um mundo novo. Sexo, de fato, é um elemento chave
para a construção do todo social novamente. Atos sexuais, ao lado dos ritos de fertilidade,
acontecem antes da insurreição da tribo aterrorizada e a subsequente expulsão dos invasores
da cidade ocupada.

Na realidade, O ano de 1993 é a narração de um ciclo de vida e morte ou da destruição e


procriação através da construção imaginária de uma distopia futurista localizado num espaço
urbano que é eventualmente destruído pelo amor sexual, reprodução e humanidade. No
sentido mais político e ideológico, o livro mostra a visão de um autor que acredita firmemente
que atos revolucionários podem redimir a humanidade. A construção de Saramago de um
espaço citadino sombrio e apocalíptico sublinha a visão pessimista que tinha em Portugal um
ano depois da revolução de 1974. Ainda assim, a conclusão do livro revela que nem tudo é
inútil, já que a mudança é sempre possível.

Durante os anos 1960 e 1970, à medida que começa a publicar regularmente, Saramago
manteve-se ocupado com outras atividades profissionais. Foi crítico literário para a revista
Seara Nova. Em 1972 e 1973 trabalhou para o jornal Diário de Lisboa, para o qual escreveu
artigos políticos e críticas. Durante parte desse período ele também foi responsável pelo
suplemento cultural do jornal. Em 1975, por pouco tempo, foi editor associado do Diário de
Noticias, posto que ocupou até 25 de novembro, quando o governo português assumiu uma
postura contra-revolucionária de direita bloqueando a ascensão e conquistas da esquerda no

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país. Saramago, um sólido defensor do comunismo e seus ideais (e ainda comunista de


carteirinha) foi demitido pelo jornal. Entretanto, sua demissão do Diário de Notícias pavimentou
o caminho para sua carreira de escritor profissional. Decidiu então abandonar a carreira de
jornalista e se dedicar exclusivamente à escrita criativa.

Durante essas décadas, enquanto Saramago escrevia e publicava sua poesia, tentava também
escrever crônicas. Esses trabalhos, que surgiram primeiro em jornais, foram mais tarde
compilados pelo autor e publicados como livros. Deste mundo e do outro (1971) é uma coletânea
de textos publicados entre 1968 e 1969 no jornal diário A Capital. A bagagem do viajante (1973)
reúne textos publicados entre 1971 e 1972 no mesmo jornal e no semanal O Jornal do Fundão.
Além desses dois livros, o autor publicou outros dois: As opiniões que o DL teve (1974), textos
impressos entre 1972 e 1973 no Diário de Lisboa, e Os apontamentos, uma coletânea de textos
escritos entre abril e setembro de 1975 e publicados no jornal diário Diário de Notícias.

Nas crônicas dos dois últimos livros, os quais são uma compilação dos escritos políticos de
Saramago poucos anos antes da revolução de 1974 e durante o próprio processo
revolucionário, o autor assume uma explícita postura de envolvimento com os eventos em
curso em seu país. Em As opiniões que o DL teve, o autor questiona e ataca o sistema político
português e mostra indignação contra a falta de liberdade numa época em que Caetano já
havia substituído Salazar como líder do país. Em algumas crônicas percebe-se um clima de
expectativa e esperança de que a situação política pode mudar. Em Os apontamentos, o leitor
nota o envolvimento profundo do escritor com os acontecimentos revolucionários. Ele nunca
deixa de atacar e criticar ferozmente aquilo que considera falhas tanto da revolução como do
processo democrático.

Ambos os livros têm mais valor histórico e social do que literário. Embora haja uma forte
ligação ideológica entre essas crônicas e os romances posteriores de Saramago, é difícil afirmar
que elas contribuem significativamente para a evolução de Saramago como romancista. No
entanto, ajudam o leitor a entender a intriga política, as manobras, os desejos e esperanças e o
estado emocional dos cidadãos portugueses durante o período pré-revolucionário e
imediatamente posterior à revolução de 1974. O caos, a luta pela definição de democracia e
liberdade e as constantes guerras ideológicas interpartidárias são alguns dos problemas pós-
revolucionários que Saramago discute.

Diferentemente dos dois livros que abordam principalmente problemas e acontecimentos


políticos, Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante, antecipam, em diferentes formas, o
romancista maduro. O próprio escritor afirmou que existe uma forte correlação entre esses
dois livros e seus romances. O comentário de Saramago, em sua entrevista de 1998 a Carlos
Reis, de que “está tudo lá” nas crônicas é bastante conhecido. O impulso criativo já está
presente nas crônicas, e o leitor pode observar nelas os primeiros rascunhos dos personagens
ficcionais que passam por uma elaboração maior em seus romances. As crônicas também
enfocam problemas e temas os quais ele retoma nos romances dos anos 1980 e 1990: temas
atuais; as paisagens rurais e urbanas; tipos e personalidades humanas; a recuperação do passado
através da memória; a jornada através da paisagem cultural e histórica; o ato de escrever; a
interrelação entre história e ficção, história como ficção e a reinvenção da história; o uso do
fantástico e do mágico na construção da realidade; e a interseção entre passado, presente e

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José Saramago – apresentação geral da obra.

futuro. Apesar de Saramago estar escrevendo crônicas, ele tem grande prazer em narrar a
história com uma variedade de personagens e personalidades que re-aparecem em seu trabalho
maduro: fantasmas, aparições, reis, animais e uma grande diversidade de amantes. Além disso,
a voz narradora inquisitiva, crítica, irônica e terna que questiona e fala sobre tudo e todos - o
que torna seu romance tão original -, já está presente nas crônicas.

Deste mundo e do outro e A bagagem do viajante, através de sua ligação temática e estrutural com o
trabalho maduro de Saramago, desempenham um papel importante na transição entre as
fases literárias do autor em formação para a do escritor maduro; elas abrem caminhos narrativos
que o autor re-utiliza em seus romances mais maduros. Em uma de suas crônicas, “Viagens na
minha terra”, Saramago observa que as crônicas são pontes arremessadas no vazio em busca
de solo firme.

Trinta anos depois da publicação de seu primeiro romance, Saramago retornou ao gênero
com Manual de pintura e caligrafia, um trabalho sintonizado com o ambiente literário
contemporâneo de Portugal e da Europa, mas que só recebeu atenção e elogios da crítica
depois que ele já tinha se tornado um romancista altamente reconhecido nos anos 1980.
Preocupações temáticas que ressurgem em romances posteriores, bem como digressões que
são fundamentais para a estrutura da ficção madura do escritor, desempenham um papel
crucial na construção do mundo ficcional de Manual de pintura e caligrafia. Esses temas incluem:
a relação entre o “eu” e o “Outro”, as tensões entre vida e arte e realidade e imaginação, a
rejeição do realismo clássico como uma forma estética válida para a representação da realidade,
o incessante questionamento da verdade ou das verdades plurais do texto, a impossibilidade
de alcançar uma verdade única por causa de sua natureza dúbia, a descoberta da narrativa
como revelação do mundo, a constante subversão de imagens canonizadas e eventos históricos,
o escritor como artesão, as relações entre viagem e autoconhecimento e narrativa, e o romance
como artifício. Finalmente, existe a preocupação do autor com a crise da representação e a
(re)construção da realidade através do foco em duas facetas do ato de criação: uma que
destaca o visual (pintura) e outra que enfatiza o poder evocativo e significativo da palavra
(caligrafia).

Manual de pintura e caligrafia, o qual Saramago considera seu trabalho mais autobiográfico, é
uma narrativa em primeira pessoa sobre um pintor medíocre, um retratista identificado apenas
por uma inicial, H. A história coincide cronologicamente com os últimos meses do Estado
Novo português, a ditadura fascista e o começo do período revolucionário em 1974. De
fato, o romance termina com a euforia resultante dos eventos reveladores do amanhecer de
25 de abril de 1974. H., que é bastante consciente de suas limitações e falta de aptidão como
pintor, e que se sente preso numa rede social banal de amizades, toma uma decisão consciente
de começar a escrever um diário, o qual espera que o leve ao autoconhecimento, um objetivo
que até então o frustrara como pintor. Ele começa a escrever porque reconhece que através da
forma de expressão artística que havia escolhido está condenado a ser e fazer aquilo que os
outros querem que ele seja e faça. Como pintor, ele está condicionado por um sistema de
apadrinhamento instituído por aqueles que pagam grandes comissões por suas pinturas, uma
prática que o deixa à mercê deles e o força a pintar em conformidade com códigos estéticos
definidos culturalmente institucionalizados. Antes de H. ter sua crise existencial que o força a
refletir sobre a função da arte, ele parece satisfeito em fazer as mesmas e repetitivas coisas: se

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envolve em relações sem amor; se separa, sem sofrimento, das amantes; e experimenta
repetidamente as mesmas aventuras previsíveis. Em essência, ele vive uma vida sem história,
uma vida de mediocridade e inércia, uma vida sem maiores riscos. Sua abordagem sobre
pintura espelha essas características. Na realidade, existe uma forte correlação entre sua vida
pessoal e sua vida artística.

Quando H. começa a escrever o diário, ele se vê restringido pelos códigos e convenções que
ligam a linguagem ao ato de narração. Escrever e pintar parecem seguir os velhos e repetidos
caminhos tradicionais. Entretanto, uma viagem à Itália, onde ele entra em contato com uma
variedade de manifestações artísticas, faz H. perceber que somente através da imaginação e da
mágica o artista se liberta para traçar seu processo criativo. Seu diário reflete claramente essa
transformação. Quando o romance se aproxima de um fechamento, seu caso amoroso com
M. – a protagonista feminina – reforça sua transformação, porque se apresenta como um
catalisador para o posterior desenvolvimento de H. como artista. Nesse ponto, H. decide não
pintar um quadro comissionado pelos “Senhores da Lapa” de maneira convencional. Ao
invés disso, ele opta por pintar o quadro usando uma linguagem pictorial imaginativa e arriscada,
que quebra todas as regras canônicas, um ato que indica sua ruptura com um sistema político
que estava morrendo, morte que ocorre com a revolução de 1974. O acontecimento também
permite que a sociedade portuguesa passe por uma transformação. Com sua decisão de usar
a imaginação na pintura de um quadro, H. finalmente mostra que é capaz de se apegar aos
seus ideais em um mundo que ainda está obstinado pelos valores burgueses materiais.

Em 1978, Objeto quase se tornou a primeira e única coletânea de contos publicada por Saramago.
O livro, que compreende seis contos misturando o fantástico e a ficção cientifica, focaliza
temas que são valiosos para o escritor, tais como a luta contra a sociedade de consumo e o
sistema totalitarista que privam os indivíduos de sua humanidade e subjetividade e são a causa
direta de sua alienação. Os contos da coletânea são “Cadeira”, “Embargo”, “Refluxo”,
“Coisas”, “Centauro” e “Desforra”. O objetivo principal desses contos é a restauração da
humanidade, que foi roubada do indivíduo pela alienação e repressão. Alguns desses contos
são alegorias políticas e sociais, como “Cadeira”, “Embargo” e “Refluxo”. Outras, como
“Coisas”, retratam uma visão kafkiana do mundo.

“Ouvido”, outro conto, surgiu em 1979 em um livro coletivo intitulado Poética dos cinco sentidos.
Além de Saramago, cinco outros grandes escritores portugueses colaboraram nesse
empreendimento. Os contos são todos inspirados em uma tapeçaria famosa da série La Dame
à La Licorne, exposta no Cluny Museum em Paris. A contribuição de Saramago em “Ouvido”
é tematicamente associada ao Manual de pintura e caligrafia, na medida em que ambos focalizam
a relação entre a escrita e as artes plásticas.

No mesmo ano em que “Ouvido” surgiu, Saramago publicou sua primeira peça, A Noite, a
qual foi seguida em 1980 por outra peça, Que farei com este livro?. A primeira remete a eventos
que aconteceram na noite de 24 de abril de 1974 na redação de um jornal, quando os primeiros
sinais da revolução portuguesa são claramente percebidos. A segunda enfoca o poeta Luís de
Camões, a maior figura literária da Renascença portuguesa, já que sua poesia e vida se tornam
interligadas simbolicamente com o novo Portugal revolucionário. Camões tinha sido usado
pelo discurso fascista por diferentes razões: para fortalecer o patriotismo, o nacionalismo

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José Saramago – apresentação geral da obra.

beligerante e a glorificação do passado português. Coincidentemente, a peça apareceu no


mesmo ano em que o quarto centenário de morte do poeta estava sendo comemorada em
Portugal.

Em várias ocasiões Saramago alegou que nunca teve muita vocação para o teatro e que nunca
tinha sido um grande leitor de peças. Em suas próprias palavras, as quatro peças que escreveu
em toda sua vida foram feitas por encomenda. Provavelmente, por essa razão, A Noite, Que
farei com este livro?, A segunda vida de Francisco de Assis (1987) e In nomine Dei (1993) não apresentam
as inovações linguísticas ou invenções na forma que caracterizam sua prosa da maturidade.
Todavia, como seus romances, sua dramaturgia objetiva a transformação da sociedade e é
altamente intervencionista. O ponto central das peças de Saramago nunca é a peça como
espetáculo. Todavia, o teatro como gênero é o que permite ao autor questionar a escrita e os
múltiplos significados das palavras, e chamar a atenção do leitor para problemas relevantes do
Portugal contemporâneo através da dramatização de eventos históricos.

O ano de 1980 representa uma avalanche na carreira literária de Saramago; ele emerge como
um escritor de grande talento e importância com a publicação do romance Levantado do chão.
O uso inovador da linguagem narrativa no romance e a habilidade para refletir sobre a história
de Portugal questionando sua suposta objetividade e papel na representação dos fatos deu ao
autor imediata aclamação da crítica. A linguagem romanesca moderna de Saramago dispensa
a pontuação ortodoxa, marcas diacríticas, ponto ao final das orações e parágrafos, aspas nos
diálogos e o uso de cedilhas para mudar parágrafos na narrativa. A linguagem de Saramago
também se distingue pela variedade de registros linguísticos de classe social, aproximando-a
da tradição oral.

Sua prosa, com mudanças repentinas de tempos e vozes, interjeições irônicas do


narrador, digressões constantes e fusão da perspectiva do narrador com a dos personagens
apresenta muita afinidade com o estilo barroco de Padre Antonio Vieira, autor luso-brasileiro
do século XVII conhecido por seus sermões sentenciosos escritos de forma ornamentada. A
re-criação da linguagem e o tom oral da prosa em Levantado do chão se tornaram características
permanentes na maioria dos romances posteriores de Saramago. Não menos original nesse
romance é a habilidade do autor em misturar o real e o histórico com o fantástico e imaginário,
o que não somente permite que Saramago dê ao leitor uma fotografia mais precisa da realidade
como também liga sua escrita à de Gabriel García Márquez e de outros escritores latino-
americanos associados ao realismo mágico.

A idéia de que todas as verdades são plurais e que todo conhecimento sobre a história é
filtrado pela subjetividade que a recria – uma lição que H. em Manual de pintura e caligrafia
aprendera bem – também desempenha papel fundamental no desenvolvimento da trama de
Levantado do chão, um trabalho que aborda três gerações de trabalhadores rurais da região do
Alentejo: Domingos Mau-Tempo, seu filho João e seus netos. No inicio de 1976, Saramago
tinha embarcado numa viagem para o Alentejo para se familiarizar com a vida, os desejos e os
problemas sociais e econômicos dos trabalhadores rurais com o propósito de escrever um
romance que marcaria a presença daqueles que mal aparecem na hierarquia social. Levantado do
chão lida com suas observações pessoais no Alentejo rural.

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ORNELAS, J. N.

O romance começa poucos anos antes da queda da monarquia e fundação da República


portuguesa em 1910 e termina logo depois da revolução de 1974. No intervalo entre esses
dois grandes eventos, outros fatos estouram: a I Guerra Mundial, o Estado Novo de Salazar,
a Guerra Civil espanhola, a II Guerra Mundial e as guerras coloniais portuguesas na África.
Todos esses fatos são vistos através dos olhos de gerações diferentes da família Mau-Tempo,
camponeses que cultivam a terra e lutam contra as condições opressivas impostas pelo ausentes
latifundiários. A saga da família Mau-Tempo, apresentada como uma batalha épica por melhores
condições de vida, emancipação e conquista da dignidade humana é o eixo em torno do qual
história se torna ficção e ficção se torna história, um tema dominante em todos os romances
de Saramago. É extremamente difícil para os trabalhadores camponeses efetivar mudanças,
porque a lei dos poderosos os torna criaturas sem voz. Entretanto, a luta heróica dos agricultores
sem terra do Alentejo contra a tirania nunca morre. A redenção deles finalmente acontece
quando os camponeses invadem a terra e expulsam os latifundiários de suas terras ou, melhor
ainda, expulsam seus lacaios, homens que tinham escravizado e oprimido os trabalhadores
rurais em nome dos latifundiários ausentes da terra. A ação revolucionária tem como um dos
líderes a filha de João Mau-Tempo, Maria Adelaide Espada, uma mulher que levanta do chão
junto com muitos homens para escrever um novo capitulo na história de Portugal. Maria
Adelaide inaugura a presença de personagens femininos fortes na obra de Saramago.

Quando Saramago viveu entre os trabalhadores do Alentejo em 1976, ouvindo suas historias
pessoais, ele os avisou que um dia publicaria suas narrativas. Ele cumpriu a promessa ao fazer
de Levantado do chão o registro do testemunho oral daqueles que foram silenciados pela história
oficial, aqueles que construíram o país, mas cujos feitos estão ausentes dos documentos oficiais.
O objetivo do autor, como explicitamente sugere o titulo do livro, é “levantar do chão” do
Alentejo (e, por extensão, de Portugal) aqueles que ainda são incapazes de se levantar porque
nunca tiveram voz na escrita da história.

Com Levantado do chão, a carreira de Saramago como escritor seminal foi lançada. Não se deve
ignorar, porém, o fato de ele já ter trabalhado em seu oficio de escritor por anos antes da
aclamação crítica conferida a Levantado do chão, já que foi seu trabalho inicial que preparou o
escritor para seu aparentemente repentino sucesso literário, o qual para ele aconteceu na idade
avançada de cinquenta e oito anos. Embora seja mais conhecido pelos romances que publicou,
começando por Levantado do chão, fato que reforça a existência dos dois Saramagos – um mais
original depois de 1980 e outro menos original antes de 1980 – seria um erro assumir essa
dicotomia na trajetória literária de Saramago como têm feito alguns críticos. A maioria dos
críticos tem destacado as qualidades inovadoras de sua prosa nos anos 1980 e 1990 e tendem
a esquecer seu trabalho inicial, mas sua produção anterior aos anos 1980 ainda é de alta
qualidade. Como mostraram José Horácio Costa e Maria Alzira Seixo em suas análises sobre
o período pré-1980 do escritor, existem muitas relações formais e temáticas entre esses dois
períodos polarizados. Isso indica que as raízes programáticas e caminhos para o
desenvolvimento posterior do escritor já estavam presentes de forma embrionária em muitas
das crônicas, poesia, contos e romances da primeira fase de sua carreira literária.

Em 1981 Saramago publicou Viagem a Portugal, uma narrativa de viagem que mistura elementos
de ficção, crônicas e guias turísticos. O livro é uma viagem através da cultura portuguesa, onde
um viajante, referido na terceira pessoa, viaja por todo o país instigando o leitor a fazer outras

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José Saramago – apresentação geral da obra.

viagens. Embora a narrativa ofereça informações e comentários sobre os lugares visitados


pelo viajante, a informação tem uma qualidade subjetiva, já que se distancia da linguagem
estereotipada dos guias turísticos. Como alega Saramago na introdução do livro, Viagem a
Portugal é a historia de um viajante e de uma viagem em busca da fusão entre aquele que vê e
aquilo que é visto, um encontro entre subjetividade e objetividade. Ao chamar a atenção para
a natureza subjetiva do livro, Saramago destaca que o ato narrativo tem um papel importante
na jornada do viajante. Ele discute constantemente as diferentes formas de narrar e descrever.
Ao invés de simplesmente descrever o que vê, o viajante concentra-se no ato de ver e em seus
sentimentos e reflexões sobre aquilo que é visto. Existe forte correlação entre a viagem para o
interior do “eu” e a viagem por Portugal. Na viagem interior, o viajante faz descobertas sobre
si mesmo; ele constrói uma autobiografia. Na viagem exterior, ele resgata a cultura e história
portuguesa por meio de um foco pessoal sobre as manifestações e vozes do povo, e sobre
povoados pequenos e outros lugares e monumentos encantadores, os quais são
significativamente relacionados à história e à cultura portuguesa.

Memorial do convento (1982) foi o primeiro romance de Saramago a receber a aclamação da


crítica estrangeira. Esse romance, que mistura fantasia e realidade, enfoca a construção, no
inicio do século XVIII, do Convento Mafra, um monumento construído para satisfazer os
desejos megalomaníacos e a vaidade do clero português, da nobreza e do rei. Descreve
também a construção de um veículo aéreo pelo padre Bartolomeu Gusmão, com a ajuda de
Baltazar e Blimunda, os protagonistas da historia envolvidos amorosamente. O Convento
Mafra vem a ser construído por causa do pedido feito pelo Rei John V, em troca de um
herdeiro dado pela rainha. Apesar do pedido, a construção do convento, como destaca Saramago
em sua narrativa, representa a vitoria das forças fanáticas religiosas, do desperdício e corrupção,
uma vez que milhares de camponeses ficaram envolvidos com a construção desse monumento,
sacrificando Portugal do trabalho manual essencial para a agricultura e construção do país em
outras áreas.

Memorial do convento é um relato satírico da pompa e cerimônia que caracterizam uma era, o
período barroco, conhecido por suas festividades, autos-de-fé, touradas, conventos como
prostíbulos e procissões principalmente para o deleite das classes altas. A obra aborda uma
história de amor (Baltazar e Blimunda), esperança e idealismo (máquina voadora), e loucura e
abuso (a construção do convento de Mafra). No contexto do século XVIII, a máquina voadora,
associada com a vontade e desejo humano, é a antítese do convento de Mafra, um símbolo de
corrupção e repressão, os sonhos de vaidade e grandiosidade do rei. O romance enfoca o
convento e a máquina por razões diferentes. A máquina simboliza a valorização da humanidade
e a habilidade das pessoas de efetivar mudanças e realizar sonhos. O foco no monumento
desafia a verdade da história social, a qual sempre credita ao rei a construção do monumento.
O romance narra uma história diferente do convento, uma história com dimensões épicas. O
épico, nessa instância, não é grandioso e heróico para aqueles que escrevem a história oficial,
uma vez que eles nunca participam de sua construção. É heróico para os indivíduos das classes
mais baixas, que sacrificam, sofrem e até morrem para manter os sonhos lunáticos da monarquia.
Como o romance indica, para os novos heróis a tarefa é dolorosa e absurda. No final, a
construção é uma vitória vazia, porque, nos documentos oficiais, o papel dos trabalhadores

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 196
ORNELAS, J. N.

na construção do Convento de Mafra é negado – uma omissão que é retificada pelo Memorial
do convento, a história daqueles que não estão presentes nos registros históricos, mas, que, na
realidade, são os que verdadeiramente fazem a história.

O próximo romance de Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis (1984), é contextualizado nos
primeiros anos da ditadura de Salazar e começo da Guerra Civil Espanhola. A história
acompanha as aventuras românticas, sociais, políticas psicológicas e artísticas de Ricardo Reis
pelas ruas labirínticas de Lisboa e no povoado de Fátima. Reis, um médico-poeta, foi um dos
muitos personagens literários criados por Pessoa, o poeta modernista português mais ilustre;
Saramago faz de Reis um personagem à parte. O romance é, portanto, uma continuação do
trabalho de Pessoa. Reis esteve no exílio no Brasil desde 1919 por causa de sua simpatia
monarquista. Saramago o traz de volta do exílio para que se re-familiarize com Lisboa e sua
realidade em transformação depois que sabe da morte de Pessoa. A narrativa começa no final
de 1935 com a chegada de Reis do Brasil no Highland Brigade, um navio britânico, poucos dias
depois da morte de Pessoa em 30 de novembro. O próprio Pessoa é trazido de volta como
um fantasma que age como observador e crítico dos fatos que estavam acontecendo em
Portugal e no mundo em 1936 e como conselheiro de sua criação poética, Reis. Os dois têm
discussões calorosas sobre política, estética, vida, religião, história e filosofia.

Uma imagem negativa da turbulência política e social recepciona Reis em sua chegada em
Lisboa no final de 1935. Para o recém-chegado, Lisboa parece uma cidade sombria e silenciosa
fechada dentro de muros e fachadas, as quais nesse dia particular estão sendo devastadas por
um dilúvio. O mau tempo e os temporais violentos que continuam por dias durante o inverno
de 1935-1936 estabelecem o tom para um cenário político caracterizado por um clima de
vigilância, medo e repressão afetando todos os cidadãos portugueses. A lugubridade da cidade
e de seus habitantes é antecipada pelas imagens sombrias e sufocantes de um estado fascista
apoiado pela polícia secreta, pelos militares, por grupos paramilitares, censura, jornais, rádio e
até mesmo a Igreja. Quando Reis começa a fazer caminhadas diárias nas ruas de Lisboa, as
mesmas imagens negativas prevalecem. O cemitério onde Pessoa é enterrado, o qual Reis
visita, é uma continuação da cidade e metaforicamente a completa. O cemitério, com todas as
suas ruas, caminhos, estradas, avenidas e números é um retrato de Lisboa e, por extensão, de
Portugal. Os habitantes do cemitério, exatamente como os habitantes da cidade, podem apenas
olhar, insensivelmente, enquanto a situação política se deteriora e os acontecimentos em Portugal
e em outros países limitam mais ainda a liberdade pessoal e ameaçam criar um clima mais
opressivo. Reis, um classicista que acredita fortemente na filosofia da contemplação, indiferença
e impassibilidade, não está de fato interessado em se envolver ativamente com a cidade. A
maioria das vezes, ele vaga pelas ruas da cidade atraído pelos aspectos culturais e literários do
entorno, tais como monumentos, estátuas e edifícios, atrações que proporcionam reflexões e
divagações. Como Reis contempla com indiferença o espetáculo da cidade real, ele
imaginativamente recria uma outra, que é a incorporação de diferentes texturas culturais e
literárias, padrões, tonalidades e alusões, assim como harmonias estilísticas, ambiguidades e
discordâncias as quais sublinham sua percepção do mundo como texto. O fato de que ele só
se relaciona com o mundo através dos textos com os quais tem familiaridade o impede de
entender a situação política. O fascismo não combina muito com sua estrutura mental ou
valores. Ele lê sobre o que está acontecendo no resto de Portugal, vê um filme ser rodado
para fins propagandísticos, participa de um comício político, ouve sobre Adolph Hitler e sua

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José Saramago – apresentação geral da obra.

brigada jovem, lê as inúmeras mentiras publicadas nos jornais e é até mesmo assediado pela
polícia secreta; mas observa e sente tudo sob o prisma de seu clássico distanciamento. Ele
simplesmente se satisfaz com a contemplação da realidade.

A jangada de pedra (1986) narra a imaginária e futurista separação da península ibérica do resto
da Europa. Nas montanhas dos Pirineus, na fronteira que separa a França da Espanha, acontece
uma grande rachadura, a qual leva não apenas à separação da península, como também à sua
consequente viagem sem rumo pelo Atlântico, em forma de uma gigantesca jangada de pedra.
Depois de mudar de direção por várias vezes, a península acaba ancorando no Atlântico Sul,
num local equidistante entre a África e a América do Sul. A separação inexplicável entre a
península e a Europa coincide com vários acontecimentos estranhos e sobrenaturais que ocorrem
em Portugal e na Europa.

O romance foi escrito em um momento em que havia uma discussão inflamada sobre
identidade e naturalismo em Portugal envolvendo pessoas que apoiavam a união de Portugal
com a Comunidade Europeia (CE) e aquelas que se opunham frontalmente. A maioria das
autoridades portuguesas apoiava a integração, enquanto muitos intelectuais eram contra. A
jangada de pedra é escrita contra a ideia de que a história oficial tem a capacidade absorvente de
explicar tudo. Poucos anos antes da escrita do romance, o espaço geopolítico português tinha
sido reduzido com a perda do império africano. O país ainda estava tentando compreender
sua nova posição no cenário Europeu, e sua mudança de identidade, quando o aparato político
decidiu juntar-se à CE. Muitos intelectuais, inclusive Saramago, sentiram que aqueles que estavam
no poder, os criadores da história, estavam, na verdade, impedindo Portugal de ter um novo
renascer depois da perda do império. Eles se opuseram fortemente à integração. Portanto, A
jangada de pedra deve ser interpretada como uma narrativa contra a integração. Por um lado,
procura desmantelar as ideologias da integração da CE; por outro, tenta sugerir alternativas a
essas ideologias e repensar outras opções políticas antes de os dois países ibéricos se tornarem
membros definitivos da CE. O próprio escritor disse que não escreveu o romance por causa
do medo da perda de identidade cultural, mas sim porque acreditava que a península precisava
se redirecionar em função de algo que tinha desaparecido: os países das esferas ibero-americana
e ibero-africana. Dentro desse contexto político, a jangada peninsular funciona não como sinal
de isolamento enfraquecedor, mas, ao contrário, como a metáfora para a construção de uma
nova história e cultura ibérica que leva em consideração suas afinidades linguísticas, culturais,
sociais com seus “Outros” americanos e africanos.

O desejo maior de Saramago em A jangada de pedra é rejeitar o discurso de integração por


meio da busca imaginária de uma nova identidade nacional ou de uma identidade ibérica
comum, coerente com sua visão de integração. A viagem da jangada pela península salienta as
características comuns da península: ela une os espanhóis e os portugueses; força os dois
governos a trabalharem em uníssono para resolver a crise e impedir condições caóticas; e
revela as conexões entre as produções culturais dos dois países. A peregrinação comum da
península ibérica é uma estratégia de resistência consciente e autoral contra as produções culturais
europeias mais poderosas, as quais o escritor sente que serão impostas a Portugal e Espanha se
a integração se estabelecer totalmente. Na verdade, A jangada de pedra representa a revolta do
povo contra uma península governada pelo poder econômico e cultural estrangeiro.

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ORNELAS, J. N.

A peça A segunda vida de Francisco de Assis, como muitos romances de Saramago, também
recorre à história para desenhar seu mundo artístico. Na peça, Saramago, como havia feito
anteriormente com Pessoa em O ano da morte de Ricardo Reis, ressuscita a vida de uma figura
histórica – São Francisco de Assis – e o coloca em uma cidade moderna onde ele tem que se
confrontar com uma sociedade capitalista, mercantil e digitalizada. A segunda vida de Francisco de
Assis, que é uma alegoria política, enfoca o retorno de Francisco a um mundo mercantilista
antiético em seu ideal romantizado de pobreza. A Companhia Franciscana que ele encontra,
em contraposição à Companhia Francisca que ele havia fundado séculos antes, é uma empresa
capitalista regulada inteiramente pelas forças do mercado. Como ele percebe que não será
capaz de forçar a empresa a retornar ao ideal franciscano de pobreza, ele também conclui que
a vida de pobreza não significa, como acreditava, santidade e salvação. O novo Francisco
aceita que somente na luta contra a pobreza encontrará sua humanidade, sua salvação. Em
essência, a peça é sobre a transformação de Francisco de santo para homem, de Francisco
para João, que era seu nome original.

História do cerco de Lisboa (1989) é o romance de Saramago que mais explicitamente enfoca a
relação entre história e ficção. A interface entre as duas acontece porque a trama do livro
contradiz a versão oficial do cerco de Lisboa na Idade Média. No século XII, os Portugueses
tomaram Lisboa dos Mouros com a ajuda dos Cruzados. Entretanto, no romance de Saramago,
o protagonista, Raimundo Silva, um revisor que está corrigindo as provas de um livro de
história sobre o cerco de Lisboa, decide mudar a história oficial de Portugal por meio de um
ato criativo. Ele insere a palavra não nas passagens que se referem à ajuda que os cruzados
teriam dado aos portugueses na conquista de Lisboa. Ao inserir um não, o revisor subverte e
inverte um dos mitos fundamentais de Portugal: o texto alterado agora alega artificialmente
que os Cruzados não vieram para ajudar Portugal. A versão falsificada do cerco não deve ser
interpretada como verdade menor; é apenas um tipo diferente de verdade, outra versão de
um fato histórico registrado que leva à transformação da realidade passada. Como o
protagonista descobre: mudando o passado muda-se também o presente.

O ato criativo de Raimundo, o qual o faz perceber que ele tem poder de produzir significado,
deve ser visto como uma correção necessária da história portuguesa. A nova história leva em
consideração a mistura das culturas cristã e islâmica que existiam em Portugal durante a Idade
Média. O ato subversivo do revisor restaura a cultura mulçumana para seu devido lugar na
construção da identidade nacional portuguesa, uma vez que o enfoque do documento histórico
alterado é a aceitação da cultura islâmica, não sua rejeição.

Embora o texto de Raimundo possa ser considerado um romance dentro do romance, em


última instância se torna História do cerco de Lisboa, um texto que simultaneamente desconstrói a
história oficial de Portugal e questiona a própria natureza e essência da verdade histórica e
como ela se relaciona com a ficção. A busca de Raimundo o faz perceber que não existem
certezas e que a verdade está tão ausente da história quanto da ficção. A conclusão é que a
verdade é sempre uma construção contextualizada pelos seres humanos. O romance pode ter
começado com a alteração da realidade factual, mas subsequentemente evolui para um

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 199
José Saramago – apresentação geral da obra.

questionamento da capacidade da história de representar uma verdade única e objetiva. Até


mesmo a epígrafe do livro, a qual foi retirada do imaginário Livro da exortação, aponta o
problema da importância da correção na busca da verdade.

Através de um ato desviante, a inserção de uma pequena palavra numa narrativa histórica,
Raimundo é redimido ao se libertar das convenções que controlam sua existência. Através do
reino livre de sua imaginação, ele se permite amar alguém pela primeira vez: Maria Sara, uma
das editoras da editora onde ele trabalha se torna sua amante e confidente. Ele é um solteirão
convicto em seus cinquenta anos, que, até onde se sabe, nunca teve uma amante na vida. Com
a nova liberdade adquirida, ele é capaz de narrar outra história que serve como contraponto
ao seu romance com Maria Sara: o caso entre Mogueime e Oruana, dois amantes do tempo
do cerco de Lisboa real. Esse caso amoroso paralelo, que lança luzes para o romance de
Raimundo, ensina ao leitor que o passado explica o presente e o interpreta criticamente, e vice
versa.

O romance de Saramago O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) criou um alvoroço em Portugal
por causa de seu tema controverso. Nessa amarga sátira de uma biografia apócrifa de Jesus,
um deus malvado usa o inocente Jesus humano para fundar uma religião repressiva, o
catolicismo, a qual tem espalhado violência e intolerância ao longo do tempo. Como A última
tentação de Cristo, de Nikos Kazantzazakis (1951), a história de um salvador que duvida de si
mesmo, O Evangelho segundo Jesus Cristo é também uma re-escrita da vida de Jesus, um relato da
viagem de Jesus na terra de Belém para Gethsmane, que parte de interpretações tradicionais. A
Igreja portuguesa acusou seu romance de heresia e um membro do governo conservador
português tirou o livro da competição para o Prêmio Literário Europeu de 1992, para o qual
tinha sido nomeado, com o argumento de que era um ataque aos valores cristãos e a fé
religiosa na qual Portugal tinha sido fundado. A decisão classificada por Saramago como caso
de censura, provocou a partida do autor de Portugal para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde
fixou residência com sua esposa, a jornalista espanhola Pilar del Río (Maria del Pilar del Río
Sánchez) com quem ele se casou em 1988. Saramago estava divorciado de sua primeira esposa
desde 1970. O livro, que começa e termina com a crucificação de Jesus, é narrado por um
evangelista não nomeado cuja autoridade deriva de seu vasto conhecimento sobre diferentes
períodos históricos. Existe certa ambiguidade sobre a paternidade de Jesus, uma vez que no
momento de sua concepção não-virginal Deus mistura suas sementes com as de José. Como
na maioria dos romances de Saramago, acontecimentos fantásticos e sobrenaturais também
têm um papel importante na trama de O Evangelho segundo Jesus Cristo. A juventude de Jesus
segue os caminhos normais presentes na Bíblia, embora a composição de sua família seja
decididamente diferente, incluindo vários irmãos e irmãs. José deixa de avisar aos outros pais
quando ele descobre os planos de Herodes de massacrar todos os garotos de menos de três
anos; ele simplesmente foge com sua família para escapar disso. A culpa de José sobre sua
falha resulta na crucificação de Jesus nas mãos dos romanos por um crime que ele não havia
cometido.

Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus não é de fato Deus disfarçado de homem. Ele é
alguém vitimado por Deus de modo cínico e egoísta para que Deus possa estender sua
influência para todo o mundo, não apenas na Judeia. Os poderes dados a Jesus são planejados
apenas para convencer as pessoas de que ele é o filho de Deus. Jesus não deseja ser o filho de

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 200
ORNELAS, J. N.

Deus ou fazer milagres para ajudar a causa de Deus. Nem ele está disposto a se sacrificar,
como determinou Deus, para criar a ilusão de um Deus amoroso e cuidadoso que dá a vida
pelos outros.

Deus, nesse romance é dissimulado, vingativo e interessado no poder só pelo poder. A ambição
de Deus permite que ele alcance seu maior objetivo: o estabelecimento de uma igreja, um
símbolo de seu poder, que será cavado na carne, seus muros feitos de agonia, angústia e
morte. Depois da referência de Deus ao estabelecimento de sua Igreja, ele começa uma litania
de dor, lágrimas, torturas e mortes que os seres humanos sofrem em seu nome. A litania
continua por quatro páginas – em ordem alfabética, para que não fira nenhum sentimento de
precedência e importância.

Por algum tempo, a pressão de Deus sobre Jesus é tão forte que o filho relutantemente aceita
seu destino. Jesus começa a questionar o papel ao qual foi coagido a aceitar e nega sua divindade.
Ele se torna líder de um grupo revolucionário que luta contra o poder romano, sendo preso
e condenado a morrer na cruz como inimigo de Roma. Ele está certo de que morrerá como
um filho de homem, não como o filho de Deus. No entanto, quando está para morrer, deus
surge no céu e o proclama como seu adorado filho. Jesus responde invertendo as famosas
palavras que disse na cruz: homens perdoem-no, porque ele não sabe o que fez.

A ironia das palavras finais enfoca a desumanidade de Deus e a humanidade de Jesus. Deus é
uma figura autoritária que só entende a linguagem do poder e do interesse próprio, e Jesus é
o símbolo da generosidade e da vida humana quando ele se torna um com todos os homens.
Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, Jesus aprende com fontes diferentes: seus pais biológicos,
seu pastor e Deus. Entretanto, com quem ele mais aprende é com Maria Madalena. Jesus,
através de sua relação com Maria Madalena, desperta para a vida sexual e aprende o verdadeiro
significado da liberdade, algo que Deus não permite ser desfrutado por nenhum indivíduo,
particularmente por aquele que escolheu ser seu filho. Assim, o romance pode ser construído
como uma exaltação do amor humano combinado ao dogmatismo não-humano do poder
transcendental como contraponto.

A quarta peça de Saramago, In nomine Dei, foi publicada em 1993. Como nas peças anteriores
e em vários romances dos anos 1980, a história continua a ser objeto de pesquisa. A Religião,
tema tanto de O Evangelho segundo Jesus Cristo e A segunda vida de Francisco de Assis, é também o
principal interesse do autor nessa peça. Um dogmatismo cego e fanático exerce papel crucial
nos eventos dramáticos. In nomine Dei focaliza as lutas entre Católicos e Protestantes em Münster,
Alemanha, de 1532 a 1535, que levaram à destruição da cidade e à perpetração de crimes
hediondos contra a humanidade, tudo em nome de Deus.

In nomine Dei é dividida em três atos, precedidos por um prólogo que aborda a intolerância
religiosa e a irracionalidade, seguido de uma cronologia dos eventos ocorridos em Münster. A
peça, claramente, tem o objetivo de discutir os problemas de abuso do poder, intolerância e
fanatismo incendiário, fruto de pontos-de-vista diferentes e conflitantes. In nomine Dei retrata as
consequências que sobrevêm à humanidade quando certos indivíduos são totalmente guiados

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José Saramago – apresentação geral da obra.

pelo fanatismo, intolerância e violência na tentativa de alcançar seus objetivos religiosos. A


peça é também uma condenação daqueles que se rendem à fé cega e à irracionalidade, metáforas
de um mundo desumanizado.

Todos os anos, de 1994 a 1998, Saramago publicou um diário. Os cinco volumes chamam-se
Cadernos de Lanzarote. Os diários de Saramago tratam de uma variedade de temas que abordam
do documentário ao literário, ao político e ao filosófico. No nível do documentário, o diário
registra muitas de suas experiências e momentos privados, trata de problemas domésticos e
relata suas inúmeras viagens para participar de congressos, receber prêmios ou ser entrevistado.
Nos outros níveis, registra suas reações a eventos específicos, como a entrada de Portugal na
Comunidade Europeia, a polêmica desencadeada pela publicação de O Evangelho segundo Jesus
Cristo, e o sucesso de In nomine Dei. Comenta também relevantes problemas como intolerância
religiosa, atrocidades cometidas contra a humanidade, mecanismos usados pelo poder para
reprimir e burlar os direitos dos cidadãos, e a censura, especialmente aquela relacionada à
publicação de O Evangelho segundo Jesus Cristo e a controvérsia gerada por essa publicação, a qual
provocou seu auto-exílio para Lanzarote. Além disso, Saramago usa seus diários para estabelecer
diálogo ou polêmica com outros escritores, discutir o ato de escrever e tratar de livros que ele
mesmo publicou, ou que estava escrevendo.

Ensaio sobre a cegueira (1995) inicia um novo ciclo na carreira literária de Saramago. Ensaio sobre
a cegueira e os romances Todos os Nomes (1997) e A caverna (2000) constituem uma trilogia que
trata de interesses, preocupações e temas de caráter mais universal do que os romances anteriores,
já que os primeiros trabalhos são profundamente enraizados na história portuguesa. Os três
romances, que não fazem referências específicas a tempo e espaço, encaixam-se como ficção
alegórica.

Em Ensaio sobre a cegueira, os personagens, a começar por um homem parado em um sinal de


trânsito, são acometidos por uma cegueira branca. Dentro de poucos dias, todos na cidade
parecem ter ficado cegos, com exceção da mulher do médico que examinou o primeiro
homem cego. Ela permanece não infectada pela doença em todo o romance. A devastadora
epidemia que atinge a cidade e o país (os quais, como os personagens, não são nomeados) cria
destruição por toda parte e instaura um ambiente de terror horripilante: um estado de
degradação e abjeção moral e social caracterizado por estupros cometidos por gangues,
assassinatos, sujeira, falta de higiene, humilhação, quebra total de infra-estrutura técnica, e até
mesmo exploração dos cegos que estão sob os cuidados de outros cegos. À medida que a
epidemia de cegueira se espalha, as vítimas são postas em quarentena em um sanatório, onde
são submetidos a condições cruéis e desumanas. Abandonados por um mundo exterior
apavorado pela possibilidade de contágio e cheio de fanáticos, um grupo liderado pela mulher
do oftalmologista (que fingia também estar cega) começa a organizar uma resposta ao
comportamento dos outros internos. Estes também se organizaram para garantir seus interesses
egoístas, privilégios e poder, expressos através do ganho de melhores condições de acomodação,
maior quantidade de comida, e até mesmo favores sexuais em troca de alimentos. O grupo
liderado pela esposa do oftalmologista é baseado nos aspectos humanos de todos os
relacionamentos: generosidade, solidariedade, respeito pelos outros e auto-sacrifício. Entretanto,
como ela própria deduz, chega um momento em que matar alguém é uma obrigação moral,
se a humanidade quiser sobreviver. O assassinato que ela comete de um violento líder de uma

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ORNELAS, J. N.

gangue tem que ser visto nesse contexto, já que tem o propósito de evitar o colapso total da
civilização. As pessoas que estavam em quarentena finalmente recuperam sua liberdade porque
todas as forças externas, que as mantinham confinadas, também ficaram cegas. À medida que
o grupo liderado pela mulher do oftalmologista avança pela cidade, eles descobrem que as
mesmas condições apocalípticas do sanatório agora prevalecem na cidade: sede, fome, frio,
depravação, sujeira e caos. Em um mundo como esse, só pode existir “um governo de cegos
tentando governar os cegos, isto é, nada tentando organizar nada”. O grupo finalmente chega
à casa da mulher do oftalmologista e, da mesma forma misteriosa que perderam a visão, eles
a recuperam, um por um. A recuperação da visão ocorre quando os personagens percebem
que a vida é organização e a morte é desorganização, e que os indivíduos têm que agir e ter fé
uns nos outros para restabelecer sua razão e lucidez. A cegueira no romance não é um mal
físico, mas, antes, uma doença política e filosófica. O romance é uma alegoria da irracionalidade
de uma sociedade contemporânea que perdeu a vontade de ser racional e humana, ou seja, de
ver. Entretanto, a recuperação da visão no fim sugere que a humanidade ainda está viva e que
a utopia é ainda uma possibilidade.

Diferentemente de Ensaio sobre a cegueira, em Todos os nomes não há uma quebra da ordem. Ao
contrário, esse romance-parábola oferece uma visão horripilante da ordem levada ao seu
extremo. Uma inflexível e burocrática hierarquia, que reduz cada empregado a uma função
dentro da organização, dirige o cartório onde o protagonista José trabalha. Ele é o único
personagem com um nome no romance, mas tem apenas o nome próprio (o primeiro nome),
uma indicação da insignificância da pessoa. A sala onde os funcionários trabalham é decorada
de acordo com a hierarquia, de forma harmoniosa, que revela uma conexão entre estética e
poder.

O mundo kafkaniano de Todos os nomes, como indica a descrição do Cartório, reduziu a vida
humana a algumas datas e estatísticas e alguns outros detalhes sem consequência ou significado,
gravados em um arquivo. No espaço aparentemente tranquilo e seguro do Cartório, o espírito
humano é efetivamente aprisionado. Uma noite, José entra sorrateiramente e sem autorização
no Cartório para pegar cinco fichas de importantes figuras, para alimentar seu hobby de
colecionar informações sobre pessoas famosas, mas em sua pressa em retirar as fichas, ele
pega seis em vez de cinco, as quais ele leva para casa. Na sexta ficha, dados como nome (que
nunca é divulgado ao leitor), nascimento, casamento e divórcio de uma cidadã comum estão
registrados. Dois dias depois, José decide começar uma pesquisa para descobrir mais sobre
essa mulher.

A busca de José pela pessoa real por trás dos poucos detalhes biográficos de uma ficha é
também uma busca por auto-conhecimento. Sua pesquisa, que ele considera absurda, é algo
de que ele necessita levar a cabo para encontrar sua própria identidade. Por meio de um ato de
insubordinação, ele deu o primeiro passo para se libertar do espaço quase mítico do Cartório
com sua atmosfera sufocante e mórbida. Sua pesquisa, que adquire tons míticos, leva-o a
buscar informação sobre a mulher a partir de vários indivíduos, incluindo seus pais, e a arrombar
uma escola onde ela foi aluna para descobrir mais sobre ela. Quando finalmente a localiza,
descobre que ela havia cometido suicídio apenas alguns dias antes. Então, ele nunca teve chance
de se encontrar com a mulher que se tornou a fonte de sua obsessão e por quem se apaixonou.
Pôde apenas ir ao cemitério onde ela foi enterrada.

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José Saramago – apresentação geral da obra.

No fim do romance, ao retornar para casa uma noite, José encontra o chefe do Cartório.
Entretanto, ele não está lá para repreendê-lo ou despedi-lo, mas para dizer que admira o que
José fez, porque através de suas ações José revelou ao tabelião o verdadeiro significado da
vida. O tabelião se convence de que é totalmente absurdo separar a morte da vida, e até
sugere que José coloque o arquivo da mulher entre os arquivos dos vivos. A noção subversiva
do tabelião de não mais encarar o passado como morte e o presente como vida mudará toda
a estrutura organizacional do Cartório. A morte também fará parte do presente, porque os
arquivos dos mortos não mais vão estar separados dos arquivos dos vivos. A morte viverá na
memória e no amor dos vivos.

Em 1999, Saramago publicou Discursos de Estocolmo e Folhas políticas, 1976-1998. Discursos de


Estocolmo é uma compilação dos discursos relacionados ao seu Prêmio Nobel de Literatura
em 1998. Os discursos lançam luzes no homem Saramago público e privado, uma vez que
tratam da formação pessoal do autor, sua família e suas reflexões sobre assuntos controversos.
Folhas políticas é uma compilação de artigos políticos escritos pelo autor entre 1976 e 1998 e
publicados em jornais e revistas, tanto em Portugal quanto no exterior. Cerca de metade dos
ensaios foi publicada antes de 1980; os outros apareceram depois dessa data.

Embora os ensaios escritos nos anos 1980 e 1990 não sejam tão preocupados com
transformações políticas quanto os que foram escritos antes, eles continuam a ser políticos
por natureza, já que o autor lida com tópicos como a ascensão em 1994 do Exército Zapatista
de Libertação Nacional em Chiapas, México; ETA (uma organização terrorista que luta por
um estado Basco independente na Espanha) e a queda do muro de Berlim. Nos últimos
ensaios, o escritor também examina e reflete sobre problemas associados à globalização,
imigração, às relações transnacionais, especialmente entre Portugal e Brasil, às interrelações
entre política e cultura. Aborda também os efeitos sobre escritores e público leitor como
resultado de certas tendências políticas, e o papel do escritor na sociedade, identidade nacional
e cultura local. Em alguns dos ensaios, há um olhar nostálgico sobre o passado, especialmente
sobre a revolução portuguesa com sua promessa de liberdade, que leva o escritor a se perguntar
se aquele momento em 1974 foi um sonho ou um momento perfeito na sua vida.

A caverna (2000), o primeiro romance de Saramago depois de receber o Prêmio Nobel, fecha
a trilogia sobre distopias urbanas, que começou com Ensaio sobre a cegueira, seguido por Todos
os nomes. Teresa Cristina Cerdeira da Silva chamou esses romances de “um tríptico de reflexão
sobre a busca humana por significado em meio à sua crise de fim de milênio”. A caverna, que
não é uma recriação da alegoria da caverna de Platão (apesar das muitas afinidades com ela) é
uma sátira alegórica do shopping center como um símbolo da sociedade de consumo, a nova
caverna onde a humanidade está atualmente presa. Como alega o autor, o shopping center é
a nova catedral ou universidade do comércio e capitalismo de mercado, que transformou a
realidade em realidade virtual. Os moradores do Centro, um complexo residencial e comercial
numa metrópole sem nome, habitam um mundo no qual eles assumem que as sombras que
eles vêem passando pelas paredes são realidade. O escritor satiriza esse gigantesco espaço do
capitalismo de consumo global multiplicando-se rapidamente, como um jogo de espelhos,
criando enganadoras ilusões que passam por realidade. O Centro, que ameaça engolir tudo na
sua periferia, incluindo uma cidade, é um micro-mundo que determina, programa tudo e

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ORNELAS, J. N.

controla os movimentos de seus habitantes, incluindo suas atividades de lazer, através da


criação de espaços virtuais de recreação. Os residentes tornaram-se prisioneiros virtuais do
Centro; todas as suas necessidades são satisfeitas entre suas paredes.

A caverna não versa apenas sobre um pesadelo urbano distópico, como é exemplificado por
um Centro que controla o destino de seus moradores; é também a história de Cipriano Algor,
um oleiro de sessenta e quatro anos de idade que mora numa cidade próxima e que vende
seus vasos de cerâmica para o Centro. Ele vive com sua irmã Marta, casada com Marçal
Gacho, um segurança do Centro. Marçal espera ansiosamente uma promoção para guarda
residente, para que ele possa se mudar com a sua família para o Centro. No seu posto, ele tem
que trabalhar em plantão de dez dias antes de poder tirar poucos dias de folga, o que lhe
impõe longos períodos de separação de sua esposa. Quando consegue a promoção, o jovem
casal e Cipriano são realocados para o Centro. Cipriano reluta em se mudar, porque o Centro
inescrupulosamente cancelou os contratos de venda que tinha com ele, alegando que os
consumidores do Centro preferem objetos feitos de plástico que imitam argila. Com o término
do contrato, Cipriano decide produzir 1200 estatuetas decorativas, as quais o Centro também
rejeita porque uma pesquisa com os seus moradores indica que os consumidores não estão
interessados em comprá-las. Cipriano, percebendo não ser mais importante para o
funcionamento do mundo, muda-se para o Centro com sua família, sempre disfarçando sua
tristeza por ter abandonado sua casa no campo, que era harmoniosamente integrada com sua
profissão. De fato, a casa é uma extensão dele mesmo.

Insatisfeito com o Centro, Cipriano sutilmente rebela-se contra sua organização e regras.
Finalmente, ele penetra numa caverna dentro do Centro onde escavações arqueológicas estão
sendo feitas. Seu enteado e ele entram na área limite da caverna de Platão, como anuncia uma
placa colocada no Centro – e lá descobrem seis figuras petrificadas, corpos de pedra de seis
indivíduos que não tiveram capacidade de compreender o significado do desafio. Como
consequência dessa incapacidade, foram condenados a viver em um mundo sombrio sem
qualquer possibilidade de escapar. Em certo sentido, eles foram os que rejeitaram a luz e a
liberdade devido à sua falta de ação. Ao escolher a ilusão e o simulacro em vez da realidade,
e a ignorância em vez do conhecimento, eles se petrificaram. Cipriano compreende que as
figuras petrificadas na caverna são de fato corpos de indivíduos que, como ele, não conseguiram
desafiar o abuso do mercantilismo. A descoberta desta visão distópica do mundo muda a
relação de dependência e submissão de Marçal para com o Centro, e ele e sua mulher decidem
partir, como fizera Cipriano.

À medida que o romance se aproxima do final, os três personagens, acompanhados de Isaura,


um recente interesse amoroso de Cipriano, são vistos partindo em busca de uma vida nova,
mas não antes de Marta declarar o fato de que o Centro acabou para eles, que a olaria chegou
ao fim, e que de um dia para o outro eles se tornaram estrangeiros naquele mundo. Não
obstante suas palavras, a jornada para o desconhecido trás uma promessa de vida: Marta está
grávida. Não há triunfo final do espírito sobre as forças inumanas do mal e do Centro; apenas
um indício de que nem tudo está perdido. Embora o romance não ofereça soluções concretas
para limitar o crescimento e a voracidade do Centro, Saramago demonstra que, a menos que

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José Saramago – apresentação geral da obra.

seres humanos estejam dispostos a lutar e rejeitar as imagens apocalípticas dos Centros do
mundo, como os quatro personagens fizeram, a humanidade estará condenada a viver em um
mundo de realidade virtual caracterizado por sombras e jogos de espelho.

O homem duplicado (2002) narra a história de um professor de história do ensino médio, Tertuliano
Máximo Afonso, que se torna obcecado com Antonio Claro, depois de vê-lo fazer o papel de
um insignificante recepcionista de hotel em um vídeo que havia alugado. Esse ator, cujo nome
sequer aparece nos créditos do filme, é a cópia exata de Tertuliano: eles têm a mesma idade
(trinta e oito anos de idade); suas vozes têm o mesmo timbre e tom; eles têm o mesmo
tamanho e são a imagem perfeita um do outro porque ambos têm o mesmo rosto, olhos,
cabelos e as mesmas cicatrizes e sinais exatamente nos mesmos lugares do corpo. Até algumas
das experiências de Tertuliano parecem ecoar aquelas de seu sósia, ou gêmeo. Embora ambos
os personagens sejam absolutamente idênticos na aparência física, eles são marcadamente
diferentes em temperamentos: Tertuliano é um indivíduo passivo, enfadonho, tímido e indeciso
que acabou de passar por um divórcio amargurado e não quer se comprometer com nenhuma
relação duradoura com sua noiva, Maria da Paz. Já Antonio, que no filme se chama Daniel
Santa-Clara, é um ator agressivo, impulsivo, desleixado e namorador, casado com Helena.

O encontro no vídeo de Tertuliano com a imagem espelhada de seu “eu” chacoalha sua
existência pacífica e entediada, trazendo à tona problemas relacionados à sua integridade e
singularidade no mundo. Na verdade, as coisas essenciais que fazem do protagonista um
indivíduo singular não podem mais ser sancionadas ou sustentadas. Sua individualidade ou
sentido identitário que repousa num conjunto fixo e relativamente estável de costumes, crenças,
rituais, práticas e significados, categorias sociológicas e experiências únicas cai por terra devido
à intromissão de outro indivíduo em seu coerente “eu” e espaço individual. Como conseqüência,
ele se torna obcecado por Antonio Claro, o sujeito responsável pela usurpação da integridade
ontológica e singularidade de Tertuliano. Então, ele começa a assistir a muitos filmes de Antonio,
cerca de trinta deles, não apenas para conhecer melhor quem é o usurpador de seu “eu”
coerente, como também para planejar algum tipo de vingança contra o impostor, já que ele
representa uma afronta ao desejo interior de continuidade e integridade de Tertuliano. Depois
de identificar seu “eu” espelhado e se angustiar em longa parte da narrativa, Tertuliano finalmente
encontra seu Duplo, Antonio, que, por sua vez, também torna-se obcecado com seu “eu”
espelhado, Tertuliano. Um dia, Antonio aparece à porta de Tertuliano e o informa de um
plano que ele arquitetou para seduzir Maria da Paz, a noiva de Tertuliano. O plano é mais para
se manter como um namorador por natureza.

O diálogo resultante entre os dois homens tem todas as características de um jogo de poder
da linguagem com muitos argumentos e contra-argumentos relacionados ao humilhante mas
maquiavélico plano que Antonio planejou para conquistar a noiva de seu rival, jogo que Antonio
acaba vencendo. Ao final do diálogo, Tertuliano relutantemente aceita que o outro venceu a
batalha e o preço disso é uma noite com Maria da Paz. Apesar de Antonio vencer a primeira
batalha, ele perde a segunda, porque Tertuliano se aproveita do encontro de seu duplo com
Maria da Paz para seduzir Helena, esposa de Antonio. Ao final, existem apenas perdedores.
Maria da Paz e Antonio morrem num acidente de carro, na manhã seguinte à noite em que
ficaram juntos, acidente provavelmente provocado por uma briga dos dois enquanto Antonio
dirigia no caminho de volta para o apartamento de Tertuliano. Como consequência do trágico

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ORNELAS, J. N.

acidente, Tertuliano é condenado a viver a vida fingindo que ele é Antonio, o ator, sendo assim
duas vezes ator. Helena tem que fingir que é casada com Tertuliano. Carolina Maximo, mãe de
Tertuliano, tem que simular que seu filho está morto, embora saiba que ele está, de fato, vivo.

Todos os personagens que ainda estão vivos fazem papéis diferentes, fato que diminui noções
de solidez e coerência inerentes à identidade e lugar do indivíduo num determinado espaço
cultural e social. Em O homem duplicado a idéia é a de que os indivíduos são atores, já que
desempenhar determinados papéis torna-se a norma presente na narrativa, e a construção da
identidade é um jogo de duplicação e espelhamento. Esse jogo questiona a noção de uma
identidade unitária e firmemente enraizada em fronteiras específicas. A idéia de um “eu”
autêntico é ainda mais desestabilizada no final do romance quando Tertuliano recebe um
telefonema de outro homem dizendo ser a imagem espelhada de Daniel Santa-Clara, nome
do personagem do filme vivido por Antonio, cujo papel é agora desempenhado por Tertuliano.
Esse homem dá informação suficiente sobre sua aparência física e marcas em seu corpo que
Tertuliano (ou é Antonio agora, já que são intercambiáveis?) está convencido de que
espelhamento e duplicação é um jogo infindável e que ele está condenado a viver com suas
trágicas consequências. Sua busca inicial pela certeza de que ele é o original e não a cópia torna-
se mais complicada com as viradas adicionais do roteiro.

Apesar do fascínio de Saramago com o tom do sósia literário ou o doppelgänger, O homem


duplicado pode ser visto como uma busca pós-moderna de identidade caracterizada pela
instabilidade e contingência e/ou pelas tendências duais da psique ou auto-duplicação. Reflete
também muitas outras preocupações adequadas que demonstram que esse romance em
particular está no passo de marcha com os trabalhos anteriores do escritor. De fato, o trabalho
enfoca estratégias de tópicos e de narrativa que caracterizam a produção romanesca de
Saramago: a busca das manobras do poder, a exploração do real e do mágico ou fantástico,
a relação entre verdade e ficção e, em última instância, o ato de escrever que o autor explora
de maneira brincalhona e auto-consciente usa muitos dos recursos e estratégias ligadas ao
romance policial para construir sua narrativa.

O próximo romance de Saramago, Ensaio sobre a lucidez (2004) tem muita afinidade com outra
obra anterior, Ensaio sobre a cegueira. Com exceção da semelhança dos títulos em português e
de que em ambos os romances os personagens não possuem nomes, em Ensaio sobre a lucidez
o autor retorna mais uma vez à mesma cidade e país sem nomes, que quatro anos antes tinha
sido atacado por uma epidemia de cegueira, para narrar outro estranho episódio que cria
muita conturbação no país, especialmente nos corredores do poder. Nessa instância, o
excepcional fenômeno de massa que acontece é diretamente associado com as eleições
municipais. Na manhã das eleições, uma poderosa tempestade impede que, com poucas
exceções, todos se dirijam às urnas para votar. Quando finalmente o tempo melhora por
volta de quatro horas da tarde, as pessoas se apressam para as urnas. O que inicialmente
parecia ser uma eleição com poucos votos vem a ser uma eleição com expressivo número de
cédulas eleitorais. Todavia, muitas das cédulas estão em branco, mais de setenta por cento do
total, para ser mais preciso. Uma segunda eleição por mandato acontece na semana seguinte,
e o resultado é basicamente idêntico. Na verdade, dessa vez mais de 80 por cento das cédulas
estão em branco.

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José Saramago – apresentação geral da obra.

Como resultado do grande número de votos em branco, um sinal da falta de confiança nos
partidos políticos, ato que é subversivo do processo eleitoral, líderes do governo decidem
declarar estado de emergência no país, logo seguido de um estado de sítio. Além disso, outras
medidas são tomadas para forçar os “branqueadores”, como aqueles que contam cédulas
brancas são chamados, a agirem de forma racional. As pessoas são submetidas a interrogatórios;
a polícia começa a espionar os cidadãos do país para descobrir sinais de conspiração; o
governo explode uma estação de trem e culpa os terroristas e agitadores estrangeiros para
criar pânico na cidade; e, junto com a imprensa comprometida com o poder, trabalha por
trás dos bastidores para incitar violência e conturbação durante uma manifestação pacífica.
Entretanto, nenhuma das manobras governamentais tem o efeito desejado porque os cidadãos
do país enxergam o que escondem as ações dos oficiais do governo e permanecem em paz.
Além do mais, com sua reação, eles expõem a incompetência da burocracia e a impotência do
governo de controlar os acontecimentos e forçar os cidadãos a aceitar o processo democrático.
Mesmo quando o governo decide abandonar a capital para por um fim naquilo que é visto
como uma ameaça à democracia, a cidade não se rende ao caos ou a histeria coletiva. Na
verdade, as pessoas na capital continuam os negócios como de costume, uma vez que ninguém
nota de fato o êxodo do governo.

A catástrofe iminente prevista pelo governo e pela imprensa de massa, como resultado das
medidas drásticas que tinham sido adotadas para conter a desobediência civil, não acontece.
Consequentemente, o governo é forçado a encontrar novas formas, outras medidas repressivas,
para obrigar os cidadãos a serem sensatos e colocarem um ponto final naquele estado subversivo
de branquidão ou brancura. A última palavra, que é uma referencia à epidemia da cegueira da
branquidão que assolou a população quatro anos antes em Ensaio sobre a cegueira, parece indicar,
como sugerido pelos ocupantes do poder, que o país foi novamente infectado por outra
epidemia, agora sob a forma de urnas brancas ou estado de brancura. Na verdade, não é a
população que está sofrendo de cegueira, mas, ao contrário, os líderes do governo, que
cegamente assumem que aqueles cidadãos que exerciam seus direitos e votavam em branco
estão colocando em perigo não apenas o sistema político, como também a democracia. Na
verdade, a cegueira do poder político força os líderes a usarem medidas de exceção de
natureza repressiva e tirana, para erradicar o mal e o desvio da norma, causados pelos votos
em branco. O único objetivo deles é voltar ao estado de normalidade anterior, estado de
submissão e passividade no qual todos no poder manipulam as próprias regras do processo
democrático, o qual, como o escritor já falou em muitas ocasiões, é um processo ditatorial
disfarçado.

O próprio romance, como ilustrado pelas ações dos líderes políticos , parece indicar que não
há nada de democrático no processo democrático. A tentativa de achar um bode expiatório
para a chamada conspiração das urnas em branco parece apenas acentuar a natureza pouco
democrática de um governo que não está livre de quebrar regras democráticas sagradas e
convenções e usar de violência para beneficiar os ocupantes do poder.

Um bode expiatório para a conspiração é encontrado: a esposa do oftalmologista de Ensaio


sobre a cegueira, a única pessoa que escapou da epidemia de cegueira que tinha infectado o país
inteiro. Ela é acusada de ter incitado as urnas em branco e, portanto, é culpada pela nova
cegueira, que introduziu o micróbio da perversão e corrupção no sistema democrático. O

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ORNELAS, J. N.

comissário de polícia, um dos três homens responsáveis pela investigação sobre a conspiração
e um dos interrogadores da esposa do oftalmologista, percebe logo que ela não é de fato
culpada de crime algum e a aconselha a fugir e se esconder em alguma parte até que a crise se
resolva. Infelizmente, ambos são assassinados por ordem do ministro do interior. O
comissionário é morto, por desmascarar os esquemas falsos empregados pelas autoridades
para provar a culpa da mulher pela conspiração e avisá-la sobre as verdadeiras intenções da
elite política. Já a mulher é assassinada porque o governo sente que sua eliminação política tem
o potencial de restaurar a normalidade no país. Além do mais, o assassinato político do bode
expiatório/conspirador pode então ser usado pelas autoridades para prevenir aqueles que
através de suas ações subversivas tenham a pretensão de diminuir o funcionamento apropriado
do sistema democrático. No final, as autoridades políticas não conseguem fazer nada. Eles se
mostram antidemocráticos, zombam do processo democrático, abusam do poder para ganhos
políticos, e se tornam através de sua ineficiência sujeitos de uma escaldante sátira política.
Mesmo a restauração da normalidade, o que parece ser o verdadeiro motivo para as medidas
brutais e repressivas tomadas pelo governo, não é assegurada de forma conclusiva.

Com a publicação em 2005 da peça Don Giovanni, ou o dissoluto absolvido, Saramago novamente
retorna a um gênero pelo qual ele não é muito conhecido. Na realidade, sua peça anterior In
nomine Dei, tinha sido publicada em 1993. Ao contrário de suas outras peças, cujo núcleo é a
história, Don Giovanni revisita o mito de Don Juan, um mito que já tinha sido trabalhado por
escritores da estirpe de Tirso de Molina; Molière; George Gordon; Lord Byron; William
Hoffman, Alexandre Dumas, pai e Lorenzo da Ponte. Muitos pensadores, incluindo filósofos,
psicólogos, feministas e críticos literários têm também trabalhado com a lenda de Don Juan.
O Don Giovanni de Saramago é baseado na ópera Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart,
cujo libreto foi escrito por Ponte. Como o texto de Ponte, a peça de Saramago é feita sob a
forma de libreto por um compositor de ópera, Azio Conghi, que já havia adaptado alguns
trabalhos do autor português para óperas. Em conseqüência de uma greve, a própria ópera
teve sua abertura em Lisboa em 18 de março de 2006, em vez de no Scala de Milão.

Como o título em inglês da peça de Saramago indica, essa versão literária da lenda de Don
Juan tem um foco completamente diferente do da ópera de Mozart. Na realidade, a peça de
Saramago começa precisamente onde a ópera de Mozart termina, ou seja, quando o pecador
ou o protótipo do mulherengo, o homem que seduziu 2065 mulheres, é condenado a ir para
o inferno. A nova peça questiona e desconstrói muitas ideias sobre a lenda de Don Giovanni.
Seu principal objetivo não é realmente a desmistificação de Don Giovanni, mas a de Donn´Ana,
Don Ottavio e Elvira, que se mostram bem menos virtuosos do que parecem. Portanto, a
peça desmascara a hipocrisia de muitas personagens que, por muito tempo, têm sido
consideradas vítimas inocentes do debochado Don Giovanni. O Don Giovanni de Saramago,
ao contrário da versão de Mozart do mesmo personagem, encontra redenção em sua vida.
Zerlina, um dos personagens centrais da peça, inverte os dados sobre Don Giovanni na
medida em que ela se torna a sedutora e ele o seduzido. O resultado final é a negação de sua
lenda através de um ato de sedução, ou melhor ainda, através da apropriação do corpo dele,
da mesma forma que ele se apropriou do corpo de um número incontável de mulheres. Com
a inversão do mito, dado que Don Giovanni se torna o seduzido em vez do sedutor, ele deve

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José Saramago – apresentação geral da obra.

aprender como ser um homem comum. Não mais um super-homem ou super-macho, ele
então reconquista sua humanidade; é perdoado porque se torna um simples mortal, um ser
humano.

Em 2005, Saramago publicou um segundo livro, As intermitências da morte. O romance, que


começa com “no dia seguinte ninguém morreu”, enfoca a ideia absurda e hipotética de que a
morte foi vencida ou banida. O evento, que acontece em um país pequeno, provavelmente
Portugal, inicialmente é comemorado por quase todos os cidadãos. O banimento da morte
do país sem nome, devido ao fato de a morte ter entrado em greve, trás grande alegria e
fervor patriótico. A morte é fonte de muitos sentimentos de valor negativos, tais como
ansiedade, ódio, medo, sofrimento, depressão, angústia, desespero, tristeza, dor e pressentimento.
Assim, os cidadãos olham para a conquista sobre o mal da morte como uma realização sem
precedentes. Através da erradicação da morte, eles percebem que podem vencer seu maior
inimigo, a morte como negação da vida, e realizam, no processo, seu maior sonho e desejo: a
eternidade absoluta.

Contudo, o estado de euforia tem vida curta, dado que a abolição da morte cria muitos
problemas inesperados e um total estado de caos no país. Os cidadãos, que antes viam o lado
positivo da abolição, começam a perceber os aspectos negativos. Consequentemente, a narrativa
muda de direção e começa a focalizar as pessoas e as instituições que são afetadas pelo estranho
fenômeno. A vida sem a morte não é beatitude, como é mostrado. A igreja percebe que está
se tornando inócua e irrelevante, porque sem morte não há ressurreição – a razão de ser da
religião; sua doutrina, com ênfase especial nas questões da eternidade, perde o valor, porque
não pode criar uma nova doutrina com novas explicações. Além do mais, o governo tem que
gastar fortunas com programas sociais, uma vez que há um aumento enorme na quantidade
de beneficiados da previdência social (pessoas idosas) sem um aumento equivalente da
quantidade de contribuintes para o fundo social (pessoas jovens). Os hospitais e ambulatórios
geriátricos ficam tão lotados que os médicos não têm mais condições de dispensar cuidados
adequados àqueles que precisam; os moribundos são forçados a viver num contínuo estado
de morte; as empresas de seguro e funerais vão à falência; a vida dos advogados, políticos,
médicos e jornalistas vira literalmente de cabeça para baixo e torna-se extremamente estressante;
e, finalmente, até os filósofos tornam-se irrelevantes, porque não contam mais com a morte
para estudar o sentido da vida. O resultado final do desaparecimento da morte é o colapso
total de todas as instituições sociais, políticas, econômicas e religiosas.

Com todas as condições caóticas e problemas criados pelo desaparecimento da morte, a


morte demonstra que é absolutamente essencial para dar sentido à vida. Num certo sentido, a
morte racionaliza a vida; torna-se um imperativo para a vida, dado que ninguém pode viver
sem a morte. Sua ausência torna-se um pesadelo infernal no romance de Saramago, e todas as
pessoas e instituições clamam por seu retorno. Na realidade, o país percebe que fica muito
melhor com a morte do que sem ela. A greve da morte demonstra que a vida é parte da
morte, na mesma medida em que a morte é parte da vida. Os dois são intrinsecamente
unidos; são entidades concomitantes, considerando que a existência de um implica a existência
do outro.

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 210
ORNELAS, J. N.

A segunda parte de As intermitências da morte trata precisamente do retorno da morte e da


restauração de uma sociedade mais ordenada. A morte retorna para o país com uma nova e
radical marca: aqueles que foram condenados à pena de morte recebem uma notificação e um
envelope violeta com uma carta informando sobre a morte inevitável deles dentro de sete
dias. Essa notificação com uma semana de antecedência é um aviso de que aqueles cidadãos
que morrerão em breve devem resolver seus problemas na terra e se preparar para morrer.
Infelizmente, mesmo com a notificação de uma semana de antecedência, os cidadãos não
resolvem seus problemas pessoais. Eles não fazem seus testamentos; não se despedem da
família e dos amigos; e não pedem perdão por suas más ações nem fazem as pazes com os
inimigos. Em um sentido, o período de graça de uma semana antes da morte torna-se um
tipo de marcador para a caracterização da sociedade e como as pessoas se definem e lidam
com a morte. Com todas as novas regras e convenções, o retorno da morte traz também
certo caos, ansiedade e desespero para a sociedade, embora essas condições e emoções sejam
diferentes e menos assustadoras do que aquelas associadas ao período anterior.

A terceira seção do romance aborda o caso específico de uma carta devolvida para a morte-
remetente. A falha da carta em chegar até o destinatário significa que o receptor intencionado,
um violoncelista, enganou a morte, pelo menos, provisoriamente. Uma vez que a carta não foi
entregue, a morte decide procurar o destinatário para entregar a carta ao homem pessoalmente.
Ela se disfarça de uma linda mulher na faixa dos trinta anos e parte em busca do músico. O
músico é um homem solitário que toca na orquestra da cidade e mora num apartamento com
um cachorro. Depois de encontrar o violoncelista e ouvi-lo tocar, a morte se interessa mais
em saber que tipo de pessoa ele é realmente. A interação entre o músico e a morte humaniza
a morte, e ela desenvolve paixão e compaixão por aquele ser humano ao qual ela estava
encarregada de entregar a sentença de morte: a carta violeta. A morte mascarada de mulher se
apaixona pelo homem e por sua música, e, através da arte e do contato com outro ser
humano, ela se redime e se torna humana. Ao final do romance, a morte, que nunca dorme,
inexplicavelmente cai no sono nos braços do músico, e o narrador diz, como no começo do
texto, “no dia seguinte ninguém morreu”.

A obra seguinte, As pequenas memórias (2006), coincide com o aniversário de 84 anos do autor
em novembro de 2006. O livro, que tinha sido um projeto em andamento de longa gestação,
foi originalmente intitulado “O livro das tentações”. Com esse livro, Saramago se volta para
um gênero que nunca tinha sido parte de seu repertório literário: a autobiografia. As pequenas
memórias, como indica o titulo, é um memorial da vida do autor da infância até os dezesseis
anos. Na verdade, apenas um episódio da idade de dezesseis anos é narrado, mesmo assim na
última página do livro.

A intenção do autor quando escreveu As pequenas memórias era compreender e descobrir na


criança e em suas experiências de infância o caráter de um homem responsável por um grande
arsenal de trabalho literário. Assim, as memórias podem ser lidas simultaneamente como
auto-reflexão e auto-informação do adulto. O projeto demorou muito, porque o próprio
Saramago não sabia como abordar o assunto e porque muitos outros projetos estavam exigindo
sua atenção, forçando-o, então, a adiar a escrita do livro em várias ocasiões. Muitas das páginas
de uma autobiografia – cujo objetivo principal, como disse o autor, era recuperar, reconstruir,
e chegar a conhecer a criança – foram escritas mais de quinze anos antes.

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 211
José Saramago – apresentação geral da obra.

O foco principal das memórias do autor é a vida rural da pequena aldeia de Azinhaga, na
região do Ribatejo, onde nasceu. Apesar de Saramago ter ido morar em Lisboa em tenra
idade, ele sempre reconheceu que foi esse ambiente rural que o definiu como pessoa toda sua
vida. No livro, o autor relembra constantemente os muitos episódios de sua infância e como
esses episódios marcaram a criança que foi e contribuíram para a formação do homem
Saramago. A maioria dos episódios tem relação com o contato que estabeleceu com o ambiente
natural de sua terra natal: as árvores, o rio, a água, os animais, a pesca, as caminhadas descalço,
e a lida com os porcos e outros animais da fazenda. Também importantes são os episódios
associados às lições que aprendeu com a avó Josefa e o avô Jerónimo, o homem mais inteligente
que Saramago conheceu em toda sua vida, conforme o discurso autobiográfico que fez para
a Academia Sueca por ocasião da cerimônia de entrega do Prémio Nobel de Literatura. Esses
episódios mostram verdadeiramente a afeição e o valor que o autor reconhece no papel que
os avós desempenharam na formação de sua identidade e caráter. Dos avós e de outros que
formavam o círculo de amigos mais próximos e familiares, incluindo o pai e a mãe, Saramago
recebeu muitas lições que o definiram como pessoa. No entanto, o autor tinha consciência de
que em todos os episódios e reminiscências sobre sua infância, a memória desempenhou um
papel importante na recuperação do passado e que por vezes ela simplesmente falhava.
Consequentemente, a memória tinha que se transformar em ficção para completar o passado.
Por essa razão, a criança e o homem como resultado das experiências de vida daquela criança
não são totalmente fundamentados numa realidade objetiva. Eles, a criança e o homem
posterior, também são um produto da imaginação; eles são ambos completados pela ficção.

Um dos principais objetivos do autor ao escrever As pequenas memórias era mostrar que em sua
vida sempre existiu um sentido de continuidade entre a vida passada e a presente e que ele se
assemelhava e relacionava com outros seres humanos que encontrou na infância e que em
muitos aspectos formaram o Saramago adulto. As pequenas memórias claramente evidencia que
o sentimento de inteireza e integridade que Saramago possuía como homem adulto e escritor
teve sua gestação no passado, especialmente em suas experiências no Ribatejo rural. O próprio
autor declarou que ele era a consequência biológica daquela criança retratada em As pequenas
memórias e que quando ele partisse deste mundo partiriam duas pessoas: o homem adulto de
mão dada com aquela criança que foi.

Depois de sua incursão pelo memorial ou o relato autobiográfico com As pequenas memórias, o
autor vira-se outra vez para o romance com a publicação de A viagem do elefante em 2008. Esta
obra, que se baseia em um fato histórico ocorrido em meados do século XVI, narra a viagem
de um elefante indiano de Lisboa a Viena. Segundo fontes históricas de 1551, um elefante fez
uma viagem de Lisboa a Viena, escoltado primeiro por um destacamento de soldados
portugueses no trajeto entre Lisboa e Valladolid e depois por um cortejo oficial do Arquiduque
Maximiliano II da Áustria, sendo este então regente de Espanha. O elefante Salomão e o seu
cornaca Subhro, o tratador, cuidador e guia do paquiderme, tinham feito já uma longa viagem
marítima de Goa a Lisboa tendo passado um par de anos, depois de sua chegada a Lisboa,
confinados a um cercado sujo (o elefante) e a uma construção de tábuas coberta de telha-vã
(cornaca) na zona de Belém. Portanto, ambos estão relegados ao esquecimento depois das
atenções iniciais de membros da corte real, visto que no princípio o elefante era uma novidade
no país. Não sabendo o que fazer com o paquiderme, D. João III decide presenteá-lo ao
Arquiduque Maximiliano II na ocasião de seu casamento com a filha do imperador Carlos V.

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 212
ORNELAS, J. N.

De Valladolid o cortejo, acrescentado agora por tropas e cortesãos, viaja por mar até Gênova,
Itália e daí já exclusivamente por terra atravessa passagens estreitas e mortíferas dos Alpes e
finalmente chega a Viena onde é recebido triunfalmente.

À chegada a Valladolid, tanto Subhro como Salomão mudam de nome: o arquiduque nomeia
de modo absurdo Subhro Fritz e Salomão Solimão porque, segundo ele, são nomes menos
custosos de pronunciar. O que se subentende nesta nomeação é o fato que Subhro e Salomão
são propriedade austríaca ou bens do estado e Maximiliano tem o direito e o poder de
nomeação do mundo deles. E isso o entende claramente Subhro, embora notemos a sua não-
resignação perante os novos nomes que nada significam para ele mas que vêm substituir
outros que sim significam porque se relacionam com sua autêntica identidade, ou seja, o que o
define como ser humano, Subhro ou branco em bengali, o que foi, é e será toda sua vida. Do
mesmo modo, o elefante sempre será um elefante indiano e Subhro sempre defenderá essa
sua identidade. De realçar que sua atitude perante a nomeação do arquiduque é bastante
reveladora. Apesar de Subhro/Fritz não poder assumir abertamente uma posição de dissidência
e ter que expressar-se quase sempre de forma dissimulada e não através de uma voz dissonante
ou desestabilizadora, salvo em raras ocasiões, vis-à-vis o discurso histórico oficial porque isso
lhe traria graves consequências ou dissabores na época da Reforma Protestante e da Contra-
Reforma, ele, se define, no entanto, através das suas reações a certos episódios e algumas de
suas ações e palavras no curso da narrativa, por uma espécie de olhar crítico e diferenciador
sobre os discursos históricos oficiais e sobre verdades tidas como absolutas. De certo modo,
o cornaca segue o exemplo do elefante porque, como ele próprio afirma, tal e qual o elefante,
ele tem uma parte de si que aprende e outra que ignora “o que a outra aprendeu, e tanto mais
vai ignorando quanto mais tempo vai vivendo” (155). Se em um elefante há dois elefantes,
logicamente também em Subhro há dois Subhros. Muitos, como é o caso do comandante da
escolta portuguesa, não entendem precisamente o jogo de palavras de Subhro em relação à
metafísica elefântica e sua utilização pelo ser humano no confronto com a construção do
mundo pela retórica oficial. É ao comandante que o cornaca dirige as palavras anteriores. No
entanto, através do convívio com Subhro, o comandante e até possivelmente outros comecem
a aceitar a diferença e a possibilidade de uma pluralidade de vozes e de verdades, fato que
significaria a construção de novos mundos, novas realidades.

As ações e as palavras de Subhro ilustram bem a idéia de que o passado é muito mais do que
“um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se
tratasse” (35). Para entender bem esse passado também é necessário que as pessoas vão de
pedra em pedra e que as levantem “porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às
vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, mas
não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre
os ombros um cornaca chamado subhro” (35), o qual aponta continuamente para um mundo
diferenciado onde a contestação de dogmas oficiais e verdades absolutas devia ser a norma,
e que afirma que as religiões e as instituições se fundamentam em discursos construídos
exclusivamente através de palavras porque, segundo o cornaca, “fora das palavras não há
nada” (73). E quando o comandante lhe pergunta se Ganeixa, o filho de Siva e de Parnati, é
uma palavra ele lhe responde de forma afirmativa: “Sim, uma palavra que, como todas as
mais, só por palavras poderá ser explicada, mas, como as palavras que tentam explicar, quer
tenham conseguido fazê-lo ou não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nosso discurso

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 213
José Saramago – apresentação geral da obra.

avançará sem rumo, alternará, como por maldição, o errado com o certo, sem se dar conta do
que está bem e do que está mal” (73). Em sua resposta, o cornaca deixa bem patente que são
as palavras que criam o mundo e que não há forma de fugir às palavras para explicar esse
mundo. Na realidade, é uma explicação ad infinitum sem nenhuma conclusão ou explicação
definitiva; só resta o recurso a mais palavras que, por seu turno, puxam outras apenas.

De fato, A viagem do elefante é uma história simples, divertida, inteligente, irônica, sarcástica em
algumas instâncias, genial e cheia de humor. Muitos críticos consideram que o romance está
bem delineado e que denota em sua urdidura as marcas de um escritor maduro em posse
total dos procedimentos romanescos do seu ofício literário. A gênese desta obra, segundo o
escritor, deve-se a um convite que o próprio Saramago teve para jantar em O Elefante, um
restaurante de Salzburgo, Áustria. Aí observou umas pequenas esculturas, incluindo uma que
representava a Torre de Belém e outras que enunciavam um itinerário. A leitora de português
na Universidade de Salzburgo, a pessoa que lhe fez o convite, explicou ao escritor que as
esculturas tratavam “da viagem de um elefante que, no século XVI, exactamente em 1551,
sendo rei D. João III, foi levado de Lisboa a Viena.” É este encontro quase fortuito com
umas esculturas que é a base do romance porque, segundo o próprio escritor, quase de
imediato ele pressentiu que ali podia haver um romance. De fato, se concretizou o seu
pressentimento anos mais tarde.

Esta obra, como outros romances anteriores de Saramago, aponta para muitos dos alvos
tradicionais da narrativa saramaguiana: a religião, o poder, a rejeição de imposições, a construção
da realidade e do mundo através da palavra, a história como construção discursiva, a arte, a
condição humana, as considerações do narrador através do romance (comentários metatextuais
e valorativos, referências ao próprio processo de escrever), e ecos discursivos de pluralidades
e diferenças. Como diz Saramago na epígrafe do romance, “sempre chegamos ao sítio aonde
nos esperam.” No entanto, antes de chegar ao fim da viagem de um elefante de Lisboa a
Viena, o escritor aproveita para criticar, avaliar, discutir, comentar, analisar, e refletir sobre as
preocupações, as idéias, as motivações e toda a problemática social, ideológica, política e
religiosa já presentes em obras anteriores de Saramago. Neste caso, são as lutas entre os
partidários da Contra-Reforma e os da Reforma protestante, os abusos dos poderosos visto
que estes continuamente insultam a dignidade de outros seres humanos através de suas ações
e palavras, a arrogância do poder, a inconsequência divina à mistura com exorcismos e milagres
absurdos e ridículos, as perseguições da Inquisição, a dessacralização do discurso religioso e
institucional, e o desmascaramento e desafio constante da história oficial. O termo da viagem,
como é o caso em outras obras de Saramago, sempre pressupõe uma forma de
autoconhecimento, um processo de aprendizagem e a metamorfose e transformação de muitos
daqueles que viajam pelos mais variados espaços sociais, culturais, ideológicos, políticos e
religiosos. Na viagem participam todos tipos de personagens: personagens reais de sangue
azul (o arquiduque e a arquiduquesa, os reis de Portugal), soldados, sacerdotes, bispos,
carregadores, couraceiros, boieiros, alcaides, feitores, aldeões/camponeses, algumas mulheres,
o cornaca e o elefante Salomão, o qual mesmo não sendo ser humano é um dos protagonistas
da obra. Todos estes personagens são pedras-base da construção do imaginário simbólico
do século XVI levada a cabo por Saramago em sua magistral narrativa, uma narrativa onde o
narrador se intromete constantemente para distorcer a realidade e a história oficial para fins
satíricos e críticos, e para aproximar-se da verdade do período em questão. Estas distorções

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 214
ORNELAS, J. N.

do narrador obedecem a critérios ideológicos específicos. Sua intenção é corrigir os excessos


e preencher os vazios dos discursos historiográficos oficiais e, no processo, operar uma
transformação e subversão radical desses discursos porque, segundo o escritor, toda essa
história supostamente oficial “não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da
vida o que lhe interessa como material socialmente tido como histórico e despreza tudo o
resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos,
das coisas, da puta realidade” (227). É uma aproximação mais plausível à puta realidade que
busca incessantemente Saramago em A viagem do elefante. Sua missão é a busca da sagrada
coerência da história, e, em verdade, como afirma o próprio escritor, mais vale ser romancista,
ficcionista e mentiroso para estar a cargo dessa missão. Portanto, só a ficção aproximará o
autor da verdade e lhe permitirá desmascarar e expor a dissimulação e as veladas pretensões
de todos os processos e práticas de legitimização e de naturalização levados a cabo pelos
discursos historiográficos oficiais para manterem seu poder hegemônico. Também lhe servirá
de meio a desmascarar e a substituir estes discursos parciais e mistificadores que reproduzem
unicamente a episteme da ideologia dominante pela puta realidade, uma realidade mais autêntica,
mais próxima da verdade, ou seja, a construção de outra realidade em A viagem do elefante que
redirecione a história do século XVI por outros caminhos que não os oficiais, os que alimentam
todos tipos de exclusão social e reproduzem os elementos insidiosos da ideologia dominante.
Uma vez mais Saramago rema ou narra contra a maré em sua intenção de desocultar a
realidade do século XVI em seu romance.

Caim (2009) que revisa O Velho Testamento se tornou no último romance da autoria de Saramago,
o Nobel português. Esta obra, que segue na esteira de O evangelho segundo Jesus Cristo de 1991,
como o romance anterior que é uma releitura e reelaboração de O Novo Testamento, também é
irreverente e controverso, e causou muita polêmica em Portugal e em outros países,
especialmente com teólogos e pessoas católicas. Muitos destes indivíduos consideram a obra
de blasfema por causa de seu tema, uma crítica implacável e mordaz ao sistema judaico-
cristão de crenças onde Deus, como na obra anterior, se caracteriza outra vez como tirano
irracional, rancoroso, vingativo, caprichoso e cruel culpado pelo próprio Saramago de ser o
autor intelectual do crime de Caim, o assassinato do seu irmão Abel. Segundo O Velho Testamento,
Caim assassinou o irmão porque Deus desprezava e recusava a oferenda que Caim lhe fazia,
o fruto de seu trabalho—produtos da terra—dado que era lavrador. Ao contrário, Abel que
era pastor de ovelhas merecia o apreço de Deus porque ele lhe oferecia os primogênitos de
suas ovelhas, que aos olhos de Deus eram oferendas superiores à do irmão. O diferente
tratamento dos dois irmãos, um enaltecido e preterido (Abel) e outro desprezado, rejeitado e
humilhado por Deus (Caim), enraiveceu Caim e gerou um ciúme mortal nele que o impeliu a
assassinar Abel, embora o alvo da sua fúria fosse o próprio Deus e não o irmão. Como
consequência do assassinato, o primeiro da história da humanidade, Deus, mesmo aceitando
responsabilidade partilhada pelo assassinato de Abel, condenou Caim a errar pela terra
indefinidamente, mas antes de sua partida ou exílio ele o marcou com um sinal na fronte, sinal
simultaneamente de crime, de condenação e de proteção por parte de Deus contra outros que
desejassem vingar-se dele pelo crime cometido. Caim, em sua errância não-linear e não-
cronológica pela terra visto que ele continuamente viajava no tempo, “ora para a frente ora
para trás” (99), como em uma espécie de jogo de presentes alternativos, é de fato vítima do
menosprezo e desdém de Deus, um Deus que nunca é de fiar, segundo o autor, ou melhor, os
mesmos seres humanos que na realidade são os que criaram essa figura divina é que não são

Ci. Huma. e Soc. em Rev. Seropédica, v. 33. n 2 julho / dezembro 185-223 2011 215
José Saramago – apresentação geral da obra.

de fiar, como também opinava Saramago. Como homem errante, ele converte-se em testemunha
de muitas das ações irracionais, caprichosas e cruéis de Deus ao presenciar e participar de
forma ativa em vários episódios-chave históricos ou mitológicos do velho testamento sobretudo
de Gênese, ou seja, do Éden ao dilúvio, mas também de outros livros da Bíblia: o bezerro de
ouro de Moisés, a passagem pela terra de Us onde vive Jô, o sofrimento de Jô, a passagem à
terra de Nod onde o Caim bíblico mas não o saramaguiano fundou a primeira cidade da
terra Enoch, cujo nome é homônimo de seu filho primogênito, e que deu origem a toda uma
descendência de artífices e inventores, o sacrifício de Isaac e prova de seu pai Abraão, a
destruição de Sodoma e Gomorra mediante o fogo e o enxofre, a confusão da Torre de
Babel, e a caída e destruição total da cidade de Jericó pelo exército israelita a comando de
Josué. Embora a narrativa de Caim siga quase sempre ao pé da letra as fontes bíblicas com
algumas ligeiras exceções, o episódio da Arca de Noé, o último do romance, é uma reescrita
e uma revisão radical do dilúvio.

Os personagens da obra são também na sua maioria provenientes da Sagrada Escritura exceto
Lilith, a amante de Caim no romance, que no texto bíblico foi a primeira esposa mítica de
Adão, de acordo com a literatura apócrifa ou deuterocanônica. Em textos tradicionais
fundamentados na lei mosaica e canônica, Eva e não Lilith é a esposa de Adão. A Lilith de
Saramago, como sua congênere do texto bíblico apócrifo, se caracteriza por sua rebeldia,
inconformismo, e pelo desejo de liberdade, auto-determinação e destruição das amarras que
a querem converter em um arquétipo feminino da ordem patriarcal. Não é uma mulher
submissa ao marido ou à lei; não é obediente. Pelo contrário, é uma mulher perturbadora,
sedutora e questionadora criada da imundície da terra e do lodo que transfigura o homem
através da força de sua sensualidade, sedução e erotismo. Como se nota em Caim, Lilith
também é agressiva e sexualmente promíscua; é a mulher fatal, por excelência. É a feiticeira do
amor que sempre controla seus amantes. Ela representa a natureza em seu estado puro; a sua
essência nunca pode ser contida, portanto. Em certa medida, o Caim do romance de Saramago
se parece em muitas facetas do seu comportamento a Lilith porque tal e qual esta mulher ele
não se quer submeter às imposições da cultura ou à lei do pai, de Deus. É o filho rebelde
concentrado unicamente na destruição de um universo criado por um Deus tirânico, orgulhoso
e ávido de poder que se compraz na maldade, violência, vingança, punição dos bons, matança
de crianças inocentes, e em castigos atrozes da humanidade sem nenhuma razão legítima. Não
é que o Deus de Caim seja unicamente um Deus indiferente ao sofrimento humano ou que
simplesmente não seja misericordioso ou justo com os seres humanos. É ainda pior do que
tudo isso se tal é imaginável ou mesmo narrável. O Deus do romance parece sentir prazer
sádico em abandonar o ser humano a sua miserável condição humana. De fato, ele condena o
homem ao seu próprio destino sem dó ou compaixão, mas sobretudo ele age como autêntico
carrasco do próprio homem: é um Deus insaciável de sangue humano para satisfação de seus
caprichos e demonstração de sua autoridade e controle da humanidade. Como se narra em
Caim, “o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o seu próprio filho, com a maior
simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que
era costume seu, e muito arraigado” (82). E o texto continua: “E que senhor é esse que
ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos
antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho
também o mandaria matar, perguntou isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo,

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ORNELAS, J. N.

do bom, do mau e do pior, Assim é, Se tu tivesses desobedecido à ordem, que sucederia,


perguntou Isaac, O costume do senhor é mandar a ruína, ou uma doença, a quem lhe falhou”
(85). Absolutamente, correto!

Com um senhor ou um Deus como este é imperativo que alguém o desafie, que questione sua
autoridade e poder, e que o desmascare porque de divino tem muito pouco, ou melhor, que
o mate, pelo menos simbolicamente. Esta tarefa recai sobre os ombros de Caim. A morte de
Deus fará com que a humanidade renasça e que a crença no ser humano e não em Deus seja
uma ocorrência comum, e que o homem tenha a possibilidade de construir um novo mundo
sem a interferência de um Deus déspota. Ironicamente, uma morte prévia de um Deus não
redimiu a humanidade e não é muito provável que uma segunda morte de Deus tenha um
efeito mais positivo. Já vimos que em O evangelho segundo Jesus Cristo Deus usa a morte do seu
filho Jesus Cristo, uma morte que supostamente se associa à redenção da humanidade, para
escravizar um número mais considerável de seres humanos e não para os redimir. Cristo se
converte em mais uma vítima de Deus morrendo crucificado em uma cruz como um verdadeiro
mártir que é o melhor que há “para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé” (O evangelho
370). Na realidade, o que Deus faz é sacrificar seu filho não para redimir a humanidade mas
sim para alargar a sua influência na terra, dilatar o seu império, por assim dizer, e se tornar mais
poderoso. A suposta redenção do ser humano via o sacrifício de Cristo é somente um meio
para um fim. Portanto, a idéia da conexão da morte de Cristo com a redenção da humanidade
é falsa; é uma idéia totalmente divorciada da verdade, porque desmente o verdadeiro desígnio
de Deus em relação à morte de seu filho. Ele é o cordeiro de Deus, ou seja, aquele que Deus
leva a seu altar e que sacrifica sob a falsa premissa de salvar a humanidade, mas o fato é que o
faz unicamente para alargar sua esfera de influência na terra.

Mas por que razão culpar Deus de “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo
e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas” (O evangelho 381)? Por que não
culpar os seres humanos, aqueles que na realidade inventam as religiões e que depois a elas se
submetem como escravos delas e de seus deuses fictícios? Todos os deuses são da autoria de
seres humanos; eles são seus criadores mas no momento da criação se convertem em seres
criados à imagem e à semelhança de deus, ou seja, a sombra ou o reflexo do deus criado pelo
próprio ser humano. Obviamente, os deuses têm que ter as mesmas qualidades e defeitos que
os seres humanos que os criam. Por que inventar religiões que se fundamentam sobretudo em
sacrifício e sangue e cujos deuses são sempre déspotas, cruéis, vingativos e caprichosos? São
muitas destas idéias causadoras de inquietude, desassossego e perturbação que o leitor tem
que enfrentar e ponderar em uma leitura do romance Caim. E isso era exatamente a intenção
do escritor quando escreveu a sua controversa obra. Caim não se vê a si mesmo como
criador de Deus, o contexto bíblico não o permitiria, mas sim como vítima dele, um Deus
que desencadeia a história interminável de ferro e de sangue sobre a humanidade acima
mencionada. O alvo de Caim é desafiar o poder e a autoridade de Deus e questionar Deus
sobre suas opções morais. No entanto, uma leitura bem atenta da obra provocaria
definitivamente as perguntas anteriores. O próprio Saramago acredita que as religiões são
invenções humanas e que elas existem unicamente na nossa mente. Fora da mente, não há
religião. Portanto, o Deus de Caim é o Deus saramaguiano, um ser cheio de defeitos.

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José Saramago – apresentação geral da obra.

Além de desafiar Deus em Caim, o protagonista também intervém em algumas ocasiões no


rumo de vários episódios bíblicos, caso dos episódios de Abraão e Isaac e a Arca de Noé.
Caim se sente na necessidade de se intrometer porque para ele é incompreensível que Deus
seja tão maligno e perverso: “Não bastavam sodoma e gomorra arrasadas pelo fogo, aqui, no
sopé do monte Sinai, ficara patente a prova irrefutável da profunda maldade do senhor, três
mil homens mortos só porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um suposto rival
em figura de bezerro, Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver
agora quem vai castigar o senhor por estas mortes” (101). Embora seja Caim quem impede
Abraão de oferecer em sacrifício seu filho Isaac a Deus porque este assim lhe ordenou, o
papel mais importante reservado ao protagonista no romance é no episódio da Arca de Noé
onde suas ações dissimuladas e pérfidas alteram de forma radical o curso da própria história
da humanidade. Caim se converte no carrasco de todos os que navegam na arca excetuando
Noé: Caim, Fafet e Sem e suas respectivas esposas, e a esposa de Noé. Caim assassina todos
os tripulantes da arca traiçoeiramente por suas próprias mãos e, deste modo, se gora a idéia de
Deus ao escolher Noé como o pai da nova humanidade. Sem mulheres que fecundar, finda
por completo a humanidade. Noé decide se deixar cair no mar onde perece “afogado de sua
livre vontade”, segundo o que diz Caim a Deus uns dias depois quando este aparece na arca.
Assim, Noé não terá que enfrentar Deus. Caim, mediante as suas ações, contraria o projeto de
Deus, o núncio da nova humanidade. Mesmo com a destruição do projeto divino, Caim
segue ainda com a mesma atitude desafiante e anti-autoritária ante o seu suposto criador
porque diz de uma forma extremamente ousada, depois de seus atos assassinos, que “Teria de
chegar o dia em que alguém te [deus] colocaria perante a tua verdadeira face” (180). E esse
alguém que finalmente desmascara Deus e o força a enfrentar o que ele é de verdade é o
próprio Caim. Este personagem é a consciência crítica de Deus, ou seja, aquele que nos seus
confrontos com seu senhor trata de lhe demonstrar que a cegueira, ou seja, a falta de lucidez
ou de razão, não afeta unicamente a humanidade também é uma epidemia da condição divina.
Aparentemente, até as divindades criaram um universo sem luz, sem claridade, portanto, um
universo irracional e caótico onde reina a cegueira.

Tanto Caim como o escritor com algumas de suas intervenções por ocasião da publicação do
romance causaram muita polêmica em Portugal: o romance pela ousadia de seu tema e seu
tratamento da figura de Deus e o escritor por algumas palavras proferidas. Em um vídeo
filmado quando da apresentação do livro que se realizou na Câmara Municipal de Penafiel,
Saramago afirmou que “a Bíblia é um manual de maus costumes e é um catálogo de crueldade
do pior da natureza humana” onde não faltam incestos e carnificinas. A polêmica foi tão acesa
tanto em relação ao livro quanto aos comentários do escritor que um euro-deputado do
Partido Social Democrata, Mário David, acusou o autor de ter escrito imbecilidades e
impropérios e o exortou a desistir da nacionalidade portuguesa. Esta atitude inquisitorial já se
tinha notado antes quando da publicação de O evangelho segundo Jesus Cristo visto que este romance
foi censurado oficialmente pelo próprio governo português. É certo que alguns dos livros de
Saramago lhe renderam duras críticas, especialmente por parte da igreja católica em Portugal
e também do Vaticano, mas Saramago sempre afirmou toda sua vida que ele escrevia para
desassossegar e que nunca desistiria de inquietar seus leitores. Com Caim ele realmente cumpriu
ao pé da letra essa intenção porque é uma obra que verdadeiramente incomoda seus leitores
e os obriga a pensar. Quanto ao tema da religião da obra, não é a primeira vez que Saramago

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ORNELAS, J. N.

o aborda. Em muitas outras obras anteriores, o tema tem sido uma parte essencial de sua
narrativa e no caso de O evangelho segundo Jesus Cristo a problemática do romance é a religião.
Tanto esta obra como Caim visam libertar o homem da repressão e escravidão de seus mitos
e crenças ou as amarras da religião. Igualmente, visam pôr fim à relação de dependência que
os seres humanos mantêm com seus deuses e religiões. Acima de tudo, visam a aceitação da
responsabilidade por parte da humanidade de tudo o que a ela concerne, uma humanidade
com o poder para enfrentar seus problemas e que não depende ou é marionete de forças
exteriores, às quais se tem submetido através dos tempos com sua fé cega e obediência
incondicional.

José Saramago alcançou maestria literária em uma ampla diversidade de gêneros. Embora ele
seja mais conhecido por seus romances dos anos 1980, 1990, o leitor pode encontrar as
grandes preocupações temáticas do trabalho mais maduro na obra anterior do autor publicada
nos anos 1960, 1970. Além disso, aqueles trabalhos mais antigos já apresentavam elementos
do fantástico e do sobrenatural que Saramago incorporou na maioria de seus romances,
incluindo aqueles que eram mais profundamente enraizados na história de Portugal, tais como
Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, e A jangada de pedra. Quando a ficção de
Saramago enveredou por um caminho mais alegórico, especialmente em sua trilogia da distopia
e em outros romances posteriores da última década, o leitor encontrou um escritor com uma
visão mais sombria do mundo, que não parecia acreditar mais que os indivíduos tinham a
capacidade de pôr fim à contínua destruição dos valores e da dignidade humana ou de
confrontar o poder malévolo de uma sociedade mercantilista e comercializada. Apesar do
pessimismo de Saramago em relação à capacidade humana de efetivar mudança, usar a razão
para coibir o abuso do poder e frear a tendência desumanizadora de todas as instituições, ele
continuou sempre a chamar a atenção para a destrutividade e a irracionalidade que afligiam o
mundo durante toda sua carreira como escritor. Saramago afirmou muitas vezes que a arte
não tinha a capacidade para transformar a natureza humana e que isso não era realmente seu
objetivo. No entanto, através do foco que o escritor concedeu ao papel desempenhado por
muitos dos seus personagens no combate à tirania política e às forças que cegavam a humanidade
na sua obra, ele aponta ou sugere que nem tudo estava irremediavelmente perdido. Restava
ainda um minísculo fragmento ou uma nesga de esperança no mundo.

Tradução: Maria das Graças de Santana Salgado


Professora adjunta I do DLC / ICHS / UFRRJ

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Submissáo e aprovação: 2011


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