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NITERÓI
2016
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Orientadora:
Profª Dra. Alessandra Frota Martinez de Schueler
NITERÓI, RJ
2016
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238 f. : il.
Orientadora: Alessandra Frota Martinez de Schueler.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Alessandra Frota Martinez de Schueler – UFF
(Orientadora)
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Ana Maria Monteiro - UFRJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Jorge Antonio, da Silva Rangel - UERJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Cláudia Maria da Costa Alves - UFF
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando de Araujo Penna - UFF
5
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Heloísa Villela UFF (suplente)
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Rebeca Gontijo - UFRRJ (suplente)
Niterói, 2016.
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AGRADECIMENTOS
A professora Arlette Gasparello que acreditou nessa pesquisa e que permitiu meu
ingresso na UFF e sempre foi muito atenciosa em nossas tardes agradáveis no GRUPHESP ao
longo de três anos de orientação. A quem dedico essa tese e sou muito grato.
RESUMO:
O presente trabalho investiga três manuais escolares de História do Brasil, produzidos a partir
da segunda metade do século XIX, buscando compreender as representações sobre a construção
da nação brasileira, enfocando, especialmente, os debates sobre a sua relação com a questão da
raça. Nossas fontes de análise foram as seguintes obras: Lições de História do Brasil, de
Joaquim Manuel de Macedo, publicado em volumes, 1861 e 1863; Lições de História do Brazil,
de Luís de Queirós Mattoso Maia, publicado em 1880 e, História do Brasil, de João Ribeiro,
publicado em 1900. A hipótese central que orienta a investigação é a de que tais obras
contribuíram para a elaboração de narrativas e representações fundadoras sobre tempo histórico,
nacionalidade e raça brasileira, na medida em que sintetizam o conhecimento histórico das
ciências humanas no período. Os livros escolares, nesse sentido, atuaram como artífices do
tempo histórico, na medida em que tais ideias eram transpostas aos alunos em algumas
instituições educacionais do Império no processo de ensino e aprendizagem de História. Ao
longo dos quatro capítulos da tese, o objetivo foi analisar cada uma das obras, de modo a
compreender a construção da noção de tempo histórico, raça e nação brasileiras, privilegiando
as três obras mencionadas no marco temporal de 1861-1900. Período de fundamental relevância
para o estudo sobre a emergência das teorias científicas sobre a raça, sua apropriação e difusão
pela intelectualidade nacional. Para tal análise, utilizamos as contribuições do campo conhecido
como História dos Conceitos, cuja referência central remete ao autor Reinhart Koselleck. As
contribuições da tese consistem em demonstrar como as matrizes de pensamento sobre a raça,
na segunda metade do século XIX, não foram um fim em si mesmas e nem ficaram restritas ao
debate no meio intelectual. Argumentamos no sentido de que a elaboração das teorias sobre
nação e raça foram disseminadas, sobretudo, por meio de livros e manuais escolares, nas
instituições de ensino secundário e primário, especialmente no âmbito ensino da História em
construção como um saber escolarizado. As representações sobre nação e raça, presentes nas
obras analisadas, com suas similaridades, permanências e diferenças, formaram o ideário não
apenas dos intelectuais autores, mas, também de gerações de estudantes e informaram
segmentos dos atores políticos na segunda metade do oitocentos.
Palavras chaves: Identidade Nacional e livros didáticos, História Ensino, e Nação brasileira e
raça.
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ABSTRACT:
This paper investigates three Brazilian history school books , produced on the second half of
the nineteenth century, seeking to understand the representations in the construction of the
Brazilian nation, focusing specifically on discussions related to the question of race. Our
analysis sources were the following works: lessons of Brazilian History ( Lições de História do
Brasil), Joaquim Manuel de Macedo, published in volumes, in 1861 and 1863; Lessons of
Brazilian History ( Lições de História do Brazil) , Luís de Queirós Mattoso Maia, published in
1880, and History of Brazil (História do Brasil), João Ribeiro, published in 1900. The central
hypothesis guiding the research is that these works contributed to narrative texts productions
and founding representations of historical time, Brazilian nationality and race, as synthesizing
historical knowledge of human sciences in the period. Textbooks, accordingly, acted as
architects of historical time, to the extent that such ideas were transposed to students in some
educational institutions of the Empire in the teaching and learning history process . Over the
four chapters of the thesis, the goal was to analyze each of the works in order to understand the
construction of the notion of historical time, race and Brazilian nation, focusing on the three
works mentioned in the timeframe of 1861-1900. Extremely relevant period for the study of
scientific theories about the race, its appropriation and dissemination by the national
intelligentsia. For this analysis, we used the contributions of the field known as History of
Concepts, whose central reference refers to the author Reinhart Koselleck. The contributions of
the thesis are to show how arrays of thinking about race in the second half of the nineteenth
century were not an end in themselves, nor were restricted to the debate of the intellectual
circles. We argue in the sense that the development of theories on nation and race were
disseminated mainly through books and textbooks in the primary and secondary educational
institutions, especially within teaching of history in construction as a school knowledge. The
representations of nation and race, in the works analyzed, with their similarities, continuities
and differences, formed not only the intellectuals authors ideology, but also generations of
students and informed segments of the political actors in the second half of the eight hundred.
Key words: national identity and History school books, History education, Brazilian nation and
Race.
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LISTA DE ABREVIATURAS:
SUMÁRIO:
1
Vale destacar a distinção entre Martius e os intelectuais do último quartel do século XIX a respeito da concepção
de raça. A leitura de Martius não era marcada pelo sentido biológico, mas, antes, pelos fenótipos da população
brasileira. O sentido racialista, de evolução da espécie e de degeneração biológica da nação brasileira,
caracterizaria parte do pensamento social brasileiro do último quartel do século XIX. Para saber mais, consultar
Schwarcz (1993).
2
Trata-se do concurso proposto pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1843, cuja temática
era o modo como se deveria escrever a História do Brasil. Carl Von Martius venceu o concurso mediante
apresentação da tese Como se deve escrever a História do Brasil. De acordo com Kodama (1998), Martius gozava
de boas relações com os membros do IHGB.
13
3
Para mais informações, consultar Kant (2005).
15
O debate em torno sobre o que deveria a nação foi rico. Entre os muitos sentidos
possíveis pode-se inferir que a educação4, ainda, deveria criar condições para um sentimento
patriótico e de civilidade do indivíduo para com a pátria, ou seja, de pertencimento a uma
tradição, a uma nação ‒ o Brasil ‒ seja mediante formação do súdito, no período imperial, seja
mediante formação do cidadão, no período republicano (MELO, 2008). Dito de outro modo, a
educação estava sob o signo do nacionalismo, e os instrumentos para esses projetos de nação,
dentre outros, eram os manuais escolares de História e Ensino de Moral e Cívica. Na
historiografia didática, Gasparello (2004) assinala três temporalidades distintas: a primeira, de
cunho patriótico, é a história patriótica (1831-1861); a segunda é a história imperial (1861-
1900); e a terceira é a história republicana (1900-1922). Assim, este trabalho investiga mais a
fundo essas temporalidades que dizem respeito às permanências, aos deslocamentos e às
rupturas sobre a questão das teses racialistas na conformação da nação brasileira. Dito assim,
parte-se da seguinte premissa:
4
A educação tinha diferentes finalidades na construção do Estado-nação brasileiro: a de superar a ignorância e as
mazelas sociais e econômicas e a de preparar as populações libertas e livres para o regime de trabalho assalariado
e para as transformações econômicas sociais vividas pelo Brasil, especialmente no último quartel do século XIX
(GONDRA; SCHUELER, 2008).
16
5 Para mais informações, ler Pinsky (2006), Toledo (2011) e Bittencourt (2013).
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6
Isto não significa que Macedo não construiu seu próprio ponto de vista sobre a História do Brasil, especialmente
sobre os episódios da Independência do Brasil, que ainda marcavam os debates e as disputas políticas durante sua
juventude, no início do Segundo Reinado. Para mais informações, consultar Mattos (1993).
18
2004); MELO, 2008; SANTOS, 2009). É compreendida como expressão do debate intelectual
acerca da nacionalidade brasileira (RODRIGUES, 2011).
A obra de João Ribeiro e a de outro autor de livro didático, Jonatas Serrano, que
escreveu Epítome de História do Brasil (1933)7, são exemplos de um novo momento da
produção didática, resultado das transformações institucionais do ensino primário e secundário
e da efervescência de novas ideias pedagógicas, que vieram a se chamar pedagogia nova. Cabe
salientar as transformações do mercado editorial dos livros didáticos, o qual se ampliou
vertiginosamente em função das demandas, sobretudo no Rio de Janeiro, capital da República
(SILVA, 2008). A princípio, podem-se demarcar essas diferenças em relação à produção do
período imperial, o que possibilita inferir a ampla circulação das ideias presentes nos manuais
utilizados pelas instituições de ensino. Menciona-se, ainda, a dissolução do caráter modelador8
do Colégio Pedro II em relação a seus congêneres estaduais pelo País afora. Assim, o ensino, o
currículo e toda a organização escolar, a partir de 1930, passaram a ser dirigidas pelo Ministério
da Educação e Saúde.
A estratégia utilizada nesta tese foi a de estudo analítico sobre cada uma das obras, de
modo a construir uma temporalidade histórica das representações que se fizeram sobre a nação
brasileira. Assim, acentuam-se as permanências, os deslocamentos e as rupturas dos discursos
presentes nelas. Nesse sentido, é importante investigar as obras em diferentes períodos e estudar
a questão da nacionalidade relacionada diretamente com a educação, o que permite uma
compreensão sobre as relações entre o Estado Nacional, a Nação e a Educação. Os objetos de
estudo, os manuais escolares de História, são entendidos como artífices da realidade histórica.
Desse modo, em razão de sua natureza pedagógica, espera-se poder explicitar essas relações,
porque, em boa medida, elas (re)criam e tentam reordenar uma nova realidade, ao mesmo tempo
que a refletem. Para essa delimitação temporal, as contribuições de Alonso (2002) são
importantes, visto que dão pistas sobre o movimento das matrizes de pensamento da
intelectualidade do último quartel do século XIX no Brasil.
Compreende-se que os estudos das matrizes de pensamento, as quais formularam as
ideias de nação, não são um fim em si mesmos, pois, ainda que entrincheirados no meio
7
Para mais informações, conferir Santos (2009).
8
O Colégio Pedro II e seu currículo deveriam servir de modelo às escolas secundárias do País. Se, por um lado, o
Ato Adicional de 1834 descentralizou a responsabilidade de promover os ensinos primário e secundário às
Províncias, por outro, garantiu a uniformidade do ensino e dos conteúdos curriculares, já que o bacharel em Letras
formado pelo Colégio Pedro II tinha o direito ao ingresso nos cursos superiores sem a necessidade de exames, ao
passo que os provinciais deveriam prestá-los, o que diferenciava e criava um status ao referido colégio. Isso
implicou a necessidade de as Instituições de ensino secundário seguirem o modelo curricular adotado pelo Colégio
Pedro II. Para mais informações, ler Vecchia (2006), Gasparello (2004) e Bittencourt (2008).
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intelectual, extrapolam esses debates. Ademais, as matrizes são influências para os agentes
políticos, em boa medida ligados à elite intelectual9. Procura-se, então, demonstrar como as
ideias fazem parte da realidade como um todo e como os sujeitos ativos têm grande capacidade
de interferir no meio. Tais ideias não são apenas abstrações que vagam no mundo dos
intelectuais, mas também são objeto de ação social e política, são as “carnes” da História.
Portanto, a empiria deste trabalho são os estudos exegéticos e de análise comparativa
entre as fontes mencionadas. Esta tese também estabelece diálogo com os autores da História
Cultural, quadro teórico que mantém relações com a História da Educação. Nessa perspectiva,
como a educação é mais uma manifestação cultural, assim como outros aspectos da realidade,
situa-se a História da Educação como campo investigativo da História Cultural. Contudo, cabe
assinalar que o estudo comparativo é o da investigação sobre os argumentos presentes nos
manuais de História do Brasil, pois, assim, não se pretende elaborar uma sociologia das ideias,
em que o contexto histórico determina a formulação dos argumentos dos intelectuais. Antes,
pretende-se compreender a arqueologia do debate sobre a questão da raça em manuais de
História de tempos distintos (de meados do século XIX ao início do século XX). Neste estudo,
também, trabalham-se as interfaces entre diferentes campos de pesquisa histórica: a História da
Educação, a História Intelectual e o Ensino de História e suas relações com o desenvolvimento
de sua historiografia.
Os referenciais teóricos
9
Nesse sentido, o trabalho de Caroline Carula é uma importante fonte, pois sua tese se debruça sobre as
Conferências Públicas que ocorriam no Alto da Glória, Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, onde
compareciam dirigentes políticos, cientistas, advogados, médicos, professores e leigos em geral. Para mais
informações, conferir Carula (2012).
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Por fim, a origem desta pesquisa se desenrola a partir de um estudo anterior10, por meio
do qual se investigou a representação da nacionalidade brasileira com base nos conceitos de
raça e território, compreendidos como pilares da formulação da referida nacionalidade. Para tal
análise, elaborou-se um estudo exegético sobre a obra História do Brasil de João Ribeiro,
buscando compará-la a obras historiográficas representativas do mesmo período, de modo a
perceber a arqueologia do debate sobre a nacionalidade brasileira à época. Por essa razão, fez-
se um estudo comparativo com as obras História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero
(1888), e Capítulos de História Colonial, de João Capistrano de Abreu (1908). Dessa maneira,
discute-se como a História do Brasil em análise sedimenta os debates intelectuais, políticos e
historiográficos do período e como se apresenta ao público estudantil de nível científico no
início do século XX.
Assim, com base nesse estudo, que procurou compreender e destrinchar o tempo
histórico dessas ideias entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, a questão
do modo como a raça está posta em outros manuais escolares de História anteriores e posteriores
à História do Brasil estimulou a escrita desta tese. Tal trabalho se justifica porque a racialidade
e moral são colocadas na obra História do Brasil como elementos na formação da nacionalidade
brasileira. Se, por um lado, são elementos históricos e constituintes da nacionalidade; por outro,
são entraves para a conformação de uma nacionalidade forte e altiva diante do mundo
civilizado, isto é, de seus pares do Ocidente (RODRIGUES, 2011).
Na mesma obra, João Ribeiro enuncia um caminho para a conformação dessa nova
nacionalidade que seria melhor e mais preparada para os desafios do século que se iniciava: a
da contínua imigração europeia e sua miscigenação com a raça mameluca nacional, que tornaria
a nação mais branqueada, mais culta e superior (RIBEIRO, 1900). Além dessas teses biológicas,
o autor discute o papel da educação, que instruiria moral e intelectualmente as novas gerações,
as quais, ao assimilarem a cultura do trabalho que o europeu trazia consigo, promoveriam o
progresso material, industrial e intelectual para o Brasil.
Por fim, cabem considerações sobre como se entende, aqui, o objeto de pesquisa, o
livro didático e/ou manual escolar, que, de acordo com a reflexão de Gasparello (2009), é, antes
de mais nada, um artefato da vida social e cultural e, assim, expressa temporalmente os valores,
10
Trata-se da dissertação Entre as raças e o território: os projetos de nação na História do Brasil de João
Ribeiro de Rodrigues (2011).
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as crenças e os anseios de uma sociedade. Embora possa ser empobrecedor compreender uma
sociedade por meio do livro, este, como fonte, pode revelar aspectos de uma época. Assim,
concebem-se as fontes, os manuais escolares de História, como veículos privilegiados de
transmissão e difusão de conhecimento e como expressões de projetos de nação, pois, na medida
em que são utilizados como recursos pedagógicos, transmitem não só uma representação sobre
o passado, mas também os projetos das novas gerações que por eles são instruídas. Desse modo,
tais fontes expressam um tempo histórico das ideias sobre a nacionalidade brasileira e, ainda,
são artífices desse mesmo tempo, por construírem essa realidade. Portanto, os livros são
entendidos como artefatos culturais, imbuídos de sentidos, e como expressão do tempo
presente. Desse modo, seu lugar também é o da esfera das instituições de difusão de cultura
material e intelectual (FALCON, 2006, p. 337).
As fontes desta pesquisa, na tessitura de suas narrativas escolares, possuem a
especificidade de trazerem consigo uma representação do passado. Por meio do livro didático,
nessa perspectiva, pode-se compreender como uma sociedade estabeleceu relações com a sua
memória, com o seu passado e, portanto, com parte de uma cultura histórica (GASPARELLO,
2009). Assim, entende-se que, por meio das análises dessas narrativas, é possível compreender
um tempo histórico e perceber as relações de força em uma sociedade para a construção de sua
memória e de seu esquecimento, na construção do conceito de civilização e de barbárie. Por
intermédio dos usos do passado, em suma, é possível estabelecer o tempo histórico do conceito
de nação.
As fontes primárias analisadas nesta tese se articulam com diferentes campos de estudo
da historiografia. Nesse sentido, cabem reflexões acerca dos campos de estudo da produção
científica sobre os manuais escolares de História, suas relações com a História da Educação e
com o Ensino de História. Como este estudo é também historiográfico, articula-se com o campo
da História da Historiografia, com destaque à brasileira.
A constituição do campo da História da Educação passou a ganhar corpo e a se renovar
de modo profundo a partir dos anos de 1980. Até então, constituía-se de estudos de legislações,
reformas educacionais e projetos educacionais. A partir das últimas décadas do século XX,
estudos como os de Cultura escolar, História do ensino e História das disciplinas escolares
passaram a atravessar esse novo/velho campo de estudos.
Guimarães e Silva (2010) destacam que a produção acadêmica a respeito do ensino de
História cresceu dentro da conjuntura de democratização do processo político do Brasil após a
ditadura, especialmente em razão do combate à consolidação da disciplina de Estudos Sociais
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livros didáticos de História e do Ensino de História defendem que a tese de Bittencourt (1993)11
é um marco na constituição desses dois campos de estudos, pois, até então, eram poucos os
trabalhos que privilegiavam tal objeto de pesquisa. Essa autora,
11
A edição utilizada nesta tese é a versão em livro publicada pela editora Autêntica, de 2008.
12
Trata-se das quatros funções assinaladas por Choppin (2005) sobre o livro didático, as quais serão explicitadas
posteriormente.
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13
De acordo com Choppin (2004), os livros didáticos podem ter quatro funções ou dimensões que se referem à
sua produção e à sua circulação e que podem variar de acordo com o ambiente sociocultural e com a época. A
primeira é a função referencial, que funciona como suporte privilegiado do sistema de ensino, sob as diretrizes
consideradas úteis pelo grupo social às próximas gerações. A segunda é a função instrumental, que coloca em
prática o sentido social do conteúdo a ser lecionado. A terceira é a função ideológica e cultural: “A partir do século
XIX, com a constituição dos estados nacionais e com o desenvolvimento, nesse contexto, dos principais sistemas
educativos, o livro didático se afirmou como um dos vetores essenciais da língua, da cultura e dos valores das
classes dirigentes. Instrumento privilegiado de construção de identidade, geralmente ele é reconhecido, assim
como a moeda e a bandeira, como um símbolo da soberania nacional e, nesse sentido, assume um importante papel
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sentido, esta pesquisa se debruça sobre como tais funções estiveram prescritas nas narrativas
escolares de História e como compuseram um tempo histórico de representação e de conceitos
formuladores da nação brasileira. Fundamentado nessa problemática, desenvolve-se um estudo
de historiografia sobre as narrativas de História do Brasil no âmbito escolar, com destaque para
os manuais da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Ao analisar os
discursos historiográficos dos autores, compõe-se uma História do Ensino de História com base
na formulação de um tempo histórico sobre as representações da nação brasileira presentes
nesses livros, com ênfase nos manuais dos cursos superiores, denominação do ensino
secundário entre o século XIX e o início do século XX.
Nesta formulação, estudar o livro didático como vetor cultural de transmissão de
valores (CHOPPIN, 2004) não significa, necessariamente, concebê-la como a expressão do
pensamento das classes dirigentes. Antes, pode-se inverter o argumento: os conhecimentos
desenvolvidos com bases científicas sustentaram e legitimaram a representação que as classes
dirigentes construíram sobre as sociedades. O caso brasileiro do século XIX é exemplar nessa
perspectiva.
A constituição da disciplina escolar de História se desenvolveu por intermédio de
debates e trabalhos com a historiografia do IHGB na segunda metade do século XIX. Sofreu
fortes influências de teses cientificistas e, assim, construiu uma ideia de nação, de raça nacional,
de História do Brasil e de seus atores nesse processo, aqueles que deveriam ser a memória e o
esquecimento dessa narrativa. Essas representações, especialmente com a base científica da
época14, influenciaram as diferentes correntes políticas e, mesmo, a ideologia racial existente
no Brasil durante esse período (STEPAN, 2005, p. 15). A ideologia conformada por diferentes
aspectos da sociedade brasileira imperial foi marcada pela escravidão, que impactou fortemente
as mentes, a cultura, as atitudes, as representações e as formas de se enxergar a realidade
próprias do século XIX.
político. Essa função, que tende a aculturar ‒ e, em certos casos, a doutrinar ‒ as jovens gerações, pode se exercer
de maneira explícita, até mesmo sistemática e ostensiva, ou, ainda, de maneira dissimulada, sub-reptícia, implícita,
mas não menos eficaz” (CHOPPIN, 2004, p. 553). A quarta é a função documental, que se refere à metodologia
de uso de documentos e à própria realidade de apreensão do conteúdo desejado, além de possuir a função de
despertar a autonomia do sujeito frente ao conhecimento. Esta última não é uma realidade mundial, pois há em
poucos lugares.
14
Especialmente ciências como a antropometria, a craniologia e a antropologia. Em síntese, tais campos científicos
visavam compreender as raças que compunham a espécie humana e seu processo de evolução, particularmente
após o desenvolvimento das teses evolucionistas de Darwin e os diferentes significados que lhes foram atribuídos
entre o século XIX e XX. Desse campo científico, resultaram análises histórico-sociológicas que, por um lado,
reforçavam as relações de forças de brancos sobre os negros e, por outro, construíam uma imagem sobre a nação
brasileira, cujo futuro estaria em xeque, por ter sido formada por uma raça biológica inferior. Para mais
informações, conferir Schwarcz (1993), Carula (2012), Diwan (2011) e Santos (2009).
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Nessa relação inextricável entre o mundo editorial e o livro didático, não é possível se
esquecer do autor. Bittencourt (2004) problematiza que, em princípio, um autor de obra didática
se caracteriza pelo cumprimento de programas oficiais de ensino e de políticas públicas. A
autora analisa, especialmente, os autores do século XX e a massificação desse mercado editorial
criador de uma relação de interdependência entre o editor, o revisor e o autor. Num contexto
em que o Estado é o maior comprador de livros didáticos das editoras e das livrarias, há de se
convir que, para garantir a viabilidade econômica e mercadológica das obras, a liberdade de
expressão possui limites. Contudo, o que se analisa aqui é o resultado dessa narrativa impressa
e publicada, com ou sem a benção do autor/escritor. Assim, debruça-se sobre o estado da arte
dedicado ao estudo dessas narrativas e à História do Ensino de História, isto é, à história do
objeto de análise desta tese.
O estudo de narrativas históricas é, em última análise, um estudo acerca dos usos da
historiografia, das formas como se representa o passado, possuindo, assim, uma historicidade.
Isso implica uma tensão entre a narrativa e o acontecimento em si. Tal tensão possibilita
compreender como tal sociedade se relaciona ou se relacionava com o passado e com as relações
de forças, com as práticas dos historiadores e com os usos do passado, dos métodos e da própria
epistemologia do conhecimento histórico. Em suma, permite perceber como o próprio sujeito
observa o objeto e o fenômeno, como sugere Malerba (2006).
Os caminhos da tese
O caminho percorrido por esta tese se dividiu em quatro momentos. O primeiro versa
sobre o estado da arte dos manuais escolares do século XIX, especialmente as publicações do
século XXI, marcado pelo aumento considerável de pesquisas sobre o livro didático. Com a
finalidade de manter a objetividade desta análise, apresentam-se aquelas que são mais
representativas para um estudo das narrativas escolares de História do Brasil: a ideia de nação
e os projetos políticos. Entende-se que tais análises permitem entender como as narrativas e a
ideia de nação se deslocaram ao longo do tempo. Nesse sentido, explorou-se a História dos
Conceitos, como já mencionado em Reinhart Koselleck e as possibilidades para estabelecer o
tempo histórico da semântica conceitual de nação e raça nas narrativas escolares. Com essas
ferramentas analíticas e conceituais, analisam-se, também, as discussões historiográficas sobre
os conceitos de raça e nação e o modo como eles foram entendidos pela intelectualidade
brasileira do século XIX.
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História do Brazil, de 1880. Nesse sentido, demonstra-se como essas Lições avançaram na
compreensão dos povos indígenas e dos projetos de nação que deveriam lhes ser impostos para
que integrassem a civilização.
O quarto momento se dedicou ao autor mais estudado pela historiografia do Ensino de
História, João Ribeiro e a sua História do Brasil, de 1900. Para se compreender como ele
entendeu a nação brasileira, foram importantes as discussões acerca da crise política vivida pelo
Império, acerca da derrota desse sistema pelo golpe militar que deu origem à República e acerca
dos primeiros anos de supremacia das oligarquias regionais na estrutura política do regime. Na
esteira do predomínio político e jurídico, foi importante compreender as legislações em torno
do ensino secundário, o papel central que o Ginásio Nacional manteve nesse nível de ensino,
as disputas entre o ensino humanista e o propedêutico e as modernas ciências que alavancaram
o desenvolvimento tecnológico no Ocidente naquele momento. A biografia intelectual de João
Ribeiro foi destacada com base nas instituições a que pertenceu, como o próprio Ginásio
Nacional, o IHGB, a ABL e os diversos jornais por meio dos quais publicou centenas de artigos
ao longo de sua existência, em que foram encontradas pistas sobre o pensamento e a
interpretação do autor sobre o que era o Brasil e a sua sociedade. Finalmente, analisam-se a
História do Brasil, a tessitura da narrativa em torno da ideia de nação e a importância das teses
racialistas para a compreensão do caráter dessa nação como modelo explicativo para o atraso
social, moral e intelectual do Brasil em relação ao Ocidente. Embora pesem as teses racialistas,
João Ribeiro imaginou caminhos para a superação desse estado social, entre eles o
branqueamento e a educação para o trabalho para a organização da vida social, política e
econômica do País e, desse modo, para o ingresso no caminho do progresso e da futura nação
regenerada: branqueada, forte, inteligente e integrada ao mundo “civilizado” europeu e
estadunidense.
Por meio deste estudo semântico e exegético, pretende-se demonstrar a possibilidade
de estabelecer o tempo histórico mediante análise das narrativas. No caso, os manuais escolares
revelam certo uso do passado, de acordo com os projetos de nação estabelecidos pelos
intelectuais ou pelo Estado. Revelam ainda um espaço de experiência com vistas a um horizonte
de expectativa, isto é, a um projeto de futuro para o País, baseando-se no conceito de nação
brasileira. Quem era ou é a nação brasileira? Que direitos possuía? Que espaços podia ocupar
e almejar? Qual era a cultura histórica a ser valorizada? Assim, o desafio que se impunha era o
de construir uma História do Brasil com base em uma história em comum em detrimento dos
conflitos internos regionais e das contradições.
30
Posto assim, percebe-se que esse debate não morreu no início do século XX; em vez
disso, ganhou diferentes significados ao longo desse século, do qual João Ribeiro é uma das
referências historiográficas. Se a mestiçagem era condenada pela intelectualidade do final do
século XIX e do início do século XX, tornar-se-ia, a partir dos anos de 1920 e 1930, valorizada
e reinterpretada, especialmente após a publicação das teses culturalistas de Gilberto Freyre
(1963) e Sérgio Buarque (2002) cuja democracia racial silenciou as diferentes formas de
opressão sobre as populações afrodescendentes e indígenas. Tal leitura, embora contestada e
muito criticada por parte da academia e dos movimentos negros, atravessaria o século XX,
valorizando estereótipos como a mulata do samba ou o jogador de futebol. Assim, é possível
perceber como a memória é um campo de batalhas e disputas, e como essas batalhas e disputas
repercutem na ideia de nação brasileira.
31
Nesta tese, essas questões situam os objetos de análise dentro da historiografia e dos
debates que se desenrolaram em torno da política, da educação e dos destinos do País. Isto
permite compreender as multiplicidades de análise e a riqueza das ideias desenvolvidas pela
intelectualidade brasileira do século XIX.
32
15
O principal objeto de estudo da história conceitual de enfoque collingwoodiano é a História do Pensamento
Político. Trata-se de uma abordagem historicista cuja finalidade é revisar as análises feitas sobre os cânones da
Ciência Política, as quais incorreram no erro de se projetar, nos autores, algo a que eles não pretendiam responder.
Assim, esse enfoque resultou na tentativa de superar anacronismos e teleologismos. Para aprofundamento, vale a
leitura de Jasmin e Feres Jr (2006). De acordo com Bentivoglio (2010), a importância de Reinhart Koselleck e da
História dos Conceitos se deve à “[...] reunião sistemática de extensas citações de fontes originais do pensamento
político e social do Ocidente a partir do século XVIII, demonstrando como a linguagem moldou as profundas
transformações vividas revelando a continuidade e as descontinuidades entre conceitos e realidade histórica. Nesta
empreitada, Koselleck demonstrou como os conceitos passaram por um processo de historicização, de
democratização, de ideologização e de politização. Evitar anacronismos e a utilização superficial e vaga do termo
ideias são, entre outros, uma decisiva contribuição para o conhecimento histórico e social contemporâneos”
(BENTIVOGLIO, 2010, p. 130).
33
[...] podemos admitir que cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua
vez indica um conteúdo. No entanto, nem todos os sentidos atribuídos às
palavras eu consideraria relevantes do ponto de vista da escrita de uma história
dos conceitos [...] cuja formulação seria necessária um certo nível de
teorização e cujo entendimento é também reflexivo. (KOSELLECK, 1992, p.
134-135).
35
Essa distinção delineará as palavras que são teorizáveis ou não. As escolhas desses
conceitos, em boa medida, ligadas a questões que extrapolam o universo da linguagem,
possuem distintos níveis de arbitrariedade. Trata-se de conceitos de relevância social, como,
por exemplo, Estado, Revolução e Cidadania, ou seja, de conceitos que expressam problemas
reais de uma sociedade, de uma cultura e, também, de uma época.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o conceito de nação esteve na ordem do dia para
os dirigentes políticos do Ocidente, sobretudo após as revoluções liberais que sacudiram a
Europa e a América Latina. Nos debates de problematização desse conceito no último quartel
do século XIX, esteve a ideia de raça, não apenas no Brasil, como na Europa, ainda que não
fosse a única corrente de pensamento. O romantismo, por exemplo, não abordava tal questão,
pois se dedicava à valorização dos heróis nacionais, da literatura e da produção intelectual e
científica desses povos.
Pode-se inferir que esses debates permitiram a teorização do termo nação e, do ponto
de vista político, promoveram sua importância para a organização dos Estados nacionais. Nessa
perspectiva, a ideia de pertencimento a uma comunidade cultural, imaginada ou não, contribuiu
para o amálgama de diferentes culturas e povos dentro de um mesmo perímetro político. Já do
ponto de vista econômico, tais debates garantiram a preservação de monopólios e suas reservas
de mercado às oligarquias locais/regionais pelo mundo afora.
Koselleck (1992) problematiza o que seriam palavras teorizáveis ou não. Em geral, os
conceitos relevantes socialmente resultam de experiências históricas que possibilitaram tal
teorização, como um processo a posteriori que permitiu um alto nível de reflexão sobre a
conceituação de uma ideia. O autor trata de diferentes termos da história alemã, como Liga
(Bund), que só conheceu tal nível de conceituação a partir da união das cidades em ligas
militares e comerciais entre os séculos XIII e XVI. Apenas depois dessa experiência histórica,
foi possível refletir sobre o desenvolvimento do conceito, fenômeno que também pode
acontecer com outros conceitos que tratam de problemas reais de uma sociedade. Uma breve
análise sobre os dicionários de língua portuguesa dos séculos XVIII e XIX demonstra que o
conceito de nação passou por esse processo de teorização, deslocamento e mudança de
significado, questão que será mais bem desenvolvida adiante.
Com fundamentação nessas teses, pode-se refletir sobre algumas questões. Em
primeiro lugar, um conceito designa uma relação com sua realidade histórica e com seus
significados específicos, próprios do tempo e da sociedade em que se insere. Sua função é tentar
tornar presente uma realidade e, também, ser dela elemento constituinte, dado que os sujeitos
se apropriam de um conceito que faz parte das relações sociais. Em segundo lugar, decorrente
36
disso, à medida que os sujeitos dele se (re)apropriam, o conceito ganha significados próprios
em novos contextos ou em gerações posteriores. Em suma, ele não pode ser pensado apenas em
sua realidade histórica, mas também na relação com outros conceitos, que variam, sem dúvida,
de uma realidade a outra.
Tais ideias podem ser exemplificadas com o conceito de Estado. Por um lado, no
século XIX, Estado está imbricado no conceito de sociedade e nação, os quais, por sua vez,
foram pensados na legitimação e na existência institucional dos Estados nacionais. Por outro
lado, tais relações ganharam contornos próprios entre os diferentes países da Europa e da
América Latina, configurando regimes políticos específicos.
Outra reflexão pode ser acrescentada às de Koselleck. Se a ideia de Estado foi
refundada com as revoluções liberais, a educação/instrução pública fez parte desse processo, já
que os países europeus, por diferentes razões, passaram a incluir a educação/instrução como
componente estratégico da redefiniçao dos Estados Nacionais, seja pela necessidade de criar
uma ideia de pertencimento social, de patriotismo, seja pela necessidade da alfabetização para
o trabalho nas indústrias que transformavam fundamentalmente as sociedades europeias e
norte-americanas.
Daí que uma terceira questão pode ser abordada: a historicidade para o trabalho da
História dos Conceitos, que trata da condicionante histórica no uso dos termos, ou seja, sua
validade e seu significado temporal, o que invalidaria uma perspectiva diacrônica da História.
Essa questão se justifica pelas possibilidades que podem acontecer em relação ao conceito e
aos seus significados: permanecer inalterado na ortografia, mas alterado em seu conteúdo de
modo substancial e, assim, ter uma sobrevida para além da experiência histórica na qual estava
inserido e pela qual foi imaginado. Nesse sentido, o conceito não está necessariamente
circunscrito no espaço-tempo, pois a migração das ideias não tem fronteiras ou limites, nem
conhece estratificação social; o conceito é, na verdade, uma manifestação cultural, quase um
organismo vivo. Isto remete à ideia de fluidez da cultura, presente em Chartier (2001, p. 203).
Tratar da historicidade de conceitos que abarca o Ocidente seria um desafio
monumental para qualquer pesquisador; porém, em princípio, é possível inferir que a ligação
histórica, jurídica, filosófica e religiosa envolveu o novo mundo com os conceitos e as culturas
desenvolvidos na Europa. Todavia, o novo mundo ganharia contornos próprios e adaptados às
correlações de forças entre as diferentes sociedades americanas. O Estado brasileiro, no caso,
se fundamentou nas diferentes correntes de pensamento ilustrado e liberal para a sua
constituição; contudo, preservou os pilares que fundamentaram a sociedade brasileira do século
37
XIX: a escravidão, a grande propriedade e a economia para exportação. Por si sós, essas
características demonstrariam a adaptabilidade das ideias europeias ao solo brasileiro.
Adjacente as três questões anteriores outra questão a ser discutida: a polissemia, isto
é, o fato de o mesmo conceito poder ter diversos significados, como o caso do termo História,
que serve para designar experiências individuais, coletivas e nacionais e sobre o qual muito se
refletiu a partir do final do século XVIII, o que culminou na historiografia avançou para além
dela. O termo em si é uma apropriação de todos e, desse modo, cada qual o entende de acordo
com suas experiências próprias, sem que, no entanto, se altere seu significado social.
Diante das questões apontadas por Koselleck, de suas contribuições e dos problemas
a serem enfrentados por uma história conceitual, foca-se uma discussão sobre os termos raça e
nação e suas implicações para a formulação da ideia de nação. Esses termos já apontam o que
Koselleck (1992) disse a respeito das relações que um conceito possui com os outros. O termo
nação, entre meados do século XIX e início do século XX, perpassou, necessariamente, pela
ideia de raça, como constituidora biológica de um povo. Este foi um problema real enfrentado
pela intelectualidade brasileira, diante das formulações europeias de raça, especialmente de
mestiços, negros e indígenas. Além disso, o termo nação, durante o século XVII e meados do
século XIX, estava obrigatoriamente vinculado à capacidade de se autodeterminar e ser
soberano política e militarmente diante dos outros povos. Contudo, Moraes (1813) já indicou a
dissociabilidade de Estado e Nação, quando analisara o caso da nação judaica, e fez menção ao
termo raça, que será desenvolvido em momento posterior nesta tese.
Pensar os conceitos significa também pensar no tempo em que estão localizados,
questão sobre a qual Koselleck (1992) também refletiu, visto que é própria ao ofício do
historiador. Para ele, o tempo histórico se formula pelo calendário combinado com o
aprofundamento da compreensão desse mundo histórico e que se conheçam suas inflexões, suas
permanências e suas rupturas, porque o tempo histórico é atravessado pela relação do ser com
o tempo, com o seu tempo, relação desenvolvida pelo campo da experiência e do horizonte de
espera16. Por intermédio da experiência (o passado) e da expectativa (futuro), cria-se uma
temporalização da experiência humana. De outro modo, o passado que atravessa e se faz
presente. O mesmo movimento é compreensível pelo futuro que atravessa esse mesmo presente.
Assim, de acordo com o alemão, é possível formular a temporalidade por meio da semântica
dos conceitos, pois uma ideia é ressignificada, temporalmente, na troca das palavras, para dar
significado a uma nova experiência histórica.
16
Reis (1996) usa a expressão horizonte de espera como Horizonte de Expectativa. Para saber mais, conferir
Koselleck (2006).
38
uso dos termos como ruptura à tradição política pautada em vocábulos como corte, soberania,
cidadão, constituição e povo. Nesse sentido, as ideias liberais e ilustradas criaram novos
fundamentos para a existência do Estado e/ou Império, tendo em vista que a política era arena
de disputas e os conceitos, armas importantes.
De acordo, com Pereira, (2013), para os conservadores da época da independência, a
Revolução não significava a ruptura com o passado, mas antes a restauração de antigas
liberdades e privilégios perdidos por causa do despotismo, da ignorância e da força bruta. O
Império se formava, por conseguinte, pela comunhão de diferentes povos, cuja unidade era o
Rei. A chave mestra para a mudança, então, estava no termo “regeneração”, que implicava a
restauração dos modelos jusnaturalistas baseados na tradição e nos direitos naturais dos
indivíduos e das castas sociais, de influência do Antigo Regime. A razão, com base na origem
medieval, ditava o que era o direito dos povos, os quais teriam seus direitos naturais tomados
pelo despotismo. Desse modo, a Revolução não era uma tentativa de reviver o passado, mas de
atualizá-lo e reconstruí-lo; e o conceito de nação, assim, era sinônimo de Estado-Império, que
dizer, os povos poderiam formá-lo. Contudo, no período das luzes, a nação estava unida ao
Parlamento por meio do qual os povos se representariam.
Sobre o conceito liberal-monárquico de povo e o diálogo com a tradição luso-
brasileira,
Essas academias ilustradas, como o IHGB e seus congêneres europeus do século XIX,
exerceram importantes papéis na produção historiográfica de seus países. O caso brasileiro foi
clássico nesse sentido. Inspirada no Instituto Histórico Geográfico Francês, a monarquia
brasileira criou o IHGB para escrever a História oficial do País em 1838, no momento de
consolidação do Estado Nacional17.
17
O IHGB foi criado com a ajuda da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, cujos espaços foram ocupados
provisoriamente até a instalação na sede oficial, porém manteve seus estatutos administrativos independentes. A
43
instituição, por um lado, teve caráter centralizador e catalizador de documentos e registros históricos e, por outro,
impulsionou a criação de Institutos provinciais para que, além de ser um braço capilar na busca por documentos
históricos, fosse escrita a história regional. Ao longo de sua trajetória, privilegiou a escrita de livros e a coleta de
documentos históricos, contudo manteve estreitas relações com o Instituit Historique de Paris, o que, de certa
forma, forneceu subsídios ao trabalho dos historiadores e deu relevância e legitimidade ao trabalho desenvolvido
no País. Para mais informações, ver Guimarães (1988) e Schwarcz (1993).
44
Portanto devia ser um ponto capital para o historiador reflexivo mostrar como
no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as condições
para o aperfeiçoamento de três raças humanas, que nesse país são colocadas
uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na história antiga.
(MARTlUS, 1845, p. 384).
Nesse sentido, defendia a tese de que o melhor caminho para essas populações era o da
catequese, o da cristianização, para civilizá-los e integrá-los ao que seria a verdadeira nação
brasileira, a de origem europeia e cristã.
Ao mesmo tempo, a questão indígena se tornava capital para o Estado monárquico,
especialmente nas regiões fronteiriças, porque garantiria a presença do Estado Nacional nessas
áreas e seria uma possibilidade de fornecimento de mão de obra para a modernização que o
Brasil atravessava em meados do século XIX. Assim, a cristianização desses povos era
fundamental para aumentar a oferta de trabalhadores.
Se havia possibilidades de “salvação” para os povos originais, a imagem dos principais
inimigos e obstáculos ao progresso brasileiro ficava para os escravos e libertos. No caso, era
melhor investir nos indígenas e dispensar os africanos, vistos como um risco à unidade nacional.
E, em meio a essa problemática, surge a alternativa da imigração estrangeira para o País,
sobretudo para o seu branqueamento.
Em síntese, o projeto de alguns membros do IHGB e da elite política imperial
centralizava os indígenas, colocando-os a seu serviço, assim como a serviço de seu projeto de
País, de Nação e de Estado brasileiro. Por conseguinte, não se incorporava o indígena e sua
cultura à vida social e política. Neste trabalho, acredita-se, então, em uma integração
conservadora e de tutela sobre esses povos, tese já consagrada entre alguns historiadores, como
Sevcenko (1999) e Schwarcz (1993).
A intelectualidade brasileira da segunda metade do século XIX ‒ se é que se pode
chegar a termos genéricos que a integrem que não sejam a cronologia histórica ‒ repensou o
Brasil em bases científicas, numa torrente de ideias, dentre as quais estão as teorias
evolucionistas, as positivistas, as liberais e as republicanas. O conhecimento histórico
acompanhou essa renovação no campo intelectual.
Para Alonso (2002), a expressão “bando de ideias novas” é uma autorrepresentação
cunhada pelos seus próprios contemporâneos. Desse modo, a historiografia consagra a tese de
que essa geração intelectual absorveu a produção científica e intelectual europeia para a
edificação de um sistema filosófico que interpretasse a realidade brasileira. Para a autora, as
classificações em torno dos intelectuais e de suas escolas filosóficas e políticas podem ser
temerárias, porque, na experiência, são verificáveis as classificações superpostas, adjacentes.
Em outros termos, um indivíduo, do ponto de vista intelectual, não se filia apenas a essa ou
àquela escola ou movimento intelectual.
Esse ponto é importante para se compreender a ação política dos intelectuais nas
esferas do Estado ou das instituições. Essas classificações são mais um uso do passado, uma
46
leitura histórica que os estudiosos fazem, do que propriamente a realidade histórica, a priori,
como a autora discute: “se nem mesmo na matriz havia teorias puras e bem delineadas à
disposição, não há razão para tomar as classificações teóricas como critério para leituras das
obras da geração de 1870” (ALONSO, 2002, p. 30). Nesse sentido, refere-se, aqui, a intelectuais
que tinham mais de um campo de atuação e também compunham os quadros políticos.
A justificativa para essas questões resvala na compreensão sobre as produções
intelectuais desses homens, na ausência de instituições que favorecessem o aprofundamento
teórico de seus trabalhos ou mesmo na dedicação exclusiva às atividades intelectuais. Entende-
se isso pelo fato de esses sujeitos serem agentes políticos, parlamentares, atuantes em cargos
públicos no Estado ou polígrafos – que, por não terem compromisso institucional, possuíam
mais liberdade de escolha entre os mais variados assuntos.
18
Ainda que tenham criado o Ministério da Instrução Pública como uma das primeiras medidas do regime
republicano, isso se deveu ao interesse de afastar Benjamin Constant do núcleo central do novo poder que havia
se estabelecido. Para mais informações, conferir Carvalho (1999) e Gondra e Schueler (2008).
48
Nome collectivo, que fe diz da Gente; que vivem em alguma grande região,
ou Reyno, debaixo do mefmo Senhorio. Nifto fe differença nação de povo,
porque nação comprehende muitos povos; & afim Beirões, Minhotos,
Alentejoens, & c. compoem a nação portuguesa; Bávaros, Saxões, Suabos,
Amburguezes, Brandeburguezes, & c. compoem a nação hespanhola. Nações
de extraordinário, & monftruoso feitio de que fazem menção autores antigos,
e modernos. (BLUTEAU, [1712-28], v. 5, p. 658).
49
Embora se destaquem esses dois aspectos, o termo pouco dá pistas sobre o significado
de nação, o que implica um retorno a tal termo, realçando sua diferença em relação a povo.
Mesmo com essa volta, entende-se que, para se compreender o termo nação, é necessário
analisá-lo por intermédio da palavra povo, já que, na contemporaneidade, seu significado, em
grande medida, migrou para nação. Tais análises, aqui, não esgotam a problemática semântica
de nação, termo utilizado pela intelectualidade luso-brasileira dos séculos XVIII e XIX.
O segundo dicionário consultado, o Diccionario da lingua portuguesa, de Antonio de
Moraes e Silva (1813) produziu para o termo nação uma acepção mais próxima da
contemporaneidade: um conjunto de pessoas de um “paiz” que disponham de uma língua e de
leis em comum e sejam subordinadas a um governo. O autor problematiza o significado
utilizando as nações francesa, espanhola e portuguesa e, desse modo, destacando que a
experiência histórica determinou o aprofundamento do termo. O que nos remete as leituras de
Koselleck (1992) apontam.
Entretanto, seu espaço de experiência indica um horizonte de expectativa para a
transformação futura do termo, a qual dissociará nação e Estado. Retorna-se, então, a uma outra
designação: “Gente de Nação; i. e. , descendente de judeos, Christãos novos. § Raça, casta,
espécie. Prestes.” (SILVA, 1813, v. 2, p. 332). Nela, o autor trata dos judeus como uma nação
sem Estado, experiência histórica que direciona a mudança do termo para o sentido
contemporâneo: o de que os sujeitos possuem em comum o passado histórico, a língua, a
religiosidade, a ocupação territorial, a autonomia política ou não, entre outros.
O que vale destacar em ambas as leituras é a necessidade da existência de um Estado
para designar uma nação, o que quer dizer, nas entrelinhas, a capacidade de um povo (nos
termos de Bluteau) se autodeterminar política e militarmente para garantir a soberania sobre si
diante e aos outros povos. Esse argumento banal pode dar pistas para se compreender a História
do Brasil narrada e o tipo de nação que se constituiu no País, da colonização portuguesa até a
independência.
As histórias narradas pelos livros didáticos da segunda metade do século XIX, em
especial as aqui analisadas, são marcadas pelas guerras de conquistas sobre os diferentes povos
que habitavam o litoral brasileiro, pela interiorização da colonização do território, pelos
conflitos contra os espanhóis nas fronteiras da América Portuguesa e pelas lutas contra os
franceses e holandeses (leia-se: os invasores). Por um lado, a inflexão desta leitura, que pode
deslegitimá-la, são as encomiásticas narrativas sobre a presença de Mauricio de Nassau no
nordeste brasileiro, em meados do século XVII. Por outro lado, as narrativas justificam
historicamente a ocupação e o direito daqueles que vieram a configurar a nação brasileira, um
51
império formado por meio da conquista sobre diferentes povos, conquista essa que geraria
novos povos, como baianos, pernambucanos, fluminenses e são paulinos. Contudo, as
narrativas escolares de História do Brasil seguiram o caminho de silenciar as identidades
regionais em nome da unidade nacional, frágil e questionada, especialmente nas três primeiras
décadas após a independência. Desse modo, trata-se da soberania do Estado Imperial Brasileiro;
herdeiro da tradição do Império de Portugal, Brasil e Algarves, decretado em 1815, como a
elevação do Brasil à condição de Reino Unido, não mais como domínio que se estabeleceu
como memória nacional. Mas essas análises das narrativas ficam para outro momento. Por ora,
desenvolve-se como a ideia de nação foi discutida pela intelectualidade brasileira do século
XIX.
No bojo das questões sobre a ideia de nação, a monarquia instituída em 1822 carecia
de construir esse passado, essa memória brasileira. Para tanto, instituições como o IHGB e o
CPII foram capitais no processo de construção dessa memória, dessa história, e da ideia de
nação que dela resultou, pois os intelectuais que refletiram e escreveram sobre a nação
brasileira, durante o século XIX, estiveram ligados a tais instituições. A geração de intelectuais
do Primeiro Reinado e mesmo do início do Segundo Reinado era formada por uma elite
ilustrada que frequentou faculdades brasileiras ou europeias. Além de estar ligada ao CPII ou
ao IHGB, também escreveu em folhetins, hebdomadários, periódicos e jornais. Nesse sentido,
pode-se pensar no papel dos intelectuais nas representações de nação brasileira por eles
produzidas.
Pensar essa questão pelo viés do termo geração, embora não seja a principal análise
nesta tese, pode dar pistas para compreender essas narrativas, porque o referido termo implica
partilha de ambiente cultural, de interesses e questões a serem enfrentados, o que não quer dizer
que uma geração possa ser homogênea. Antes, parte-se da pluralidade das ideias, porque isso
permite compreender a diversidade de uma geração em um determinado tempo histórico.
Assim, o uso da História como representação da nação deve ser analisado, no caso
brasileiro, pela historicização dos intelectuais, porque, ao longo do século XIX e mesmo no
início do século XX, os homens que se dedicaram ao conhecimento histórico, conhecidos como
homens das letras, eram eruditos de saber geral, polígrafos, e formados principalmente, embora
não exclusivamente, nas academias de Direito e Medicina. Gontijo (2008) destaca que se trata
de um mundo intelectual de polígrafos e não de especialistas em História com formação
acadêmica. Desse modo, a História tem o sentido de ação política que pretendia responder a
questões mais pragmáticas sobre o caráter do brasileiro, sobre sua nacionalidade, e, por
conseguinte, interferir nos destinos da nação.
52
19
Vale destacar que existe uma discussão sobre a profissionalização do historiador. Destaca-se, neste trabalho,
quem se dedicava naquele momento ao conhecimento histórico, quando os professores secundaristas tinham papel
proeminente ao lado dos jornalistas, que também eram críticos sobre a produção intelectual que se fazia e se
divulgava nos jornais. Para mais informações, ler Freitas (2008), Haidar (1972) e Fonseca (1993).
20
Não aparece, pelo menos, nos Capítulos da História Colonial (CAPISTRANO, 1906). Durante sua juventude,
o autor até discutia teses racialistas para a compreensão da sociedade brasileira, contudo abandonou tais teses
quando se dedicou a escrever o referido livro.
53
degenerado, mas sim mal alimentado, doente e sem instrução e, por esses motivos, não teria
condições de participar da vida social e política do País. A educação/instrução ganharia um
novo papel na regeneração do povo: se, na segunda metade do século XIX, significava auxiliar
a regeneração biológica da raça, esse novo momento regeneraria o aspecto higiênico-sanitário
como profilaxia dos corpos, os quais, assim, saudáveis, poderiam participar da vida social,
política e produtiva do Brasil. Com essa base fisiológica, a educação/instrução colocaria os
alunos no centro do processo de ensino e aprendizagem, cuja consequência seria a valorização
da cultura nacional, dos costumes, das tradições e do folclore. O movimento da Escola Nova,
por fim, acompanhou as novas leituras sobre o Brasil e sobre o povo brasileiro.
1.3 - Conceitos de Raça: o Caminho para a Conformação de uma Nação com base nas Teorias
Racialistas
Falando em gerações, fe toma fempre em mà parte. Ter Raça (Fem mais nada)
val o mefmo, que ter raça de Mouro, ou judeo. (Procurarfeha, que os
fervidores da mifericordia não tenhão Raça). Raça. Compromiffo da
mifericordia). (BLUTEAU, [1712-28] v. 7, p. 86).
55
Assim, a definição para o termo raça perpassa, necessariamente, pela ideia de povo,
com especial destaque àqueles que não fazem parte do universo cristão. A raça carece de um
compromisso de misericórdia com o irmão de fé, não necessário aos de outra raça, como os
judeus e os mouros. Nesse sentido, o conceito de raça representa, no mínimo, uma identidade
social, para além das diferenças físicas.
Com intuito de se perceber certa teorização sobre o termo, recorreu-se ao mesmo
procedimento metodológico, buscando um dicionário posterior ao citado. Para surpresa, o
dicionário de Silva (1813) não possui o termo raça. Assim, lançou-se mão de um outro
dicionário, o Diccionario da Lingua Brasileira, de Luis Maria Silva Pinto, de 1832. A definição
é enxuta, pura e simples e se divide em dois significados: “S. f. Casta. Abertura de casco da
besta” (PINTO, 1832, s/p). Na leitura desse autor, quando o termo se refere a povos ou nações,
a ideia de raça perpassa necessariamente pela ideia de Casta, isto é, passa por uma linhagem
social determinada e distinta da população como um todo, mais precisamente: “s.f. Geração
antigamente. Raça, fallando de animais e fallando de plantas, etc. espécie” (PINTO, 1832, s/p).
Analisando os dois termos, conjecturam-se duas possibilidades, a primeira delas as
muitas informações produzidas por Koselleck sobre a necessidade de teorização de determinado
conceito para uma história dos conceitos. Nesse sentido, percebe-se que o quadro político
europeu do século XVIII determinou a teorização do conceito de nação e a sua íntima relação
com o termo Estado como, no que se acredita, capacidade de um povo se autoafirmar política
e militarmente diante dos outros povos. Isso significa que uma nação é necessariamente um
reino, composto por diferentes povos, dentro do mesmo território político, e, portanto, a ideia
de agrupamento nacional, de acordo com a língua, a história, a religiosidade e o território, é
resultado do processo político do Ocidente, a partir do século XIX. A segunda possibilidade é
a de que o termo raça não havia se desenvolvido ou não tinha a necessidade histórica de
desenvolver-se teoricamente; assim, nesta tese, a hipótese é a de que o termo só foi
problematizado no limiar do século XIX, quando a questão da raça estava na ordem do dia para
a determinação de uma nação.
Exposto dessa forma, entendendo que o conceito de nação desenhava sua teorização
semântica em direção ao sentido moderno, cabe investigar os sentidos de nação expressos
naqueles livros que deveriam desenvolver a memória coletiva sobre a História do Brasil, ou
melhor, investigar que ideia de memória as elites políticas, econômicas e intelectuais do Brasil
Imperial teriam sobre a História, a civilização e a nação brasileira. Será que o termo nação, nos
manuais escolares de História, carregavam um sentido ligado à sociedade absolutista ou ao
56
Antigo Regime? Afinal, o Brasil independente se ergueu à forma monárquica, ainda que
constitucional e herdeira do absolutismo europeu. Está aí uma interessante chave de leitura.
Até o século XVIII, o termo raça designava a descendência de um ancestral em
comum, uma estirpe, relativa aos laços de parentesco, o que era completamente distinto do
significado que ganharia no desenrolar do século XIX, em especial após a expansão do
imperialismo europeu sobre a África e a Ásia.
Vale destacar a multiplicidade semântica que envolve a “disputa” pelo significado do
termo raça. Hofbauer (2006) destaca que o termo conquistou significados distintos, mas,
inicialmente, não tinha relação com as diferenças fenotípicas entre os seres humanos21. O autor
salienta, ainda, que a semântica do termo está mais vinculada à identidade religiosa, como
cristão, mouro ou judeu. Ser branco, no caso, significava ser cristão, isso por volta do século
XVI.
Já durante a chamada Idade Moderna, o conceito de raça estava vinculado à estirpe
familiar, à descendência. Dizendo de outra forma, tinha a função social de distinguir a origem
das famílias nobiliárquicas das famílias plebeias. Paralelo a isso, o termo também era usado
para distinguir os judeus, conhecidos como raça de David. Com a entrada do século XIX, o
conceito de raça, ainda que polissêmico, ganhou contornos de categoria científica, como
Hofbauer (2006) destacou.
O vínculo entre os fenótipos e o conceito raça, de acordo com Carula (2009), se origina
do século XVII, com a obra Nouvelle division de la terre, par les diferentes espèces ou races
d’hommes qui l’habitent, do médico Charles Bernier, de 1684 cujos trabalhos taxonômicos
combinavam diferenças fenotípicas e ocupações espaciais, bem como traços comportamentais.
Mas somente durante o Iluminismo o termo ganharia maior aprofundamento semântico, na
medida em que as Ciências Naturais passaram a se dedicaram a classificar e a nomear as
espécies, com destaque para a obra Sistema Natural, de Carlos Lineu, de 1735.
Outro autor que se dedicou ao estudo semântico do termo raça foi Kabengele Munanga
(s/d), para quem a origem semântica do termo provinha do latim razza, que designa sorte,
categoria ou espécie. Entretanto, tal conceito variou no espaço e no tempo. Na Europa medieval,
o termo designava descendência, linhagem ou, nos termos dos dicionários observados, estirpe.
A distinção feita por esse autor é importante para esta pesquisa porque se encaixa no sentido
21
Particularmente, nas leituras aqui feitas sobre os dicionários de língua portuguesa dos séculos XVIII e XIX,
comprovam-se as afirmativas do autor, porque os significados variavam desde uma parte do arreio de cavalo até a
diferença entre os povos de um mesmo reino.
57
utilizado pelos autores estudados, quando eles usam o termo raça para designar povo brasileiro.
Ribeiro (1900) raria maior dubiedade entre a acepção de estirpe e a de ordem biológica.
A problemática de Munanga (s/d) é interessante, porque defende de onde viria a ideia
de classificar as espécies:
A questão fundamental destacada por Munanga trata da não distinção racial em si,
aquilo que, ao longo do século XX, a biologia comprovou ser inoperante para a explicação da
diversidade do patrimônio genético da espécie humana. O autor trata da hierarquização das
raças como o direito à conquista ou à escravidão derivada das leituras dessas teses.
ideias não se restringiram ao debate científico, afinal, sob suas premissas, cuja finalidade era
gerar novas nações, mais fortes biologicamente, saudáveis e mais inteligentes, praticou-se a
esterilização em massa de indivíduos vistos como incapazes e improdutivos, tais como
alcóolatras, deficientes e loucos, já que se acreditava na hereditariedade dessas características
às gerações seguintes. Desse modo, a finalidade de tais práticas era a conformação biológica de
uma nação mais forte, sadia, bela e inteligente, formação essa relacionada com a formação
intelectual e moral pela educação.
Outra questão importante para se entender a intelectualidade do período em estudo é a
dos movimentos históricos que daí resultaram. Nesse sentido, um estudo semântico para a
compreensão do termo é importante para se compreender a relação social entre o conceito, as
teses racialistas e a luta ativa dos movimentos de emancipação dos negros e outras minorias
(maiorias) discriminadas ao longo dos séculos.
Por um lado, o racismo pode ser designado como comportamento de ódio ou aversão
contra aqueles que possuem uma fisionomia física distinta. Por outro, o termo racialista designa
um conjunto de ideias que diz respeito às diferenças físicas dos homens e que busca explicar as
desigualdades sociais e os padrões evolutivos das civilizações e dos povos. O florescimento e
o apogeu do racialismo ocorreram entre 1860 e 1945, quando a Segunda Guerra Mundial
praticamente o liquidou.
Tais conceitos tiveram relevância social porque influíram nas práticas políticas no
quartel do século XIX e no início do século XX fundamentados em três supostos. No primeiro,
os homens se diferenciam em grandes grupos raciais, com certa unidade física que lhes confere
caracteres psicológicos e culturais; para alguns, tais diferenças se constituiriam em outras
espécies. No segundo, o comportamento do indivíduo é determinado pelo grupo racial a que
pertence. No terceiro, como as raças são desiguais, seria necessária e aceitável a dominação de
uma raça sobre as outras.
A partir de parâmetros histórico-sociológicos da civilização europeia, estabelecer-se-
ia uma hierarquização entre as raças para que se fundamentassem científica e sociologicamente
as estratégias de dominação imperialista sobre a Ásia e a África. Ademais, as teses racialistas
se transformavam, de certo modo, em um contraponto às ideias políticas de igualdade entre os
homens. Dessa maneira, o conceito de raça para a formulação da representação da nação
consistiu na definição de uma base física sobre quem faria parte do corpo da nação e quem seria
distinto dos demais povos. É na exacerbação da diferença que se fortaleceu o nacionalismo das
primeiras décadas do século XX pelo mundo, portanto. Pode-se inferir, hipoteticamente, que as
teorias racialistas serviram aos diferentes projetos de Estados nacionais e a seus respectivos
60
nacionalismos entre os meados do século XIX e a primeira metade do século XX. A eugenia,
nas primeiras décadas do século XX, também se apresentaria como ferramenta para a
construção das nações do Ocidente22.
Nesse sentido, cabem reflexões sobre o debate a respeito da mestiçagem, porque este
foi tema de debates acalorados entre a intelectualidade brasileira do século XIX, em virtude da
importação dessas teses oriundas da Europa e que hierarquizavam padrões e comportamentos
com base na noção de raça.
No século XIX, muitos cientistas julgavam que a noção de raça era não só
aplicável às sociedades humanas, como também determinante dos
comportamentos e potenciais dos indivíduos; naquele contexto, a mestiçagem
era geralmente encarada como sinônimo de degeneração e inferioridade.
(VIANNA, 2007, p. 21).
Tal leitura provém de uma ressignificação das teorias evolucionistas das espécies
transpostas para a espécie humana: o cruzamento entre os diferentes fenótipos resultaria em
indivíduos degenerados biológica e comportamentalmente. Não raro, estudiosos da biologia,
como Paul Broca enunciavam que o mestiço era semelhante a uma mula, porque era infértil. Já
os deterministas, como Conde de Gobienau, E. Renan e H. Taine, assinalavam o oposto: a
fertilidade dos mestiços era responsável pela transmissão dos caracteres negativos de cada raça
aos seus descendentes.
De acordo com os estudos de Carula (2009), as teses de Darwin repercutiram nos
jornais, no IHGB e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, naturalmente. Os chamados
homens de ciência também se debruçaram sobre a origem do ser humano ‒ a monogenia ou a
22
A eugenia está ligada à ciência da hereditariedade do século XIX, especialmente do último quartel. Tal ciência
enunciava que a vida social de um povo, de uma nação, era resultado de sua base biológica e genética ou, para
usar o termo de época, de seu plasma germinativo. Assim, a ciência moderna criava um modelo explicativo para
as realidades sociais e culturais por meio de teses evolucionistas da espécie humana. Dessa maneira, a eugenia foi
o embasamento científico para inúmeras práticas políticas em diferentes regiões do mundo ocidental, ou melhor,
em quase todas as partes: nos Estados Unidos, na América Latina e na Europa. Stepan (2005) investigou como a
eugenia criou diferentes concepções e práticas pelo mundo no início do século XX. Embora pudessem
ressignificar-se, segundo as circunstâncias, possuíam o traço comum de terem a finalidade de controlar/transformar
a hereditariedade das novas gerações, formadoras das nações. O termo eugenia, polissêmico que é, vem do grego
eugen-s, bem nascido. No campo científico, é a aplicação de conhecimentos para o aprimoramento biológico da
espécie humana por meio de intervenções sobre o processo de hereditariedade, prática que ganhava dois
significados: do ponto de vista político, significa a ideia de se constituir uma raça nacional pura, destituída de
vícios ou defeitos que pudessem comprometer o desenvolvimento social e econômico de uma nação, atravessada
uma seleção social e biológica sobre quem deveria se reproduzir e quem deveria ser esterilizado; do ponto de vista
biológico, significa controlar biologicamente a conformação de uma nação em seus aspectos fenotípicos. Desse
modo, para os cientistas e para os intelectuais, a ciência poderia ser um artífice na construção física de uma nação
e, nesse sentido, campos do conhecimento como a antropologia, a antropometria e a craniologia poderiam
estabelecer chaves de leitura e transformação concreta sobre os problemas nacionais. Para mais informações,
conferir Stepan (2005), Diwan (2011) e Santos e Maio (2010).
61
poligenia ‒ e sobre a teoria de Darwin. A autora concluiu que os intelectuais e os médicos que
buscaram comprovar empiricamente as teses do naturalista inglês e que promoveram
conferências em torno da questão da raça e das origens da espécie humana tiveram diferentes
opiniões sobre as teorias de Darwin. Nesse processo, o tema ganhou significados próprios entre
os intelectuais, cujas análises não se limitaram à vida animal e vegetal, mas sim avançaram para
a transposição dos conceitos evolucionistas às análises sociais das civilizações humanas. A
intepretação desses médicos e intelectuais variava desde a aceitação da teoria criacionista até
as teorias monogenistas e poligenistas.
Num contexto histórico que definia as nações de acordo com a estirpe, com a raça e
com a história, ter uma nação mestiça ou majoritariamente negra era o grande desafio para a
intelectualidade que se dedicava ao tema. Outra questão até mais central para o Estado Imperial
e, posteriormente, para o Republicano era: essas populações eram capazes de ingressar na
ordem liberal e modernizante que os tempos da Belle Èpoque exigiam?
O médico e diretor da Faculdade de Medicina da Bahia, Nina Rodrigues, era um dos
adeptos das teses degenerativas a respeito dos negros e dos mestiços que se dedicou a vários
estudos buscando comprovar essas teses. Para esse médico, os negros tinham características
inatas de resistência ao progresso, ao passo que os mestiços possuíam degeneração psíquica, o
que era uma ameaça à ordem social e econômica do País (SCHWARCZ, 1993; VIANNA,
2007). Desse modo, contestava a miscigenação como futuro para a nação, o que seria um
caminho nocivo aos atributos da raça superior branca. Nina Rodrigues seria uma das expressões
de pensamento social sobre a nacionalidade brasileira que reforçavam, com base no racialismo,
a ideologia racista presente na sociedade brasileira ao longo dos séculos.
Vianna (2007) destaca que os debates se desenrolavam entre intelectuais como Sílvio
Romero, que, embora creditasse a inferioridade às populações africanas, indígenas e, mesmo,
mestiças, via na mestiçagem a possibilidade de vitória do homem branco na formação da raça
nacional, porque não existia, no Brasil, um tipo racial acabado e próprio, como nas nações
europeias. O tipo nacional estava em formação. Isto significava ser possível interferir no
processo, porque as raças negras e mestiças tinham alta mortalidade e baixo crescimento
vegetativo. Esse fator combinado à massa de imigrantes oriundos da Europa favoreceria o
branqueamento da população, tornando-a, portanto, um tipo superior física e culturalmente.
Acrescenta-se, conforme apresentado por Rodrigues (2011), que não se trata apenas
da miscigenação, mas sim da boa mestiçagem com o homem branco europeu, pois essas massas
de imigrantes deveriam ser espalhadas por todo o território brasileiro, de modo a uniformizar a
62
Esse contexto dá pistas sobre como interpretar a questão nacional e sobre quais eram
as correntes de pensamento que norteavam as sínteses históricas sobre o Brasil. Para Costa
(2006), a teoria social que se constituiu no País entre o último quartel do século XIX e os
primeiros decênios do século XX se baseou na raça como constructo da nacionalidade. Segue-
se, aqui, a mesma direção, embora o racialismo não fosse a corrente predominante.
De acordo com Costa (2006), as ideias de Romero podem ser explicadas pela
renovação do campo intelectual. Por exemplo, a chamada Escola de Recife foi um desses
centros de renovação, com Tobias Barreto e o próprio Sílvio Romero. As teses desse grupo,
fundamentadas nas novas perspectivas que a Ciência e a Filosofia abriram naquele momento,
nas ideias racionalistas e científicas de leitura da realidade e na formulação da jurisprudência,
63
Casa Grande e Senzala, de G. Freyre (1963) romperia com essas leituras deterministas
e biológicas sobre o caráter e a história brasileira, com destaque para os aspectos culturais e
para a amplificação das contribuições africanas para a vida nacional, bem como para a visão
sobre o mestiço como tipo ideal da nacionalidade brasileira, especialmente por se tratar de um
país tropical. A mestiçagem é problematizada nas figuras do mulato e da mulata e em seus
papéis na sociedade patriarcal brasileira.
1.4 - Entre Notas Historiográficas e o Estado da Arte sobre as Narrativas Escolares de História
do Brasil
Diante dessas discussões, a História dos Conceitos é sim uma ferramenta metodológica
relevante para a análise do objeto em estudo: os manuais escolares. Nesse bojo, acrescentam-
se as discussões semânticas e historiográficas a respeito da questão da nacionalidade e a
importância da raça para a ideia de nação e de nacionalismos do final do século XIX. Assim,
com base nessas contribuições metodológicas, para avançar na análise sobre os manuais
escolares, cabe tanto refletir sobre como se consolidaram os livros didáticos nas práticas
pedagógicas, quanto destacar alguns aspectos da história desses manuais no Brasil, desde o
início do século XIX.
64
23
Além de promoverem práticas pedagógicas, os manuais escolares deveriam seguir os programas de ensino que
se modificaram ao longo das reformas educacionais do século XIX. A capacidade de seguir os programas de ensino
garantia a venda do manual para o Estado, que o distribuiria na rede escolar, e garantia também a venda do produto
para a rede privada, visto que o manual estava em consonância com os programas de ensino exigidos nos diferentes
exames para o ingresso nos cursos superiores, como os exames preparatórios e de madureza.
24
Para mais informações, conferir Bittencourt (2008), Schueler e Gondra (2008) e Gasparello (2004).
65
classe que ingressaria mais tarde na política ou mesmo, como funcionário público, ingressaria
no aparato burocrático do Estado.
No ensino secundário, em 1837, a História se consolidou como disciplina obrigatória
no Colégio Pedro II e mediante decretos-leis, manteve-se nos programas curriculares ao longo
do século XIX. Como a Igreja Católica tinha forte influência nos caminhos que a educação
tomava durante esse mesmo século, os decretos-leis dos anos de 1850 privilegiaram tanto o
ensino religioso, nos programas de ensino e as iniciativas particulares do setor privado e de
caráter confessional25. Ademais, a cultura clássica e humanista mantinha forte influência sobre
a consecução dos programas oficiais desse Colégio.
No limiar do século XIX e início do século XX, rapidamente, foram criadas mais
instituições de ensino, como os Grupos Escolares e as Escolas Normais. Com a chamada
montagem do moderno Estado brasileiro, durante os anos de 1930, a posição e o uso do livro
didático nas práticas pedagógicas e escolares, ao receberem amplo apoio das políticas
governamentais, foram fortalecidos.
No Brasil, a História do livro didático remonta às primeiras décadas de sua
independência em relação aos primeiros manuais utilizados no País, como o Resumo de História
do Brasil, traduzido por Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde (1831), e o Compêndio de
História do Brasil, autoria de Abreu e Lima (1841).
O resumo de Bellegarde foi uma tradução e, em boa medida, uma reelaboração da obra
Resumé de l’histoire du Brésil, de Fernand Denis, que abarcava a história brasileira até o ano
de 1828. De acordo com Centeno e Alves (2009, p. 472), a tradução de Bellegarde, que não
tinha pretensão escolar, continha correções/inserções do tradutor e referências a autores como
D. de Goez, Rocha Pita, Madre de Deos, Ayres do Cazal e Lery e Robert Southey. Mediante
anuência de Antonio Carlos de Andrada, o manual foi utilizado no recém-inaugurado Colégio
Pedro II, embora, de acordo com Gasparello (2002), já fosse utilizado no município da Corte
desde 1834 para estudos escolares. Nesse sentido, o resumo foi o primeiro que serviu para o
ensino de História do Brasil nas escolas primárias da Corte e no ensino secundário oficial do
Imperial Colégio de Pedro II.
A narrativa de Bellegarde é composta por episódios históricos, sem maiores
problematizações, com enaltecimento do espírito patriótico e romântico em oposição ao
colonizador português. Tais linhas mestras são enunciadas como historiografia patriótica, sem
o peso da história imperial e do IHGB como regulador da história oficial do Brasil, como seria
25
Para mais detalhes, ler o decreto-lei n° 1331, de 1854, conhecido como A Reforma Couto Ferraz. Também vale
a pena ler Martinez (1997) e Rocha (2010, 2011).
66
brasileira em diferentes obras, justificando o título de compêndio26, que, além de ser dedicado
à mocidade brasileira, traçava um plano sobre o modo como deveria seguir a escrita da História
do Brasil. Em suma, essa narrativa continha uma ideia historiográfica e didática.
De acordo com Mattos (2007a), a nacionalidade presente no compêndio de Abreu e
Lima é herdeira da ideia de Império do Brasil, composto por um vasto território e dotado de
história, experiências e valores em comum. A independência política traria consigo a integração
desse vasto território, formado por identidades regionais, e criaria uma unidade fundamentada
na soma de todas as unidades e na herança europeia, a qual construiria o Brasil como uma nação
civilizada.
Mattos (2007a) ainda resgata o significado da palavra brasileiro em distintos
momentos da história narrada por Abreu e Lima. Em um primeiro momento, brasileiro
significava traficante de pau-brasil ou do brasileiro trabalhador de sua extração. São os
brasileiros-pernambucanos, os brasileiros-baianos e outros, que resultam da ocupação
portuguesa. Em um segundo momento, são os portugueses-brasileiros que resultam de
portugueses-europeus, isto é, o termo havia se tornado um adjetivo pátrio. A nação, então,
construiu-se por essas identidades regionais dentro um grande império. Daí a noção da nação
brasileira ser herdeira do vasto território chamado de Império do Brasil.
Para o general, cada povo, segundo as tradições, era dotado de aptidões, as chamadas
“índoles históricas e psicológicas”27. Se, para a independência venezuelana, Abreu e Lima
defendeu a república; para o Brasil, defendeu a monarquia como melhor caminho para a
emancipação política do País, defesa também feita por Joaquim Macedo, Luís de Queirós
Mattoso Maia e João Ribeiro, autores de manuais escolares de História do Brasil no século XIX.
Para João Ribeiro, que era um exemplo do momento republicano, o caminho da monarquia,
mais afeito às índoles do povo, manteria a unidade política deste vasto território de origem
colonial.
A reflexão de Abreu e Lima partia do pressuposto de que o Brasil colonial não
produziu uma cultura solidificada em colégios e universidades capaz de criar um povo culto e
instruído, nem capaz, por conseguinte, de estabelecer aqui um regime republicano. Abreu e
Lima sustentava que, no Brasil, não havia liberdade civil, por se tratar de uma sociedade
dividida em livres e escravos e, depois, em livres e libertos, e por se tratar de uma república
com direitos políticos limitados, os quais não englobariam toda a sociedade civil.
26
Os compêndios são uma reunião de diferentes textos já publicados, compilados e reunidos em uma nova obra.
27
O uso desses termos era recorrente entre a intelectualidade brasileira que se dedicava a pensar as questões
políticas. É o que se chamaria, hoje, de naturalização dos comportamentos e das hierarquias sociais.
68
28
Semelhante ao encontrado entre os dicionários analisados: o de Moraes Silva (1813) e o de Bluteau (entre 1712
e 1728).
29
É o caso de A História do Brasil, de João Riberio (1900), e das Lições de História do Brasil (1880), de Luis
Queirós Mattoso Maia, o qual tem o mesmo caráter cientificista, embora sem a riqueza e as renovações que João
Ribeiro faria 20 anos mais tarde.
69
didática genuinamente nacional. O autor foi médico, poeta, romancista e historiador e, nessa
última condição, integrou os quadros do IHGB. Exerceu a função de professor de “Historia e
Chorographia patria do antigo Collegio de Pedro II”, na qual foi entronizado em 1849. O
exercício do magistério motivou Macedo a elaborar dois manuais didáticos direcionados ao
conhecimento do Brasil, ambos recomendados como fontes nos programas. (ALVES;
CENTENO, 2009, p. 473). Dizendo de outro modo, a obra surgiu das demandas dos programas
de ensino e de suas apostilas de sala de aula e tornou-se pioneira na finalidade exclusiva de
ensino, elaborada por um professor de História em exercício, que foi autor, também, de Noções
de Chorografia do Brasil (1873).
Tal manual foi amplamente explorado pela historiografia da História do Ensino de
História. Foi fonte de comparação com o principal manual do período republicano, a História
do Brasil, de João Ribeiro, por Melo (2008), para o qual a obra representou a estabilidade e a
centralidade do período monárquico, destinada à educação do súdito imperial. Ao direcionar
sua obra à educação do súdito, de acordo com Melo (2008), Macedo construiu uma narrativa
dos feitos heroicos das casas reais que governaram o império português. Assim, defendeu
medidas, a exemplo da expulsão dos jesuítas, como positivas e tratou das rebeliões e das ideias
republicanas como movimentos ilegais, tratadas do ponto de vista da lei e não da justiça moral.
A escravidão foi, então, silenciada.
Não se distanciando da formulação de Melo (2008), Gasparello (2004) defende que tal
obra sedimenta o peso de uma história imperial sob os auspícios do IHGB e da História Geral
do Brasil, de Varnhagen, e representa, ainda, a condição de autores/professores, porque os
livros foram escritos por professores que exerciam o magistério, como Luis Queiros Mattoso
Maia, também professor do Colégio Pedro II e autor de livro didático.
Homônimo do anterior e também escrito com finalidade didática, o Lições de Historia
do Brazil, de 1880, foi outro manual da área utilizado no Colégio Pedro II. Seu autor, Luis de
Queirós Mattoso Maia, foi “professor cathedratico” de “Historia Geral” a partir de 1879, ano
de sua posse. Anteriormente, formou-se em medicina e atuou como cirurgião de guerra na
Guerra do Paraguai. Em 1882, o seu Lições de História passou a integrar uma das referências
dos programas de ensino, utilizado até o final do século XIX, nos programas de 1892, 1893,
1895 e 1898 (VECHIA; LORENZ apud ALVES; CENTENO, 2009, p. 473). Como professor
de História do internato e autor de livro destinado ao público escolar, Mattoso seguiu o caminho
de Macedo.
Para Gasparello (2004), a obra tem o sentido de uma história imperial que consolida
as posições de Macedo e Varnhagen. A opção pela independência monárquica era melhor e
70
adequada às tradições e às índoles do povo brasileiro, resultado de sua evolução política, social
e econômica. Assim, a nação imperial “é gerada por uma pátria mãe branca e construída pelos
seus descendentes – os colonos – que, nessa construção necessitaram exercer a sua
superioridade de raça e civilização” (GASPARELLO, 2004, p. 197).
A obra de Mattoso Maia pode ser analisada, por conseguinte, com base nas diferenças
em relação à de Macedo, as quais, aqui, são relevantes. Embora tenha o sentido de formação de
súditos, estes têm, para Mattoso um significado diferente, já que o autor não silencia a
escravidão e projeta a princesa Isabel como uma heroína do abolicionismo. Então, para esta
tese, trata-se de um súdito do terceiro reinado, atualizado com as mudanças, mas fortemente
ligado ao passado dinástico.
A obra de Mattoso Maia foi pouco explorada pela historiografia. Por essa razão,
levantam-se novos questionamentos e olhares sobre a obra, além de se observar certo
distanciamento em relação à obra de Macedo e maior aproximação com a narrativa formulada
por João Ribeiro, em sua História do Brasil, de 1900, o que traz outra possibilidade de
compreensão sobre a historiografia didática do Oitocentos.
Ao contrário da obra de Mattoso Maia, a História do Brasil, de João Ribeiro, foi
densamente explorada pela historiografia, especialmente a de Ensino de História. Para
Gasparello (2004), a obra marcou o momento de fortalecimento do campo historiográfico pela
renovação dos estudos históricos que eram feitos no País. Assim, o ensino refletiu essas
mudanças com as contribuições de João Capistrano de Abreu e do próprio João Ribeiro, ambos
de um grupo de intelectuais que fazia parte do Colégio Pedro II, como Max Fleiuss, Sílvio
Romero e Tristão de Araripe Jr. De acordo com a autora,
A nação dos compêndios é uma nação em processo, que ganha novas cores à
medida que as representações sobre a identidade nacional passaram a
incorporar novos elementos que anteriormente eram indesejáveis e até mesmo
impensáveis para fazer parte do povo. (GASPARELLO, 2004, p. 208).
raciais e não as confundir com o racismo e o preconceito em si e com as lutas por igualdade,
próprias do século XX.
Como contraponto, Moraes (2010) estabeleceu uma comparação com a obra didática
Noções de História do Brasil, publicada em 1918, de Osório Duque-Estrada. Para o autor do
hino nacional, a abolição foi resultado de uma vitória popular das ruas e não uma adesão dos
fazendeiros ou do parlamento. Tal comparação destaca questões sobre como diferentes usos do
passado são utilizados e construídos e como disputam o espaço na memória coletiva da
sociedade. O uso do passado por determinados sujeitos sociais é uma questão importante para
os estudos exegéticos porque revelam as intencionalidades e os diferentes significados
históricos atribuídos aos mesmos episódios tidos como cânones da História tradicional do País.
Mediante comparação, é possível situá-los no tempo histórico objetivo, porque se revelam as
matrizes de pensamento que compõem a obra.
Dentre as muitas possibilidades de se estudar o ensino de História, escolheram-se as
pesquisas que se dedicaram ao estudo das narrativas escolares, porque trouxeram chaves de
leitura sobre as fontes que debatiam e disputavam o que seria ou o que era a nação brasileira.
74
também às funções econômicas que a cidade exercia nessa parte da América Portuguesa: o Rio
de Janeiro era o centro administrativo gerador de grandes demandas de consumo e bens de
serviço e era sede de bancos, de diferentes oportunidades de negócios e de outras oportunidades
para a população livre e pobre da colônia. Paralelamente a esse processo, a política joanina se
encarregou de construir estradas que ligavam à capital as regiões econômicas próximas para
melhor abastecê-la. Isso criou maior integração entre o centro sul, porque a cidade era
abastecida por diferentes regiões: o Rio da Prata, as cidades de Lisboa e Porto e as Províncias
de São Paulo e Minas ‒ uma cadeia econômica em torno da nova capital do Império.
Nesse eixo econômico, destacou-se a conformação das oligarquias proprietárias rurais
que atingiram tal ponto de poder e de fortuna e se miscigenaram com as diferentes elites
metropolitanas. Se, por um lado, a dinâmica econômica colonial se desenvolveu com a presença
da Corte no Rio de Janeiro; por outro, criou aqui fatores favoráveis à supremacia dos interesses
das oligarquias fluminenses e coloniais, especialmente com a Revolução liberal do Porto, de
1820, quando as medidas recolonizadoras que atingiriam os privilégios e os monopólios desses
setores da economia colonial foram colocadas em xeque. Despertavam ali os interesses da
emancipação política e/ou a conservação de interesses, privilégios e monopólios já
estabelecidos na América Portuguesa.
Se a luta por igualdade política e jurídica entre as Cortes do Brasil e de Portugal se
tornava cada vez mais antagônica, o caminho para a emancipação se tornava a segunda
alternativa. Isso levava a uma outra questão: o Estado e a nação. Surgia a necessidade de se
construir esse Estado e de forjar uma classe senhorial não apenas ligada aos negócios, mas à
ampliação de sua influência sobre a alta burocracia imperial. Nesta, cafeicultores, comerciantes
e financistas se confundiam por meio das alianças, dos contratos e dos casamentos que
formaram fortunas, se refizeram e/ou se expandiram para diferentes atividades econômicas.
Nesse quadro, originou-se o Estado Imperial brasileiro. O que, afinal, legitima a
existência de um Estado? A soberania de sua nação. No entanto, o problema é compreender o
que era a nação brasileira, especialmente para a elite política e intelectual que conformou esse
Estado por meio da atuação de instituições do aparelho administrativo. Já que somente a
independência não seria capaz de sustentar o Estado criado, foram necessárias décadas para a
consolidação tanto do regime imperial como do próprio Estado brasileiro.
Mattos (1987) compreende o chamado golpe da maioridade não como um
acontecimento em si e de suma importância. A maioridade foi um catalisador de acontecimentos
desconexos entre si que inaugurou uma espécie de novo tempo em relação ao seu passado,
sobretudo o recente. Paradoxalmente, representou a continuidade: a “recunhagem” da moeda
76
colonial (os monopólios), por um lado, e a necessidade de maior coesão política entre as
oligarquias, por outro.
Dom Pedro I e Dom Pedro II foram nomeados imperadores, ou seja, tornaram-se
senhores das terras conquistadas. Dizendo de outro modo, a América portuguesa não era vista
como uma unidade porque incorporava todas as províncias à autoridade e às leis do Império do
Brasil. Era a unidade sobre a regionalidade. Fundamentada nesse paradigma, a elite do império
refletia sobre a ideia de nação.
A nação foi construída mediante a dissociação entre cidadania e nacionalidade.
Cidadania, no caso, definia a constituição da vida política do Império: o cidadão era homem
livre, brasileiro e estabelecesse domicílio no País. Com essa delimitação, enxergava-se o Brasil
como a obra continuadora da civilização europeia. Entretanto, o escravo, que não era
considerado cidadão, mantinha-se como uma das mais valiosas riquezas, a propriedade, a mão
de obra, um dos monopólios e pilares da vida social e econômica do Brasil.
Ademais, algumas figuras, como José Bonifácio de Andrada, entendiam a questão da
nação como fundamental para a constituição e a preservação do Império. Para Andrada, o
Império não era mais do que uma circunscrição territorial, pois as nações revolucionárias eram
unas e indivisas, isto é, possuíam coesão contra as ameaças internas e externas. Para o Império
do Brasil, tais questões eram capitais em face das sedições regionais, como a questão platina.
que dois partidos, existiu entre eles uma relação de dominação dos conservadores – vencedores
‒ sobre os liberais.
Mattos (1987) entende a relação das oligarquias que compunham o governo imperial
com o Estado numa relação dialética. Isto significa dizer que o “governo da casa” e o “governo
do Estado” não se opõem, mas, antes, a pertença ao mundo do governo estabelece uma relação
de igualdade entre os senhores. Trata-se de um conceito de liberdade da antiguidade em que a
liberdade e a propriedade são as principais características dos partícipes do processo político
do Estado. Entre os liberais, (embora pudesse existir os exaltados ou republicanos) defendiam
certa participação política de outros atores, ainda que com limites; assim lutaram para que
prevalecesse esse conceito de liberdade, embora tenha prevalecido o conceito antigo de
liberdade política, essa discussão não era tola porque implicava a inserção do povo livre e
desapropriado às questões políticas.
Carvalho (1999) também defende que o sentido do conceito de liberdade aqui
instituído era dos antigos. Esse autor argumenta que o Brasil independente teve inspirações
externas, como o constitucionalismo inglês, para a organização política do Estado brasileiro e,
como as inspirações portuguesas e as francesas, para o modelo político-administrativo do País,
porque a tradição centralizadora brasileira se aproximava destes dois últimos. Contudo, a
organização da justiça e, mesmo, certa descentralização provincial foram inspiradas nos
modelos anglo-americanos.
O início do Segundo Reinado se caracterizou pelo predomínio dos conservadores
(1836-1852), os quais, junto aos Liberais, imprimiram sentidos diferentes àquilo que
compreendiam como nação brasileira e aos que faziam parte dessa comunidade social e política.
Os conservadores viam as ideias liberais como uma ameaça à ordem, porque, para eles, em
razão da “desorganização” e da “anarquia” desse sistema, não havia controle sobre os níveis de
liberdades individuais e de participação política. Os liberais defendiam a supremacia e a
soberania do parlamento sobre o executivo ‒ o parlamento representaria a soberania nacional,
ao qual os reis deveriam se sujeitar respeitosamente, pois é a autoridade da nação que legitima
a autoridade do soberano, do monarca. Os conservadores, em sua restauração em 1842,
traçaram um sentido contrário: é o soberano quem antecede a nação, é ele quem se torna um
árbitro das disputas particulares, ordena o corpo político e social e impede a anarquia. Daí a
importância de um poder como o Moderador. Mattos (1987) destaca que os diferentes conceitos
de liberdade, especialmente os dos liberais, não podem ser confundidos com a igualdade, pois
não significam a incorporação do que se chama hoje de povo ou a plebe. Trata-se de uma
liberdade marcada pela dissociação da sociedade política e da sociedade civil.
80
Com referências de autores como Thomas Hobbes (2014) e Jeremy Bentham (2000)30,
os conservadores naturalizaram as diferenças entre os homens, bem como os hierarquizaram,
segundo sua liberdade, sua riqueza e sua responsabilidade sobre as coisas do Estado. Assim,
sob a direção Saquarema, a natureza da monarquia brasileira era a de que o Rei reina, governa
e administra de acordo com a circunstância do País e de suas especificidades. A felicidade da
sociedade é entendida pela preservação dos monopólios e privilégios de determinados atores
sociais, os quais, segundo essa visão, promoveriam a riqueza do País. Ao imperador, caberia a
manutenção da paz e a liberdade dessa prosperidade econômica e, naturalmente, ao Estado,
caberia seguir os interesses desse segmento social e econômico.
A circunstância histórica do Brasil impunha aos conservadores a necessidade de,
segundo sua ótica, construir a nação. Esta é uma leitura histórica de seu povo e de sua cultura
que justificou os diferentes mecanismos de controle, de tutela e de exclusão da população da
participação da vida política e da garantia de direitos individuais. Tais mecanismos são
definidos por Rocha (2002) como insuficiência cívica, isto é, uma leitura de que o povo – as
camadas populares – não possuía a capacidade de se governar, o que justificaria a necessidade
de uma classe dirigente conduzi-lo e tutelá-lo.
Mattos (1987) insiste na questão de distinguir os Luzias dos Saquaremas, porque essa
diferenciação permite compreender os caminhos que o Império tomou durante o Segundo
Reinado, após a restauração conservadora de 1842 e o fracasso dos liberais em manterem sua
diretriz política e econômica sobre o Império. Os Saquaremas viam no projeto liberal, de maior
autonomia provincial, a grande ameaça à unidade territorial e política construída pela
monarquia, a exemplo, sobretudo, do fracasso dos liberais em contingenciar os conflitos
nativistas/regionais durante o período regencial. “Os saquaremas, para exercerem uma
autoridade, isto é, para estar no governo do Estado, devem estar no governo da Casa. E,
efetivamente, o conseguiram” (MATTOS, 1987, p. 156). Dizer que se está no governo do
Estado significa possuir o poder e a capacidade de estabelecer uma diretriz política e executá-
la enquanto governo. Os Saquaremas:
30
Para saber mais, ver O Panóptico (BENTHAM, 2000) e O Leviatã (HOBBES, 2014).
81
fazendo cada qual um elemento qualificado, em seu respectivo lugar, para uma
direção e uma organização que estão pressupostos no desenvolvimento de uma
sociedade que faz parte do conjunto das “nações civilizadas”. (MATTOS,
1987, p. 156-157).
Para Mattos (1987), entretanto, os liberais não foram capazes de construir uma ideia
de dimensão pública mais sólida porque, ao privilegiarem o governo da Casa, e não o do Estado,
portavam-se como déspotas. E à medida que não tinham um consenso sobre quem
poderia/deveria participar da vida política, entravam em contradição, já que essa ideia interferia
na sua posição de dominação social e econômica e no seu raio de ação ‒ o que explica a leitura
de grande parte da historiografia a respeito dos partidos políticos do Império. Os liberais
também não conseguiram se organizar nacionalmente: por exemplo, os interesses dos gaúchos
não tinham eco entre os liberais pernambucanos ou paulistas e, quando tinham, não se faziam
valer, o que culminou em diferentes rebeliões regionais contra o poder central da Regência e
no início do Segundo Reinado.
Ilustração, credibilidade, força e riqueza eram os atributos dos conservadores
Saquaremas, que não apenas apontaram uma direção para o Império, mas também fundiram os
interesses dos antigos monopolizadores “abençoados” pela Coroa. Os monopólios fundaram a
classe senhorial, monopólio que incluía o tráfico de escravos.
Ambos os partidos favoreceram o desenvolvimento de um Império dividido em três
mundos, marcado pela ocupação de diferentes atores sociais, segundo hierarquias e cor de
nascimento. As raças, como dizia Francisco de Paula de Rezende31, nunca se confundiam, antes
cada raça e cada uma das classes sabia sua posição na sociedade. Assim, esses critérios definiam
quem era a flor da sociedade e quem era a escória da população: “[...] três seguintes classes: a
dos brancos, sobretudo daqueles que por sua posição constituíam o que se chama de boa
sociedade; a do povo mais ou menos miúdo; e finalmente a dos escravos” (REZENDE, 1944,
apud MATTOS, 1987, p. 113). Em outros termos, o Império era formado por três mundos
distintos, cujos sujeitos sabiam qual espaço ocupavam, destacadas suas diferenças sociais e
econômicas. Prevalecia, portanto, o espírito aristocrático dessas elites sobre a sociedade em
geral.
Assim, o liberalismo tinha dupla função e importância: constituía e mantinha a classe
senhorial e construía o Estado Imperial. Nesse sentido, Luzias e Saquaremas estavam do mesmo
lado na busca por preservar os velhos monopólios e construir um Estado capaz de viabilizar
31
Memorialista utilizado por Ilmar Mattos como a síntese da sociedade criada durante o Império Brasileiro. Para
saber mais, consultar Tempo Saquarema (MATTOS, 1987).
82
essa organização política e econômica. Desse modo, as ideias de liberdade e propriedade foram
capitais para as matrizes de pensamento político de ambos os partidos.
As populações pobres, cativas e libertas pertenciam ao mundo da desordem, porque
promoviam diferentes formas de resistência, afinal a cidadania e o acesso à riqueza lhes eram
vedados. Quilombos, matanças e assaltos a engenhos e propriedades alimentavam esse
imaginário da “boa sociedade” sobre o povo pobre e miúdo:
Os textos dos incisos II, III, IV e V, por si só, explicam essa questão. Contudo, cabem
considerações sobre o primeiro inciso: são considerados cidadãos brasileiros os indivíduos
nascidos no Brasil, quer sejam “ingênuos”, isto é, filhos de escrava e livre32, quer sejam libertos.
32
Para mais informações, ler Mattoso (1991).
85
Nele, destaca-se que a nacionalidade estrangeira só se mantém se o pai estiver a serviço de sua
nação.
Interpretando o conceito de cidadão brasileiro e quem poderia frequentar as escolas
primárias e secundárias e os cursos superiores, estabelece-se somente que os cidadãos poderiam
frequentar as escolas primárias, entretanto não se define o acesso de acordo com a cor. Aos
cativos, implicitamente, o texto constitucional vedava o acesso.
De acordo com Gondra e Schueler (2008), com base nas produções de História da
Educação, foi possível buscar um olhar para além das divisões históricas político-
administrativas. Esses autores propõem uma ruptura historiográfica com as leituras clássicas
que a História da Educação Brasileira fazia sobre os insucessos escolares e o pioneirismo
republicano. Dessa forma, a educação é compreendida como uma prática social que existe no
meio social e familiar e no desenvolvimento de outras habilidades de leitura e escrita escolar.
Nessa perspectiva, o Oitocentos é compreendido pela nova historiografia como dotado de
sentidos próprios de seu tempo, de concepções de Estado e de organização administrativa. Isso
significa romper com a historiografia republicana que entendia a política imperial para a
educação como vazia. Nesse sentido, toda a efervescência política vivida no período pós-
independência colocaria em xeque a unidade política. Por essa razão, a questão nacional estava
posta na ordem do dia e, como consequência, a política era a arena de diferentes projetos de
nação, de concepções de ser brasileiro.
O Brasil é entendido como uma invenção política pelas instituições monárquicas, as
quais foram criadas para gestar e civilizar aquilo que deveria ser a nação brasileira. Tal projeto
está presente ao longo de todo o período monárquico e pode ser percebido pelo deslocamento
semântico do termo brasileiro, como apontado a seguir:
33
Para mais informações, ler Escravidão e cidadania no Brasil monárquico (MATTOS, 2000).
87
Depois da primeira Constituição outorgada, a primeira lei aprovada por uma legislatura
foi a de 15 de outubro de 1827. O documento versa sobre as ordens de se construírem escolas
primárias para o sexo masculino por todo o Império, pelo menos entre as cidades, as vilas e os
lugares mais populosos. Para as meninas, seriam construídas escolas quando, segundo seu
artigo 11, “os Presidentes em Conselho julgarem necessário este estabelecimento” (BRASIL,
1827). Dizendo de outro modo, as escolas para os meninos eram a prioridade.
Essa lei orientava que o Presidente de cada Província deveria determinar quais escolas
seriam construídas e onde se localizariam, de acordo com as necessidades. Inclusive, permitia
a extinção de escolas em locais mais afastados para que fossem transferidas para localidades
mais populosas.
O sexto artigo da referida lei estabelecia o programa de ensino a ser desenvolvido nas
escolas primárias:
34
Para saber mais, consultar o livro Ensino de História: fundamentos e métodos, de Bittencourt (2008). Segundo
o autor, a História Profana e a Sagrada tiveram destaque na conformação da Disciplina de História na cultura
escolar.
88
estatais, mas organizadas pela livre iniciativa de cidadãos de pequenos vilarejos cujas escolas
funcionavam em residências e nas casas dos professores.
Pode-se entender que, dentro da sociedade brasileira, a educação possuía uma
concepção própria, já que a instrução não foi apenas resultado das ações de atores políticos na
promoção de um sistema de ensino, mas, antes, foi resultado das ações dos cidadãos que se
mobilizaram na contratação dos mestres-escolas e no aluguel de residências para o
funcionamento das aulas. Era uma educação entendida mais como atribuição da família e
tradição da sociedade do que a necessidade de política estatal que se conformaria décadas mais
tarde.
Visto que cabia a cada Província e ao município da Corte a promoção da Instrução
Pública primária e secundária, o Rio de Janeiro foi lugar privilegiado em legislação e no relativo
sucesso da expansão da malha escolar. Dizer sucesso significa comparar as Províncias do
Império, o que não quer dizer que tenham logrado diante das necessidades reais do município
da Corte.
Essa lei não passou impune às críticas dos mais variados profissionais, pois a Coroa
se eximia da instrução primária e secundária. A consequência disso, segundo os testemunhos
do artigo de Sucupira (2001), foi a ausência de um sistema nacional de ensino que
homogeneizasse o caráter brasileiro. No século XIX, houve, então, uma luta pela uniformização
e pela integração do ensino, demonstradas pelo referido autor em relatórios de ministros e de
outros políticos.
Nessas disputas, contudo, não significa que os políticos não tinham nenhum projeto de
nação. O problema é que esses projetos não se configuravam como transformação social e
política. José Bonifácio de Andrada, em discurso à constituinte de 1823, proferiu a defesa do
fim do tráfico de escravos, bem como o fim gradual da escravidão. A saída para o Brasil,
segundo ele, era a integração racial dos elementos que compõem a nação brasileira: o negro, o
índio e o branco. Defendeu, então, a civilização dos negros e dos indígenas com o objetivo de
torná-los também cidadãos “sadios” e imbuí-los de sentimento de patriotismo. Todavia,
Andrada não tratava apenas dos ideais apregoados pela constituinte, pois defendia a pequena
propriedade como meio de libertar da miséria a maior parte da população e inserir o trabalho
livre, que, a seu ver, apenas enriquecia os traficantes e não melhorava em nada o trabalho no
Brasil e o uso dos recursos naturais dessas terras, as quais, para ele, eram mal utilizadas e
estavam sendo esgotadas.
A História do Ensino secundário do Brasil Imperial e boa parte da historiografia a seu
respeito se confundem com a história do Colégio Pedro II (CPII), com os programas de ensino
90
modelados por essa instituição, bem como com os materiais de ensino produzidos por seus
professores. Dessa forma, cabe uma retomada sobre a Instrução secundária no Brasil do século
XIX, porque foi nessas instituições que os manuais foram criados e consolidados, sobretudo no
CPII, fundado em 1838, no município da Corte imperial. Contudo, não se pretende aprofundar
ou trazer novas questões sobre os estudos acerca do ensino secundário, porque o foco desta tese
são os manuais.
A origem do Colégio Pedro II é a criação do Abrigo dos órfãos de São Pedro em 1733.
Já em 1739, o bispo D. Antonio de Guadalupe transformou o prédio em Colégio dos órfãos de
São Pedro. Em 1776, o Colégio se transformaria no Seminário São Joaquim, ao lado da Igreja,
de mesmo nome. De acordo com Santos (2009), após a expulsão dos Jesuítas dos domínios
portugueses, o Seminário ganhou muita importância cultural e prestígio de ensino em
decorrência das poucas opções que a população carioca dispunha para educar a mocidade.
Durante a permanência de Dom João VI no Rio de Janeiro, o prédio foi transformado em abrigo
para os soldados da Coroa. Ao longo dos anos de 1830, com a finalidade da construção da atual
sede do Colégio Pedro II, a Igreja foi derrubada.
Em 2 de dezembro de 1837, um decreto determinaria a transformação do Seminário
de São Joaquim em Colégio de instrução secundária, o qual denominar-se-ia Colégio de Pedro
II, que entraria em funcionamento em 25 de março de 1838 sob a regência de Pedro Araújo
Lima. À época, o ministro interino do Império era Bernardo Pereira de Vasconcellos.
O Colégio Pedro II, acompanhado desde o início pelo jovem e futuro Imperador Pedro
II, tinha um caráter aristocrático, porque, de acordo com Santos (2007, p. 104, grifos da autora),
“buscava-se apoio daqueles que compunham a boa sociedade que dependia de bons
governantes, de bons administradores e de bons agentes civilizadores”. Entretanto, a
importância atribuída ao CPII não era apenas a de formar os quadros da elite econômica, social
e política do Império, mas também a de delinear as primeiras fisionomias do ensino secundário
brasileiro. A instituição, durante décadas, baseou-se na formação humanista e propedêutica, nas
ciências naturais e matemáticas, afinal, na contemporaneidade, tais conhecimentos estavam na
ordem dia para o progresso material das sociedades modernas.
Paralelamente a essas características, o Colégio Pedro II servia de modelo para os
Colégios existentes nas demais províncias. Assim, a Coroa, por intermédio do ensino
secundário no Colégio da Corte, controlava os programas do ensino secundário e, por
conseguinte, a entrada nas Instituições de Ensino superior, porque o ingresso nesse nível de
ensino se dava mediante aprovação nos chamados exames preparatórios, formulados com base
nos conteúdos escolares trabalhados no CPII.
91
Isto pode ser visto como um contraste à política imperial: por um lado, o Ato Adicional
de 1834 determinava que cabia às Províncias o desenvolvimento das primeiras letras e do ensino
secundário, configurando a descentralização administrativa da instrução pública; por outro,
regulamentava e controlava os programas de ensino por meio da cobrança desses conteúdos nos
exames preparatórios para as faculdades. Em suma, ao mesmo tempo, garantia-se o ingresso
nos cursos superiores aos concluintes do curso secundário de sete anos,35 quadro que só
começaria a se transformar durante a Primeira República, entre avanços e retrocessos na
legislação36.
Pode-se confrontar a tese de controle imperial sobre os currículos provinciais com a
tese de Gondra e Schueler (2008). Esses autores não põem em xeque o caráter modelar do
Colégio Pedro II; antes, problematizam o alcance desse projeto ambicioso de nacionalização
dos programas de ensino do nível secundário no País. Isto porque, a rigor, as diferentes
modalidades de ensino secundário (liceus e aulas avulsas) eram desconexas entre si, mas
visavam ao ingresso nos cursos superiores mediante aprovação nos processos seletivos
denominados exames preparatórios. A exceção ficava por conta do próprio CPII, pois o
bacharel formado nessa instituição, em razão de seu diploma, tinha o ingresso garantido nas
faculdades.
Nesse modelo de instrução/educação, os níveis de ensino – primário e secundário –
não se articulavam em graus sucessivos e contínuos, já que eram:
35
Vale destacar que, embora existisse esse recurso, a via de regra era o ingresso nos cursos superiores mediante
aprovação nos exames parcelados e nos próprios preparatórios. A isenção dos exames preparatórios passou a existir
a partir do decreto n.º 296, de 30 de setembro de 1843. Para saber mais, ver, ao final desta tese, a Bibliografia.
36
Para saber mais, consultar: Lei Benjamin Constant, decreto n° 981, de 1890; Lei Epitácio Pessoa, decreto n°
3890, de 1901; Lei Rivadavia Correia, decreto n° 8659, de 1911; Lei Maximiliano, decreto n° 11530, de 1915; e
Lei Rocha Vaz, decreto n° 16782, de 1925.
92
sutis, embora a consequência fosse sua pouca eficácia em uniformizar os Programas de Ensino
do País.
Fernando Penna (2008) defende a hipótese de que o conceito de currículo pode ser
aplicado ao processo de consolidação do Colégio Pedro II como instituição de ensino
secundário no Brasil em substituição às chamadas aulas ou estudos menores (PENNA, 2009).
Segundo o autor, a criação do Colégio se constituiu em uma nova forma organizacional ou, nos
termos de Gasparello (2004), significou a institucionalização do ensino secundário no Brasil.
Isto ocorreu como contraponto às chamadas aulas avulsas e às escolas isoladas que
permaneceriam por muito tempo na História da educação brasileira, embora o Colégio as tenha
substituída como modelo de ensino.
Já que sua criação significou a institucionalização do ensino secundário no País, o
Colégio Pedro II também foi, segundo Penna (2008) o primeiro a criar e adotar um currículo
seriado e multidisciplinar. Consoante informado pelo autor, o termo currículo ‒ que, em termos
sucintos, designa como se organiza o processo de escolarização, isto é, as disciplinas do curso
‒ foi raramente utilizado entre os administradores do Colégio. Para Penna (2008) na perspectiva
de Goodson, o currículo deve ser compreendido com base não apenas nos conflitos, nas tensões
e nas negociações, mas também na questão dos padrões de estabilidade e mudança. Em outros
termos, é imprescindível desnaturalizar as relações entre os atores da educação e os currículos.
Com fundamentação nos estudos de Goodson, Penna (2008) teceu uma reflexão
profícua sobre a questão do currículo e do Estado Nacional, uma chave de leitura para a
compreensão do papel da educação secundária nesse período:
Vale destacar que o caso brasileiro se caracterizou pela pequena malha escolar, como
destacam Gondra e Schueler (2008), ou seja, embora os estadistas do Império compartilhassem
de tais ideias, houve um alcance mínimo da rede escolar durante o império. Assim, a questão
nacional, cujo enfrentamento ocorreu por diferentes estratégias e caminhos, tornava-se patente
93
para estadistas, políticos e intelectuais da boa sociedade imperial. Todavia, a expansão dessa
malha escolar seguiu o caminho do alargamento do Estado burocrático brasileiro, assim como
seguiu os limites dessa expansão durante o Segundo Reinado.
A hipótese de Penna (2008) é a de que a institucionalização do ensino secundário foi
acompanhada da implementação de um currículo, porque os programas de ensino publicados
ao longo dos anos constituíam o curso secundário como seriado e multidisciplinar,
características decorrentes dos exames preparatórios para o ingresso nas faculdades existentes
no País. Então, justificava a ideia de currículo a fiscalização sobre o trabalho docente, sobre o
que se ensinava, como se ensinava, se as aulas possuíam doutrinas “nocivas” à sociedade e,
principalmente, se as chamadas aulas avulsas permitiam a preparação para a entrada nas
faculdades.
Vale lembrar que a instituição, em 1857, se dividiu entre Externato e Internato,
instalada na Tijuca em 1858 e permanecendo lá até 1888, quando foi transferida para o Campo
de São Cristóvão, dando origem ao atual Campus de São Cristóvão. Outro elemento que se
pode congregar à discussão acerca da importância do Colégio Pedro II é o perfil dos professores
que pertenceram à instituição, conforme afirma Santos (2009). Gasparello (2004, p, 116)
assinala que esses intelectuais, de saber notório, fizeram parte de agremiações, como o IHGB,
as Academias Literárias, a ABL e outras sociedades culturais e científicas da época. Fizeram
parte desse corpo ex-alunos, escritores, médicos, políticos de grande projeção nacional ou
administrativa no Estado brasileiro, entre outros.
As principais legislações sobre o ensino secundário do Primeiro Reinado são
mencionadas a seguir. Sua importância decorre dos materiais didáticos produzidos pelos
professores do Colégio Pedro II, considerados os diferentes decretos publicados pelo Imperador
via ministro do Império.
Em 1838, foi decretado e publicado o estatuto interno do Colégio Pedro II: organização
administrativa, fontes de receita, despesas, organização da grade curricular, dos professores,
alunos e funcionários, dentre outros detalhes37. O regimento interno sofreria alterações em
1841, quando se determinaria a duração de sete anos para o curso secundário. Outra
determinação do decreto versa sobre as disciplinas do curso, sua duração e o ano que
comporiam a grade curricular38. Em 1843, o decreto imperial estabeleceria que os concluintes
37
Para saber mais, consultar o Regulamento n.º 8, de 31 de janeiro de 1838, que contém os estatutos do Imperial
Colégio de Pedro II.
38
Para mais informações, consultar o Regulamento n.º 62, de 1 de fevereiro de 1841, que altera algumas das
disposições do Regulamento n.º 8, de 31 de janeiro de 1838.
94
do curso secundário portadores de diploma de bacharel em letras estariam isentos dos exames
preparatórios para o ingresso nas faculdades, como já mencionado.
A principal reforma do ensino primário e secundário durante a consolidação do regime
monárquico – suas três primeiras décadas – foi a conhecida Reforma Couto Ferraz, que
estabelecia mudanças nos dois níveis de ensino no município da Corte. Embora se
circunscrevesse apenas a esse município, a reforma ganhava repercussão nacional, pelo menos
no nível secundário, porque o Colégio de Pedro II tinha caráter modelar em relação aos Colégios
e Liceus provinciais públicos e privados.
A Reforma Couto Ferraz consistiu na reorganização do organograma administrativo
da Instrução Pública do Município da Corte, como o caso da nomeação do Inspetor Geral da
Instrução Pública, e na subordinação da Instrução ao Ministério dos Negócios do Interior. O
decreto ainda reformou a organização administrativa do Colégio Pedro II. De acordo com
Rocha (2011b), a Reforma Couto Ferraz, em um contexto de estabilidade da unidade nacional,
pode ser entendida como paradigma propositivo de Construção Educacional por parte do
Estado/Coroa. Nos dizeres de Mattos (1987) e Martinez (1997), a direção saquarema imputou
um projeto conservador à Instrução Pública do País.
Cabe destacar que cada paróquia deveria ter uma escola de primeiro grau. Nas
paróquias mais afastadas e de população rarefeita, onde não existissem essas escolas, abria-se
o precedente para a contratação do professor de estabelecimento particular para os alunos
pobres. Desse modo, o decreto lei determinou que as despesas fossem pagas pelos cofres
públicos, incluindo o fornecimento de materiais como livros, cadernos e uniforme escolar aos
alunos carentes e órfãos. Porém, em termos de cidadania, proibiu claramente a frequência de
escravos nas escolas primárias:
Art. 69. Não serão admittidos á matricula, nem poderão frequentar as escolas:
§ 1º Os meninos que padecerem molestias contagiosas.
§ 2º Os que não tiverem sido vaccinados.
§ 3º Os escravos.
(BRASIL, 1854, grifo nosso).
Se, por um lado, o decreto lei impediu claramente aos cativos o acesso às primeiras
letras; por outro, não excluiu os ingênuos e libertos do direito à educação. Contudo, isto
significou a segmentação da sociedade entre livres e cativos ou, nas palavras de Mattos (1987),
a criação de um abismo entre os três mundos, conforme indicava a direção saquarema.
Em relação ao ensino secundário, definiu a criação de um externato para o Colégio
Pedro II, criado apenas em 1857, cujo funcionamento se dava no Campus que veio a ser o de
São Cristóvão. Manteve duração de 7 anos de curso e regulamentou sua grade curricular por
meio das disciplinas. Cabe destacar que o artigo 69, a exclusão dos escravos de ingressarem no
Colégio Pedro II, também valeu para o ensino secundário. A Reforma ainda previa o pagamento
de matrícula pelos alunos ingressantes, mas isentava os alunos pobres que conseguiam se
distinguir, em razão de seu talento, e lhes fornecia material de estudo.
O Programa de ensino das disciplinas ofertadas pelo Colégio Pedro II seria tema de
outra lei, a Portaria de 24 de janeiro de 1856, que publicou o Programa de Ensino do Colégio
de Pedro II, sob o Ministério do Interior de Couto Ferraz. Tal Portaria definiu o Programa de
Ensino de cada ano do curso secundário, suas disciplinas e seu conteúdo programático, e,
também, os livros aprovados para uso. Como a Portaria versava sobre todas as disciplinas,
tratar-se-á aqui apenas da presença da disciplina História entre os setes anos de curso.
A Portaria definiu a presença da disciplina História entre o terceiro e o sexto ano de
curso. Para o que se chamaria hoje de História Geral, a principal referência era o Manual francês
96
39
De acordo com a portaria, o terceiro ano tinha História Moderna, cujo conteúdo continha a formação das
principais potências europeias: Inglaterra, França, Espanha e Alemanha. Compreendia ainda o renascimento, a
expansão ultramarina e do comércio mundial e as revoluções modernas, como a Gloriosa. O manual de referência
era o do já mencionado Delamarche. No quarto ano, continuam os estudos de História Moderna com as ideias do
século XVIII, a Revolução Francesa e o século XIX europeu, a formação da Alemanha, as disputas com a Áustria,
a independência da Grécia e a formação dos países nórdicos. Incluía ainda a formação dos Estados Unidos e do
México. O quinto e sexto ano retornavam no tempo com a História Antiga e a Média, respectivamente.
97
2.2 - Joaquim Manoel de Macedo: o intelectual, a sociedade imperial e a suas Lições de História
do Brasil (1861-63)
A unidade de uma geração está na sensibilidade comum; cada autor tem sua
trajetória singular e inteligível em sua coerência própria. Contudo, um
vínculo tácito fundamenta uma identidade comum, a do pertencimento a um
espaço intelectual. (DOSSE, 2003, p. 23, grifos do autor).
Essas questões dão algumas pistas sobre o referido intelectual e sua atuação.
Gasparello (2011) não só se aprofundou em compreender o professor “Macedinho”, como ainda
em entender o que significava ser professor secundário no Rio de Janeiro em meados do século
XIX, o que será explorado adiante. Escreve-se, então, sobre um sujeito histórico largamente
explorado pela história da literatura brasileira, destacando-se os pontos mais conhecidos de sua
biografia pública, porque, afinal, o centro da análise desta tese são suas Lições de História do
Brasil.
Macedo nasceu na freguesia de São João de Itaboraí (hoje, Itaboraí-RJ), onde realizou
seus estudos elementares. Era filho do casal Severino de Macedo Carvalho e Benigna Catarina
da Conceição. Mais tarde, foi para a Corte continuar seus estudos e ingressou no curso da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Sua trajetória na medicina foi paralela à nas artes, na
literatura e no jornalismo. Em 1844, ano de sua formação nesse curso, publicou o grande
sucesso literário A moreninha.
Após a publicação do livro, a carreira de médico foi praticamente abandonada.
Contudo, como a carreira de homens das letras na sociedade imperial não permitia uma
dedicação exclusiva, Macedo se dedicou ao jornalismo, ao magistério e, também, à política,
como deputado fluminense. Suas obras literárias foram publicadas em folhetins semanais, como
O Moço Loiro (1845), Dois amores (1848), Rosa (1849), Vicentina (1853), Forasteiro (1855),
entre outras40.
Macedo teve uma extensa produção literária ao longo de sua carreira intelectual,
compartilhada com a vida de professor do Colégio Pedro II. Por isso, é conhecido em todo o
País como uma das grandes figuras da literatura brasileira, notadamente do romantismo. Por
essa razão, por escolha do fundador Salvador Mendonça, é o patrono da cadeira de número 20
40
Publicou o poema A Nebulosa (1857) e as seguintes peças de teatro: O Cego (1849), Cobé (1852), O Fantasma
Branco (1856), O Sacrifício de Isaac (1858), Amor à Pátria (1859), Luxo e Vaidade (1860), O Novo Otelo (1860),
A Torre em Concurso (1861), Lusbela (1862), Romance de uma Velha (1870), Remissão de Pecados (1870),
Cincinato Quebra-Louças (1871) e Antonica da Silva (1880). Publicou os romances a seguir: A Carteira de meu
Tio (1855), O Primo da Califórnia (1858), Os Romances da Semana (1861), Um Passeio pela Cidade do Rio de
Janeiro (1862-1863), O Culto de Dever (1865), Memórias do Sobrinho do meu Tio (1868), O Rio do Quarto
(1869), As Vítimas-Algozes (1869), A Luneta Mágica (1869), A Namoradeira (1870), As Mulheres de Mantilha
(1870), Um Noivo e Duas Noivas (1871), Vingança por Vingança (1877), Memórias da Rua do Ouvidor (1878) e
Antonica da Silva (1880).
99
da Academia Brasileira de Letras41. De acordo com Mattos (1993), os romances dessa fase
foram marcados pela moral burguesa, pelo cotidiano urbano e por dilemas e problemas, como
os namoros, os casamentos, as alianças e o mundo estudantil, especialmente o do Rio de Janeiro
do século XIX.
Como intelectual, pertenceu ao Partido Liberal e foi deputado provincial em 1850, em
1853 e entre 1854 e 1859. Foi também deputado geral (federal) entre 1864 e 1868 e entre 1873
e 1881, pouco antes de falecer. Acreditava na monarquia constitucional e em suas instituições,
as quais, para ele, seriam capazes de promover as reformas seguras para a abolição da
escravidão. Sua dupla ação, a de intelectual (professor e jornalista) e a de político, é um exemplo
sobre o que eram os intelectuais brasileiros, como indica Alonso (2002), porque Macedo tinha
uma vida de produção discursiva e, ao mesmo tempo, atuava na política como deputado.
O médico e homem das letras também foi um sujeito na edificação do IHGB, pois
ocupou os cargos de Primeiro e Segundo secretário do Instituto, foi seu Orador oficial e,
também, assumiu sua presidência em 1876. Participando dessa instituição, Macedo se inseriu
na intelectualidade carioca, gozou da amizade com Imperador Dom Pedro II e ocupou posições
políticas importantes. Foi sócio da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e, ainda,
recebeu o título de Comendador da Ordem Rosa e da Ordem de Cristo42. Ademais, ficou
conhecido por ter sido o preceptor das princesas Isabel e Leopoldina. Embora tenha participado
ativamente do IHGB, Macedo não se notabilizou por obras historiográficas; contudo, deixou
suas contribuições mais relevantes no Ensino de História.
A História, então, esteve presente na vida desse autor literário como professor do
Colégio Pedro II, responsável pelo ensino de História e Chorografia do Brasil. De acordo com
Melo (2008), o magistério foi o principal meio de vida do Dr. Macedinho, como era conhecido
no Colégio Pedro II, instituição na qual ocupou diferentes cargos até a sua morte em 1882.
Nomeado professor em 1849, seu nome ficaria marcado na historiografia didática após a
publicação das Lições de História do Brasil entre 1861 e 1863. Pode-se destacar, ainda, que ele
pertenceu ao Conselho Diretor de Instrução Pública da Corte em 1866. De acordo com Doria
(1997), que explorou as memórias do aluno e futuro cronista da história fluminense José Vieira
Fazenda, o professor Macedo estava entre os professores “benévolos” com os alunos (DORIA,
1997, p. 105), pelo menos durante a década de 1860, pois gozava de certa popularidade e não
era dos mais exigentes.
41
Essas informações estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=905&sid=218.
42
Para saber mais, consultar o Diccionario Bibliographico Brazileiro (BLAKE, 1898).
100
43
Além de Mattos (1993) e Melo (2008), também foi feita uma consulta à breve biografia de Macedo no sítio da
Academia Brasileira de Letras, disponível no seguinte endereço eletrônico:
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=905&sid=218.
101
Presente nos programas de ensino do Colégio desde 1849, a disciplina História era
denominada História Pátria. Seus primeiros professores foram nomeados pelo Governo Central,
contudo, ao longo dos anos, precisaram passar por concursos, o que lhes conferia maiores
honras e prestígios que também se consolidavam com a participação desses sujeitos em
instituições como o IHGB e, mais tarde, a ABL, onde os letrados compartilhavam o espaço e
as redes de sociabilidade.
Em função da escassa produção didática à época, Macedo conquistou ampla
repercussão mediante produção de manuais dedicados ao ensino primário e ao secundário.
Embora atuante em segmentos escolares distintos, suas Lições de História se dedicaram a
construir uma História do Brasil com o sentido de legitimar a ordem imperial, a monarquia
Bragança e o Império brasileiro entre as nações civilizadas do Ocidente.
De acordo com Mattos (1998), as Lições de História podem ser contextualizadas
dentro da chamada boa sociedade imperial, caracterizada pelos indivíduos brancos, livres e
proprietários de escravos e terras. No cruzamento entre o fenótipo biológico e a ascendência
social, esses sujeitos conformavam o sentimento aristocrático entre essas elites dirigentes do
império. Nos termos de Mattos (1987), essa boa sociedade se separava em três abismos ou
camadas sociais, nas quais os cativos estavam de um lado, mantendo-se excluídos das
oportunidades econômicas e da vida social e política do Império, e os livres e os libertos
estavam de outro.
Provindos dessa casta social ou não, os intelectuais do império com ela se relacionaram
e nela se infiltraram, seja por sobrevivência, seja por conveniência. Nessa questão, Mattos
(1987) destaca que os intelectuais, como representantes políticos, eram subordinados à classe
senhorial latifundiária. Tal leitura, embora distinta, não se distancia dos termos de atuação de
intelectual exposto por Alonso (2002). Assim, alguns desses intelectuais, paralelamente à
atividade política, dedicaram-se a refletir sobre a construção da ideia de nação brasileira, a sua
história, a sua política e a sua cultura. Em outros termos, introjetaram projetos de nação que, na
leitura de Macedo, estavam vinculados à continuidade histórica entre a colonização portuguesa
e a monarquia Bragança, tal como Varnhagen (1956) anunciava em sua História Geral do
Brasil.
Dentro dessa sociedade imperial, mesmo entre os proprietários, havia hierarquia e
papeis políticos e sociais bem definidos. Assim foi com os pais de Macedo, que eram pequenos
proprietários rurais de Itaboraí distintos dos grandes proprietários que arrogaram para si a
função de governar e ordenar a sociedade, especialmente nessa região dominada pelos
conservadores Saquaremas. É a sociedade dos “três mundos” (MATTOS, 1987). É a sociedade
102
que define a cidadania pela liberdade (MATTOS, 2000). É a sociedade marcada pela
dissociação entre a cidadania e os direitos políticos (CARVALHO, 1988). É a boa sociedade
imperial a que as Lições de História eram dedicadas: a que naturalizava as diferenças e as
hierarquias, definidas pela liberdade e pela proteção à propriedade.
Na sociedade sobre a qual se fala, o termo “pardos” era usado para designar a
população livre com alguma ascendência europeia e sinalizava a origem e as restrições impostas
a essa condição – como o impedimento de ocupar altos cargos administrativos. Em muitas áreas
e períodos, “negro” designava escravo, inclusive os indígenas escravizados poderiam ser
chamados de “negros da terra”; enquanto “preto” designava os forros, isto é, os libertos
alforriados44. Com a complexificação da sociedade luso-brasileira, consolidou-se a
denominação “pardo livre” para se referir aos homens de ascendência africana e livre do
cativeiro. Ainda que se demarcasse a liberdade, indicavam-se conjuntamente os limites da
ascensão do negro na sociedade brasileira.
Dessa forma, o direcionamento da cultura histórica tinha algumas finalidades:
contribuir para a edificação e a consolidação das instituições políticas, administrativas, jurídicas
e monárquicas; preservar a unidade territorial e política; e dar continuidade a uma estrutura
social e econômica consolidada, ainda dos tempos do domínio português e da recém
independência, instruindo, segundo Mattos (1998, p. 35), “para manter a ordem e civilizar”.
Essa estrutura social hierarquizava e definia os diferentes papéis dos indivíduos no interior da
boa sociedade e, desse modo, incumbia à classe senhorial o direito de governar e difundir a
civilização, bem como o de tutelar o povo no caminho dessa civilização e dessa estabilidade. A
competência de governar não se atribuía ao povo, o qual, antes, deveria se incorporar ‒ ser
apadrinhado ‒ a uma família de proeminência política e social para não ser perseguido por
vadiagem, subversão, sedição, dentre outros motivos.
Nesse contexto, os próprios manuais sintetizavam o objetivo das instituições escolares:
a necessidade de difundir a civilização entre os setores populares, mas não de forma universal
e irrestrita, pois se tratava de uma formação diferenciada para quem, no futuro, iria ocupar as
posições políticas importantes do Império e das instâncias burocráticas e administrativas. Os
livros, para serem utilizados tanto nos estabelecimentos privados como nos públicos, deveriam
ser aprovados pelo Conselho de Instrução Pública, que avaliava tais textos e conferia
premiações aos autores das obras. A respeito desse processo, Schueler e Teixeira (2009)
destacam duas questões: a ampla participação dos professores como autores dos livros didáticos
44
Para saber mais, consultar o livro Escravidão e Cidadania, de Mattos (2000).
103
45
Para a produção de seu saber histórico, Serrano se fundamentou em Fernando Braudel e Charles Seignobos.
Serrano acompanhou um novo momento da historiografia brasileira, sobretudo preocupado com o modo como se
ensinava História aos alunos, dando sentido e sensibilidade a quem os ouvia e os compreendia. O autor
acompanhou as transformações do ensino de História ocorridas na França no mesmo período, as quais significaram
uma teorização sobre o ensino de História, uma pedagogia histórica. Nesse sentido, a maior inquietação estava na
formação do professor dessa disciplina no ensino secundário, pois se tratava do maior obstáculo para seu
desenvolvimento. Serrano era um crítico do sistema de seleção de professores e do sistema de ensino. Ademais,
apontava a reforma de ambas as questões como providenciais para as transformações do ensino e, assim, defendia
a criação de um Escola Normal Superior para a formação dos professores para o ensino secundário. Esta era uma
questão patente entre os intelectuais da educação no período: a modificação da seleção de professores, angariada
entre os bacharéis de direito, medicina e engenharias, sem uma formação pedagógica específica e dedicada ao
ensino, ou ainda angariada entre autodidatas sem formação nenhuma, isto é, sem formação secundária. Para mais
informações, consultar Freitas (2006).
105
2.3 – Raça e Nação nas Lições de História do Brasil de Joaquim Manoel de Macedo
como vontade divina sobre os destinos do País. A legitimidade da monarquia estaria na não
ruptura do controle político, o que permitia o laço fraternal entre os dois povos (Portugal e
Brasil). A dinastia dos Bragança apenas cumpriria, em 1861, o desejo do povo e da nação em
manter a unidade territorial que se construiu pela língua, pela religião cristã e católica e pela
luta contra os invasores externos. O que chama a atenção é a leitura teológica sobre a história,
segundo a qual fatos e estruturas foram resultado da vontade divina sobre os destinos da nação
brasileira, conformada com a colonização portuguesa. Não menos característicos são os
sentidos teleológicos, para os quais o presente é utilizado para dar inteligibilidade às ações
passadas, de modo a promover coerência entre o passado e o futuro. Assim, a monarquia
justificaria os desejos antecedentes de liberdade e unidade, o que é identificado aqui como a
tessitura da intriga da narrativa. Isto é, os fios que dão sentido a uma narrativa, conforme a
elaboração de Ricoeur (1994).
O primeiro e o segundo volume abordam a ideia de nação de maneira distinta e, ao
mesmo tempo, complementar. Afinal, o primeiro volume trata do século XVI, ou seja, da
conquista e da colonização do Brasil, questões fundamentais para a edificação da obra
civilizadora portuguesa. A linha mestra para a interpretação da colonização nesse período é a
dimensão moral que explicaria os malogros dos colonizadores. O segundo volume, em razão
de sua extensão temporal, aprofunda as tensões e os conflitos que conformaram o Brasil nos
séculos XVII, XVIII e XIX, o que implicaria a formação do povo e de determinada ideia de
nação.
Neste momento, tratar-se-á do primeiro volume. A ideia de nação se fundamenta,
como já analisado, na ideia civilizatória da colonização portuguesa, cujo marco foi a expedição
de Martin Afonso de Souza, a quem Macedo se refere, com trechos encomiásticos, como o
primeiro e grande colonizador do Brasil e responsável pela Capitania de São Vicente.
Um termo que chama a atenção é “regeneração”. Em diferentes momentos da sua
narrativa, em ambos os volumes, esse conceito está associado ao de independência política dos
povos, tanto na formação de Portugal e sua restauração em 1640, quanto na independência do
Brasil: “Ha mais de trez seculos que teve lugar o descobrimento do Brazil, ha perto de meio
seculo que a terra de Santa Cruz regenerou-se e escreveo o seo nome na lista das nações do
mundo” (MACEDO, 1861, p. 57, grifo nosso). Essa passagem destaca também o que se percebe
nos dicionários aqui analisados, nos quais nação é necessariamente vinculada à soberania
política do povo. A nação brasileira se conformou, então, em um território ricamente descrito
pelo autor romântico:
108
Para Macedo, tal mesquinhez era uma leitura feita pelos descobridores e
conquistadores do Brasil sobre a inferioridade do gentio brasileiro. Nas entrelinhas, além de
destacar a opulência do território brasileiro, ele discordava da referida assertiva e justificava
que as fontes a respeito dos gentios eram contraditórias e extremadas: desde uma representação
idílica até a negação da humanidade dos autóctones. Para Macedo, a resposta era um meio termo
nessas representações. Nesse sentido, o primeiro volume é pouco revelador para o entendimento
de nação brasileira, embora possua chaves de leitura que permitem perceber que os gentios
recebiam certa dimensão valorativa do referido autor. O povo brasileiro, nesse entendimento,
estava na “infância” de sua história, mas a cultura “superior” e “civilizada” europeia poderia
acelerar esse processo.
Macedo também reflete sobre nação quando trata dos povos originais do Brasil. Ele
reforça a tese de que os povos indígenas tinham uma origem comum em função de suas línguas,
as quais, embora fossem dialetos, se inseriam em uma mesma nação. O sentido de nação aqui
empregado é semelhante ao utilizado nesta tese, pois é baseado na:
e as decisões eram tomadas por meio dos votos de todos os guerreiros em conjunto. Essa leitura
de Macedo, segundo Gasparello (2004), justificava a colonização portuguesa para enveredá-los
na civilização.
A religiosidade é caracterizada por Macedo de forma positiva. Ainda que não fossem
cristãos, os índios acreditavam na eternidade e criam em um ser supremo, “embora não
soubessem apreciar todos os seus divinos atributos” (MACEDO, 1861, p. 78). Reconhece-se,
desse modo, que Macedo entendia a inteligência e a humanidade desses povos, mesmo que não
se furtasse de taxar os pajés como charlatães, maníacos e pretensos adivinhos do futuro.
Contudo, compreende-se que essa leitura era um deslocamento e um caminho para inserir essas
nações, quem sabe em um futuro próximo, à civilização branca e europeia, notadamente, via
cristianismo.
Por fim, destaca-se a questão moral abordada por Macedo para explicar o estado social
da colônia brasileira. Embora tenham tido sucesso em alguns núcleos, as capitanias hereditárias,
para Macedo, haviam criado vários inconvenientes. A independência e o isolamento de cada
uma delas concediam extraordinários privilégios aos capitães donatários, por exemplo. Então,
era fundamental criar laços comuns e de dependência entre elas. Para isso, era necessária a
formação de um governo geral capaz de conter as ameaças externas e internas à colonização do
território brasileiro. Gasparello (2004) identifica, na narrativa de Macedo, que as capitanias, tal
como se conformaram, eram uma ameaça à unidade territorial da colônia. Desse modo, uma
das causas do malogrado à empresa estaria na questão moral dos capitães donatários:
brasileira no Império, durante seu período de estabilidade política. A dimensão moral não seria
abandonada por parte da geração de 1870, mas combinada às teorias racialistas de explicação
sobre o estado social e civilizatório da nação brasileira.
O segundo volume destaca a evolução da ideia de nação, ainda que vinculada ao
nacionalismo português. As guerras contra os holandeses, junto ao processo de independência,
trazem chaves de leitura nesse sentido. A “Lição VII – Guerra Hollandeza: desde a retirada de
Mathias de Albuquerque até a aclamação de D. João IV no Brasil. 1635-1641”, por exemplo,
versa sobre a chegada de Mauricio de Nassau para governar o Brasil holandês, enaltece suas
virtudes políticas e militares e destaca os amplos poderes que recebeu para governar o País. O
texto, ainda, enaltece a força de Henrique Dias com passagens sobre a perda de sua mão
esquerda em combate: “Henrique Dias recebeu uma bala na mão esquerda, e continuou a bater-
se depois de fazel-a amputar” (MACEDO, 1863, p. 89). O mesmo parágrafo narra os feitos de
Camarão e sua esposa: “Camarão e sua intrépida esposa D. Clara, imortalisárão-se por inauditas
proezas” (MACEDO, 1863, p. 89). A questão racial foi abordada nas lições posteriores e são
desenvolvidas adiante.
Maurício de Nassau recebeu grandes elogios por ter administrado Pernambuco com
caráter moralizador sobre a coisa pública do Estado. Mais uma vez, a questão moral foi
desenvolvida, tida como a grande chaga do desenvolvimento da sociedade, nesse caso nether-
brasileira:
Segundo Macedo, Nassau foi derrotado em função dos interesses mesquinhos que ele
combateu dentro da administração holandesa e da desconfiança da Companhia das Índias
Ocidentais sobre suas intenções. Assim, os inimigos se reuniriam e o depuseram após seus
malogrados combates na tentativa de conquista sobre Salvador. Na “Lição IX – Guerra
hollandeza no Brazil desde a acclamação de D. João IV até o rompimento da insurreição
pernambucana 1641-1645”, Macedo destaca o sentido de regeneração, isto é, de soberania
política do Império Português:
111
O início da lição é revelador, já que Macedo definiu o que ele entendia por nação no
território da colônia em meados do século XVII. Para ele, nação são os descendentes de
portugueses que viviam na América e se identificavam com a soberania do reino português ante
às demais nações do mundo. A genuína metrópole da nação portuguesa seria Lisboa e não a
cidade de Madri, como fora os sessenta anos anteriores à restauração portuguesa. A nação é
entendida como o Império Português, os seus domínios e a incorporação dos povos presentes
nele.
Para Macedo, por um lado, a compreensão sobre o conflito contra os holandeses é
importante por ter despertado o espírito patriótico no País, ainda que a nação seja entendida
como portuguesa, estando os descendentes na América. Por outro lado, a ruína da presença
holandesa no Nordeste se deu pela intolerância e pela cobiça dos sucessores de Maurício de
Nassau – que é representado como o governante que trouxe as ciências, a tolerância religiosa e
as liberdades individuais para o Brasil. Esse quadro animou a nacionalidade portuguesa,
especialmente o insulto à religião católica dos brasileiros que habitavam o Brasil holandês,
como Macedo diz:
Ou seja, para Macedo, as causas da ruína do poder holandês no Brasil são dois
sentimentos: “o da religião e do nacionalismo”. O que reafirma sua tese é que os próprios
colonos encetaram a insurreição contra os holandeses, “quasi completamente abandonados pela
metropoli” (MACEDO, 1863, p. 144). Segundo Macedo, se Nassau tivesse logrado em suas
empresas por mais tempo, com certeza, o Brasil, em 1863, não formaria o vastíssimo império
de língua e religião homogêneas. Entretanto, Nassau propiciou a união entre as capitanias,
mediante construção de fortalezas e estradas entre elas, e favoreceu a indústria e o comércio,
porque os holandeses fizeram os europeus conhecerem outros produtos – Macedo não menciona
quais – e atraírem, assim, outras nações.
112
A apresentação das Lições que versa sobre o conflito contra os holandeses serve de
comparação com as questões fronteiriças da região platina. Na “Lição XVI – Reinado de Dom
José I: questões e lutas no sul do Brasil: Jesuitas e a sua expulsão: o Marquez de Pombal (1750-
1777)”, Macedo trata das disputas entre Portugal e Espanha. Portugal atravessava mudanças
após a assunção de José I e seu ilustrado ministro Marques de Pombal. A principal resistência
viera dos indígenas, instigados pelos jesuítas. Assim, tanto Portugal quanto Espanha
marchariam juntas contra as resistências ao tratado assinado em Madrid em 1750.
Se as invasões holandesas foram capitais para o espírito de nacionalidade, ainda que
não brasileiro, mas português, tal questão nem aparecia no conflito das fronteiras do sul. No
caso, nesse conflito, estava a querela dos jesuítas que se opunham à mudança dos domínios, o
que levou o Marquês de Pombal a expulsá-los dos domínios portugueses. Aqui vale destacar
que o posicionamento de Macedo contemporiza as consequências dessa medida, realça o direito
que cabia ao monarca português e valoriza os serviços prestados pela companhia na ocasião do
início da colonização portuguesa na América. Para Macedo, os jesuítas tinham ultrapassado seu
limite de atuação:
A ideia da mudança da capital do império português para o Brasil era antiga, embora
utópica para a maior parte dos estadistas e de seus ministros. Mas, ao final do século XVIII, já
ressoavam os gritos por liberdade. Macedo contemporiza o estado do Brasil que, embora tivesse
progredido, não estava à altura dos Estados Unidos.
Macedo destaca os primeiros estabelecimentos de ensino para a mocidade que
trouxeram novas ideias aos anseios de uma juventude alimentada por instrução e ciência. Os
livros franceses penetravam as principais cidades do litoral e do interior e, segundo Macedo,
“plantavão os germens do liberalismo, que então ia insensivelmente conquistando povos e
governos” (MACEDO, 1863, p. 217). As artes e a literatura brasileira ganharam os seus
primeiros traços com incontestável brilhantismo que expressava o desenvolvimento das ideias,
das artes e da literatura no Brasil colonial, o que, segundo Macedo, alimentava utopias e sonhos
distintos daqueles que o Brasil vivera desde o século XVI. Para o literato:
“Lição XX. Revolução de Portugal em 1820: seus effeitos no Brasil: regresso da corte
portugueza para Lisboa. 1820-1821”; “Lição XXI. Primeiros mezes da regencia de D. Pedro no
Brasil; Lição XXII. Desde o dia do fico até o dia do Ypiranga. 1822”; e “Lição XXIII.
Acclamação e Coroação do primeiro imperador do Brasil. Guerra da independencia. Conclusão.
1822-23”.
A Revolução Liberal de 1820 e seu caráter recolonizador despertaram o sentimento
nacionalista, o que, nos episódios anteriores, era contemporizado como imaturidade ou
descompasso com as tradições político-dinásticas do Brasil. Diante de tal quadro, A Lição XX
encerra com a célebre frase de D. João VI que pede a D. Pedro colocar a coroa em sua cabeça,
antes que outro o faça. O caminho estava aberto para uma mudança sem maiores rupturas.
Na Lição XXI, o movimento de independência é narrado de forma distinta por
Macedo. O príncipe D. Pedro é o protagonista de uma saga que tenta conciliar os dois tronos,
afinal ele era o herdeiro do trono português. Além disso, o movimento liberal desejava retomar
o monopólio dos mercados e do comércio brasileiro (a recolonização), o que aflorou os
sentimentos nacionalistas no Brasil. A separação era a consequência natural.
46
Há aqui uma conotação hegeliana de evolução da razão, que não se confunde com o evolucionismo que se
desenvolveria na mesma década na Inglaterra.
116
ordeiro e amante da liberdade, embora ligado às tradições. Isto tornaria legítima a monarquia
para o povo brasileiro.
Dessa forma, Joaquim Manuel de Macedo compõe uma história cujo centro são os reis
e os príncipes e, em alguns casos, os subalternos mais ilustres que deixaram suas marcas na
expansão e na consolidação do Império português. O Brasil independente, assim, é uma
continuação autônoma, sem dúvida, da civilização portuguesa. O tratamento dado a questões
como a escravidão africana, a independência do Brasil e as sedições no período colonial é
marcado pela contenção, sem esboçar qualquer conflito com a Coroa.
Assim, o sentido da nação brasileira construído por Macedo está restrito à civilização
branca, católica e portuguesa, legado que a nação independente e monárquica recebeu,
acomodada com a tradição do povo aqui constituído, ungido pela vontade divina. Macedo segue
na esteira de Varnhagen, inclusive no tom encomiástico próprio ao historiador oficial da
Monarquia, no que tange ao reconhecimento da mão branca civilizadora em detrimento dos
africanos e dos autóctones.
No primeiro volume, a questão da raça é destacada na descrição sobre os autóctones
do Brasil. A racialidade é compreendida de forma distinta em relação à visão de boa parte da
intelectualidade do último quartel do século XIX. Na “Lição V – Brazil em geral os povos que
habitavão na época do descobrimento”, Macedo tece uma narrativa em que descreve os povos
indígenas fisicamente, entendendo-os como uma raça única oriunda do tronco mongólico:
[...] debaixo do ponto de vista physico eis aqui o selvagem, como pouco mais
ou menos o descrevem Spix e Martius. Sua estatura é pequena, não tendo o
homem mais de quatro a cinco pes (alemães) e a mulher não excedendo a
quatro pes de altura. A compleição é forte e robusta. Tem o craneo e os ossos
da face largos e salientes; a fronte baixa; as temporas proeminentes, o rosto
largo e angular; as orêlhas pequenas; os olhos tambem são pequenos, pretos e
tomando a direcção obliqua, com o ângulo externo voltado para o nariz; as
sobrancelhas delgadas e arqueando-se fortemente; o nariz pequeno,
ligeiramente comprimido na parte superior e achatado na inferior; as ventas
grandes; os dentes brancos; os lábios espessos; o pescoço curto e grosso; o
peito largo; as barrigas das pernas finas; os braços redondos e musculosos; os
pes estreitos na parte posterior, e largos na anterior; a pelle fina, macia,
lusente, e de uma côr de cóbre carregado; os cabellos longos e espessos. O
homem apresenta ordinariamente pouca barba, bem que não sejão raras as
excepções desta regra. (MACEDO, 1861, p. 59).
Apesar dessa descrição, Macedo não define como certeza tal origem mongólica dos
naturais da terra:
118
Dizendo de outro modo, existe um debate científico e não consensual sobre a origem
da espécie humana. A própria hipótese da poligenia não era uma certeza científica. O texto de
Macedo também não se mostra muito entusiasta de tais teses sobre a origem da espécie humana
e do homem americano. Dessa maneira, ele destaca que a cor do homem americano se deve à
sua nudez e ao uso de diferentes tintas no corpo, como o urucum, de cor vermelha, considerando
outros fatores para a distinção racial ou da cor.
Macedo destaca também o uso de batoques no lábio inferior – os botocudos – e de
outros ornamentos que os diferentes povos utilizavam em suas culturas e em seus rituais e
festas. Para o romancista, as armas de guerra ‒ as lanças e os arcos e flechas ‒ revelam a rudeza
da cultura dos indígenas, que eram vingativos e cruéis com os seus inimigos. Em outra
passagem, ressalta que os indígenas viviam “na sua infancia, homens rudes e selvagens, alheios
à civilização” (MACEDO, 1861, p. 65), característica que seria comprovada pela antropofagia
praticada pela maioria das tribos, como Macedo destaca. Entretanto, os indígenas eram
hospitaleiros como os árabes e destemidos diante da morte e na luta contra os inimigos.
Macedo também relata o modo de vida dos índios – sempre de forma genérica e sem
identificar os nomes de suas nações. Fala da divisão do trabalho entre homens e mulheres: os
meninos, após saírem da amamentação, seguiam o pai e as meninas continuavam com as mães.
Descreve, ainda, os rituais fúnebres, nos quais o morto era enterrado com os seus pertences.
Mas Macedo possui uma leitura própria tanto dos aborígenes quanto dos africanos. Nesse
sentido, as lições que narram as invasões holandesas e a reconquista luso-brasileira são
importantes fontes para análises.
A “Lição X: ultimo periodo da guerra hollandeza: desde o rompimento da insurreição
pernambucana até a capitulação da Campina da Taborda. 1645-1654”, do segundo volume,
narra as vitórias consecutivas dos portugueses sobre os holandeses em Pernambuco. Nesses
casos, as principais personagens históricas são da própria colônia, incluindo os negros e as
tropas indígenas. Porém, na narrativa, o aspecto racial não tem relevância ou destaque, pois é
colocado como apenas mais uma característica.
119
Duas questões saltam aos olhos na narrativa. A primeira é a afirmação dos interesses
coloniais sobre os metropolitanos da política de Dom João IVem relação à Holanda e à Espanha,
como será visto abaixo:
A representação do herói potiguara, que lutou ao lado dos portugueses, revela uma
posição contraposta à de Varnhagen sobre a capacidade de regeneração moral e civilizatória
dos povos indígenas, o que não impressiona, afinal, fala-se de um célebre cânone da literatura
romântica brasileira, que tem, nos indígenas, o referencial de um passado histórico da nação
brasileira. Para Varnhagen, é o oposto: a obra colonizadora exclusivamente portuguesa criou a
nação brasileira. Assim, Macedo apresenta um deslocamento ou uma discordância em relação
à leitura de Varnhagen sobre a nação brasileira, na medida em que a catequese se apresentava
como o melhor instrumento para enveredar os indígenas à civilização.
A respeito do negro, Henrique Dias é retratado como herói devidamente honrado no
Brasil com cargos importantes. Diferente de Camarão, Macedo não faz qualquer enaltecimento
à raça de Henrique Dias:
digressões. A questão da raça, na verdade, nem é abordada, mas sim a condição de escravo ou
liberto. De acordo com a mesma autora, “a geração de 1870 vai modificar essa relação pensando
a formação do Brasil em termos raciais e culturais” (MATTOS, 2007, p. 221).
Com base nessas questões, entende-se que a nação, para Macedo, estaria na
identificação com o passado colonial português, resultado dos enfrentamentos internos e
externos que realçam a bravura das raças branca e indígena e silenciam a negra. A ligação de
Macedo com o romantismo brasileiro da geração indianista sugere a razão do enaltecimento de
Felipe Camarão, afinal, se José de Alencar criou Peri para a literatura, Macedo poderia enaltecer
a bravura de um líder militar como Poty.
Uma importante análise ajuda a contrastar as representações sobre o negro. Amaral
(2007) analisou as representações do escravo na obra literária de Macedo, com destaque para
as três novelas do livro Vítimas e Algozes, de 1869. Nesse sentido, a contribuição da autora é
válida para a compreensão das Lições de História do Brasil, uma vez que, no mundo escolar,
Macedo silenciou algumas questões em torno da escravidão e do negro.
O romance Vítimas e Algozes teve cunho emancipacionista em relação à questão da
escravidão, obra escrita seis anos após o segundo volume das Lições de História do Brasil. De
acordo com Amaral (2007), existe a possibilidade de a obra ter sido encomendada pelo
Imperador Dom Pedro II com a finalidade de preparar os espíritos para as leis abolicionistas
que viriam nos anos posteriores. Assim, a obra tinha uma função pedagógica sobre os malefícios
da escravidão e as dificuldades do governo em enfrentá-la. A ideia adotada por Macedo, de uma
abolição conciliadora, é a defesa da liberdade do ventre e a indenização aos senhores. Todavia,
existe uma apelação à humanidade dos senhores juntamente com o ensinamento moral do
catolicismo com vistas ao trabalho. De acordo com a autora, “Macedo afirmava que a
degeneração do negro não era inerente a ele, o que o tornava amoral era a escravidão”
(AMARAL, 2007, p. 202). Em outros termos, como a condição de cativo deformou o caráter
da população negra, somente a liberdade poderia lhes trazer de volta a civilização e a
humanidade. Desse modo, ainda argumenta a autora, o negro nascido em liberdade, sem a
experiência do cativeiro e educado na civilização, combinado com a miscigenação, poderia
contribuir para a nacionalidade brasileira. De acordo com o discurso proferido pelo próprio
Macedo, no IHGB, em 1871, na ocasião da Lei do Ventre Livre, a libertação do ventre seria a
purificação da “inocência”. Amaral (2007) revela um significado bastante interessante: ao usar
argumentos conservadores e pejorativos em relação aos negros, Macedo tentava convencer os
senhores de que só a libertação dos escravos poderia subverter aquele quadro cultural das
populações cativas.
122
Por que tais questões sobre a representação do negro e da escravidão são relevantes?
Porque, ao comparar a representação da escravidão ou do negro nas Lições de História do Brasil
com Vítimas e Algozes, o contraste é notável. Se, no início da década de 1860, Macedo silenciou
a questão da escravidão, no final da mesma década e na literatura, problematizou essa questão
social. Ainda que com limites, na perspectiva senhorial e de modo conciliador, o literato se
pronunciou favorável ao fim da escravidão como caminho para a edificação da nacionalidade
brasileira. A questão racial é tratada na sua dimensão moral, isto é, a degeneração do negro não
possuía um viés biológico; antes, as condições sociais inerentes à escravidão lhe degeneravam
o comportamento e a moral. De acordo com Amaral (2007), Vítimas e Algozes foi a única obra
que Macedo publicou a respeito da questão do negro e da escravidão.
Outra questão abordada é a distinção entre o negro da África e o crioulo brasileiro:
como o negro nascido no Brasil e miscigenado ou não era mais inteligente do que o seu ancestral
vindo da África, ele não seria um empecilho à civilização no Brasil. Amaral (2007) destaca,
ainda, que Macedo não defendia apenas o fim da escravidão, como também defendia a educação
para os libertos, de modo que eles pudessem usufruir civilizadamente dessa liberdade,
sobretudo por meio do aprendizado de um oficio que lhes preparasse para o trabalho. A
liberdade sem a educação criava o “vadio”, o que era pior para a sociedade do que a sua
condição de escravo.
A educação pela civilização combinada com a emancipação também resolveria outro
temor posto nas entrelinhas de Vítimas e Algozes, o da africanização do Brasil, que era a afeição
das populações mais pobres pela cultura da senzala, como o caso dos rituais “feiticeiros” do
Candomblé. Macedo chamava essa estratégia de apagar todas as sombras da escravidão: “Essa
prática de feitiçaria organizada [...] é uma peste que nos veio com os escravos d’África, que
desmoraliza” (MACEDO,1869, apud AMARAL, 2007, p. 74-75). Isto é, como eram bárbaros,
os costumes africanos deviam ser eliminados da cultura brasileira ‒ ainda que tivessem se
desenvolvido no Brasil ‒ para que fossem substituídos pela civilização. Na virada para o ano
de 1870, Macedo defendia, para as populações cativas, o mesmo projeto civilizatório defendido
para os indígenas, isto é, a cristianização, civilização para o progresso moral dessas populações.
Até mesmo essa possibilidade era negada ou silenciada para as populações afrodescendentes.
Voltando às Lições, a linguagem utilizada pelo autor para construir a narrativa tem
certa simplicidade. Quer dizer, é uma linguagem adaptada aos alunos do ensino secundário,
entre o quarto e o sétimo ano, os quais, em geral, utilizam outros livros como fontes. Ademais,
o livro possui quadros sinóticos (com referência a datas, nomes e fatos) e lições ao final de cada
123
O terceiro capítulo desta tese versa sobre as Lições de História do Brazil, de Luis
Queirós Mattoso Maia, de 1880, sobre como sua narrativa acerca da história brasileira construiu
a ideia de nação e sobre a importância da raça nessa consecução. Desse modo, este capítulo se
divide em quatro momentos importantes para a compreensão da fonte analisada.
O primeiro momento trata das mudanças políticas, econômicas e sociais vividas pelo
Brasil em meados do século XIX, as quais trazem chaves de leitura para a compreensão das
diferenças entre as Lições de História do Brazil, de Macedo, e as Lições, de Mattoso Maia,
como a radicalização dos liberais, a modernização econômica e as lutas abolicionistas pelo fim
da escravidão.
O segundo momento trata da articulação entre as transformações vividas no País e as
mudanças ocorridas na Corte com o desenvolvimento da instrução pública primária e
secundária no que se refere às legislações e a seu vínculo com o gabinete conservador de
Visconde de Rio Branco.
O terceiro momento revela um pouco da biografia pública do Dr. Luis Queirós Mattoso
Maia, que, médico e militar, além de ter participado da campanha da Guerra do Paraguai,
ocupou diferentes cargos públicos no Rio de Janeiro e em Niterói. Sua rede de sociabilidade foi
bastante distinta da dos outros autores analisados nesta tese.
E, por fim, no quarto e último momento, analisam-se as Lições de História do Brazil,
de Mattoso Maia, cuja ideia de nação foi “atualizada” para o momento histórico que o Brasil
vivia desde os anos de 1860. Há, nesse caso, o deslocamento semântico do termo raça para
conotações mais científicas, ainda que diversas do racismo científico que se configuraria mais
tarde na Europa, nos Estados Unidos e no próprio Brasil. Seu conceito de raça é resultado da
etnografia e dos estudos dos povos indígenas de Couto Magalhães.
O Brasil da década de 1880 sentiu, mesmo que com limites, os efeitos da modernização
das três décadas anteriores, em virtude da expansão das áreas urbanas, sobretudo das próximas
às capitais provinciais e à Corte. Isto não significa que as regiões tenham se desenvolvido
igualmente. Antes, o Rio de Janeiro se consolidou, em razão de sua industrialização, como polo
nacional de atração para a elite política, intelectual e econômica. Em consequência dessa
125
surgidos entre o final dos anos de 1860 e a década de 1880, foram marginalizados politicamente
pela direção Saquarema. Porém, embora tivessem esse elo em comum, eram bastante
heterogêneos entre si e tinham objetivos distintos, como a necessidade de maior autonomia
política, a busca pela preservação da posição econômica ou, ainda, a defesa de uma república
eminentemente democrática e popular.
No mundo das ideias, diferentes correntes de pensamento chegaram ao País importadas
da Europa, como o evolucionismo, o materialismo e o positivismo. Este último repercutiu
fortemente na elite política, que cria na ideia de progresso e na evolução dos povos por meio da
razão e da ciência. O Brasil monárquico, para alguns desses intelectuais, correspondia à fase
teológico-metafísica e, por isso, deveria caminhar para a fase positiva do regime industrial e
republicano (CARVALHO, 1999).
No interior dessas mudanças, Luis de Queirós Mattoso Maia, nascido no período de
consolidação do Estado Imperial, em torno de 1833, transformou suas aulas de História do
Brasil em Lições de História do Brazil. Com 26 anos, em 1859, Mattoso Maia, de família de
militares e professores, formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, aproveitando
as oportunidades da modernização da economia brasileira, que formava profissionais liberais,
como os médicos, os advogados, os engenheiros e os farmacêuticos. Vale ressaltar que os
profissionais urbanos não mantiveram os laços ou a identificação com os interesses daqueles
que predominavam na vida política do País. O referido doutor, ademais, como médico da
Guerra do Paraguai, aproveitou outro nicho social e político em ascensão ‒ o universo militar
‒, mantendo laços de sociabilidade com esse emergente sujeito histórico na sociedade brasileira.
Se Macedo veio do chamado estamento da sociedade imperial, ainda que filho de
pequenos proprietários rurais de Itaboraí, o Dr. Mattoso Maia percorreu os setores em ascensão
social, econômica e política da sociedade brasileira, especialmente a carioca da segunda metade
do século XIX, afinal o Rio de Janeiro, como capital do Império, contava com grande número
de militares em quartéis e escolas de oficiais das armas.
Se, no período de formação e consolidação do Estado Imperial, a elite política
procurou reestabelecer a moeda colonial e os monopólios, as gerações herdeiras da práxis
política dos Saquaremas procuraram manter seus privilégios e controlar o “leme” frente às
mudanças que se operavam no mundo ocidental capitalista, “entregando os anéis para não
perder os dedos”. Diante da “radicalidade dos liberais” e das ideias republicanas, o gabinete de
Visconde de Rio Branco foi o melhor exemplo de transformação conservadora e segura.
A Guerra do Paraguai alterou um pouco a constituição da sociedade monárquica, uma
vez que os militares se fortaleceram como instituição. Assim, o Escola Militar e as ideias
127
que era a nação brasileira, a sua cultura e a sua história. Sugere-se, aqui, portanto, que houve
certos deslocamentos de representação da nação, quando comparada às Lições de História do
Brazil, de J. Manoel de Macedo.
A questão da imigração estrangeira foi tratada pelo Estado Imperial da perspectiva
senhorial, isto é, da perspectiva das necessidades dessa classe. O Estado (o governo), em meio
a suas contradições, favoreceu o governo da Casa, os lavradores. Como o monopólio da mão
de obra era vital para as diferentes províncias, o tráfico interno era um problema para as lavouras
das regiões economicamente decadentes, porque, em razão de seu poder de compra, as áreas
mais rentáveis e lucrativas venciam, ou seja, as Províncias do sudeste cafeicultor venciam as
Províncias do Norte. Os fracassos das primeiras iniciativas privadas de imigração europeia, as
quais procuravam frear a participação dos negros na economia e a africanização do País,
significaram a vitória dos escravistas e a derrota dos liberais. Entretanto, nos anos de 1860, a
intervenção da Coroa no sistema de parcerias alteraria esse quadro.
Em síntese, o tema da imigração foi explorado pela Filosofia da História, de João
Ribeiro, mas ignorado pelas Lições de Mattoso Maia, pois talvez não houvesse o devido
distanciamento histórico para que o autor percebesse os efeitos da imigração europeia ou
mesmo as teorias racialistas do último quartel do século XIX.
A política de terras, segundo a leitura de Mattos (1990), é um símbolo da política
Saquarema de ocupação e colonização das terras e de equilíbrio da oferta de mão de obra para
as áreas mais rentáveis da economia do Império. Por um lado, mantinha-se a mão de obra para
a manutenção dos canaviais e dos engenhos do Nordeste; por outro, abasteciam-se as novas
áreas em expansão do café e, em seu interstício, controlava-se o acesso à terra, garantindo que
os trabalhadores não fugissem do controle da classe senhorial.
Outra questão importante a discutir é a implantação de modelos políticos no Brasil. A
expressão de Euclides da Cunha, a de que o Brasil foi criado com base em uma teoria política,
é utilizada para problematizar os debates sobre representatividade política e cidadania na
legislação eleitoral do Império. De acordo com a tese de Carvalho (1988), as legislações
eleitorais do império tinham três preocupações: definir o que é e quem tinha direito à cidadania,
garantir a representação das minorias (como forma de prever a ditadura de uma facção política)
e captar a verdade eleitoral, livre das influências espúrias e dos interesses particulares, seja da
sociedade, seja do governo. Nesse sentido, as legislações eleitorais do Império mantiveram
grande parte da população excluída da vida política, e o Brasil não foi uma exceção. O chamado
“mundo civilizado” só o faria no século XX. A exclusão do votante pobre e analfabeto era
129
justificada partindo-se da premissa de que era esse tipo de votante o corruptor do processo
político, a causa das fraudes eleitorais e do falseamento da representatividade política do País.
A alfabetização ganhava contornos políticos à medida que se tornava requisito para a
participação da vida política do Estado, no mesmo momento que, curiosamente, a malha escolar
encolhia ou crescia menos diante da demanda da década de 1880, se comparada às décadas de
1860 e 1870, pelo menos no município da Corte analisado por Martinez (1997). Apesar desse
quadro, a instrução ganhava forte apelo dos liberais, sobretudo dos alijados da estrutura
político-representativa da monarquia.
Esse quadro político começou a se desintegrar ou a se desgastar por meio da
radicalização dos liberais e de suas facções regionais dentro da estrutura representativa do
Império. Alonso (2002) destaca os diferentes matizes liberais que, em um primeiro momento,
desejavam transformar as estruturas políticas para manter seus privilégios – como o caso dos
liberais pernambucanos e fluminenses. Contudo, os republicanos ganhariam força entre os
liberais, especialmente entre os oriundos de setores marginalizados pelas estruturas político-
representativas, os quais, embora contassem com recursos e/ou riquezas, não tinham autonomia
para a ação política.
A relação entre o partido conservador e o liberal pode ser destacada pelos elementos
que os unem: a regra oligárquica de regras mínimas de convivência, segundo as quais cada
facção poderia ser a mais poderosa, sem que, no entanto, alterasse os conservadores que
ocupavam o poder central. Tais partidos eram consensuais nos debates cavalheirescos da Corte
e no critério de cidadania (a propriedade e a liberdade), inobstante violentos nas eleições no
interior. Manter esses pilares significava manter a ordem política consolidada.
A hegemonia conservadora foi contestada de diferentes formas, o que se agravou ao
longo das décadas de 1870 e 1880. O Manifesto do Novo Partido Liberal, de 1869, era claro
diante do dilema que as instituições monárquicas enfrentavam: “ou a reforma ou revolução”. O
entendimento do Partido Liberal era o de que o sistema representativo vivia sob o golpe
absolutista por meio do Poder Moderador e da falsificação das eleições e comprometia a real
correlação de forças políticas do País.
As principais formas de contestação da ordem foram, mediante expansão do mercado
editorial impresso, os jornais e as revistas publicados nas principais cidades brasileiras ou, pelo
menos, nas regiões mais urbanizadas. Nesses impressos, a opinião pública demarcava seu lugar
dentro da nova sociedade imperial que se edificava com a modernização. O livro didático, por
exemplo, ganhava espaço, em razão da demanda das diferentes instituições de ensino e da
130
concepção sobre o cidadão, não apenas como possuidor de direitos políticos, mas de
conhecimentos necessários para as novas atividades econômicas advindas da Segunda
Revolução Industrial.
Para tanto, era imprescindível a expansão da malha escolar, embora isto tenha se
limitado ao município da Corte. A Reforma Educacional de 1874, de João Alfredo, propôs a
implantação de ensino industrial, técnico e profissionalizante e de programas de alfabetização
de adultos, proposta que não ultrapassou a fase de projeto de lei. Entretanto, a Reforma
promoveu a expansão das vagas no ensino superior. Desde a independência, prevaleceram as
escolas de direito e a exigência de cargos técnicos e, nesse escopo, criaram-se a Escola de Minas
e a Escola Politécnica, separando civis e militares, entre outras mudanças.
Essas mudanças implicavam a formação de uma nova opinião pública, não pertencente
ao estamento senhorial. Porém, o Estado deveria promover, controlar e disciplinar tais
mudanças e, correndo o risco de ruir todo o edifício monárquico, evitar que a própria sociedade
conduzisse esse processo. As medidas não lograram e, desse modo, resultaram em uma
modernização incompleta.
A ação dos intelectuais, baseados em suas concepções sobre o homem e sobre a
sociedade, foi importante no processo de mudança, para o país emergir como nação “civilizada”
e desenvolvida. Alonso (2002) problematiza as classificações em torno dos intelectuais e de
suas escolas filosóficas e políticas, porque, na experiência, são verificáveis as classificações
superpostas, adjacentes. Em outros termos, um indivíduo, do ponto de vista intelectual, não se
filia apenas a essa ou àquela escola ou movimento intelectual, ponto importante para se
compreender a ação política dos intelectuais nas esferas do Estado ou das instituições. Em suma,
essas classificações são mais um uso do passado, uma leitura histórica que os estudiosos – a
historiografia ‒ fizeram do que propriamente é a realidade histórica, a priori. Como o autor
destacou: “se nem mesmo na matriz havia teorias puras e bem delineadas à disposição, não há
razão para tomar as classificações teóricas como critério para leituras das obras da geração de
1870” (ALONSO, 2002, p. 30).
Desse ecletismo intelectual, emergiram maneiras de se pensar e interpretar a nação, os
problemas enfrentados pela sociedade brasileira, os caminhos pelos quais se deveria enveredar
e o papel da memória e da História na construção do novo súdito ou cidadão brasileiro para o
fim do século XIX e início do novo século.
Assim, munido dessas chaves de leitura, Alonso (2002) dá pistas sobre a compreensão
dos significados presentes nas narrativas escolares aqui analisadas, porque, afinal, os autores
em questão – no mínimo – tiveram contato com as Faculdades de Medicina e com as novas
132
teorias científicas, o que inclui o chamado racismo científico. Macedo e Mattoso Maia foram
médicos e Ribeiro, embora tenha-a abandonado, cursou medicina por algum tempo. Vale
destacar que Macedo não teve contato com as teses cientificistas durante sua formação, nos
anos de 1840.
47
Para saber mais, consultar Barroso (1867).
133
Essa leitura, com base nos estudos de Mattos (1990), explica a importância da
instrução pública no projeto de Estado Nacional durante o Império. Embora pardos e negros
tivessem acesso às primeiras letras, o acesso escolar, no plano institucional, lhes era impedido
ou dificultado.
À medida que a formação do povo se tornava uma urgência social a ser enfrentada
pelas elites políticas do Império, consolidava-se o papel de institucionalização do poder público
sobre a Instrução. No bojo desse debate, questionava-se sobre quem seriam os beneficiados,
sobre quais categorias de cidadão poderiam frequentar os recintos escolares. Martinez (1997)
responde que:
conseguinte, com a disputa sobre os limites de ação da família, que lhe mostrava resistência, e
do Estado, para o qual significava o controle necessário sobre as famílias ou o controle sobre a
formação da mão de obra em proveito da expansão da classe senhorial. Em síntese, a construção
da civilidade era fundamental para a edificação do Estado Imperial.
A difusão da civilização e da instrução tinha dupla finalidade: unir a classe senhorial
aos trabalhadores livres e distingui-los dos escravos, mantendo cada qual em seu devido espaço
e reconhecendo as hierarquias previamente marcadas. Os finais dos anos de 1840 foram
marcados pela expansão da rede escolar, embora tímida para a demanda populacional. Contudo,
ressalta-se que, das 177 instituições de ensino, 134 eram particulares (MARTINEZ, 1997, p.
278).
Se o momento de edificação e consolidação do regime monárquico e da direção
Saquarema foi marcado por uma série de leis, decretos e regulamentos acerca da instrução
primária, os anos de 1860 e 1870 não tiveram o mesmo vigor legislativo. Porém, relatórios,
como o de Liberato Barroso (1864), ou projetos de lei, como os de Paulino José Soares de Souza
(1870), Antônio Cândido Cunha Leitão (1873) e João Alfredo Corrêa de Oliveira (1874), são
reveladores acerca das discussões legislativas em torno da instrução pública e dos projetos de
Estado.
Em seu projeto, Paulino José de Souza (1870) sugeriu a criação de faculdades de
Direito, Teologia, Medicina e Ciências Naturais e Matemáticas no município da Corte, bem
como a subvenção da Coroa para a construção de escolas primárias para ambos os sexos em
todas as Províncias. Vale destacar, ainda, a sugestão da obrigatoriedade de ensino para as
crianças e os jovens de 7 a 15 anos de idade no segmento primário de ensino.48
Por fim, o mais consistente e mais amplo como projeto educacional e, por essa razão,
o mais conhecido e debatido pela historiografia é o projeto de João Alfredo Corrêa de Oliveira
(1874), cujas ideias são bastante contemporâneas. Para Oliveira, a instrução era uma urgência
social a ser enfrentada pelos dirigentes políticos e, por isso, o Estado brasileiro deveria
organizar a educação no País. Além da obrigatoriedade de ensino e frequência, o ensino
primário deveria ser destinado às crianças e aos jovens de 7 a 14 anos, bem como aos adultos
que não tiveram acesso ao ensino. Também deveriam ser construídas escolas
48
Após três anos de espera para que se debatesse sobre o referido projeto na Câmara, o deputado Antônio Cândido
Cunha Leitão apresentou outro projeto, até mais “polêmico” que o primeiro. Se, de um lado, contemporizou a
obrigatoriedade de ensino para os jovens de 7 a 14 anos das vilas e das cidades; de outro, dispensou os alunos
protestantes das aulas de ensino religioso, afinal, o Catolicismo era a religião oficial, atrelado ao Estado Imperial.
A exemplo do primeiro projeto, o de Leitão também não foi discutido entre os parlamentares. Esse bando de ideias
novas atingia a questão da relação entre a Igreja e o Estado.
136
partir dessa reforma, tornava-se livre. Assim, entende que os professores se tornavam meros
“examinadores gratuitos dos preparatórios” (DÓRIA, 1997, p. 129), frase que revela uma das
leituras feitas por essa comunidade escolar. O decreto de Leôncio de Carvalho ainda estabelecia
os termos das gratuidades na instituição: os órfãos comprovadamente pobres, os filhos dos
militares mortos na Guerra do Paraguai, os filhos dos professores que tivessem mais de dez
anos de magistério na instituição e os alunos que se distinguissem como os melhores no ensino
privado.
A historiografia destaca a dispensa de frequência para os alunos acatólicos, isto é, para
os alunos protestantes, questão que se tornava importante para garantir direitos e condições
mínimas para a vinda de imigrantes, especialmente os de origem alemã ou mesmo de outras
nacionalidades, como judeus ou árabes. Esse artigo foi duramente criticado por ferir a religião
oficial do País, mas foi uma demonstração do avanço dessas questões no debate político.
Para entender o decreto como matriz de uma modernidade pedagógica49, uma
possibilidade é a ideia de responsabilização do poder central – o Estado encarnado na figura da
Coroa ‒ sobre o ensino primário nas províncias e a necessidade de oferta escolar tanto à
população adulta analfabeta como às crianças menores de 7 anos, porque o decreto previa a
criação de jardins de infância para crianças de 3 a 7 anos de idade em cada distrito do município,
bem como de bibliotecas e museus escolares. Sobre o auxílio às províncias, ainda vale ressaltar
que a Coroa também se comprometia com a promoção, nos municípios mais importantes, do
ensino profissionalizante.
Exposto assim, compreende-se a contemporaneidade das questões educacionais
assinaladas no decreto. A oferta de ensino e a sua constituição como direito fundamental dos
indivíduos eram pontos nevrálgicos para a modernização do Estado brasileiro, especialmente
em razão das transformações ocorridas, não apenas no próprio País, mas no ocidente, como a
segunda fase da Revolução Industrial, que havia se expandido pelo continente europeu, pelos
Estados Unidos e pelo Japão.
O decreto permitia que a Coroa subvencionasse estabelecimentos particulares,
sobretudo em regiões mais afastadas onde não existissem escolas ou aulas gratuitas, garantindo
49
Segundo a hipótese de Rocha (2009, p. 126), “Entenda-se por modernidade educacional o surgimento de
questões contemporâneas de educação, como, por exemplo, o direito dos povos à educação, a previsão
constitucional de aplicação de recursos públicos orçamentários no setor, a incorporação obrigatória à escola do
público em idade escolarizável. Embora um desses tópicos tenha aparecido anteriormente – a questão da
obrigatoriedade escolar elementar em certa faixa de idade –, somente o conjunto desses quesitos caracterizará essa
modernidade, segundo a definição de uma contemporaneidade histórica”. Se não tinha todos esses requisitos, o
decreto-lei se fez moderno ao responsabilizar o Estado pela oferta de ensino. O mesmo autor salienta o
retardamento do direito à educação no Brasil, não apenas comparando-o com a Europa ou os Estados Unidos, mas
com países vizinhos e de menor envergadura econômica, como o Chile, a Argentina e o Uruguai.
138
a gratuidade aos alunos pobres. Interessante destacar que, embora um dos motes para a
liberalização do ensino fosse a suposta incapacidade de o Estado ofertá-la, o mesmo poderia
subvencionar as iniciativas particulares.
Para os fins deste trabalho, o artigo oitavo destaca as condições de equiparação dos
estabelecimentos de ensino secundário ao Colégio Pedro II: seguir o mesmo programa de
ensino, existir regularmente pelo menos por 7 anos e formar 60 alunos graduados no
bacharelado em letras. Contudo, ao legislativo, cabia a aprovação de tal equiparação e, ao
governo, sua cassação, quando o caso, e a comunicação ao legislativo sobre essa medida.
Ao longo das décadas de 1860 e 1870, foram aprovadas outras legislações relevantes,
datadas de 1862, 1870, 1876 e 1878, que versam sobre o próprio Colégio Pedro II, porque
alteraram os planos de estudo ou os programas de ensino dessa instituição, o que será
desenvolvido a seguir.
A primeira dessas legislações é a de 1862, aprovada entre a publicação do primeiro e
a do segundo volume das Lições de História do Brasil, de Joaquim Manoel de Macedo. Trata-
se do decreto n.º 2.883, de 1º de fevereiro de 1862, que alterou os regulamentos dos cursos de
estudos do Imperial Colégio de Pedro II.
O decreto reorganizou a grade curricular em relação ao plano de estudos
regulamentado em 1857, ao número de professores de cada cadeira e ao respectivo ano em que
as disciplinas eram lecionadas. Preservou a História Sagrada no primeiro ano do curso, como
em 1857, e colocou a História do Brasil no sétimo ano de curso, junto com a disciplina de
Chorographia do Brasil. Estabeleceu, ainda, o formato dos exames do sétimo ano – com
matérias lecionadas apenas naquele ano – em provas escritas e orais. Cabe destacar a supressão
do curso especial de cinco anos que existia na instituição, implantado em 1857.
O ensino de História na instituição pouco se alteraria, mas prevaleceria a força do
ensino religioso e, ao mesmo tempo, seu vínculo e sua distinção com relação à disciplina de
História, sendo a Sagrada lecionada pelos capelães que, obrigados ao serviço religioso,
trabalhavam na instituição (BITTENCOURT, 2008). Assim, o ensino de História Sagrada e o
da História Profana ganharam fisionomias próprias e se tornaram presentes nos currículos
escolares: a primeira, pelo caráter moral e ético; a segunda, como história civil, pelo caráter
político relevante para a vida cívica e social.
A segunda mudança no curso de estudos do Colégio Pedro II, aqui explorado, foi o
decreto n.º 4.468, de 1º de fevereiro de 1870, que tratava das alterações do regulamento desse
Colégio Secundário e estabelecia uma grade comum entre o internato e o externato da
instituição. O decreto também versava sobre as condições de admissão de alunos para a
139
Nesse sentido, as disciplinas de História ganharam algumas novidades quando comparadas aos
decretos anteriores. A primeira é a de que a História Antiga e a Medieval seriam reunidas em
uma única disciplina no quarto ano, e a História Moderna e a Contemporânea seriam reunidas
no quinto ano ‒ aliás, pela primeira vez, aparece a História Contemporânea, ainda que unida à
Moderna. Conjectura-se que a característica quadripartida da historiografia francesa estava aqui
em contraponto com a tripartida inglesa. O sexto ano não possuía a disciplina de História, mas
manteve a Corographia do Brasil, agora separada da História do Brasil, que estaria presente no
sétimo ano.
Voltando à questão do quadro de professores expresso no decreto anterior, o artigo
oitavo do decreto de 1876 esclarecia que deveria haver um professor de História Universal e
um professor de História e Chorografia do Brasil para cada Colégio (Internato e Externato).
Esse ponto é importante, já que Mattoso Maia foi professor do Internato quando publicou as
Lições de História do Brasil.
O decreto também estabelecia a necessidade de elaboração de compêndios para uso
dos alunos nas disciplinas, conforme destacado no artigo 10: “Art. 10. Os compendios serão
accommodados ao programma do ensino para sua plena execução” (BRASIL, 1876). Ademais,
a produção de compêndios deveria seguir os programas de ensino do Colégio. Pode-se inferir,
com isso, um entrelaçamento entre a produção didática e os programas oficiais do governo;
contudo, os referidos programas de ensino eram produzidos pelos próprios professores que
compunham a Congregação – instância maior do Colégio Pedro II.
Problematizam-se, embora sem mensurar, algumas questões. Esses professores não
eram os mesmos autores dos programas de ensino e dos livros didáticos? Um nome consagrado
no meio intelectual – neste caso, historiográfico – não influenciaria ou determinaria os pontos
que deveriam ser seguidos no ensino de História do Brasil? Afinal, instituições de peso, como
o IHGB, produziam uma historiografia brasileira que repercutia tanto nos programas oficiais
de ensino como nos manuais destinados ao ensino escolar. Dito assim, por que não dizer o
inverso? Não eram os livros que determinavam os programas de ensino? Ou, de um modo mais
dialético, será que essa relação não era mais aberta e flexível, numa influência recíproca?
Art. 11. Quando não haja livro nas circumstancias de ser adoptado para o
ensino, os Reitores de acôrdo entre si incumbirão um dos professores da
materia de compôr o compendio que fôr preciso, e que será submettido á
approvação do Ministro do Imperio por intermedio do Inspector Geral, ouvido
o Conselho Director, e o Bispo Diocesano quando fôr para o ensino religioso.
Si nem-um dos professores quizer tomar sobre si a composição do compendio,
141
O décimo primeiro artigo tornava legal a relação entre a produção dos autores dos
manuais didáticos e a dos professores da Instituição que se encarregariam dela. Nesse sentido,
o compêndio de Mattoso Maia é um exemplo, já que seu manual foi produzido com base em
suas aulas no internato do Colégio Pedro II, como atesta o frontispício de suas Lições de
História do Brasil (Anexo 5). O mesmo exemplo seria seguido por João Ribeiro, vinte anos
mais tarde, como será discutido no próximo capítulo.
Pode-se afirmar, também, que se transformou o professor em autor de material
didático, processo iniciado por Macedo (GASPARELLO, 2011), ainda que se possa
problematizar a questão da autoria desse tipo de livro. Mattoso Maia não foi um intelectual que
convivera nas redes de sociabilidade como Macedo e João Ribeiro e, muito menos, publicou
obras de fôlego intelectual, literárias ou científicas, embora tenha sido autor de tese de
conclusão do curso de Medicina e de manuais de História Universal.
Por fim, o décimo quinto artigo do decreto de 1876, que alterou os regulamentos do
Colégio Pedro II, determinava a contratação de professores mediante realização de concursos
públicos, tanto para os professores de carreira quanto para os substitutos. E foi nesses moldes
que o médico Mattoso Maia se transformou em professor de História Universal da instituição,
em 1879, da qual já era substituto desde 1876. A um professor mencionado nos anais da História
do Colégio Pedro II, mas pouco explorado pela historiografia, será dedicado o próximo tópico,
investigando o porquê da escassez de dados sobre ele.
Luís de Queirós Mattoso Maia ‒ nascido no Rio de Janeiro, em 1833, filho de José da
Silva Maia Ferreira e Angela Mattoso de Andrade Maia ‒ é o segundo autor de livros didáticos
analisado nesta tese e tem biografia semelhante ao primeiro autor, Joaquim M. Macedo. Em um
primeiro momento, entendia-se que Mattoso Maia era o mais anônimo dentre os autores
analisados, sem grande carreira intelectual e com escassas fontes a seu respeito. A própria
historiografia de ensino de História se dedicou pouco ao autor, talvez por não haver tantas
evidências de sua contribuição para o ensino de História. Entretanto, por não ter conseguido
informações precisas, como o ano de nascimento e de falecimento ou mesmo o tempo de serviço
prestado ao Colégio Pedro II, esta tese se dedicou à procura de pistas e rastros de Mattoso Maia
142
nos principais jornais do município do Rio de Janeiro. A hipótese era a de que um professor do
Colégio Pedro II, em função da importância dessa instituição para o País, não passaria
desapercebido.
Um exame sobre os jornais O Paíz, Gazeta de Notícias e Jornal do Brazil comprovaria
tal suspeita. Para realizar tal investigação, utilizou-se a Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional, em 2016, pesquisando-se o período entre 1880 e 1920, espaço de tempo em que se
acreditava encontrar pistas sobre a primeira edição das Lições de História do Brazil, de 1880,
assim como sobre as características físicas do livro e a tipografia em que fora impresso. Em
virtude da busca pela data de falecimento do autor, limitou-se a pesquisa ao ano de 1920; porém,
Mattoso Maia falecera em 1903, notícia dada pelos três jornais mencionados. O Gazeta de
Notícias50 publicou uma notícia mais completa sobre o fato, a qual permitiu, inclusive, saber
que o autor nascera em 1833, em razão da divulgação da idade que possuía quando falecera, 70
anos.
A edição utilizada nesta tese não tem data, mas, por duas razões, acredita-se ser a
primeira. De acordo com a pesquisa feita por Gasparello (2004), a primeira razão é o fato de tal
edição não possuir referência às datas em capa dura e linhas douradas. A segunda razão é o fato
de, nas pesquisas feitas nos três hebdomadários citados, encontrarem-se referências ao preço
das obras com o mesmo subtítulo encontrado no frontispício do livro. Isto se reforça porque,
no anúncio do ano de 1886, menciona-se que estão à venda os exemplares da segunda edição
do manual didático. No exame feito nos jornais, encontraram-se fragmentos da existência do
professor, os quais dão poucas pistas sobre sua vida pessoal e intelectual.
Localizou-se que Mattoso Maia foi casado com Maria Amália Willians (1842-1903),
com quem teve 8 filhos e cujo nome mudaria para Maria Amália Mattoso Maia, conforme o
costume. Sabe-se que sua esposa era de origem holandesa, pois seus descendentes publicaram
a genealogia da família51, o que permitiu encontrar rastros de Mattoso Maia, citado, no referido
estudo, como lente do Colégio Pedro II.
De acordo com Monteiro (1987), no livro Fazenda de São Matheus, o acadêmico ou
estudante de Medicina, Luis de Queirós Mattoso Maia, esteve nessa fazenda, em 1855, para
tratar os escravos doentes, quando uma epidemia de varíola assolara a Baixada (os atuais
50
“Victimado por uma arterio-sclerose, de que há muito padecia, faleceu hontem na idade de 70 anos, o Dr. Luiz
de Queiroz Mattoso Maia. [...] Fez toda a campanha do Paraguay como cirurgião-mór de brigada. [...] Foi diretor
do Hospital de S. João Baptista de Nictheroy e delegado de polícia da mesma cidade. Tomou parte nas Palestras
Litterarias instituídas e presididas pelo imperador D. Pedro II. Durante 35 anos regeu a cadeira de historia do
Collegio Pedro II, hoje Gymnásio Nacional, tendo-se jubilado há cerca de quatro mezes” (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 23 dez. 1903).
51
Para saber mais, consultar o link: http://www.genealogiabrasileira.com/cantagalo/cantagalo vanerven.htm.
143
municípios de Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti). Isto indica sua carreira pregressa
na área médica, ainda que como estudante; diferente de Macedo, que praticamente não exerceu
a medicina, ou João Ribeiro, que abandonou o curso. Vale destacar que os indícios encontrados
apontaram que o Dr. Mattoso Maia, além de não ter abandonado essa carreira, foi diretor de
Hospital, em Niterói.
Em 1859, Mattoso Maia se formou em Medicina e, na condição de médico, entre 1865
e 1870, participou da Guerra do Paraguai. Por essa razão, recebeu a condecoração de Oficial da
Imperial Ordem da Rosa por serviços prestados em campanha na guerra contra o Paraguai
como Cirurgião-Mor de Brigada em comissão e chefe da ambulância da 1.ª divisão da
cavalaria, conforme folha de rosto de sua tese, apresentada ao concurso da cadeira de História
e Corographia do Brasil, em 1879, quando se tornaria professor do Colégio Pedro II, como
apresentado na relação de professores do Colégio Pedro II 1838-1920 (AZEVEDO, 1921). De
acordo com a nota de seu falecimento, ele se manteve nos quadros dessa instituição até o ano
de sua morte (1903), embora já estivesse aposentado há cerca de quatro meses.
Encontrou-se a informação do nascimento de seu filho, Luis de Queirós Mattoso Maia
Filho, em 1864, um pouco antes da ida do médico à Guerra do Paraguai. Nomes de outros filhos
foram encontrados nos três jornais mencionados: Zilah, que foi professora e diretora escolar, e
Cesar do Paço, que foi agente sanitário. Outros sobrenomes Mattoso Maia foram encontrados
nos jornais em anúncios de funerais, nos quais Mattoso Maia estava presente, o que permite
inferir a hipótese de ele ter pertencido a famílias que se dedicaram à vida militar e também ao
magistério.
A primeira faceta de Mattoso Maia a ser mencionada é a militar, por meio da qual
chegou à patente de major médico do Exército Brasileiro. Na pesquisa nos jornais já
mencionados, encontraram-se dezenas de referências ao doutor em comparecimento aos
funerais de militares, provavelmente companheiros da Guerra do Paraguai ou da vida militar.
Tudo indica que ele preservou, portanto, sua rede de sociabilidade no universo militar. De
acordo com Felix Junior (2009), o ordenado de um médico voluntário da Guerra do Paraguai
era de 600 mil réis, enquanto o ordenado médio de um cirurgião era de 90 mil mensais. Isto
significa dizer que, no mínimo, era uma boa oportunidade financeira de trabalho, embora fosse
no campo de batalha. O mesmo autor destaca que faleceram 17 médicos brasileiros no conflito,
indicando que, ainda que boa a carreira, não era a mais segura. Mas, talvez, o militarismo tenha
sido a primeira grande oportunidade profissional para o futuro professor do Colégio Pedro II.
Outra faceta do autor é a vida dedicada à Medicina. No site Genealogia Brasileira, foi
possível encontrar referências a ele como médico e diretor do Hospital São João Batista, de
144
Niterói, contudo não foi possível localizar o período. Ademais, pode-se inferir que o autor
atuava como médico paralelamente à vida docente. Ainda, em Niterói, Mattoso Maia foi
delegado de polícia.
Como já mencionado, Mattoso Maia, em 1879, se tornou professor de História
Universal no internato do Colégio Pedro II. Ainda, foi professor de Geografia e Corographia
do Brasil. Nessa nova condição, tornou-se autor de livros didáticos e, assim, seguiu o mesmo
caminho de Macedo, professor de História do Colégio Pedro II e autor de livros destinados ao
público escolar. Com esse objetivo, Mattoso Maia escreveu outras Lições de História do Brazil,
publicadas em 1880, com base em suas aulas no internato dessa instituição. Vale destacar que
Mattoso Maia era professor da instituição como substituto desde 1876, o que pode ser
confirmado pelo decreto que deliberou a incorporação do tempo de serviço referente a essa
época, conforme notícia do dia 18 de setembro de 1896, do Gazeta de Notícias, segundo a qual
Mattoso Maia completava 20 anos de magistério no Colégio Pedro II.
A Revista do Instituto Histórico (1925), publicou uma coletânea de artigos sobre o
centenário de nascimento do Imperador Pedro II. Nesses textos, há uma passagem, que fora
publicada no Jornal do Comércio, assinada por J. M. M. F., sobre as razões para o ingresso do
Dr. Mattoso Maia no Colégio Pedro II. Segundo ele, tratou-se da vontade do Imperador em
prover com cargos públicos os homens que participaram da Guerra do Paraguai 52. Assim,
Mattoso Maia foi professor com talentos e méritos até 1903, quando se aposentou.
De acordo com Boclin (2009), Mattoso Maia não fez parte do IHGB, diferente de
Macedo, que ocupou cargos importantes, ou João Ribeiro, que foi um homem das letras. As
críticas às suas Lições, exploradas adiante, se não determinam qualquer atrito com a instituição,
pelo menos demonstram que o autor e a instituição não gozavam de simpatias entre si.
As Lições de História do Brazil, de Luís de Queirós Mattoso Maia, fizeram parte dos
programas de ensino do Colégio Pedro II dos anos de 1882, 1892, 1893, 1895 e 1898, conforme
Vechia e Lorenz (1998) assinalaram. Tal afirmativa indica que o manual, embora fosse
52
“Os voluntários do Paraguay
D Pedro II sempre quis prover nos cargos públicos, para os quaes fossem aptos, os voluntários do Paraguay, e
tinha por elles predilecção. Vagando a cadeira de historia do Collegio d. Pedro II, concorreram a ella os drs
Rozendo Muniz e Luiz de Queiroz Mattoso Maia, ambos classificados com egual merecimento. O Conselheiro
Francisco Sodré, ministro do Imperio, deu preferencia á nomeação do Dr. Rozendo Muniz e mandou lavrar o
decreto, submettendo-o á assignatura do imperiador.
- os exames foram considerados eguaes, objectou dom Pedro II, delicadamente, mas o Mattoso Maia esteve no
Paraguay...
- O dr Rozendo também esteve... disse o ministro.
- Sim, replicou o imperador, mas como medico civil em Assumpção no Hospital de Marinha. O Mattoso Maia
esteve na batalha de 24 de maio, no Hospital de Sangue, como cirurgião-mór de brigada. Além disso é chefe de
numerosa família; o outro é solteiro...” (RIHGB, 1925, p. 742).
145
destinado a uma história imperial, seria, ainda, utilizado nos primeiros anos da República, pelo
menos dividindo espaço com as Lições de Macedo, atualizadas por Olavo Bilac (ALVES;
CENTENO, 2009), até o programa de ensino de 1905, quando as obras de João Ribeiro e
Escragnolle Dória seriam as referências para os novos programas de ensino.
Alves e Centeno (2009) destacam que as Lições de Mattoso Maia foram produzidas
pouco tempo depois de sua nomeação como professor do Colégio Pedro II. Os autores
defendem a seguinte hipótese, que pode ser aqui considerada:
século XVIII, até a chegada da família real. Vale destacar seus dois livros destinados ao ensino:
Lições de História Universal, de 1887, e Lições de História do Brazil, de 1880, em análise nesta
tese.
Sobre a obra Lições de História Universal, pode-se comentar a crítica feita pelo jornal
O Paíz, em 13 de fevereiro de 1887, por meio da publicação de uma resenha, na ocasião do
lançamento do primeiro volume desse livro, que abarca a chamada História Antiga. Na matéria,
destaca-se o texto encomiástico ao autor do livro que, com certeza, seria adotado pelo Colégio
Pedro II em função dos pareceres de determinados professores, como Capistrano de Abreu. Um
pouco mais de um mês, o mesmo jornal, em 27 de março de 1887, noticiaria a aprovação do
livro pelo Ministério do Interior para uso no Colégio Pedro II, custando o preço de 4$000. Essa
nota se justifica pelas ácidas críticas feitas pelo jornal Gazeta de Notícias, especificamente por
Capistrano de Abreu, às Lições de História do Brazil, exploradas no próximo tópico.
Se não foi um polígrafo como João Ribeiro ou literato como Joaquim M. Manoel de
Macedo, o dr. Mattoso Maia se ocupou de outras formas na vida do magistério ou da medicina.
Nos três jornais analisados, foi possível verificar a participação de Mattoso Maia, em diferentes
anos, nas bancas de exames preparatórios que conferiam o grau de bacharel ao formando do
Colégio Pedro II, entre os anos de 1880 e 1890. Em 1902, por exemplo, o autor participou de
uma banca ao lado de João Ribeiro.
Além disso, o professor Mattoso Maia participou de bancas de concursos para o
ingresso de professores na mesma instituição. Capistrano de Abreu foi aprovado em 1883
unanimemente pela banca, em cuja composição estava Maia, que ainda participaria de outros
concursos. Destaca-se este, em especial, em razão de sua relevância e, também, de sua
influência na História do Brazil, de João Ribeiro, mais tarde.
Mattoso Maia também participou constantemente das inspetorias aos colégios
particulares, bem como dos exames finais dessas escolas. Ademais, o autor foi professor do
Colégio Alipio, informação confirmada por uma propaganda desse Colégio em O Paíz, de 07
jan. 1895, que destaca ser Maia lente do Gymnásio Nacional de História Universal. Vale
destacar que ele não era o único que lecionava em ambas as instituições, a exemplo do professor
de Português Dr. Fausto Barreto, do professor de Latim Dr. Fortunato Fonseca Duarte e do
professor de Inglês Dr. Guilherme Affonso, destacados no anúncio.
As redes de sociabilidade vistas nas três facetas do autor ‒ professor, médico e militar
‒ mostram que, diferente de Macedo e Ribeiro, Mattoso Maia não pertencia ao círculo
intelectual das letras. Antes, Mattoso Maia, embora professor do Colégio Pedro II, pertencia ao
círculo intelectual dos militares, como herói da Guerra do Paraguai, ou do Colégio Militar, sem
147
contar sua atuação como médico. Isso talvez explique por que ele não teve a mesma dedicação
aos estudos históricos como Macedo ou Ribeiro e qual a diferença entre a sua trajetória
intelectual e a dos outros dois autores pesquisados.
Para a historiografia do Ensino de História, essa manutenção dos paradigmas
assinalados por Macedo/Varnhagen significou uma continuidade em relação às representações
históricas da História do Brasil. Compreende-se que essa leitura foi influenciada pela crítica de
Capistrano de Abreu, exposta na tese de Gasparello (2004). Entretanto, nas Lições de Mattoso
Maia apresenta as divergências existentes entre datas e eventos importantes da história
brasileira, sendo, nesse sentido, mais denso que Macedo. Esses deslocamentos, explorados na
análise sobre as Lições de História, de Mattoso Maia, são a contribuição desta tese para o campo
de pesquisa.
Mattoso Maia produziu sua própria leitura sobre a História do Brasil e indicou como
ela deveria ser lecionada. Avançou em algumas questões ‒ como o reconhecimento das nações
indígenas enquanto partícipes da colonização portuguesa ‒ e teceu críticas à administração
pombalina sobre o domínio brasileiro. Fundamentado nessas chaves de leitura, é possível
estabelecer quem é o súdito brasileiro imaginado por Mattoso Maia e que conhecimento e crítica
histórica deveriam se desenvolver.
Por um lado, Mattoso Maia pecou por não ter incorporado a historiografia
desenvolvida no IHGB, como criticou Capistrano de Abreu. Por outro, suas inexatidões
históricas não o impediram de construir um manual com certa originalidade, inclusive ao
incorporar produções intelectuais para além da história oficial do Instituto Histórico e ao
desenvolver uma linha narrativa própria sobre os povos nativos do território brasileiro, o que,
em boa medida, foi um avanço, se comparado aos manuais de história que o antecederam.
agremiações, como o IHGB ou ABL, diferente de João Ribeiro, tampouco teve uma jornalística
que desse visibilidade à sua produção intelectual. Apesar de sua trajetória de vida ter sido
multifacetada entre diferentes cargos públicos, Mattoso Maia não foi um homem das letras,
como foram o literato e o polígrafo aqui analisados.
As edições das Lições de História do Brazil, de Mattoso Maia, passaram por diferentes
livrarias e editoras. Localizaram-se seis edições da obra, da segunda à sexta, pois todas
mencionam a edição em seu frontispício. Uma está sem data e, por isso, acredita-se ser a
primeira, afinal, também era comum que a primeira edição não viesse com essa informação.
Resumindo: 1.ª edição, de 1880, sem data, publicada pela Editora Dias da Silva Júnior; 2.ª
edição, de 1886, publicada pela B.L. Garnier; 3.ª edição, de 1891, também pela B. L. Garnier;
4.ª edição, de 1895, publicada pela Francisco Alves; 5.ª edição, de 1898, também pela Francisco
Alves; e 6.ª edição, de 1908, publicada pela Typographia Amerino e organizada pelo filho de
Mattoso Maia, numa publicação póstuma.
Antes de adentrar a análise das Lições, mergulha-se em uma passagem do professor
Mattoso Maia e nas críticas feitas a seu manual didático. Como se adiantou, seu livro não foi
bem recebido pelos editores do Gazeta de Notícias. Na sessão Livros e Letras, do dia 29 de
julho de 1880, há duras críticas sobre as Lições de História do Brazil, de Luis de Queirós
Mattoso Maia. Embora não se faça menção ao autor da crítica no jornal, foi possível localizá-
lo quando se analisou a dissertação de Santos (2009b): tratava-se de Capistrano de Abreu. As
críticas dão mostras de como os contemporâneos, no caso de alguém específico, recebiam a
publicação do manual didático.
Abreu apresentou. Mesmo que seja demasiado longo citá-las aqui53, tais críticas podem ser
sintetizadas na seguinte afirmação:
E’ estar pouco a par dos estudos críticos que entre nós se tem feito sobre alguns
pontos da história pátria. A Revista do Instituto traz alguns; mas o ilustrado
professor do Imperial Collegio parece que embirra com a Revista Trimensal,
e não julga a digna de leitura. [...] Mas se o ilustrado professor foleasse [...]
estaria isento de muita cousa. (GAZETA DE NOTICIAS, 1880).
De acordo com Capistrano de Abreu, a obra teria a oportunidade de integrar aos livros
escolares de História do Brasil as produções do IHGB. Embora existam críticas fortes às linhas
narrativas de Mattoso Maia, o autor não escreveu o pior dos livros, inclusive Capistrano cita o
manual de língua portuguesa de autoria de certo Motta, como exemplo de manual ruim. Talvez
a explicação da ausência da produção do IHGB na obra esteja no fato de Mattoso Maia não ter
sido sócio dessa instituição, ainda que ocupasse um cargo de importância, como o de professor
de História no Colégio Pedro II.
Tal crítica se confirmaria mais uma vez em 2 de agosto de 1880, quando outra
duríssima avaliação às Lições de História do Brazil seria feita. Além de mais ataques às
inexatidões históricas, o texto respondia a críticas do próprio Mattoso Maia aos editores do
jornal. Infelizmente, não se encontrou tal carta de resposta. Porém, os editores do jornal
afirmaram:
Recorrendo à modéstia, os editores afirmaram não conhecer tudo mesmo. Mas para os
editores, o autor das Lições demonstrou não conhecer outras fontes da História do Brasil ou
outros trabalhos como o do Senador Cândido Mendes54 sobre a História Pátria, o que Mattoso
Maia negou, pois inclusive indicava tal obra aos seus alunos. Os editores lhe responderam com
outra crítica: a falta de citação dos trabalhos de referência para as Lições de História: “Não o
duvidamos, e, si não houvesse exemplos de citar-se autores sem os ter previamente lido,
53
Ver a crítica historiográfica em Santos (2009b).
54
O jornal se refere ao Senador pela Província do Maranhão entre 1871-1881. Cândido Mendes, que foi deputado,
advogado e magistrado, teve publicações em Direito e História. Provavelmente, os artigos do jornal se referem ao
Atlas do Império e aos artigos publicados na Revista do IHGB: XL, de 1877, e XLII, de 1879. Para saber mais
sobre a biografia do senador, consultar o link:
http://www.senado.gov.br/senadores/senadores_biografia.asp?codparl=1535&li=17&lcab=1878-1881&lf=17.
150
55
A estratégia de questionários ao final dos capítulos ainda existe nos manuais de hoje. A maioria dos livros possui
exercícios de reflexão, interpretação e análise de documentos ou obras historiográficas a respeito do assunto
tratado, sem, contudo, abrir mão de exercícios que retomam a leitura do capítulo.
151
possuíam certo grau de civilidade, como se o contato com o branco civilizador tivesse acelerado
o progresso e a civilização dos indígenas. Tal civilidade também é atribuída a alguma
ancestralidade caucasiana, ideia presente em sua principal referência bibliográfica, a de Couto
de Magalhães. A “Lição V – Povos que habitavam o Brazil na época do seu descobrimento” é
uma importante fonte para se compreender o que o autor definia como raça, afinal ele se
debruçou sobre os povos autóctones. Primeiro, Maia estabelecia duas raças: as primitivas,
descendentes dos Incas, e as puras, descendentes dos asiáticos (mongólicos). Já a raça de origem
nativa da América:
56
José Vieira Couto de Magalhães foi uma importante figura política e militar do Império, que ocupou a
presidência das províncias do Mato Grosso, do Pará e de São Paulo. Também foi um intelectual, formado em
direito pela Faculdade de São Paulo. Foi um dos precursores dos estudos sobre a língua e a cultura dos Tupis.
Além de O Selvagem (1876), escreveu Ensaios de Antropologia (1894).
152
desenvolvimento civilizatório: os Tupis possuiriam lavouras e teriam uma língua geral por meio
da qual as tribos se compreendiam, ao passo que os Tapuias seriam caçadores e teriam diversas
distinções linguísticas. Os Tupis foram representados como vencedores dos antigos ocupantes
das terras litorâneas, expulsando os aymores para os sertões. Inclusive, Tapuia, na língua Tupi,
significa bárbaro; quer dizer, entre os próprios autóctones, existiria a noção de civilização. O
capítulo retrata, em boa parte, o debate dentro do IHGB sobre uma suposta origem de
civilização decaída entre os indígenas brasileiros. Assim, a representação dos Tupis ganhou
destaque em relação aos outros povos nativos.
Maia apresentou uma teoria interessante sobre a ancestralidade das línguas faladas
entre os autóctones da América. Com base em Couto de Magalhães, explicava a origem de
línguas como o quéchua, que teria parentesco com o sânscrito, e como o tupi, que teria mais
afinidade com a língua do Egito antigo. Em outras palavras, Maia tentava explicar a
ancestralidade desses indígenas com a civilização europeia57 e defendia uma percepção
evolutiva para se interpretarem os Tupis e os Guaranis como povos que viviam na Idade da
Pedra Polida, usando ferramentas, sem fundição dos metais, mas dominando o fogo. Para ele,
além disso, o selvagem brasileiro teria vivido a fase de agricultor sem ter desenvolvido a cultura
pastoril. Trata-se de uma projeção do processo histórico e civilizatório europeu para analisar os
povos americanos, configurando diferentes estágios de evolução das civilizações humanas.
Além dos aspectos físicos e raciais, Maia se dedicou a apresentar aspectos do
cotidiano, dos hábitos, da organização das aldeias e dos instrumentos de trabalho. Cabe destacar
a representação da moral, de forma genérica, sobre os indígenas:
57
Sílvio Romero faria considerações sobre a obra de Couto de Magalhães, o que demonstra que a obra do militar
não seria anônima no meio intelectual, pois antes fora analisada e criticada por essa intelectualidade. Contudo,
analisar tais críticas e tal repercussão extrapolaria os limites deste trabalho, cabendo apenas curtas considerações.
Romero foi um ferrenho crítico do que ele chamava de índio-mania, isto é, do enaltecimento da literatura romântica
brasileira à figura dos aborígenes, coisa que, nos Estados Unidos, era da ciência e que, ainda, não havia chegado
ao Brasil, exceto por meia dúzia de intelectuais. Nesse sentido, Romero criticou a obra de Couto de Magalhães,
embora reconhecesse seu esforço intelectual. Ademais, não se furtou em demonstrar as fraquezas científicas e
bibliográficas da obra, porque o militar, como não tinha o conhecimento das teorias científicas mais atuais, baseava
seu trabalho em velhas noções acerca desses povos “selvagens”. Nesse sentido, enumerou sua crítica ao trabalho
geográfico do militar e a seus devaneios de poesia. Criticou também a nada original tese de descendência ariana
dos Tupis ou de seu cruzamento com os povos da América Central ou dos Andes. Sua análise se completa com a
teoria de que a língua tupi tinha algum laço de parentesco com o quéchua, sânscrito ou qualquer língua indo-
europeia, o que, para Romero, não possuía qualquer sentido. Para mais informações, conferir Romero (1888).
153
Maia destacou os sentidos aguçados desses povos, bem como a prática da poligamia e
a liberdade de se divorciarem entre si. Outro ponto foi o da divisão sexual do trabalho e das
funções sociais: os homens eram totalmente voltados para a guerra e para a preparação da
agricultura; e as mulheres eram os misteres domésticos, desde a produção de utensílios
domésticos e o preparo de alimentos até o carregamento do peso nas marchas, afinal, era o
homem quem fazia a defesa contra o inimigo à espreita.
Outra questão destacada por Maia é a religiosidade desses povos, que criam numa vida
além da morte e faziam diferentes rituais, como queimar os ossos e enterrá-los com pertences
do cotidiano. Por um lado, Maia representava a diversidade religiosa desses povos; por outro,
hierarquizava as religiões quando as comparava ao cristianismo e a seu Deus criador e
regulamentador do mundo. Os deuses dos Tupis eram Tupã (Supremo), Guaracy (sol), Jacy
(lua) e Rudá ou Perudá (amor). Além deles, existiam inúmeras entidades que acompanhavam
os vivos em diferentes ocasiões, como a guerra e a caça.
O governo foi apresentado por Maia tendo o morubixaba como líder, especialmente
nos tempos de guerra, pois, nos tempos de paz, ele dividia seu poder com uma assembleia, a
Nhemongaba. As leis eram “naturais”, à base da força física. Quando havia crime, que
praticamente se limitava ao homicídio, o assassino era entregue à família da vítima. Em outras
palavras, a justiça era baseada no que se chama hoje de vingança.
Embora fosse um avanço, quando comparado às Lições de História do Brasil, de
Joaquim M. Macedo, o trabalho de Maia tinha limites sobre a interpretação da nação brasileira.
A relação dos jesuítas é emblemática para se compreender esses limites, porque, embora
apresentasse aspectos da cultura e da evolução dos povos autóctones, Maia preservava o sentido
eurocêntrico de civilização. Tratava-os como elementos exóticos no contato com a civilização,
e não como artífices da nacionalidade brasileira.
No intuito de buscar mais pistas sobre a leitura de Mattoso Maia, procurou-se a
principal referência para sua representação das nações indígenas, o também militar Couto de
Magalhães, que viajou por 12 anos pelos sertões do Pantanal e da Amazônia, onde conheceu e
aprendeu as línguas indígenas e escreveu um manual para aprendê-las e para civilizar tais
povos. Para ele, essas ações seriam fundamentais para a posse de toda essa grande
territorialidade e de “um milhão de braços aclimados, e que se prestam ás indústrias extractivas
e pastoris” para o Império (MAGALHÃES, 1876, p. VIII). Para o militar, a conquista pacífica
era o melhor caminho para a real ocupação da “civilização” sobre essas terras virgens e
inexploradas pelo Império, conforme assinalou: “Testemunho da história demonstra que por
154
toda a parte, e em todos os tempos em que uma raça barbara se poz em contato com uma raça
civilisada, esta se vio forçada ou a exterminal-a, ou a ensinar-lhe a sua língua” (MAGALHÃES,
1876, p. VII).
A despeito das intenções de Magalhães, o que, por si só, seria um trabalho desafiante
que extrapolaria os limites desta tese, limita-se a análise à sua leitura sobre as nações e à sua
ideia de raça indígena. Couto de Magalhães, conforme resenha feita por Mattoso Maia sobre a
segunda parte de sua obra, distinguia a espécie humana em quatro troncos: preto, amarelo,
vermelho e branco, surgidos em épocas diferentes. Sua hipótese era a de que o mais antigo, o
preto, seria o primeiro a se extinguir, seguido do amarelo e do vermelho, restando o tronco
branco, como foi o desaparecimento do que ele denomina de quadrúmanos. Entretanto, não
definia se sua teoria era monogênica ou poligênica, mas dava pistas do uso da lei de seleção
natural de Charles Darwin. Vale destacar que a tese de Magalhães induzia à ancestralidade das
raças andinas com as raças arianas e parte delas teria migrado para as selvas brasileiras, onde
coexistiriam com outras raças. Os andes teriam essa ancestralidade ariana, embora miscigenada,
em razão do alto grau de civilização, costumes e religião e da semelhança entre o Quéchua e o
Sânscrito.
Em síntese, a resenha de Mattoso Maia sobre a obra de Couto de Magalhães enunciava
certa ancestralidade das raças “vermelhas” em relação à raça ariana. Contudo, tal valorização
não significou o reconhecimento das nações indígenas presentes no território brasileiro como
nações civilizadas. Antes, significou a necessidade de incorporá-las à civilização e ao
cristianismo. Tal incorporação tinha diferentes intenções. Para Magalhães, era a conquista real
sobre os sertões amazônicos e sobre o Pantanal, era o uso dos seus “braços” para a economia
do Império e para os progressos do País. Porém, o autor silencia se tal cultura comporia o que
se chamaria de nação brasileira.
A leitura de Mattoso Maia sobre as nações indígenas, com base em Couto de
Magalhães, permite afirmar que suas referências estavam para além do IHGB, inclusive da rede
de sociabilidade dos militares. Como já mencionado, Couto de Magalhães foi militar, assim
como Mattoso Maia, e ambos conheceram o pantanal brasileiro e o Chaco, palco da Guerra do
Paraguai, local onde Magalhães desenvolveu seus conhecimentos sobre o que ele chamava de
“selvagens”. Se, por um lado, não incorporou a produção do IHGB; por outro, preferiu
incorporar os estudos de campo de militares. Infelizmente, investigar tal querela extrapola os
limites desta tese, ainda que seja enriquecedor, para o que seriam necessárias novas fontes.
Entre os políticos do império e os membros da camarilha do IHGB, debatia-se o
processo civilizatório para os povos indígenas que deveriam ser integrados ao Império
155
brasileiro. Segundo Moreira (2010), o uso das palavras utilizadas por lideranças do IHGB como
Varnhagen ‒ “clientes, brasileiros e concidadãos” ‒ revela uma distinção para se referir aos
indígenas. Nesse sentido, a autora problematiza que tipo de História se escreveria sobre o Brasil
e, por conseguinte, que projetos políticos de nação estariam propostos para os indígenas dentro
do Império brasileiro. Também, questiona as políticas do Império em relação às populações
indígenas, isto é, as estratégias adotadas pelo Estado imperial para integrar ao império esses
territórios e essas populações efetivamente. Moreira (2010) destaca que essas populações
habitavam regiões de fronteira e, dentre elas, algumas viviam com certa independência ao
sistema político e social da monarquia.
Para parte dos estadistas do Império, os índios se revelariam uma grande reserva de
mão de obra para as demandas econômicas do País. Além disso, o uso dos índios na lavoura
poderia minimizar e contribuir para o fim da escravidão. Outra questão proposta, admitida pela
geração política da independência, eram os direitos de propriedade dos povos indígenas que,
afinal, as cortes portuguesas haviam reconhecido. Contudo, ao longo do Segundo Reinado, a
expansão da lavoura acarretou a dizimação de populações indígenas e a tomada de suas terras.
O desenrolar da questão indígena entre os séculos XIX e XX se tornou uma questão de posse
de terras e, em paralelo, a representação histórica acerca desses povos foi a de que eles
conviveram com a colonização europeia.
A “Lição XXVI Reinado de D. José I – Questões e lutas ao sul do Brazil. Jesuítas e
sua expulsão. – O Marquez de Pombal. 1750 – 1777” destaca o papel civilizador da Companhia
de Jesus sobre os povos indígenas. Na leitura de Maia, o contato com os jesuítas, para os
indígenas, foi positivo, já que os auxiliou na vereda da civilização, diferente da leitura de
Macedo, que não lhes economiza críticas. Maia, ao contrário de Macedo, vê negativamente a
expulsão dos jesuítas pelo ministro Pombal, em 1759, pois os concebe como importantes
elementos da formação moral da colonização portuguesa: “Desvirtuava-a d´ahi a pouco esse
ministro com a expulsão dos Jesuítas, unicos agentes (como diz o insuspeito Robert Southey)
de poderem realizar o projeto de verdadeira emancipação e civilisação dos índios” (MAIA,
1880, p. 198). Tal leitura é semelhante à de outro manual que seria utilizado mais tarde pelo
Colégio Pedro II, durante a Primeira República, a História do Brasil, de 1900, de João Ribeiro,
para quem os jesuítas foram o elemento moral da colonização. Gasparello (2002b), numa
releitura desse manual, fez semelhante análise.
A etnografia foi o ramo do conhecimento utilizado para estudar os povos nativos do
território brasileiro. Se, por um lado, Varnhagen negava ou, no mínimo, desconfiava da tese de
os índios serem pilares fundamentais da nacionalidade brasileira, por outro, foi um dos grandes
156
incentivadores aos estudos etnográficos sobre os povos indígenas, sobre os nomes, as origens,
as línguas e os costumes das nações. Nesse sentido, Varnhagen se opunha ao espírito romântico
do indianismo da literatura brasileira. Porém, curiosamente, sua História Geral do Brasil foi
“adaptada” pelo romântico Joaquim Manoel de Macedo. A pergunta que pode se fazer é a de
como Macedo estabeleceu a ponte entre Varnhagen e o romantismo na elaboração dos indígenas
como elementos da nacionalidade brasileira.
Para Varnhagen, os índios não eram cidadãos brasileiros e eram estranhos ao pacto
social (MOREIRA 2010, p. 59). Dessa forma, não poderiam pertencer à nacionalidade
brasileira. Contudo, teriam a perfectibilidade humana se enveredassem pelo caminho da
civilização e da cristianização. Gonçalves de Magalhães, outro romântico, contestava
diametralmente Varnhagen acerca dos indígenas: para o literato romântico, a leitura que se fazia
dos indígenas era preconceituosa e caricatural, baseada no que se chamaria hoje de
etnocentrismo, o que, no seu entender, segundo Moreira (2010, p. 63), eram “(axiomas)
mobilizados pelo discurso político para justificar uma série de ações abertamente contrárias aos
direitos de liberdade, propriedade e cidadania dos índios”. Para Gonçalves de Magalhães, que
também defendia a unidade do gênero e da origem humana, os indígenas viviam em estado
social regular tão racional e moral quanto o homem civilizado.
Dito de outro modo, Maia destoava da análise de Macedo em relação à medida tomada
pelos ancestrais do Imperador D. Pedro II. Essa leitura pode ser entendida de dois modos: o
primeiro, como o estabelecimento de uma análise crítica sobre o processo histórico para além
dos silêncios e das não permissões, a fim de relatar a História oficial do País ou, pelo menos, a
escrita pelo IHGB; o segundo, como certa liberdade de ideias e expressões, já que Maia se
distanciava ao modelo monárquico e de educação voltada para os súditos, segundo os moldes
de Macedo. Se o momento em que Macedo escreveu as suas Lições de História do Brasil era o
da estabilidade política, o momento de Mattoso Maia eram os ventos das mudanças do chamado
bando de ideias, numa busca de reconfiguração do pacto político58. Porém, Maia não
desenvolvera uma análise sociológica ou de uma filosofia da História para os episódios, como
João Ribeiro fez mais tarde59.
58
Não se quer dizer com isso que se trata de uma mudança natural ou teleológica do regime monárquico para o
republicano. Como Alonso (2002) destaca, concorriam diferentes projetos políticos com a radicalização do Partido
Liberal, os quais não necessariamente se direcionavam à República. Existiam projetos de reordenamento da
representação política em face das novas forças econômicas surgidas com a modernização do País no último
quartel do século XIX.
59
Isto não quer dizer que Maia deveria tê-lo feito. Trata-se apenas de uma diferença para se destacarem as rupturas
que João Ribeiro faria em sua História do Brasil, em 1900.
157
60
De acordo com Almeida (2008), a política indigenista da Coroa variou ao longo do tempo e do espaço e de
acordo com as relações que os povos indígenas mantinham com o poder monárquico.
158
como João Fernandes Vieira, que se tornou governador depois da tomada de Recife. As tropas
seguiram conquistando e “libertando” a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o Ceará.
A narrativa sobre “a peleja”, como por ele foi chamada, destacou o heroísmo dos
pernambucanos na batalha, a desobediência dos insurgentes contra as ordens da Coroa
portuguesa (que, naquele momento, negociava uma paz com a Holanda e a Espanha) e a força
das tropas do líder potiguara Filipe Camarão. Nesse sentido, chamava a atenção um patriotismo
de uma guerra que duraria, ainda, mais 5 anos:
Como se percebe em Macedo ou até mesmo em João Ribeiro, Mattoso Maia, nesse
contexto, não imprimiu um caráter teológico à História, bem como não atrelou, até aqui, as
índoles psicológicas e históricas e as tradições brasileiras ao processo de independência
monárquica do Brasil. Descreveu o fato sem divagações em torno do que se chamaria de história
filosófica para os fatos, metodologia muito mais utilizada por João Ribeiro.
Se, na narrativa de Maia, por um lado, os indígenas foram amplamente desenvolvidos;
por outro, os africanos ocuparam pouco espaço. Não há destaque para os feitos dos negros, nem
em Palmares, nem na libertação do Brasil do julgo holandês. No caso de Palmares,
demonstrando que os ventos abolicionistas não tinham chegado à sua narrativa, o autor
160
enalteceu a bravura de Domingos Jorge Velho, líder da expedição militar que aniquilou o
Quilombo de Palmares. No caso do julgo holandês, Maia enalteceu a bravura militar de heróis
como Filipe Camarão e Henrique Dias, sem fazer referência às suas raças. O negro ser ou não
ser um portador da civilização e contribuir ou não contribuir para a edificação da nação foram
questões silenciadas pelo autor. Contudo, as passagens sobre a escravidão não são por ele
escamoteadas.
Na Lição XXXV, “Tratados de commercio. – medidas legislativas. – Revolta de tropas
estrangeiras. – Almirante Roussin. – Tumultos em Pernambuco e Bahia. – D. Maria II. – A
imperatriz D. Amelia. – Abdicação. – 7 de Abril de 1831”, o que há de mais relevante é a crítica
à escravidão feita por Maia, que fora silenciada por Macedo, nos contextos das leis do Brasil
independente:
Não seria melhor terem acabado de uma vez com a escravidão, em vez de nos
legarem esse cancro social, para cuja completa extirpação devemos ainda
esperar que a lei de 28 de setembro de 1871 produza todos os seus beneficos
effeitos! (MAIA, 1880, p. 289).
Trata-se de uma crítica direta à estrutura social e econômica do regime imperial, que
poderia ser interpretada como uma afronta vinda de um súdito. Todavia, cabe ressaltar que a lei
do Ventre Livre, mencionada na passagem, foi decretada pela princesa Isabel, favorável ao
abolicionismo. Conjectura-se, então, que o sentido de uma história imperial poderia continuar
a existir, mas nos moldes de um provável terceiro reinado, sem a chaga da escravidão. De toda
forma, a passagem demonstra certa liberdade de pensamento e de debate sobre a questão da
escravidão na fase final do império. Outra possibilidade de leitura é o reconhecimento das
políticas encaminhadas pelo gabinete conservador de Visconde de Rio Branco, as quais, embora
critiquem a escravidão, não se aprofundam ou, pelo menos, não destacam outras possibilidades
de finalizar a escravidão de forma mais incisiva, pois, antes, destacam a via conservadora
adotada pelo Gabinete de Visconde de Rio Branco para a solução desse cancro social. Ainda
sobre esse contexto histórico, a experiência da guerra partilhada com os escravos mandados
para o front favoreceu o apoio dos militares ao fim da escravidão, ideia essa também defendida
pelo médico, militar e professor em questão.
Outra passagem da obra é reveladora acerca do modo como Maia tratava o termo raça.
Na análise do conflito da Cisplatina, raça é sinônimo de nação: “O antagonismo tradicional da
raça castelhana contra a portugueza” (MAIA, 1880, p.282). Interessante é que o conflito foi
longamente narrado com destaque às derrotas brasileiras no confronto, evidenciando a
161
inabilidade dos generais para conduzir as forças contra os separatistas. Em síntese, a dimensão
racial determinou que o melhor caminho era a independência do Uruguai.
Acredita-se, então, que Maia se aproxima da concepção de Sílvio Romero sobre a
distinção das raças: a primeira é a de caráter físico, denominada antropológica; e a segunda,
denominada histórica, da qual nasceram as nações modernas. Ainda que sutilmente, existe uma
teorização sobre o conceito de raça, embora pouco explorado (ou não explorado) pelo autor ao
longo da narrativa de sua História do Brasil.
Uma outra questão que salta aos olhos é a sucessão do trono em Portugal, na ocasião
da morte de D. João VI, que criou uma forte crise política no Brasil, agravada pela oposição do
parlamento ao Imperador. Cabe destacar o posicionamento de Maia:
A passagem é reveladora porque não faz a leitura histórica de uma tradição à brasileira
de se governar por um rei. O que faz é apresentar abertamente as primeiras ideias republicanas
durante o primeiro reinado, embora as contemporize com a independência.
Diante dessas afirmações, relativiza-se a continuidade entre as Lições. As leituras,
como a das Lições de Macedo, são bem distintas no que se refere à formação de um súdito. Para
Maia, as questões das tradições dinásticas ou das índoles do povo não são caminhos para a vida
política do País. Curiosamente, sobre a mesma questão, João Ribeiro retomaria a leitura de
Macedo de outra forma: embora houvesse ideias republicanas, as índoles psicológicas e
históricas, na ocasião da independência, apontavam a monarquia como o melhor caminho para
a manutenção da unidade territorial colonial, ao passo que, ao longo do regime imperial, uma
“evolução política” permitia a existência de um regime republicano imaturo para as condições
da independência.
Aponta-se, aqui, para deslocamentos nas concepções sobre a História do Brasil. Se
havia o sentido de conformação de um súdito, este, provavelmente, não era o mesmo súdito das
Lições de Macedo, pois a escravidão não era silenciada e o indígena, embora tivesse prestado
162
serviços à História e à Nação Brasileira, não era o herói romântico desse autor. Gasparello
(2002) também destacaria as diferenças entre as duas Lições de História do Brazil:
aos vínculos com os militares dos tempos da Guerra do Paraguai e ocupou cargos públicos de
diferentes importâncias para a sociedade. Ou seja, não se notabilizou como intelectual e/ou
historiador, mas como militar e médico. A vida docente foi uma de suas facetas ao longo de sua
vida. Uma vida tão multifacetada pode explicar a pobreza de sua obra quando comparada às
Lições, de Macedo, ou à História do Brasil, de João Ribeiro, o que não o impediu de produzir
um livro escolar que deu mais destaque aos povos indígenas, à origem do homem americano e
à sua linhagem biológica. Vale destacar que sua referência era outro militar, Couto de
Magalhães, um conhecedor dos povos do Mato Grosso, um desbravador da “Civilização”.
Essas bases já estavam postas por Mattoso Maia. João Ribeiro, em sua História do
Brasil, apenas as renovaria sob diferentes aspectos: o avanço do conhecimento histórico, o uso
das teorias raciais para a formulação da nacionalidade brasileira e a ruptura com os modelos
explicativos de história e sociedade brasileira assinalados por Adolfo Varnhagen e enunciados,
por Capistrano de Abreu, no limiar do século XIX, como algo com que se deveria romper.
164
São Paulo acompanhando tais mudanças. A questão do nacionalismo entrava na ordem do dia
na opinião pública e nos escritos desse intelectual sobre a História e a cultura nacional.
Os inventos e os progressos científicos prometidos ao século XX, como uma era de
conquistas inimagináveis, favoreceram o clima de otimismo no limiar do século XIX. Verdades
como a religiosidade e o patriotismo não haviam sido abaladas por guerras mundiais ou
revoluções, como viria a acontecer na década de 1910. Inventos como a luz e a velocidade e,
com isso, a criação de carros, dirigíveis, rádio, telégrafo, cinema e avião, por exemplo, foram
os motores da revolução promovida pela ciência. Com base nessas mudanças, os homens
produziram novas noções de tempo e espaço, as quais culminaram em novos ritmos de vida.
Tais crenças contrastavam com outras realidades, como as vividas pelos
marginalizados no Rio de Janeiro ‒ entre automóveis e carroças, havia um choque de mundos,
afinal. Era justamente contra esse passado, associado à monarquia, que a ideia de progresso e
de civilização se impunham para controlar o futuro do Brasil. Em outros termos, a ciência e o
futuro, crenças que fizeram parte das linhas mestras da História do Brasil de João Ribeiro, eram
as chaves para a transformação da sociedade brasileira mediante a superação de suas mazelas.
Para Schwarcz e Costa (2000) e para Sevcenko (1999), a chamada Bèlle Époque
ganhou significado próprio no Brasil, o da regeneração. A inserção do País na modernidade
perpassaria pela reformulação dos espaços urbanos, especialmente nas capitais, seja a da
República, sejam as dos Estados, afinal, a modernização das grandes cidades se tornava vital
para a atração de investimentos internos ou externos. Desse modo, a regeneração significou a
remodelação dos espaços urbanos e, também, a da gente, população que habitava essas áreas.
A mudança de regime significou, por fim, a luta simbólica entre o passado e a afirmação do
progresso, o futuro.
Essa luta é percebida na proibição das manifestações culturais populares em áreas
públicas, no bota-a baixo das populações pobres das áreas centrais do Rio de Janeiro. Porém,
em São Paulo, o sentido de reconstrução do espaço urbano ocorreu de outra forma, porque,
como não tinha a mesma importância histórica, a cidade evoluiu como importante entreposto
comercial entre o interior do Estado e o Porto de Santos, por onde escoava o café. Para atrair
os grandes capitalistas do interior enriquecidos por esse produto, a cidade passou por intensas
transformações urbanas e arquitetônicas: abriam-se avenidas na cidade e estradas ligando-a a
outras localidades e substituíam-se os burros e os lampiões pela luz elétrica e pelos bondes.
Essas transformações, como o alargamento de ruas e avenidas, também expulsaram as
populações mais pobres das áreas centrais, como ocorreu no Rio de Janeiro, instituindo-se
167
códigos de postura que se transformaram em uma forma de exclusão social. Dessa maneira, a
capital política do Estado também se transformava em capital econômica.
No Brasil, as duas últimas décadas do século XIX foram “sacudidas” pelas disputas
políticas entre liberais (de diferentes matizes), abolicionistas, republicanos e monarquistas
(ALONSO, 2002). O regime imperial sofreu gradativo desgaste e perdeu o apoio de sua base
política: a Igreja, o exército e os latifundiários. No capítulo anterior, destacou-se a ausência de
identificação entre os novos setores da economia e a monarquia, o que os levou a não defender
as instituições monárquicas. Os avanços das lutas abolicionistas ruíram o último apoio que o
regime monárquico tinha: os latifundiários.
O Rio de Janeiro, capital do Império, que despontava como polo industrial, passou por
transformações urbanas que atingiriam seu ponto máximo na primeira década do século XX
com a política do bota-abaixo e com a Revolta da Vacina. Para o mercado editorial, foram anos
de crescimento substancial, especialmente em razão da consolidação dos livros escolares como
instrumentos de trabalho escolar. O Rio de Janeiro concentrava a maioria de editores e livrarias,
as quais se expandiram e criaram filiais nas demais capitais do País, a exemplo da maior delas,
a Francisco Alves (BRAGANÇA, 2004), editora da História do Brasil de João Ribeiro.
No último quartel do século XIX, como o Rio de Janeiro era a cidade mais populosa e
a capital econômica do País, a população, pela primeira vez, se via envolvida em seus
problemas. A capital sofreu um boom populacional em função da imigração estrangeira e, a
seguir, em função da libertação dos escravos ao mercado de trabalho, os quais foram para a
capital em busca de melhores condições de vida e trabalho. As consequências foram o
subemprego, o desemprego e o desequilíbrio de gêneros, pois havia mais homens do que
mulheres. A miséria e o abandono das crianças foram característicos desse período, como
elementos que não colaboraram com a formação da cidadania, mas sim distanciaram ainda mais
essas populações de seus direitos.
As condições sanitárias da cidade eram precárias e, por conta disso, as epidemias
tomaram-na, sobretudo no verão, período que as doenças, como a malária e a febre amarela,
assolavam a população com maior intensidade. Além disso, como a cidade havia se tornado
palco da especulação bancária, a emissão de moedas se tornou mais necessária para os
pagamentos dos assalariados livres, o que resultou na chamada política do encilhamento. A
inflação se generalizou e implicou tanto o alto custo de vida para a população, com o agravante
do consumo de produtos importados, quanto a desvalorização da moeda, que fragilizaria ainda
mais a economia.
168
sobre o oficialato do exército, como professor e divulgador das ideias republicanas e positivistas
dentro da Escola Militar do Rio de Janeiro.
O decreto n° 981, de 8 de novembro de 1890, mais conhecido como a Reforma
Benjamin Constant, que aprovou o Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Distrito
Federal, foi publicado ainda no período do governo provisório de Marechal Deodoro da
Fonseca. Isto significa dizer que o decreto era anterior à Constituição de 1891. Em linhas gerais,
essa reforma propôs um ensino de caráter científico e propedêutico a fim de preparar os alunos
para o ensino superior; então, foi uma ruptura ou, pelo menos, uma tentativa frente à tradição
humanista e de forte influência católica. O documento estabelecia o exame de madureza ‒ que,
para ingresso no ensino superior, equipararia as instituições de ensino secundário ao Ginásio
Nacional ‒ e abrangia a estrutura para o funcionamento das escolas, como um museu escolar,
uma revista e um espaço para os professores discutirem questões pedagógicas, o Pedagogium.
O decreto também regulamentava o funcionamento das instituições privadas mediante
subvenção do Estado.
Embora se restringissem ao Distrito Federal, os regulamentos da Reforma
funcionavam como modelo para que os outros Estados se equiparassem ao Ginásio Nacional.
Desse modo, pode-se entender que a Reforma transpunha seus limites político-geográficos,
obrigando os outros estabelecimentos a seguirem essas normas, assim como ocorreria com as
reformas subsequentes. Entende-se essa forma de controle de acordo com o próprio propósito
da descentralização administrativa da República. No caso, a união estabelecia as diretrizes por
meio das Instituições modelo e os Estados as seguiam em consonância com as prioridades e as
possibilidades de execução. Em outras palavras, permanecia o mecanismo de controle que a
Coroa exercera nos tempos do Império após o Ato Adicional de 1834.
Nessa Reforma, a primeira questão que chama a atenção é a desoficialização do
trabalho do professor particular, pois o requisito para o exercício do magistério se restringia à
comprovação do caráter moral do diretor, que deveria apresentar o certificado das condições
sanitárias do estabelecimento, e do professor. Nesse sentido, dava-se continuidade à
desoficialização do trabalho do professor, comparando-se a Reforma ao decreto de Leôncio de
Carvalho, de 1879, que também prescindia de uma formação específica para o exercício do
magistério primário e secundário.
Entretanto, para o exercício do magistério público, o artigo 14 determinava: “Só
podem exercer o magisterio publico primario os alumnos ou os graduados pela Escola Normal”
(BRASIL, 1890). Isto significa que o decreto fixava uma formação específica a um trabalho
que tinha caráter profissional, o que era uma contradição, pois profissionalizava o magistério
172
Império, foram inseridas as Ciências Exatas e da Natureza na grade curricular, o que, em alguma
medida, explica essa perda de espaço no conjunto do programa de ensino.
Ainda que o curso tivesse a duração de sete anos, o inciso terceiro do artigo 35 definia
que os alunos estranhos ao estabelecimento poderiam requerer os “exames finaes” de cada ano
letivo e garantir o diploma do ensino secundário e, portanto, o ingresso nos cursos superiores.
Isto significa dizer que a estrutura burocrática do ensino secundário abria margem para a não
frequência obrigatória do curso e, ao mesmo tempo, garantia a entrada no ensino superior.
Imagina-se que esse mecanismo tenha sido usado para que os alunos oriundos de regiões mais
distantes e de famílias importantes pudessem ter a formação superior.
Nesse decreto, observa-se a formação de todo um aparato burocrático com a finalidade
de administrar a educação primária e secundária do Distrito Federal. As Instituições nos Estados
que quisessem equiparação com o Ginásio Nacional deveriam observar esses regulamentos, o
que não significa que tais instituições não se organizaram em torno de suas especificidades
locais. Acrescenta-se ainda que a Reforma se inseria no bojo da institucionalização do ensino
que se sedimentaria com os Grupos Escolares que se sucederam primeiro em São Paulo e,
depois, no restante do País a partir do início do século XX. Contudo, previa espaço ainda para
o ensino domiciliar e particular não vinculado às instituições de ensino.
A primeira Constituição Republicana manteve os principais aspectos a respeito da
educação como direito e como obrigação do Estado. As disputas entre os conservadores
(centralizadores) e os liberais (descentralizadores) resultaram na não interferência do ente
federal, a União. Nos artigos 4 e 5 da Constituição, percebe-se o alto grau de autonomia dado
aos Estados, que não permitiam a interferência da União nos interesses regionais, salvo em
alguns casos especificados. Vale ressaltar que a mudança dos limites territoriais partia da
aprovação das assembleias legislativas estaduais para a assembleia nacional. Ainda, o artigo 5
determinava que cada Estado deveria se tornar gerador de sua renda para a administração
governamental, embora contasse com auxílio da União em caso de necessidade.
Na questão tributária, de acordo com a Constituição, a União monopolizaria a
administração e a cobrança de impostos sobre produtos estrangeiros nas alfândegas e sobre
outros serviços, como no caso dos bancos, e deveria tratar com isonomia todos os Estados.
Porém, a Lei estabelecia como a União e os Estados poderiam tributar produtos e serviços. Aos
Estados, dentre inúmeras atribuições, era permitida a cobrança de impostos sobre aquilo que
produzia em seu interior, sobre as propriedades rurais e as urbanas e sobre a transmissão de
propriedade de um indivíduo a seus herdeiros, e eram permitidos o estabelecimento de linhas
telegráficas em seus domínios e o subsídio aos serviços de correio.
174
Por que lança-se mão dessas referências que estão para além da educação? Porque
ajudam a situá-la no contexto da organização política e administrativa da Primeira República,
que não superou os debates dos tempos do Império: o pacto federativo e os limites das
Províncias ou dos Estados em relação ao poder central. A educação, nesse caso, se mantinha
atrelada ao poder das oligarquias estaduais.
Quando se comparam o ato adicional de 1834 e as reformas da instrução pública ao
longo do século XIX, percebe-se uma descontinuidade em relação ao caráter público e gratuito
da educação e à oferta obrigatória do ensino pela União. Entretanto, se comparadas as
atribuições da União em relação a outras áreas do governo e as atribuições relacionadas à
educação, entende-se mais uma expressão da descentralização da Constituição de 1891, como
expressa o texto constitucional:
a gratuidade se limitava ao Distrito Federal, pois tal deliberação não era um compromisso com
todo o território brasileiro, ainda que servisse de modelo para os outros Estados.
Em relação à educação pública, a mudança de regime político não significou alterações
nos termos que estabeleciam como o ensino deveria ser tratado. Se, na Europa e nos Estados
Unidos, as políticas públicas educacionais se tornaram centrais para o desenvolvimento
econômico, no Brasil, a educação permaneceu como um privilégio de determinados setores da
sociedade (tradicionais e emergentes), os quais aproveitaram as oportunidades de alargamento
da estrutura burocrática do Estado e de modernização conservadora promovidas pelas
oligarquias durante a Primeira República.
Em 1898, mediante publicação do decreto nº 2.857, de 30 de março de 1898, outra
reforma, cuja novidade foi a divisão do ensino secundário em Propedêutico e Clássico, alterou
os regulamentos do Ginásio Nacional. De acordo com a grade de disciplinas, as quais eram as
mesmas, no Clássico, o aluno teria sete anos de curso, com opção de cursar as disciplinas de
Latim e Grego ao longo desse período, enquanto, no Propedêutico, o aluno teria seis anos de
curso. Em relação à disciplina de História, a História Universal era alocada no quinto, no sexto
e no sétimo ano, e a História do Brasil, apenas no último ano. Ressalta-se que a disciplina de
Latim era cobrada nos exames de madureza para os cursos de Direito e Medicina.
O decreto é um tanto quanto extenso e aborda inúmeras questões, sobre as quais não é
possível deter-se agora, até porque fugir-se-ia do propósito desta tese. A título de exemplo, o
texto aborda o funcionamento da Congregação do Colégio, o plano de carreira dos docentes, as
atribuições dos diretores, dos professores e do pessoal administrativo, a premiação de acordo
com o mérito da carreira de cada um deles e a organização dos concursos públicos para o
preenchimento das vagas para docentes. Outro ponto em destaque é o de que, nos Estados, os
exames de madureza deveriam ser feitos nos estabelecimentos equiparados ao Ginásio
Nacional. Houve, ainda, outros decretos-lei que regulamentaram a equiparação de
estabelecimentos de ensino secundário, como o n° 3.285, de 20 de maio de 1899.
Em suma, o que esses decretos-lei esclarecem sobre a História do Brasil em análise?
Eles permitem inferir que a narrativa de João Ribeiro estava engendrada nos programas de
ensino do Ginásio Nacional. Ainda que pudesse haver outros mecanismos de obtenção do
diploma do ensino secundário, a disciplina de História estava incluída no curso e o livro do
referido intelectual, como dito, fazia parte dos programas. Em outras palavras, os estudantes,
em alguma medida, tiveram acesso (ou deveriam ter) a uma narrativa que, de alguma forma,
formou gerações de alunos e de professores ao longo da primeira metade do século XX.
176
61
Para saber mais, conferir o site: http://www.academia.org.br/academicos/joao-ribeiro.
177
objeto de análise, até porque englobar a totalidade seria um trabalho extenuante, estéril e,
possivelmente, sem objetividade.
Desse modo, entende-se que boa parte dos trabalhos que tratam do mesmo tema podem
se complementar com a compreensão da História do ensino secundário brasileiro, dos
professores e artífices desse processo histórico, da História das disciplinas escolares e do Ensino
de História, entre outros campos de conhecimento. Sem dúvida, as Teorias da História,
especialmente os elementos que as compõem, também podem ser excelentes chaves analíticas
para a compreensão das narrativas escolares sobre a História do Brasil.
João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes nasceu, em 1860, na cidade de Laranjeiras,
na então Província do Sergipe, onde, por meio da convivência com o avô, teve acesso às
primeiras letras, período que lhe permitiu desenvolver e demonstrar seu talento. Ingressou nos
estudos secundários no Liceu de Aracaju, onde mais uma vez se destacaria, e ingressou na
Faculdade de Medicina da Bahia, que não levou a termo, abandonando-a, característica comum
aos autores analisados anteriormente, os quais foram médicos. Ingressou, ainda, na Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, que também não foi concluída. Por fim, em 1894, já vivendo há
muito no Rio de Janeiro como jornalista, professor do Ginásio Nacional e autor de livros de
gramática portuguesa e de História Universal, completou sua formação superior em Ciências
Jurídicas.
O intelectual foi casado com Dona Maria Luiza Ramos, com quem teve 16 filhos. De
acordo com Rodrigues (2013c), apenas oito sobreviveram, traço da vida pessoal do polígrafo,
que, além de conviver com a perda dos filhos, teve de lidar com as doenças que acometeram sua
esposa. O referido pesquisador escreveu sobre a biografia pessoal de João Ribeiro, assunto pouco
destacado pela historiografia, que estava mais interessada em sua trajetória intelectual, caso desta
pesquisa. Entretanto, tais acontecimentos dão pistas sobre esse intelectual multifacetado.
Por volta dos 21 anos de idade, em 1881, Ribeiro foi viver no Rio de Janeiro, a capital
do Império, onde estava a maior parte da intelectualidade brasileira e por onde circulavam os
jornais e as revistas. Sem dúvida, era a melhor cidade para a carreira intelectual brasileira.
Então, exerceu o magistério em instituições privadas de ensino, como o Colégio São Pedro de
Alcântara e o Colégio Alberto Brandão, e, após essas experiências, trabalhou como funcionário
da Biblioteca Nacional, mantendo contato com boa parte dos acervos a respeito da História do
Brasil e, mesmo, com a bibliografia produzida pelo IHGB. Também, conviveu com outro
historiador proeminente de seu tempo, João Capistrano de Abreu.
A partir dessa experiência, sua trajetória intelectual ganharia mais consistência,
especialmente após publicar obras sobre a língua portuguesa, a sua evolução e a sua
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62
A dissertação de mestrado do pesquisador, defendida em abril de 2011, na Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora, versou, entre outros assuntos, sobre a biografia de João Ribeiro, porque,
naquele momento, com base no debate intelectual daquele período, analisava-se sua História do Brasil e, nela,
como o autor representou a nação brasileira.
179
revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, como: Revista Sul Americana, Gazeta da Tarde, O
Globo (de Quintino Bocaiúva), A Época, A Semana, O País e Correio do Povo. De acordo com
Devinelli (1945), um dos seus biógrafos, embora o magistério lhe desse a segurança e a
estabilidade financeira, seus maiores dividendos provinham da atividade jornalística, o que
justifica sua longevidade nessa atividade, mesmo após ter se aposentado do Colégio Pedro II.
Sem dúvida, João Ribeiro foi um sujeito histórico que soube aproveitar as
oportunidades que o mercado editorial de sua época lhe oferecia, porque, além de jornalista, o
intelectual foi autor de manuais escolares ‒ seja de gramática portuguesa, seja de História ‒,
dentre os quais citam-se: História Antiga (Grécia e Oriente), de 1892; História do Brasil, de
1900; História Universal, de 1918; História da Civilização, de 1932; e Gramática Portuguesa,
de 1887. O fato de o Estado ter se transformado no maior comprador de livros escolares e o de
João Ribeiro pertencer ao principal conglomerado editorial da época, a Francisco Alves63, cujo
dono, de mesmo nome, tornou-a a maior livraria do Brasil durante a Primeira República,
permitiram ao polígrafo ser conhecido do grande público, como já indicara Veríssimo. Tais
trabalhos permitiram, também, que João Ribeiro escrevesse livros de outra natureza, mais
teórica e aprofundada, como foram os seus trabalhos de História da Língua Portuguesa e de
Filologia e as obras literárias. São eles: Dicionário Gramatical, de 1889; Páginas Estéticas, de
1905; Frases Feitas I, de 1908; Frases Feitas II, de 1909; Fabordão, de 1910; A Língua
Nacional, de 1921; Notas de um Estudante, de 1921; Colméia, de 1923; Cartas Devolvidas, de
1926; Curiosidades Verbais, de 1927; e Florestas de Exemplos, de 1931.
Em torno de questões políticas, foi possível perceber o apreço de João Ribeiro por
estadistas que se caracterizavam pela centralização de seus poderes, como o Imperador Pedro
II – a quem, em cartas, escrevia com admiração, segundo Hansen (2000), o que também pode
ser percebido na própria História do Brasil, com relação a Marechal Deodoro da Fonseca e, já
no final de sua vida, a Getúlio Vargas. Tais ideias podem ser explicadas pela capacidade de
esses estadistas manterem a ordem, seja a pública, seja a das instituições. Ainda sobre essa
leitura acerca da sociedade brasileira, destaca-se que, em sua História do Brasil, os povos
mestiços estavam condenados a regimes autoritários e a serem conduzidos pelo seu escol
intelectual em função de a natureza da nação brasileira ser destrutiva e ter o instinto infantil
(RIBEIRO, 1900). Tais características se adaptariam a uma sociedade sem o chamado Self-
government, como a sociedade brasileira.
63
Para saber mais, conferir Bragança (2004).
180
Nesse sentido, João Ribeiro, embora percebesse as lacunas dessa narrativa, possuía
leituras conservadoras a respeito do povo brasileiro e de sua História. Imbuído das teses
cientificistas de seu tempo, desconfiava da capacidade de esse povo desenvolver as habilidades
de se autogerir e organizar, o que permite compreender seus artigos encomiásticos em torno de
figuras políticas concentradoras do poder. A habilidade de self-government poderia ser
edificada por meio da miscigenação da já nação mameluca com os imigrantes europeus que
vinham para o Brasil em sua época. É o que Sílvio Romero chamava de “boa mestiçagem”,
porque branqueava o povo brasileiro com povos que, de alguma forma, possuíam relações
históricas e culturais com o Brasil, diferente dos povos asiáticos que vieram na mesma época e
que Romero condenava64.
Em 1915, João Ribeiro ingressou no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, o
IHGB, como sócio ‒ mais um ponto de sua biografia intelectual gerado pelo sucesso editorial
de suas obras didáticas de História, especialmente a do Brasil. Também fez parte, como sócio,
do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e do Instituto Histórico e Geográfico de
Sergipe, além de ter sido sócio da Academia Sergipana de Letras e da Academia das Ciências
de Lisboa (RODRIGUES, 2013d). Outra nota biográfica que vale a pena destacar é sua
passagem pela Academia Brasileira de Letras, pela qual foi empossado em 1898. Embora tenha
pertencido ao circuito intelectual que deu origem à ABL, não foi um de seus fundadores, em
função de estar na Europa no momento de sua fundação, em 1898.
A presença de João Ribeiro na ABL65 ficou marcada pelo embate com Machado de
Assis a respeito da composição da Academia, a qual, para Ribeiro, deveria ser formada não
apenas por homens das letras e da produção literária, mas por intelectuais de diferentes campos
do conhecimento, como o jornalismo e a jurisprudência. O polígrafo exerceu diferentes cargos
na instituição, da qual foi eleito presidente em 1926, embora tenha recusado o resultado e
renunciado. Teve opiniões diversas acerca da entrada das mulheres na Academia: em 1912, foi
contrário; em 1927, favorável. Isto dá pistas sobre o conservadorismo do autor em determinadas
posições.
Estas foram algumas das referências que deram pistas para a compreensão do que é a
raça dentro do conceito de nação brasileira na História do Brasil em análise, no limiar do século
XIX e no alvorecer do século XX, quando as teses racialistas teriam aceitação e receberiam
questionamentos. Tais desdobramentos originaram as teses culturalistas sobre a nação
64
Para saber mais, ler Romero (1960).
65
Em momento pregresso, explorou-se sua participação dentro da ABL. Para mais informações, ler Rodrigues
(2011).
181
brasileira, como o mito da democracia racial, a partir da década de 1920 e dos anos de 1930, e
como o questionamento dessa crença pelos diferentes movimentos negros, protagonistas
históricos dos elementos afrodescendentes e autóctones do território brasileiro.
4.3 – A Nação mameluca: a integração conservadora dos negros, dos indígenas e dos pardos.
O livro analisado foi lançado primeiramente, em 1900, pela Livraria Cruz e Coutinho.
Ainda em seu ano de lançamento, foi reeditado pela maior livraria daquela época, a Francisco
Alves, com versões para os cursos primário e superior (correspondentes ao que hoje se chama
de anos finais do ensino fundamental e médio), as quais ganhariam maior receptividade da
intelectualidade brasileira. Enquanto vivo, a obra de Ribeiro teve 12 edições. Mas sua História
do Brasil teria longevidade editorial, pois sua 13.ª edição seria lançada em 1935, enquanto sua
19.ª, em 1966. A partir de sua morte, as edições foram revisadas por seu filho Joaquim Ribeiro.
Vale destacar que tal longevidade engloba as celebrações de aniversário de morte de 10 anos,
em 1944, e de centenário de seu nascimento, em 1960.
A primeira edição da obra foi dividida em nove unidades temáticas sobre os quatro
séculos da chegada portuguesa ao Brasil, de 1500 até o final do século XIX, com a Proclamação
da República. Nessas unidades, destacam-se diferentes questões, como: a formação territorial
com base nos focos de irradiação populacional – sob inspiração de Handelmann –, as inúmeras
guerras de conquista portuguesa sobre os povos indígenas, as invasões estrangeiras e as sedições
contra a Coroa portuguesa e também já no Brasil independente.
Cada lição possui subtópicos que dão sentido a cada unidade. Dessa forma, a tessitura
da História do Brasil é a formação de seu povo, do seu território e da sua raça nacional – um
elemento importante para aquilo que qualificava uma nação na virada para o século XX. Então,
outros sujeitos históricos, como o próprio João Ribeiro, atestavam como os jesuítas, os
bandeirantes, os indígenas e os negros foram incorporados à história oficial junto aos heróis
políticos e militares.
Entre os diferentes campos de conhecimento investigados por João Ribeiro, vale
destacar a importância da evolução da língua portuguesa no Brasil como traço da nacionalidade
brasileira. Em outra obra, A Língua Nacional, o autor analisou como as línguas Bantas e Tupis
contribuíram para a formação da lexicografia da língua falada no País. De acordo com Silva
(2008c), para o polígrafo, a evolução da língua portuguesa no Brasil teve movimentos históricos
diferentes em relação à sua origem, Portugal, pois fora enriquecida pela experiência histórica
182
da América66 e pelo “encontro”67 entre os povos Bantos e Tupis, o que lhe deu uma fisionomia
própria, especialmente no que tange à topografia, à fauna e à flora brasileira. Afinal, havia a
necessidade de dar novos nomes às coisas e aos lugares desconhecidos pelos portugueses e,
para isso, era fundamental a experiência anterior das nações autóctones e suas contribuições
linguísticas.
A exemplo da análise acerca de Luis Mattoso Maia, cabem algumas considerações
sobre a crítica em torno da História do Brasil de Ribeiro. Enquanto Maia foi criticado por
Capistrano de Abreu pela ausência de referências bibliográficas ou pelo não acompanhamento
da produção do IHGB, Ribeiro escreveu um breve texto ao final da primeira edição para indicar
suas leituras, dentre as quais está a produção da Revista Trimestral do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro e a de cronistas e autores, como o próprio Capistrano de Abreu. Outra
referência importante, que sugere a influência da produção germânica na narrativa de Ribeiro,
é o autor alemão Handelmann e sua Geschichte von Brasilien, que explicava a colonização
brasileira por focos de irradiação populacional. Pode-se inferir que o fato de Ribeiro reconhecer
a produção intelectual de seu tempo fez com que os mesmos intelectuais tecessem boas críticas
a respeito de sua obra, especialmente sobre sua atualidade e sua erudição.
A primeira edição também possui uma introdução por meio da qual Ribeiro apresentou
suas intenções. Nela, consta a célebre passagem, muito usada por estudiosos como Hansen
(2000), Gasparello (2004) e Bittencourt (2008), sobre como Ribeiro compreendia o que era a
História do Brasil e, por conseguinte, a nacionalidade brasileira, isto é, os agentes internos ou,
em termos atuais, os sujeitos históricos desse processo.
Se, por um lado, o intelectual interpretou quem foram os agentes históricos do Brasil,
por outro, criticou a historiografia Oitocentista que consagrava a ênfase eurocêntrica e os
aspectos político-administrativos dessa mesma história. Nas entrelinhas, ainda revelou certas
permanências sobre o Brasil, como herdeiro da colonização portuguesa, que se sobrepujou aos
66
Para mais informações, ler Ribeiro (1979).
67
Ainda que pese a natureza desse encontro entre os Portugueses, os Tupis, os Bantos e os Iorubas.
183
povos que aqui existiam. Dizendo de outro modo, para ele, as culturas autóctones não eram o
Brasil, embora tivessem feito parte dessa trajetória histórica.
Essa historia a que não faltam episódios sublimes ou terríveis, é ainda hoje a
mesma presente, na sua vida interior, nas suas raças e nos seus systemas de
trabalho que podemos a todo instante verificar. Dei lhe por isso uma grande
parte e uma consideração que não é costume haver por ella, n’este meu livro.
(RIBEIRO, 1900, p. VIII).
Dessa maneira, Ribeiro reforçava a tese de uma história nacional centrada nos agentes
da colônia ou do império que deram origem às raças presentes no território, marcado por guerras
e conflitos que, ao longo da obra, estiveram presentes na maior parte da narrativa. Essa tese
mencionada era uma crítica a historiografia oitocentista que privilegiava a história política e
administrativa. Contudo, os estudiosos de João Ribeiro não destacaram que essa crítica se
completava com o reconhecimento das dificuldades da tarefa de transpor a história política e
administrativa:
Ou seja, na tarefa historiográfica, existem limites para a execução das intenções. Nesse
sentido, embora destacasse que sua História do Brasil não era filosófica, em razão dos limites
e das intenções de uma obra de público escolar, Ribeiro conferia-lhe certa filosofia da História.
No caso brasileiro, ele entendia que o sentido dessa história era “á causa do commercio livre”
(RIBEIRO, 1900, p. IX), porque foi o comércio livre que impulsionou as navegações e o jugo
holandês. O componente central dos principais conflitos dos séculos XVII e XVIII foi a
liberdade comercial, a despeito de certo nacionalismo, questionado por João Ribeiro, o que se
contrapunha à historiografia patriótica e imperial, nos termos de Gasparello (2004).
Dando centralidade ao Brasil interno, Ribeiro destacava os núcleos originais da
colonização portuguesa na América:
D’ ahi em diante, a vida dos negros regularisa-se, a saúde refaz-se e com ella
a alegria da vida e a gratidão pelos novos senhores, aqui melhores que os da
África e os do mar. Sem duvida alguma muitos dos horrores e crimes
permanecem no captiveiro novo, e aqui e ali, não falham, entre os senhores
crueis, rigores monstrosos. (RIBEIRO, 1900, p. 152).
Em outros termos, sua narrativa deu importância à inserção dos negros na “civilização”
e nos costumes europeus. Se, por um lado, não silenciou a violência praticada sobre as
populações africanas vindas da África, por outro, contemporizou sua reabilitação em direção à
civilização. É o que se chamaria de uma perspectiva senhorial sobre a escravidão, isto é, o ponto
de vista do Estado, da colonização e dos agentes históricos que conduziram esse processo.
Vale a pena destacar, ainda, a questão da conformação da nacionalidade brasileira ao
final do século XVIII, acelerada após a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro.
O período de meados do século XVIII até a independência foi o do surgimento e do
recrudescimento da animosidade entre portugueses e nacionais, resultado da consolidação da
raça nacional. Para Ribeiro, a vinda da família real foi completamente oposta às representações
imperiais de Macedo e Mattoso Maia, pois se tratou de uma fuga e não de uma transmigração
para o Brasil: “Foi visto o rei chorando em segredo, no intimo dos seus paços, quando se viu
coagido a fugir aceitando o conselho do ministro inglez Lord Strangford” (RIBEIRO, 1900, p.
251-252).
Voltando à questão nacional, Ribeiro destacou que os movimentos políticos da
Revolução Liberal, de 1820, foram uma revolução dos brancos. Os mamelucos (os nacionais)
defendiam a revolução americana, a reforma radical e republicana, que não se coadunaria com
o espírito “civilizado”. Destacou, ainda, a antipatia pela guerra da cisplatina, que só servia aos
interesses da rainha Carlota Joaquina, que desejava herdar os domínios americanos após as
guerras napoleônicas.
Nesses fatos políticos, a nacionalidade brasileira é engendrada pelo arquétipo da raça.
As raças americanas e a mestiçagem derivada dela teriam características próprias em relação às
raças europeias, especialmente em relação às de origem anglo-saxônica e germânica, dotadas
188
de “espírito liberal” e de autogoverno. Destacar-se-á essa questão mais adiante, porque, antes,
é importante compreender a tessitura da ideia de raça em João Ribeiro.
Enquanto Mattoso Maia se baseou nos estudos de Magalhães Couto para descrever os
indígenas, João Ribeiro avançou nessas reflexões, embora nem tanto na bibliografia. O
polígrafo não utilizou a produção do militar que serviu de fonte para Maia, mas da produção do
IHGB, notadamente a de Martius.
Interpretavam-se esses povos como uma certa unidade, o que era contestado pelo
polígrafo, que afirmava não haver uma raça e língua geral. Para ele, “Hoje pelo menos podemos
assegurar que quatro grandes nações de índios são absolutamente disctintas. E são ellas: a tupy,
a tapuya (ou gé), a nuaruaque e a cariba. Fóra d’esses grupos existem três de menor
importância” (RIBEIRO, 1900, p. 21). Nessa narrativa, Ribeiro destacou as lacunas ainda
existentes a respeito desses povos, os quais se localizavam em diferentes áreas do continente
189
sul-americano, e explicou suas diferentes correntes migratórias, o que lhes dificultou a evolução
ao longo da “pré-história” brasileira.
Houve avanço na compreensão dos fenômenos históricos da escravidão vermelha e
sobre a diversidade de povos americanos e africanos, incluindo a escravidão (ainda que na
perspectiva senhorial), mas a leitura de Ribeiro sobre o fenômeno da miscigenação da sociedade
brasileira teve as referências científicas de seu tempo. Para Ribeiro, a miscigenação entre as
nações portuguesa, africana e americana era um problema para a sociedade brasileira
“evidenciado” da seguinte forma:
Ainda hoje o Brasil resente os germens das oligarchias locaes que, como
então, apenas toleram o protectorado do príncipe, vencedoras umas vezes,
vencidas em outras. Toda a nossa historia é o desenvolvimento d’esse duello
original. Revezam-se cada século. As capitanias apparecem no século XVI; a
união necessaria pela guerra hollandeza domina no seculo XVII; o espirito das
capitanias volta de novo a emancipar-se no seculo XVIII, com as minas; a
união com a monarchia subjuga-as no seculo XIX. Parece que o século XX se
abrirá de novo o particularismo feudal. (RIBEIRO, 1900, p. 36).
Para completar a crítica, Ribeiro deu ênfase ao problema político da virada para o
século XX no Brasil, já que consolidados os poderes das oligarquias estaduais. Por conseguinte,
criticou os rumos tomados pela República, que completava onze anos em 1900, e o fato de os
cafeicultores tornarem-se senhores do poder político, acentuando os poderes regionais frente ao
poder central, o que, para Ribeiro, poderia ser uma ameaça à unidade nacional. Entende-se que
esta é a chave de leitura para compreender sua admiração por estadistas que foram capazes de
190
suplantar os interesses particulares regionais, dentre os quais D. Pedro II, Floriano Peixoto e
Getúlio Vargas.
Voltando ao problema da raça, embora em passagens anteriores se pudesse
compreender uma espécie de embrião para leituras que mais tarde consolidariam o mito da
democracia racial, o polígrafo não se furtou de perceber como entenderia esse caráter de
democracia: “Logo cedo no Brasil, na sua capital, como nas demais povoações a obra da
civilisação foi deturpada pelo conflito das raças, disfarçado em democracia, fructo antes da
luxuria que da piedade dos peninsulares” (RIBEIRO, 1900, p. 54). Esta é uma passagem
interessante, pois, nela, João Ribeiro destacou a maneira como entre as raças funcionava a
“democracia”, a qual, na verdade, era marcada pela luxúria, especialmente a dos colonos
europeus, degenerando seu comportamento e seu caráter. Junto a isso, Ribeiro tratou da
miscigenação:
O contacto das raças inferiores com as que são mais cultas sempre desmoralisa
e deprava umas e outras.
Principalmente, porem, deprava as inferiores pela oppressão que soffrem, sem
que este seja o peior dos contagios que vem suportar. (RIBEIRO, 1900, p. 55).
Esse contato ainda desmoralizaria as “raças inferiores”, não por causas biológicas,
mas, antes, pela opressão que viviam, isto é, por questões culturais. Ribeiro definiu o que eram
as “raças superiores ou cultas”, explicando que o contato com as “raças inferiores” prejudicaria
a ambas, principalmente a esta última. A condição da mulher se tornaria ainda pior se existissem
essas hierarquizações, porque os homens brancos não as valorizavam como deveriam ou, pelo
menos, como valorizavam as brancas.
É claro que os negros e índios, não poderiam ser senão a occasião de desdem
e de ódios que gera escarneo dos superiores. A mulher da raça inferior não
consegue ser dignificada, nem mesmo depois de formada a raça mestiça. O
próprio governo considerou por vezes uma infamia o casamento promiscuo de
brancos e negros. (RIBEIRO, 1900, p. 55).
A moral dessa sociedade era “determinada” pela condição dos colonos vindos para o
Brasil, o que resultou na opressão combinada com a crueldade e no caráter dos degredados que
compunham grande parcela da sociedade colonial. Dessa forma, formou-se uma sociedade
mestiça e degenerada – no aspecto moral. Além disso, a liberalidade na aplicação das leis
fortaleceria tal degeneração social.
Ribeiro destacou que não apenas o Brasil se encontrava em tal estado de degeneração
social, mas também Portugal, em função do monopólio do comércio com as Índias e da
Inquisição, que teria criado conflitos internos, de um lado, e promovido riqueza, luxo e outros
vícios, de outro. Com base nesse mote, o elemento negro foi inserido nessa sociedade colonial,
cujo comportamento fora determinado pela escravidão: “O negro, o fructo da escravidão
africana, foi o verdadeiro elemento economico, creador do paíz e quasi o unico. Sem elle, a
colonisação seria impossivel” (RIBEIRO, 1900, p. 57).
Ao mesmo tempo que o elemento negro foi o braço motriz na edificação da sociedade
colonial e gerador da riqueza do País, a escravidão lhe deturpou o espírito e lhe degenerou o
caráter. Vale destacar a origem das populações africanas que, primeiramente, vieram da Guiné
e, posteriormente, de Angola e Moçambique. Sobre os indígenas, a representação não era das
mais otimistas, pois Ribeiro relatou a pouca participação desses povos no desenvolvimento
econômico da sociedade: “Esse elemento ethnico pouco contribui e contribue ainda pouco no
desenvolvimento econômico e moral do paíz” (RIBEIRO, 1900, p. 57). No entendimento do
intelectual, tal qual rezava a cartilha da política imperial, os índios deveriam se adaptar à
chamada “civilização”. Para ele, as três “raças” ‒ o negro, o índio e o branco ‒ formariam a
nacionalidade brasileira no futuro:
O branco intelligente mas avido e atroz, o negro servil e o índio altivo mas
indolente, são os três elementos donde vae sair a nacionalidade futura. Mas a
agitação ethnica é toda subterranea e está repartida por todo o subsolo,
guardando a futura erupção. (RIBEIRO, 1900, p. 58).
Vale destacar que se Ribeiro interpretava o cruzamento das raças como formador da
nacionalidade brasileira, fê-lo segundo uma hierarquia racial, baseada na inteligência e na moral
192
desses povos, de acordo com os parâmetros europeus de organização social e política. Cabe
investigar se essa hierarquia também era biológica.
A raça, na representação de João Ribeiro, é uma questão muito cara à análise histórico-
sociológica da nação brasileira, pois é no cerne de seu caráter moral que o intelectual explica o
porquê do atraso social do País em relação ao Ocidente. A moral estaria, para ele, imbricada às
virtudes das raças, acumuladas ao longo de sua história. A miscigenação ocorrida nesses 400
anos constituiria uma raça, a mameluca, desmoralizada, sem as virtudes de constituir um Estado
superior, uma República, cujas habilidades seriam o self-government.
Na leitura de João Ribeiro, as raças teriam habilidades inatas, uma natureza ontológica
que as caracterizaria e as distinguiria entre si, leitura essa que não está apenas exposta na
História do Brasil de 1900, mas está também em outras publicações sobre História Geral, como
a História Universal e a História da Civilização68, segundo as quais o sentido da História se
insere, primeiramente, na formação da ideia de nação, a unidade social de um povo, ou, dito de
outra forma, na história da Humanidade e em sua marcha como civilização. No caso, a formação
dos Estados nacionais fica mais explícita na História Moderna e na Contemporânea. Vale
destacar que o argumento da raça, como formadora de cada povo, está presente nas linhas
narrativas de cada capítulo.
Outra possibilidade de leitura é o uso do termo mameluco para expressar a
nacionalidade brasileira: é um modo de silenciar o elemento africano na conformação dessa
nacionalidade. Por que não incluir o mulato ou o cafuzo? Seria o Brasil herdeiro apenas da
cultura europeia e Tupi? Assim, problematizam-se os limites que a historiografia do Ensino de
História consagrou como incorporação de elementos negligenciados ou não desejados à nação
brasileira, o que reforça a tese de incorporação conservadora dos elementos exógenos à cultura
europeia.
Todavia, João Ribeiro enunciou novos paradigmas para a formulação da nacionalidade
brasileira mediante inserção de questões racialistas e cientificistas à interpretação do processo
histórico do País. Assim, sua narrativa foi construída por temáticas e não por uma cronologia
histórica de acontecimentos protagonizados por personagens políticos e heróis de guerra. Sua
História do Brasil, portanto, trouxe elementos culturais e problematizou o cruzamento das raças
e a moral constituída por essa miscigenação.
68
As edições são de 1918 e 1892, respectivamente.
193
O autor explorou a ideia de raça nacional como mestiça, o que ainda não configuraria
uma nação, pois estava ainda em formação. Para Ribeiro, a verdadeira revolução dessa raça
mestiça foi o abolicionismo e a República. Desse modo, destacou como o povo, embora seus
interesses estivessem jogo, manteve-se alheio a essas disputas políticas.
69
Mesmo que por diferentes razões: no caso de Macedo, elas praticamente não existiam ou não eram
suficientemente amadurecidas; no caso de Maia, elas também não foram discutidas.
194
A raça nacional, então, havia se formado ao longo dos séculos XVII e XVIII. À medida
que essa raça mestiça se consolidava, sua lealdade à metrópole diminuía. Formada a raça
nacional, a mameluca ‒ que só ao longo do século XIX estaria “preparada” para seguir seu
caminho autonomamente ‒, criou-se o que Ribeiro chamou de “base física para a revolução”.
Ademais, Ribeiro contextualizou esse movimento histórico com as nações hispano-americanas,
cujas lutas tiveram um “fundo patriótico sob vestes liberais”.
Entretanto, a educação, como é mencionada, não bastava, pois a raça constituída estava
condenada. Deveria haver mais um movimento de miscigenação levado a termo com a
imigração europeia, que, aliás, estava em grande expansão nesse período. Assim, o novo
movimento de miscigenação facultaria ao novo povo brasileiro as virtudes para a organização
de uma sociedade civil. Isto, nos termos de Koselleck e de Ricoeur, seria a experiência
temporal, que relacionaria o passado, o presente e o futuro da nação brasileira com o seu
horizonte de expectativa: o de atingir um nível civilizatório e um progresso material similar ao
das nações do Ocidente. Para isso, o caminho adotado seria a educação da nação mameluca
combinada à imigração europeia.
A miscigenação ‒ o branqueamento da população brasileira ‒ daria ao País caminhos
melhores do que aqueles tomados pelas repúblicas hispano-americanas, porque, segundo
Ribeiro, tais povos, inclusive o do Brasil, eram republicanos apenas na exterioridade, pois, no
fundo, possuíam um instinto autodestrutivo com os quais somente estadistas fortes e
centralizadores seriam capazes de romper, conduzindo-os e mantendo sua sobrevivência.
197
utilizadas, Alonso (2002), que sugere o mesmo entendimento. Entretanto, o fim do regime
monárquico não foi tão explorado por Ribeiro, já que “os sucessos são ainda do dia de hoje e
seria prematuro julgal-os n’um livro destinado ao esquecimento das paixões do presente e á
glorificação da nossa historia” (RIBEIRO, 1900, p. XII) ‒ é o que Magalhães e Gontijo (2009)
denominaram de ética da atualidade. Como polígrafo e, assim, como historiador, em 1915, em
seu discurso de entrada no IHGB, o intelectual foi bastante revelador sobre como concebia o
conhecimento histórico e a existência para uma filosofia da História do Brasil. Nesse momento,
ele revelou como os historiadores constroem o conhecimento histórico em seu tempo, de acordo
com as questões do presente por eles vivido:
O intelectual foi revelador, porque usou muito esse artifício para elaborar a narrativa
da História do Brasil ou, como ele denominou, para tratar dos assuntos nacionais. Ao longo
dessa narrativa, por exemplo, foi possível notar o embate entre o particularismo regional e a
unidade nacional. Nesse caso, como “construtor de identidade” brasileira, preferiu a narrativa
unitária. Nesse sentido, compreende-se o porquê do enaltecimento da figura do Imperador Dom
Pedro II: na leitura do polígrafo, essa personagem histórica conseguira unir os interesses
nacionais e os regionalismos, resolvendo a crise vivida pela nascente república, que parecia
incapaz de ter um poder central fortalecido frente ao predomínio das oligarquias. Esta era a
marca do primeiro regime republicano, que, na “profecia” de João Ribeiro, em 1900, pareceria
ser a tônica do século XX.
“A imparcialidade póde ser immoral: nós temos a obrigação de justificar o presente,
de fundar a Ethica da actualidade” (RIBEIRO, 1915, p. 618). Visto que o passado modela o
presente, esse mesmo passado é a fonte para a consecução de uma ética do presente. Antes de
se falsificá-lo, para Ribeiro, trata de se “extender ao passado as mais nobres missões do
presente” (RIBEIRO, 1915, p. 618). Essas passagens revelam tanto a experiência do polígrafo,
como estudioso da História e como professor, quanto as consequências sociais de seu trabalho.
Dito assim, ainda vale destacar sua tomada de partido acerca das ideias que desenvolvia como
199
Essa filosofia da História do Brasil permitiria traçar um plano para o presente e para o
futuro da sociedade brasileira ou, pelo menos, compreender os caminhos políticos que o País
tomava ao longo do tempo. Daí a predileção de Ribeiro por regimes centralizadores, porque a
população brasileira estaria imbuída de conservantismo e desconfiança sobre as novas ideias
que surgiam no mundo ou, pelo menos, nos países “mais adiantados”. Segundo Ribeiro (1915),
esse conservadorismo encaminhava os destinos “sempre lentos, tardos e precários, construímos
com elementos medievaes os fundamentos de uma nacionalidade”, processo que determinava a
lentidão brasileira em direção ao progresso.
Se, por um lado, essa lentidão atravancava o desenvolvimento material e intelectual,
por outro, na leitura de Ribeiro, dava soluções mais seguras e menos beligerantes para os
grandes problemas nacionais, como a independência e o fim da escravidão. No entendimento
de Ribeiro, as capitanias preparavam o self-government e a federação em formação no Brasil.
A escravidão, que já havia acabado no resto do mundo, se mantinha por aqui, embora tenha
terminado sem os conflitos da grandeza da guerra civil americana. A ideia de República existia
no País desde meados do século XIX, mas só lograria no final desse século; e a monarquia,
curiosamente, teria o papel de prepará-la, afinal, as repúblicas latino-americanas haviam sido
assoladas por guerras civis. Em síntese, para Ribeiro, a lentidão dos processos históricos no
Brasil era um dos mistérios a serem compreendidos.
200
sujeitos e o das possibilidades históricas que cada época possui para construir alternativas de
futuro, isto é, outras possibilidades de Brasil.
202
e intelectual. Os autores de manuais didáticos, cujas Histórias do Brasil eram resultado de suas
aulas e práticas pedagógicas, dedicavam-se ao ensino.
Bittencourt (2008) destacou um importante debate, ocorrido durante a segunda metade
do século XIX, entre o corpo docente do Colégio Pedro II, cujo perfil estava se modificando:
de professores ligados ao meio religioso para leigos, com destaque para os intelectuais que, de
alguma forma, estiveram ligados à chamada Escola de Recife, de caráter cientificista e de
influência germânica, como Sílvio Romero, Schiefler, Capistrano de Abreu e João Ribeiro, os
quais criticavam contundentemente a hegemonia francófona no ensino de História Geral no
Colégio Pedro II. Inclusive, a presença da produção germânica pode ser percebida nas linhas
narrativas das Histórias do Brasil tanto de Capistrano como de João Ribeiro.
Desse modo, cabem aqui algumas considerações sobre os debates acerca da ideia de
nacionalismo. De acordo com Guimarães (2002) e Costa (2003), o nacionalismo brasileiro girou
em torno de duas matrizes distintas, mas não antagônicas: a primeira de influência do
pensamento francês, calcada na ideia de pacto social e de origem iluminista e rousseauniana; a
segunda, ligada ao nacionalismo alemão, baseada no corte étnico e racial. No caso, boa parte
da intelectualidade brasileira comungava com as teses alemãs, o que explica, em parte, a
aceitação das teses racialistas, os desdobramentos disso na interpretação da ideia de nação
brasileira e os caminhos a percorrer para o aprimoramento moral, político e biológico do povo.
Entretanto, cabe destacar que, mesmo baseado no pacto, o pensamento francês não invalidou
as teorias de raças históricas com base na assimilação de povos, o que para Costa (2003) é uma
posição ambígua.
A consolidação do Estado Nacional não era um problema enfrentado apenas pelos
estadistas e pelos intelectuais brasileiros. O velho mundo da Europa também foi sacudido por
esse movimento histórico e viveu fortes celeumas para a consecução desses novos Estados. De
acordo com Stolcke (apud COSTA, 2003), o século XIX foi marcado pelo:
pacto social entre os habitantes seria a adversária a ser batida e derrotada por essa matriz de
pensamento. Raças históricas diferentes teriam o direito à autodeterminação, ponto que estaria
acima dessa ideia de pacto e aceitação a uma autoridade política que lhes seria estranha.
Em outros termos, também se tratava de recompor o pacto político ao longo do século
XIX na Europa e nas Américas, continentes que passaram por revoluções liberais. Assim, as
disputas pelos paradigmas que prevaleceriam não seriam pacíficas. Nesse sentido,
ambiguidades, contradições e justaposições conformariam os paradigmas nacionalistas,
sobretudo de acordo com as conveniências políticas. Afinal, nem todos os territórios
conformariam uma unidade linguística, histórica e étnico-racial, mas os recursos naturais e os
interesses diversos dessas elites políticas sobrepujariam a autodeterminação dos povos.
Costa (2003) problematiza que as ideias da reconfiguração do pacto político tinham
duas origens de ordenamento político entre o antigo regime e o contratualismo liberal do século
XIX:
Por que fazer essa discussão em torno do nacionalismo? Porque as doutrinas que o
caracterizam são chaves importantes para a compreensão dos manuais de história, não apenas
do Brasil, mas do Ocidente, visto que, afinal, estes são narrativas de autobiografias dos Estados
Nacionais, as quais legitimariam ao Estado o direito sobre a territorialidade e a pertença social,
psíquica, histórica e sanguíneo-racial. Em síntese, trata-se do direito sobre as juventudes ‒ os
cidadãos e os súditos deveriam se dispor a morrer pelas pátrias e pelo país a que pertencessem.
As análises sobre os livros didáticos em questão revelam diferentes sentidos de
cidadania ou mesmo de nação brasileira. As linhas mestras das Lições de História, de Joaquim
Manoel de Macedo, foram a História Geral do Brasil, de Adolfo Varnhagen, como informa a
historiografia (MATTOS, 1993; BITTENCOURT, 1993; GASPARELLO, 2004). Entretanto,
essa linha argumentativa não impediu o literato de criar seu próprio retrato sobre o Brasil.
Embora prevaleça a ideia de Brasil herdeiro de um Império e da colonização portuguesa,
Macedo integrou o elemento indígena a essa história, como sugeriria o Romantismo, ainda que
como coadjuvante e bom selvagem.
206
O manual de Mattoso Maia não teve a mesma longevidade dos manuais de Macedo ou
de João Ribeiro. Além disso, sua trajetória biográfica se distinguiu desses homens das letras,
pois foi médico e militar, o que, em certa medida, explica o uso de referências como o IHGB e
a não aceitação por esse circuito letrado, como aconteceu com o Selvagem, de Couto de
Magalhães, livro duramente criticado por Sílvio Romero, autor que se debruçou sobre os
estudos etnográficos. De acordo com as fontes aqui utilizadas, Maia foi professor do Colégio
Pedro II mais em razão de sua experiência na Guerra do Paraguai do que em razão do mérito
intelectual, uma vez que ainda atuaria em outras esferas da burocracia imperial, como delegado
de polícia e como diretor de Hospital em Niterói. No entanto, nada disso o impediu de deixar
suas marcas na produção de um manual didático que seria aprofundado por João Ribeiro.
A História do Brasil de João Ribeiro foi notabilizada pelas inovações pedagógicas e
pelo corpo textual que trouxe novas questões para o ensino de História do Brasil, como novos
sujeitos históricos enquanto artífices da história brasileira. A obra se destacou por aprofundar
algumas questões postas pelas teses de Von Martius sobre a História do Brasil, como o
caldeamento das raças ocorrido ao longo da história brasileira. O peso social ‒ o peso de novas
personagens históricas ‒ sobrepujou os aspectos políticos e administrativos que os manuais do
império destacavam. Sua história laica criticou a atuação da Igreja contra a escravidão,
especialmente contra a escravidão africana; porém, enalteceu o papel dos jesuítas como
elemento moral da colonização portuguesa, a qual privilegiava os interesses imediatos
(econômicos): o enriquecimento rápido e o ócio sobre o trabalho.
A História do Brasil se renovaria ou se reescreveria com base nas análises históricas e
cientificistas da sociedade brasileira. A moral, desse modo, se colocaria ao lado da questão
racial para explicar o estado e o nível civilizatório do Brasil ante as nações modernas e
desenvolvidas da Europa. A miscigenação, portanto, criou uma moral decaída entre os
povoadores do território brasileiro, resultado da ação do colono e do jesuíta sobre os povos
indígenas e sobre os escravos negros. Por diferentes pontos da América portuguesa, irradiou-se
a nação mameluca, em uma história marcada por conflitos, guerras e disputas entre o interesse
nacional e os interesses regionais e particulares. Essa nação mameluca, por fim, sobrepujou os
regionalismos, como o liberalismo radical pernambucano e o platinismo gaúcho, destacados
por João Ribeiro.
Pode-se entender, então, o nacionalismo como científico, ideia que teve, entre outros
adeptos, Sílvio Romero e João Ribeiro. A História deveria privilegiar, então, uma identidade
nacional, pois a ciência legitimaria a nação do ponto de vista histórico, geográfico e, também,
biológico. Sílvio Romero, por exemplo, polemizou a questão racial, porque questionou o termo
208
raça pura: segundo ele, mesmo as raças que se cruzaram no Brasil já eram resultado de
miscigenações anteriores, como os portugueses – mestiços do cruzamento entre europeus,
judeus e mouros. Assim, entende-se que, em função das diferentes análises da nação brasileira,
o conceito de raça apresentou distinções: há um peso da questão racial do ponto de vista
biológico no início do século XX e um peso das teses culturalistas e, também, das economicistas
no decorrer desse século.
A semântica do conceito de raça também se transformou à medida que a palavra
ganhou sentidos de reflexão. Se, no século XVIII e no início do século XIX, possuía um sentido
de estirpe familiar, de genealogia, na segunda metade do século XIX e no início do século XX,
possuía um sentido distinto que pesava sobre as diferenças fenotípicas dos seres humanos como
caracterizadoras das raças, como os caucasoides, os mongoloides e os negroides. Tais distinções
explicariam os diferentes níveis de progressos civilizatórios entre os povos do mundo.
Quanto mais se teorizava o conceito de raça, mais o termo ganhava importância para
a designação do que vinha a ser a nação, resultado histórico de conformação de uma língua, de
uma religião e, também, da formação biológica. Porém, tais paradigmas explicariam somente o
que foram as nações europeias. E o como ficaria o caso brasileiro?
As narrativas de História do Brasil apontariam diferentes caminhos. João Ribeiro
assinalava mais um movimento de miscigenação e de branqueamento da população. Para seus
antecessores, a raça e a miscigenação também não apareciam, porque o importante era a
formação de um súdito da boa sociedade imperial. Luís Queirós M. Maia, imbuído de certo
cientificismo, não se furtava a condenar a escravidão ou os males causados à educação brasileira
em razão da expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses.
Nesse sentido, Naxara (1998) problematiza que o contraponto estaria em Manoel
Bomfim, cuja crítica era diametralmente oposta a essa representação. Segundo Bomfim, (1993)
era pseudociência barata que reforçava o imperialismo e o parasitismo da Europa sobre a
América e explicava o estado social, não apenas do Brasil, mas da América Latina como um
todo. Manoel Bomfim desvendava os mecanismos que mascaravam a suposta superioridade
dos brancos sobre os negros; afinal, o contexto brasileiro e a sua herança histórica eram
marcados pela opressão dos brancos sobre os negros, e as ideias racialistas já teriam um solo
fértil para a aceitação das elites políticas e intelectuais do País.
Com isso, o racismo como discurso que fundamentou a ideia de nação conquistava
espaço nesse processo de consolidação. Para Hobsbawm (2014), a partir da década de 1880 até
o início da Primeira Guerra, o conteúdo político-ideológico do discurso nacionalista foi
alterado. De acordo ainda com esse historiador, o discurso nacionalista surgiu entre os
209
conservadores franceses, ainda no século XIX, como bandeira contra os estrangeiros e, também,
como fundamento para a autodeterminação dos povos. Esse discurso se consolidaria no
processo de urbanização e industrialização intensa vivido pela Europa entre os séculos XVIII e
XIX.
Hobsbawm (2014) também destacou o uso da História e da raça como elementos
fundamentais para os discursos nacionalistas entre meados do século XIX e início do século
XX. Em outros termos, o ethos de autoridade argumentativa da ciência consolidou as teorias
racialistas (racismo) que, como chaves interpretativas dos processos históricos e das culturas
que estavam além do mundo europeu e ocidental, influenciaram as políticas dos Estados
Nacionais, cuja premissa era o progresso. Como uma nação poderia progredir se composta por
raças inferiores biologicamente, como populações africanas, aborígenes e mestiças? Esse mote
explica – junto à necessidade da mão de obra – as diferentes políticas de branqueamento
ocorridas na América Latina durante o século XIX e o século XX. Como a elite da boa
sociedade imperial e da Bellè époque se identificava com o universo cultural europeu, assimilou
e implantou as teorias construídas e propostas vindas desse continente.
Nesse sentido, a compreensão dos manuais didáticos de História como artífices desse
processo histórico é importante, porque, com base nela, é possível problematizar os usos e os
abusos do conhecimento histórico e da ciência, especialmente quando os livros escolares são
utilizados para a legitimação de políticas e de status quo. Os debates sobre os usos do passado
não morreram, até porque ainda são utilizados como ferramenta de lutas e disputas entre
diferentes projetos políticos, seja de hegemonia política, seja de nação e de memórias que se
criam e recriam sobre o tema.
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ANEXO 1:
Imagem da página 661, do sexto volume do dicionário Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico ... de Raphael Bluteau.
234
ANEXO 2:
Imagem da página 658, do quinto volume do dicionário Vocabulario portuguez & latino:
aulico, anatomico, architectonico ... de Raphael Bluteau.
235
ANEXO 3:
Imagem da página 86 , do sétimo volume do dicionário Vocabulario portuguez & latino: aulico,
anatomico, architectonico ... de Raphael Bluteau.
236
ANEXO 4:
ANEXO 5:
Frontispício da primeira edição de Lições de História (1880) de Luís de Queirós Mattoso
Maia.
238
ANEXO 6: