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Antropologia Nas Encruzilhadas PDF
Antropologia Nas Encruzilhadas PDF
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"QUE É FEITO DA ETNOCIÊNCIA?" ALGUMAS REFLEXÕES
TEÓRICAS A PARTIR DE PESQUISAS SOBRE
ETNOMEDICINA E ETNOBOTÂNICA NO MUNDO DO
CANDOMBLÉ*
RESUMO
profunda exploração teó-
rica da dimensão cognitiva
das culturas humanas.
rum. O problema já é visível nas Neste artigo, procuro refletir sobre o acontecido com a
Hoje, estamos muito
etnociência, de que já não se fala, embora tenham pro-
palavras-chave etnociência, gredido, divergindo em rumos distintos, vários estudos longe desse triunfalismo.
emocieruista.Hoje, não é fácil "etnocientíficos": a etno-história, etnomusicologia, a São notáveis os progressos
achar quem as pronuncie "de etnobiologia, a etnoecologia etc. Tenho em mira a rela- que pesquisas "etnocíentí-
ção entre esses estudos (cada vez mais interdisci-
boca cheia", com a grande ên- ficas" têm realizado em di-
plinares) e a antropologia, que é evocada em todos como
fase de outrora, e sem algum um fundamento comum, mas não se mostra capaz de versas áreas, mas não
reparo a seguir. Sim, existem reivindicar-Ihes o domínio, nem de unificá-Io, indago o sugerem nada como uma
muitos espeoalsasqoesedarram que significa para a antropologia a morte prolífica da grande síntese teórica, ca-
etnociência. Evoco debates que marcaram a trajetória
de etnoecólogos, etnobiólogo, paz de funcionar, à peu prês,
da etnopsiquiatria e concluo com a discussão de pro-
etnomusicólogos, blemas teóricos da etnobiologia, a propósito de uma pes- como uma epistemologia
etnohistoriadores etc. Mas pa- quisa etnobotânica (e etnofarmacológica) sobre o transcultural, montada num
rece que a todos constrange um sistema das 'folhas" no candomblé da Bahia. método elegante de descri-
pouco o rótulo genérico, o • Comunicaçãoapresentadano Simpósio08: O que é fei- ção/decifração. E até fica-
nome de "etnocientista". Não to da Etnociência?,durante a XXII ReuniãoBrasileirade mos encabulados quando
soa bem. Ainda provoca os ar- Antropologia, Brasflia, DF,16 a 19 de julho de 2000. se fala em Etnociência, as-
repios de uma lembrança ne- •• Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciên- sim no singular, com a ex-
cias Humanas. Departamento de Antropologia, Uni-
gativa: a das ambições teóricas versidade Federal da Bahia pressiva maiúscula.
desmesuradas vividas no surgi- Meu propósito é fa-
mento da plataforma de que se destacaram os varia- zer uma provocação ao debate sobre um dado
dos campos onde labutam os hoje muito mais pudicos curioso: a Etnociência, pelo jeito, morreu ... e
etno-qualquer-coisa. multiplicou-se. Uma dilaceração prolífica. O que
O exaltado sucesso de pioneiros nesse tipo isto quer dizer?
de pesquisas fizera crer que com elas se inaugu- Talvez eu tenha exagerado no anúncio
rava uma scienza nuoua, com um programa bem catastrófico. Num encontro como este, onde é
delineado e um método rigoroso, quase uma natural que se deparem alguns etno-issos e etno-
Arubropologie ais strenge Wissenschaft. Miragem aquilos (Remanescentes? Prosélitos? oviços tar-
de antropólogos, por certo ... Mas outros estudio- dios?) a velha imagem de Babel acode inevitável,
sos acreditaram no porto seguro dessa Nova mas é logo esconjurada: a nuvem tenebrosa é
Etnologia, cujos fundamentos seriam estabeleci- dissipada por votos cordiais. Pois embora seja
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abertura do horizonte etnoecológico, talvez o Recentemente, participei de um Simpósio
espaço mais favorável aos reencontros teóricos de Etnopsiquiatria em que me coube discorrer
de muitas vertentes dessa diáspora. Ou seja: na sobre um tema espinhoso. Já o título de minha
tribo dispersa e na sua descendência multifária, comunicação exigiu-me algumas explicações
talvez o maior sucesso, em termos de reunião e preliminares, tornadas ainda mais imperativas
de avanço, tenha acontecido nesse terreno, cuja pelo próprio lugar onde eu a fazia. Eu falava da
exploração resultou do inegável progresso da "Etnopsiquiatria dos Ritos Afro-brasileiros". O
Etnobiologia, com um desenvolvimento particu- encontro deu-se no prédio que já foi o Colégio
larmente significativo aqui no Brasil. dos Jesuítas, no velho Terreiro de Jesus, em Sal-
A propósito: nesta mesa deveria estar um vador, e depois veio a ser, por muito tempo, a
colega ilustre cuja presença bastaria para atestá- sede da Faculdade de Medicina da Universida-
10; refiro-me a Darrel Posey, a quem pendo mi- de Federal da Bahia. Pois bem: como logo avi-
nha homenagem. Mesmo ausente, ele cumpre sei a meu auditório, não era nada simples
aqui a função de ativo monumentum da história relacionar "Psiquiatria" e "Ritos Afro-Brasileiros"
que estou evocando, uma testemunha e um agen- falando naquele cenário. Tanto assim que não
te de sua rica continuidade. pude tugir à ironia de um certo esclarecimento.
Ainda a propósito, devo reportar-me a Já explico. Na ilustre Casa onde eu fazia
outro desencontro. Para vir a esta reunião da aquela exposição, pela primeira vez ritos afro-
ABA tive de faltar a um simpósio que também brasileiros foram tomados como objeto de uma
me interessava muito, e está acontecendo ago- preocupação acadêmica; pela primeira vez se
ra, de um modo bem importuno para mim: no falou deles em nome da Ciência. E eles foram,
mesmo período em que transcorre o nosso, então, caracterizados como afetos ao campo da
mas em Piracicaba. Refiro-me ao III Simpósio Psiquiatria, um problema a ser enfrentado no
da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e horizonte de um programa de Hygiene Men-
Etnoecologia, entidade da qual sou membro tal, como se dizia à época uma época em que
fundador, junto com Posey e muitos outros. A nosso humanismo confiava no progresso, na
SBEE representa uma fênix: sua fundação em modernização, na educação, no avanço da
1997, num memorável congresso científico que cristianização dos negros e na suave limpeza
se realizou na Bahia, no campus da Universi- étnica da mestiçagem cordial para a erradicação
dade Estadual de Feira de Santana, foi um ver- desse tipo de coisas. Ali se constituiu um campo
dadeiro retorno, um sinal produtivo de que ideológico-científico de configuração muito par-
não falecera o ímpeto da primeira iniciativa ticular, interligando os domínios de conhecimen-
aqui feita neste sentido, o tentame pioneiro to psiquiátrico e antropológico, técnicas de
de estabelecer no Brasil uma organização ci- higiene e polícia, articuladas no horizonte "mé-
entífica com este fim, isto é, a Sociedade Bra- dico-lega!"; nesse terreno, assentou um projeto
sileira de Etnobiologia. O estatuto da SBEE de intervenção prática, reguladora, discipli-
recapitula a Declaração de Belém e evoca o I nadora, voltado para o estudo e controle dos
Congresso Internacional de Etnobiologia, rea- ritos afro-brasileiros.
lizado na capital paraense em 1988. Evoco um testemunho notável: em 1945,
O crescimento exponencial da SBEE per- prefaciando uma obra de Lins e Silva, Gilberto
mite constatar o progresso extraordinário dessa Freyre lembrava com veneração o projeto de
classe de pesquisas no Brasil. Nina Rodrigues, de controle psiquiátrico dos ter-
Feito esse registro, volto a refletir sobre reiros, proposto como alternativa à repressão
dificuldades teóricas relacionadas com os estu- direta, à intervenção policial. Nina não o conse-
dos "etnocientíficos". guiu implantar; mas a idéia foi posta em prática
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simultânea do problema ao horizonte médico outros, muitos outros, que não se propõem des-
da "doença mental" e ao domínio "do axé"; por te modo, que não se concebem cingidos ao pla-
fim, em outras instâncias, os habalaôs conside- no das praxes iátricas.
ram que o problema, embora pareça "doença", Dito isso, não quero recuar ao modelo da
na verdade vem a ser uma perturbação de outra Etnopsiquiatria que primeiro vingou: o da tam-
ordem, algo que só pode ser tratado por meios bém chamada "Psiquiatria Transcultural". O pro-
religiosos. (Esses meios, segundo eles, convêm blema com ela, a meu ver, é que com freqüência
ainda a remediar outros tipos de infortúnio, e a não foi "transcultural" no sentido mais rico do
promover um equilíbrio ótimo, "acertando a vida termo. Quase sempre cingiu-se a ensaios de trans-
da pessoa") porte de um saber psiquiátrico considerado defi-
Em suma, não há negar que a tberapéia nitivo, acabado, para contextos diferentes daquele
do candomblé envolve técnicas de restauração/ onde a grande Ciência se originou - e ao estudo
promoção da saúde, e particularmente do que "estratégico" de sua aplicação nessas condições.
chamamos de "saúde mental"; deste ponto de De maneira complexa, esse projeto coniundiu-se
vista, creio mesmo que cabe falar, a propósito, com a busca de compreensão dos modos como
em um "sistema médico", em uma "etnopsi- as "sociedades tradicionais" lidam com proble-
quiatria". Mas convém advertir que a pertinência mas de saúde mental. Ora, bem: dava-se desta-
tem um limite que, nessa perspectiva, ao exame das taxionomias
Sim, uma coisa deve ser reconhecida e nosológicas, em particular das relativas aos dis-
explicitada: falar em Etnopsiquiatria, neste sen- túrbios "de natureza psíquica"; e as praxes iátricas
tido, implica referir o sistema estudado a um tradicionais eram postas em correspondência "sin-
enfoque que assim o aborda. Ou seja: cumpre tomática' com os distúrbios acusados. A interpre-
não eludir a perspectiva antropológica em que tação de modelos iátricos e construtos nosológicos
o objeto deste discurso etnográfico é erigido tendiam assim a fazer-se de modo unilateral, em
como tal: não pode o antropólogo esquecer-se sentido único, sem o retomo sobre si mesma da
do que aporta à sua observação, no contexto interrogação que os alcançava.
dialógico de seu trabalho. Se o olvida, reifica Decorria disso uma pengosa simplificação
sua descrição do fenômeno estudado, definin- do recorte analítico dos níveis 'ético' e êmic6 de
do-o segundo uma projeção que nele faz, de estudo, e um empobrecimento crítico da pró-
suas próprias categorías. Esquecer essa adver- pria teoria psiquiátrica, tomada como referência
tência implicaria, no caso, "medicalizar" o rito inicial: o duro preço de conferir-lhe o domínio
estudado, pretendendo que "no fundo", essen- absoluto, exclusivo, da revelação última - em
cialmente", "objetivamente" é (apenas) isso mes- seus termos previamente estabelecidos - do ver-
mo que ele vem a ser: um sistema médico. [Ainda dadeiro teor dos fenômenos abordados, era
quando não se mostre sob essa forma 'clara' a imaginá-Ia "culrure free", isenta de valores, soci-
quem o pratica ." (Por desgraça, este tipo arro- ologicamente virgem, protegida por uma égide
gante de reducionismo é ainda comum em aná- infalível - a da Ciência como 'espelho da natu-
lises de tipo flincionalista de modelos de ação reza" -, e posta assim fora da História, num pIa-
abordados na Etnologia)]. no intocável pelo esforço interpretativo originado
Por outro lado, convém ter em mente um em seu próprio seio. Tirava-se dela a sua
dado manifesto pela consideração transcultural potencialidade hermenêutica: Hermes foge de
do assunto: é uma característica que distingue quem não se interroga.
(e quiçá singulariza) a nossa Biomedicina mo- Ora, aí está: quando frutífero, o diálogo
derna, contemporânea, o fato de ela apresentar- transcultural não deixa intacta a fonte teórica do
se como um sistema exclusivamente médico. Há projeto. Também neste domínio da hermenêutica
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número limitado
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receba um culto regular nos candomblé. Sua chave de leitura encontra-se aí,
terreiros, Orixás funcionam como simbolos em- nessa liturgia iniciática das folhas de orixá.
pregados no processo de classificação. Dá-se que Assim, o universo vegetal pode ser orga-
eles transcendem o campo da Taxionoinia estu- nizado com a discriminação de sete campos prin-
dada, pois se aplicam também a outras. São cipais. O modelo, no plano mais decisivo,
simbolos complexos não só por isso, mas tam- combina a oposição binária com arranjos
bém porque seu valor semântico admite uma triádicos, organizando díades em pontos (lógi-
variação lógica, desde quando eles se podem cos) simétricos, a partir de um eixo que lhes
ordenar em diferentes blocos de cifras e porque serve de referência.
cada um deles representa um bloco per se:Xangô O modelo do euê jokó pode ainda ser des-
(o teônimo Xangô), por exemplo, tanto designa dobrado numa configuração em que (como o sis-
um deus "individualizado" no horizonte de de- tema divinatório de Ifâ), consta de dezesseis
terminados mitos ou liturgias., quanto uma clas- simbolos (Orixás + vegetais associados). Neste
se divina: o povo do candomblé diz que "há caso, evidentemente, a célula do setenário é am-
muitas qualidades de Xangô". pliada com a inclusão de um conjunto eneádico.
De acordo com o contexto mítico-ritual, o Isso exige uma breve explanação de cer-
alcance desses símbolos pode ser modificado. Isso tos elementos estruturais do rito enfocado (o rito
tem a ver com a variação dos mitos, mas também nagô do candomblé, observado nos terreiros
com a diferenciação das estruturas que eles são onde foi feita a pesquisa).
chamados a descrever, e que obriga a alterar-lhes Quando se estuda a cosmologia nagô, o
(em alguma medida) a sintaxe hierárquica. Um primeiro dado que salta à vista é a organização
(signo-) orixá pode ter, num determinado con- dual, que ordena, aparentemente, todo o uni-
texto, uma função equivalente à desempenhada verso através do confronto de pares de opostos,
por outro da mesma natureza num contexto di- em esquemas binários. O universo é concebido
verso: isto permite fazer entre eles uma associação como dividido em duas dimensões: o ayê, o
passível de desdobrar-se em vários níveis, ligan- mundo fisico, e o orun, que o transcende. Fica-
do também, por homologias, os planos conside- se logo tentado a ler assim a estrutura do siste-
rados nos contextos distintos. Isso faculta variações ma, caracterizando-o como simplesmente
enriquecedoras na construção do modelo dualista. Mas seria um equívoco. De fato, a opo-
"cosmológico'. Às vezes, substituições dessa or- sição "contrapolar" de campos e sua replicação
dem são claramente indicadas no discurso mítico. vêm a ser procedimentos fundamentais na gra-
O panteão básico dos orixás alinha mática do sistema nagô, tanto na construção dos
dezesseis divindades, invocadas no xirê (no or- modelos de realidade que concernem à
dinário da liturgia do candomblé); mas nem to- cosmogonia e à mântica, quanto no domínio dos
das elas se vêem referidas na estrutura mais arranjos taxionômicos que também compõem
elementar do sistema de Ossairi. Esta estrutura esta cosmo-lógica. Mas quando se aprotunda a
compreende sete grupos, que se distinguem análise, logo se vê que o esquema binário resul-
pelos patronos divinos, aos quais se relacionam ta insuficiente. Nos discursos "cosmológicos" das
as folhas consideradas "de maior importância" comunidades do candomblé nagô, os arranjos
na celebração do euê jokó, realizada no contex- diádicos freqüentemente encobrem outros, em
to dos ritos iniciáticos. Na forma expandida, po- tríades. Uma confirmação disto se acha na con-
rém, o cânon fixo do euê jokó chega a ter tínua e explícita referência à divisão do univer-
dezesseis elementos. so em nove partes. Os nove espaços do cosmo
A ordem se mio lógica deste cânon traduz envolvem o mundo físico: segundo uma expla-
a estrutura do sistema etnofarmacobotânico do nação bem conhecida, trata-se, na verdade, de
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que são combinados a funçoes (religiosas e te- pêutico as folhas às quais se atribui o poder de
rapêuticas), explorando correspondências entre controlar estados de perturbação que em si mes-
os distintos domínios do cosmo. mos não são malignos, mas que podem, se não
Os especialistas do candomblé entendem forem limitados, causar dano ao sujeito: elas
a terapia de uma forma abrangente: a cura com "controlam" o transe, por exemplo, ou limitam
emprego de vegetais pode ser obtida, segundo crises e distúrbios cuja remoção imediata não
admitem, pela operação simbólica dos ritos e/ seria possível (ou mesmo desejável: a crise as-
ou-pelo efeito 'medicinal" das plantas. Eles dis- sim tratada pode ser considerada uma passagem
tinguem de forma explícita entre o valor necessária ao desenvolvimento da pessoa, e be-
terapêutico-simbólico e o correspondente à efi- néfica, se controlada). Entre asfolhasque se apli-
cácia fisica dos itens, mas servem-se dos cam de forma direta ao corpo do paciente, muitas
parâmetros litúrgicos para ordenar seus conhe- têm sua ação relacionada de forma particular a
cimentos fármacológicos. um órgão ou região anatômica, cujo bom funcio-
Da perspectiva do candomblé nagô, en- namento elas -são consideradas capazes de pro-
fermidades e infortúnios se equiparam na medi- mover ou restaurar, agindo de forma curativa.
da em que causam desconforto, considerado Outras são estimadas capazes de estimular fa-
passível de tratamento. As folhas permitem re- culdades ligadas a determinados órgáos, re-
mover esse desconforto. (Podem também cau- movendo barreiras que limitam a percepção e a
sar danos. Têm a eficácia ambígua de fárrnacos). expressão: são reveladoras, permitem que se
O povo-de-santo nagô caracteriza e ordena as amplie o poder da visão, da audição, da fala.
folhas em função desses valores. Elas podem O que acabei de fazer no parágrafo acima
ser usadas em terapias nas quais funcionam atra- foi uma breve indicação de registros utilizados
vés de uma ação direta - quando o corpo do no candomblé de rito nagô para ordenar o re-
paciente as absorve (por iogestão ou aplicação, pertório das folhas segundo uma grade "funcio-
etc.) - ou de modo indireto, isto é, quando se - nal". (Na indicação, por economia, vali-me de
considera que o contacto não leva à absorção rótulos breves que escolhi arbitrariamente, em
fisica e (em certos casos) até pode ser vez das locuções que indicam esses agrupamen-
dispensado: basta a proximidade ... As folhas que tos no dialeto dos terreiros). No pouco tempo,
se usam no candomblé como recursos de uma no enxuto espaço de que disponho, mesmo re-
terapia "indireta" são consideradas eficazes em ceando que tanta concisão a torne críptica, não
dois sentidos principais: no sentido aversivo, visto posso ir além desta apresentação sinóptica do
como se supõe que afastam o mal, o infortúnio, modelo "etnofarmacobotânico" estudado. Tam-
a doença, impedindo que perturbações atinjam bém não é este o lugar apropriado para dar-lhe
a pessoa. São apotropaicos, em suma. Outras, corpo numa análise detida... O meu objetivo,
embora não ajam de forma direta sobre o corpo aqui e agora, é assinalar alguns tópicos da peri-
do paciente, atraem para ele, se conservadas na pécia analítica que sugerem considerações teó-
sua cercania, o bem-estar, a saúde, a fortuna, ricas de caráter mais geral.
propiciando o orixá. Para dizê-lo numa palavra, No curso do Projeto Ossain, foram assina-
são propiciadoras. O alcance da ação direta das ladas correspondências entre a taxionomia tra-
folhas sobre o corpo do paciente pode ser limi- dicional e a classificação botânica vigente no
tado a certos órgãos ou ainda ser difuso, agir mundo científico, e exemplares da coleta siste-
sobre ele todo. Neste último caso estão as fo- mática foram estudados do ponto de vista
lhas que 'limpam o corpo ,que "purificam a pes- farmacognósico, levando em conta as indicações
soa exercendo um efeito catártico e profilático terapêuticas feitas pelos especialistas tradicionais
geral; também têm este amplo alcance tera- para a pesquisa de princípios químicos ativos.
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