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ANTROPOLOGIA NAS ENCRUZILHADAS:

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"QUE É FEITO DA ETNOCIÊNCIA?" ALGUMAS REFLEXÕES
TEÓRICAS A PARTIR DE PESQUISAS SOBRE
ETNOMEDICINA E ETNOBOTÂNICA NO MUNDO DO
CANDOMBLÉ*

omeçarei tratando de uma dos com base em uma

C questão incômoda, que não


pode ser eludida por quem
se interessa pelo tema deste F&
ORDEP SERRA **

RESUMO
profunda exploração teó-
rica da dimensão cognitiva
das culturas humanas.
rum. O problema já é visível nas Neste artigo, procuro refletir sobre o acontecido com a
Hoje, estamos muito
etnociência, de que já não se fala, embora tenham pro-
palavras-chave etnociência, gredido, divergindo em rumos distintos, vários estudos longe desse triunfalismo.
emocieruista.Hoje, não é fácil "etnocientíficos": a etno-história, etnomusicologia, a São notáveis os progressos
achar quem as pronuncie "de etnobiologia, a etnoecologia etc. Tenho em mira a rela- que pesquisas "etnocíentí-
ção entre esses estudos (cada vez mais interdisci-
boca cheia", com a grande ên- ficas" têm realizado em di-
plinares) e a antropologia, que é evocada em todos como
fase de outrora, e sem algum um fundamento comum, mas não se mostra capaz de versas áreas, mas não
reparo a seguir. Sim, existem reivindicar-Ihes o domínio, nem de unificá-Io, indago o sugerem nada como uma
muitos espeoalsasqoesedarram que significa para a antropologia a morte prolífica da grande síntese teórica, ca-
etnociência. Evoco debates que marcaram a trajetória
de etnoecólogos, etnobiólogo, paz de funcionar, à peu prês,
da etnopsiquiatria e concluo com a discussão de pro-
etnomusicólogos, blemas teóricos da etnobiologia, a propósito de uma pes- como uma epistemologia
etnohistoriadores etc. Mas pa- quisa etnobotânica (e etnofarmacológica) sobre o transcultural, montada num
rece que a todos constrange um sistema das 'folhas" no candomblé da Bahia. método elegante de descri-
pouco o rótulo genérico, o • Comunicaçãoapresentadano Simpósio08: O que é fei- ção/decifração. E até fica-
nome de "etnocientista". Não to da Etnociência?,durante a XXII ReuniãoBrasileirade mos encabulados quando
soa bem. Ainda provoca os ar- Antropologia, Brasflia, DF,16 a 19 de julho de 2000. se fala em Etnociência, as-
repios de uma lembrança ne- •• Professor Adjunto da Faculdade de Filosofia e Ciên- sim no singular, com a ex-
cias Humanas. Departamento de Antropologia, Uni-
gativa: a das ambições teóricas versidade Federal da Bahia pressiva maiúscula.
desmesuradas vividas no surgi- Meu propósito é fa-
mento da plataforma de que se destacaram os varia- zer uma provocação ao debate sobre um dado
dos campos onde labutam os hoje muito mais pudicos curioso: a Etnociência, pelo jeito, morreu ... e
etno-qualquer-coisa. multiplicou-se. Uma dilaceração prolífica. O que
O exaltado sucesso de pioneiros nesse tipo isto quer dizer?
de pesquisas fizera crer que com elas se inaugu- Talvez eu tenha exagerado no anúncio
rava uma scienza nuoua, com um programa bem catastrófico. Num encontro como este, onde é
delineado e um método rigoroso, quase uma natural que se deparem alguns etno-issos e etno-
Arubropologie ais strenge Wissenschaft. Miragem aquilos (Remanescentes? Prosélitos? oviços tar-
de antropólogos, por certo ... Mas outros estudio- dios?) a velha imagem de Babel acode inevitável,
sos acreditaram no porto seguro dessa Nova mas é logo esconjurada: a nuvem tenebrosa é
Etnologia, cujos fundamentos seriam estabeleci- dissipada por votos cordiais. Pois embora seja

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muitíssimo provável que esses "(etno-Jparentes" tes fugidios nos achamos, todos os humanos,
sintam dificuldades de comunicação uns com diferentemente inseridos, ainda que levados a
os outros, nem por isso se desiste a priori de conter a nossa celebrada plasticidade no limite
tentá-Ia. em há por que rejeitar uma conversa de cada domínio desses a que nos prende a
genérica sobre teoria e métodos. história de nossa socialização (cf. Gellner,
Sim, pode-se empreendê-Ia com a espe- 1997:56-72). O terreno da pesquisa antropoló-
rança de uma interação criativa. Há algo de co- gica é clivado pela interseção de campos cujo
mum na bagagem de todos, e concerne a um confronto ela torna críticos: envolve o estudio-
valioso arsenal da Antropologia. Hoje, porém, so e seu "lugar" (sua sociedade, seu tempo,
esta não pode reivindicar o domínio das pes- seu grupo ou classe etc.), opondo-o a outro,
quisas "etnocientíficas" como um distrito de seu seja como for que se recorte essa alteridade.
território, uma simples faixa de seu campo de Mesmo quando ela se afigura mínima, quando
ação. Agora mais do que nunca, essas pesquisas o estudioso investiga sua cercania, o corte da
se sustentam na interdisciplinaridade. pesquisa sempre a produz, e confronta códi-
Por outro lado, para muitos antropólogos gos que deve ultrapassar. O antropólogo traba-
a disciplina a que se dedicam, se é que algum lha em limbos e fronteiras, em efêmeros pontos
dia o teve, já não tem um "território" de claro de encontro. Sua disciplina é movediça como
traçado, unicamente seu, onde exerça domínio o diálogo em que se origina. E neste caso, a
exclusivo, imperativo e inconteste. Ao contrá- pesquisa necessariamente inclui na sua bola de
rio: parece que a cada hora ela fica mais cigana. neve o pesquisador.
A meu ver, o que tem de melhor é a vocação Porque nasceu e vive em fronteiras, por-
para a vagabundagem nas encruzilhadas. Se al- que se criou em encruzilhadas transculturais, a
gum domínio lhe cabe por direito é o das fron- Antropologia teve ímpeto para fomentar os em-
teiras entre sociedades, culturas, grupos humanos preendimentos chamados "etnocientíficos", indo
diversos; e (por conseqüência) entre saberes, ao encontro de graves esfinges em trânsito
discursos, jogos de linguagem. Fronteiras que cognitivo.
flutuam ... Cruzamentos precários, instáveis, to- Mas repito que os novos campos em cuja
cados pelo fluxo da mudança incessante. abertura ela assim se empenhou através de um
Convenhamos: o nome pretensioso da diálogo travado, de forma simultânea, com dife-
nossa disciplina assusta, com a barbaridade do rentes disciplinas oriundas da mesma fonte his-
seu grego forjado e a abrangência que insinua: tórico-cultural, da mesma tradição epistêmica ,
parece consignar-lhe o estudo do genus homo, e ainda com outros saberes - transcendentes à
segundo os bioantropólogos sugerem apontan- fronteira dos que lhe são conaturais -, esses no-
do imediatamente para a ligação contraditória vos espaços, é bom lembrar, de fato não lhe
entre a unidade genérica que assinalam e a di- pertencem.
versidade à qual ela se liga de forma necessá- De qualquer modo, a Antropologia encon-
ria ... Ora, ao fazê-lo, confessam eles logo que tra na sua própria natureza liminar o alento que
esse estudo não cabe inteiro nos limites de uma a predispõe para as aventuras da interdisci-
única disciplina: assim procuram de pronto um plinaridade e o desafio dos códigos cruzados -
limite metodológico à sua pretensão, recuando aventuras nas quais, como reza um terrível Evan-
o quanto podem ao campo da biologia. Os gelho, quem quiser salvar sua alma perdê-la-á.
etnólogos dirigem sua atenção ao espaço onde Talvez a dispersão que tanto temos lamen-
essa conjunção inelutável de unidade e diver- tado seja o nosso melhor destino ...
sidade melhor se acusa: ocupam-se das várias Eu acredito que um dos resultados positi-
configurações socioculturais em cujos horizon- vos da dilacerada história da Etnociência foi a

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abertura do horizonte etnoecológico, talvez o Recentemente, participei de um Simpósio
espaço mais favorável aos reencontros teóricos de Etnopsiquiatria em que me coube discorrer
de muitas vertentes dessa diáspora. Ou seja: na sobre um tema espinhoso. Já o título de minha
tribo dispersa e na sua descendência multifária, comunicação exigiu-me algumas explicações
talvez o maior sucesso, em termos de reunião e preliminares, tornadas ainda mais imperativas
de avanço, tenha acontecido nesse terreno, cuja pelo próprio lugar onde eu a fazia. Eu falava da
exploração resultou do inegável progresso da "Etnopsiquiatria dos Ritos Afro-brasileiros". O
Etnobiologia, com um desenvolvimento particu- encontro deu-se no prédio que já foi o Colégio
larmente significativo aqui no Brasil. dos Jesuítas, no velho Terreiro de Jesus, em Sal-
A propósito: nesta mesa deveria estar um vador, e depois veio a ser, por muito tempo, a
colega ilustre cuja presença bastaria para atestá- sede da Faculdade de Medicina da Universida-
10; refiro-me a Darrel Posey, a quem pendo mi- de Federal da Bahia. Pois bem: como logo avi-
nha homenagem. Mesmo ausente, ele cumpre sei a meu auditório, não era nada simples
aqui a função de ativo monumentum da história relacionar "Psiquiatria" e "Ritos Afro-Brasileiros"
que estou evocando, uma testemunha e um agen- falando naquele cenário. Tanto assim que não
te de sua rica continuidade. pude tugir à ironia de um certo esclarecimento.
Ainda a propósito, devo reportar-me a Já explico. Na ilustre Casa onde eu fazia
outro desencontro. Para vir a esta reunião da aquela exposição, pela primeira vez ritos afro-
ABA tive de faltar a um simpósio que também brasileiros foram tomados como objeto de uma
me interessava muito, e está acontecendo ago- preocupação acadêmica; pela primeira vez se
ra, de um modo bem importuno para mim: no falou deles em nome da Ciência. E eles foram,
mesmo período em que transcorre o nosso, então, caracterizados como afetos ao campo da
mas em Piracicaba. Refiro-me ao III Simpósio Psiquiatria, um problema a ser enfrentado no
da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e horizonte de um programa de Hygiene Men-
Etnoecologia, entidade da qual sou membro tal, como se dizia à época uma época em que
fundador, junto com Posey e muitos outros. A nosso humanismo confiava no progresso, na
SBEE representa uma fênix: sua fundação em modernização, na educação, no avanço da
1997, num memorável congresso científico que cristianização dos negros e na suave limpeza
se realizou na Bahia, no campus da Universi- étnica da mestiçagem cordial para a erradicação
dade Estadual de Feira de Santana, foi um ver- desse tipo de coisas. Ali se constituiu um campo
dadeiro retorno, um sinal produtivo de que ideológico-científico de configuração muito par-
não falecera o ímpeto da primeira iniciativa ticular, interligando os domínios de conhecimen-
aqui feita neste sentido, o tentame pioneiro to psiquiátrico e antropológico, técnicas de
de estabelecer no Brasil uma organização ci- higiene e polícia, articuladas no horizonte "mé-
entífica com este fim, isto é, a Sociedade Bra- dico-lega!"; nesse terreno, assentou um projeto
sileira de Etnobiologia. O estatuto da SBEE de intervenção prática, reguladora, discipli-
recapitula a Declaração de Belém e evoca o I nadora, voltado para o estudo e controle dos
Congresso Internacional de Etnobiologia, rea- ritos afro-brasileiros.
lizado na capital paraense em 1988. Evoco um testemunho notável: em 1945,
O crescimento exponencial da SBEE per- prefaciando uma obra de Lins e Silva, Gilberto
mite constatar o progresso extraordinário dessa Freyre lembrava com veneração o projeto de
classe de pesquisas no Brasil. Nina Rodrigues, de controle psiquiátrico dos ter-
Feito esse registro, volto a refletir sobre reiros, proposto como alternativa à repressão
dificuldades teóricas relacionadas com os estu- direta, à intervenção policial. Nina não o conse-
dos "etnocientíficos". guiu implantar; mas a idéia foi posta em prática

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por discípulos seus com um êxito que o sábio É claro que nem sempre se pode ser se-
prefaciador acentuou. Em Recife, isso foi feito manticamente correto. Todo discurso científico
por Ulysses Pernambucano, e em Salvador, por lida com deslizamentos de sentido talvez só evi-
"técnicos capazes" arregimentados pelo major táveis por completo com desgraça maior: atra-
Juracy Magalhães. Ainda de acordo com o autor vés de um silêncio perfeito, de estéril prudência.
de Casa-Grande & Senzala, essa iniciativa de Contudo, certos equívocos que temos de supor-
controle dos terreiros por médicos (e etnólogos) tar não nos incomodam menos por isso - por
veio a ser "uma das intervenções mais felizes da serem um atrito até certo ponto necessário à mar-
ciência e da técnica antropológica, orientada por cha da exposição E preciso denunciá-Ios e en-
uma psiquiatria social, na vida de uma comuni- frentar o problema que encobrem.
dade brasileira" (Veja-se Gilberto Freyre: "Nina Quando falo em "Etnopsiquiatria dos Ri-
Rodrigues recordado por um discípulo". Prefá- tos Afro-Brasíleiros", dando à expressão o senti-
cio ao livro de Augusto Lins e Silva: Atualidade do que acima esclareci, cometo, sim, uma certa
de Nina Rodrigues. Rio de Janeiro: Leitura, 1945. impropriedade. Seja um exemplo: o culto do can-
O citado prefácio foi republicado em 1990, em domblé não destaca (ao menos do modo como
Salvador, pela Fundação das Artes, numa cole- o faz o seu estudioso) os procedimentos que
tânea de artigos do "Mestre de Apipucos" aplica ao trato dos problemas "de ordem psiqui-
intitulada Bahia e Baianos). átrica" - segundo nós os categorizamos -, nem
Eu falava no espaço onde isto se imagi- os isola em um domínio específico de sua pra-
nou: no mesmo prédio que abrigou o Museu xe, como circunscritos ao ámbito de uma teoria
Estácio de Lima, com seu rico acervo de cabe- e de uma técnica particulares cuja configuração
ças de cangaceiros degolados, monstros natu- as distinga com clareza de outros componentes
rais, monumentos de crimes e instrumentos de do sistema em apreço, segundo diferenças
culto do candomblé; tratava do meu belo tema teleológicas decisivas: só assim se erigiria, no
no lugar onde surgiu a teoria ilustrada por essa referido contexto, uma "ordem psiquiátrica" de
mostra. Não pude fugir à explicação de que os questões.
ritos afro-brasileiros não eram, no meu discur- Em certos casos, até se pode falar em um
so, o objeto de um cuidado cuja natureza a refe- reconhecimento dessa classe de fenômenos, por
rência aos saberes psiquiátricos evidenciaria: parte dos especialistas do povo-de-santo; mas,
antes correspondiam ao espaço simbólico onde em geral, ele vem acompanhado de uma deter-
tal era minha suposição - se erige uma prática minação que justamente os exclui do campo
terapêutica que importa estudar. Era neste senti- terapêutico do candomblé.
do que eu falava de "Etnopsiquiatria dos Ritos (Devo esclarecer que falo aqui de "terapia"
Afro-Brasileiros", não no sentido em que enten- pensando no sentido que tinha o étimo desta
deriam o termo - se o conhecessem - os segui- palavra: o nome grego tberapeia compreendia os
dores de Nina; tampouco no sentido em que significados de "culto", "serviço" e "tratamento").
podem entendê-lo notáveis estudiosos respon- Com efeito, tenho ouvido pais-de-santo
sáveis pela ditusão do enfoque e do rótulo: falarem em "doença mental" - mas quase sem-
etnopsiquiatras da primeira hora (como George pre eles acompanham esse diagnóstico da adver-
Devereux, por exemplo. tência de que "o caso é de médico", e assim
Fiz o esclarecimento, mas não fiquei sendo, no máximo podem dar apoio ao trata-
tranquilo. Tinha outro embaraço no caminho. mento recomendável (tal apoio limita-se a
Ele concerne a um abuso praticamente inevitá- propicíações feitas para que se tenha sorte com
vel, encerrado no emprego que dei então ao os doutores ...). Claro está que muitas vezes, en-
nome técnico "etnopsiquiatria. tretanto, o diagnóstico "de Ifá" acusa a pertinência

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simultânea do problema ao horizonte médico outros, muitos outros, que não se propõem des-
da "doença mental" e ao domínio "do axé"; por te modo, que não se concebem cingidos ao pla-
fim, em outras instâncias, os habalaôs conside- no das praxes iátricas.
ram que o problema, embora pareça "doença", Dito isso, não quero recuar ao modelo da
na verdade vem a ser uma perturbação de outra Etnopsiquiatria que primeiro vingou: o da tam-
ordem, algo que só pode ser tratado por meios bém chamada "Psiquiatria Transcultural". O pro-
religiosos. (Esses meios, segundo eles, convêm blema com ela, a meu ver, é que com freqüência
ainda a remediar outros tipos de infortúnio, e a não foi "transcultural" no sentido mais rico do
promover um equilíbrio ótimo, "acertando a vida termo. Quase sempre cingiu-se a ensaios de trans-
da pessoa") porte de um saber psiquiátrico considerado defi-
Em suma, não há negar que a tberapéia nitivo, acabado, para contextos diferentes daquele
do candomblé envolve técnicas de restauração/ onde a grande Ciência se originou - e ao estudo
promoção da saúde, e particularmente do que "estratégico" de sua aplicação nessas condições.
chamamos de "saúde mental"; deste ponto de De maneira complexa, esse projeto coniundiu-se
vista, creio mesmo que cabe falar, a propósito, com a busca de compreensão dos modos como
em um "sistema médico", em uma "etnopsi- as "sociedades tradicionais" lidam com proble-
quiatria". Mas convém advertir que a pertinência mas de saúde mental. Ora, bem: dava-se desta-
tem um limite que, nessa perspectiva, ao exame das taxionomias
Sim, uma coisa deve ser reconhecida e nosológicas, em particular das relativas aos dis-
explicitada: falar em Etnopsiquiatria, neste sen- túrbios "de natureza psíquica"; e as praxes iátricas
tido, implica referir o sistema estudado a um tradicionais eram postas em correspondência "sin-
enfoque que assim o aborda. Ou seja: cumpre tomática' com os distúrbios acusados. A interpre-
não eludir a perspectiva antropológica em que tação de modelos iátricos e construtos nosológicos
o objeto deste discurso etnográfico é erigido tendiam assim a fazer-se de modo unilateral, em
como tal: não pode o antropólogo esquecer-se sentido único, sem o retomo sobre si mesma da
do que aporta à sua observação, no contexto interrogação que os alcançava.
dialógico de seu trabalho. Se o olvida, reifica Decorria disso uma pengosa simplificação
sua descrição do fenômeno estudado, definin- do recorte analítico dos níveis 'ético' e êmic6 de
do-o segundo uma projeção que nele faz, de estudo, e um empobrecimento crítico da pró-
suas próprias categorías. Esquecer essa adver- pria teoria psiquiátrica, tomada como referência
tência implicaria, no caso, "medicalizar" o rito inicial: o duro preço de conferir-lhe o domínio
estudado, pretendendo que "no fundo", essen- absoluto, exclusivo, da revelação última - em
cialmente", "objetivamente" é (apenas) isso mes- seus termos previamente estabelecidos - do ver-
mo que ele vem a ser: um sistema médico. [Ainda dadeiro teor dos fenômenos abordados, era
quando não se mostre sob essa forma 'clara' a imaginá-Ia "culrure free", isenta de valores, soci-
quem o pratica ." (Por desgraça, este tipo arro- ologicamente virgem, protegida por uma égide
gante de reducionismo é ainda comum em aná- infalível - a da Ciência como 'espelho da natu-
lises de tipo flincionalista de modelos de ação reza" -, e posta assim fora da História, num pIa-
abordados na Etnologia)]. no intocável pelo esforço interpretativo originado
Por outro lado, convém ter em mente um em seu próprio seio. Tirava-se dela a sua
dado manifesto pela consideração transcultural potencialidade hermenêutica: Hermes foge de
do assunto: é uma característica que distingue quem não se interroga.
(e quiçá singulariza) a nossa Biomedicina mo- Ora, aí está: quando frutífero, o diálogo
derna, contemporânea, o fato de ela apresentar- transcultural não deixa intacta a fonte teórica do
se como um sistema exclusivamente médico. Há projeto. Também neste domínio da hermenêutica

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antropológica, é preciso deixar-se ler pelo texto cramental e como fármacos. (Porquanto na
que se considera. liturgia e na farmacopéia tradicional dos terrei-
Voltarei depois a este ponto. Quero agora ros são as folhas as partes dos organismos vege-
desenvolver meu argumento recorrendo a dados tais mais sistematicamente empregadas; o nome
de pesquisas que fiz, ainda no terreno do can- "folha" veio a usar-se aí como genérico, até como
domblé, mas focalizando o que a princípio cha- equivalente de "vegetal"). A classificação
mei - com alguns arrepios - de sua etnobotânica. etnobotânica desses itens só pode compreen-
Reporto-me a um projeto financiado pelo der-se à luz de referências aos paradigmas
Fundo Nacional do Meio Ambiente e desenvol- flindamentais do sistema religioso em apreço.
vido sob minha coordenação geral (em duas eta- Nos terreiros, muitos vegetais cultivados
pas, entre 1997 e 2000) por uma equipe têm um emprego sacro, pois o rito do candom-
interdisciplinar composta por professores e es- blé compreende, entre outras formas de oblação,
tudantes do Instituto de Biologia e das Faculda- a dedicação de oferendas alimentares, sistemati-
des de Farmácia e de Ciências Sociais da UFBA, camente produzidas através de um código culi-
equipe esta integrada também por especialistas nário em que se combina a preparação de vítimas
nas artes de Ossain" - sacerdotes de terreiros de sacrifício com a de pratos à base de plantas
estudados (ou seja, de alguns dos grandes san- domesticadas; mas a liturgia das folhas - que
tuários nagôs da Bahia), que atuavam no grupo envolve, como ficou dito, o emprego de vegetais
como consultores. O Projeto Ossain inventariou colhidos em área nao cultivada - é um subsistema
cerca de duas centenas de vegetais do repertó- túndamental do mesmo Kultbild. Os religiosos
rio das folhas do candomblé de rito nagô, reco- dos terreiros afirmam "semfolba não tem orixá.
lhendo exemplares ao Herbário Alexandre Leal Sem Ossainnão se faz nada no candomblé. "Esse
Costa (do Instituto de Biologia da UFBA) e cata- subsistema litúrgico que leva o nome do deus
logando devidamente esses espécimes. Veio as- Ossain tem alcance cosmológico, tal como o mo-
sim a formar-se o núcleo de um sistema de delo da mântica de Ifá e os grandes mitos de
informações que continua a crescer: o Banco de criação. A "arte de Ifâ" e a "arte de Ossain" cons-
Dados ]ESSA, onde se cruzam dados etnográficos, tituem dois pilares básicos do culto dos Orixâs,
lingüísticos, botânicos, e farmacognósicos sobre culto que é o principal núcleo do candomblé.
o thesaurus das folhas. A rigor, as folhas distribuem-se entre
O candomblé tradicional, em cujo horizon- Orixás, Eguns, Exu (deuses, mortos, espirito
te se fez o estudo em apreço, pode definir-se comunicador). Por outras palavras, existem fo-
como um culto entusiástico em que, através do lhas de Orixâ, folhas de Egun, folhas de Exu, e
transe e da possessão, certos iniciados encamam também as que se situam em espaços intermedi-
os espíritos invocados. Estes são também propi- ários entre esses domínios, além daquelas que
ciados com sacrificios e oferendas diversas, e, se- se podem relacionar com os três. (Este último
gundo a crença, podem ainda comunicar-se com subconjunto, "indiferenciado", por vezes é indi-
os humanos através do código ritual de um jogo cado com a referência direta a Ossain. Ossain
divinatório (Ifâ). O culto associa à prática religio- designa também o universo vegetal, o totum re-
sa um esforço terapêutico, voltado para a garan- cortado pela divisão triádica Orixâ, Exu, Egun).
tia, restauração e conservação do bem-estar dos O esquema que serve de base à classifica-
iniciados, adeptos e clientes dos terreiros. ção das folhas reporta-se a um grupo dos orixás
Nesse contexto, tem papel de destaque em particular.
uma liturgia das folhas - itens vegetais, obtidos Os seguidores do candomblé afirmam que
através de coleta em área não cultivada, que cada orixá tem suas folhas. Os Orixás são geral-
funcionam como elementos de um código sa- mente considerados inumeráveis, embora um

SERRA,ORDEP. ANTROPOLOGIA NAS ENCRUZILHADAS: "QUE É FEITO DA ETNOCI~NCIÁ?" .. ~ P. 120 A 130 125
número limitado
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receba um culto regular nos candomblé. Sua chave de leitura encontra-se aí,
terreiros, Orixás funcionam como simbolos em- nessa liturgia iniciática das folhas de orixá.
pregados no processo de classificação. Dá-se que Assim, o universo vegetal pode ser orga-
eles transcendem o campo da Taxionoinia estu- nizado com a discriminação de sete campos prin-
dada, pois se aplicam também a outras. São cipais. O modelo, no plano mais decisivo,
simbolos complexos não só por isso, mas tam- combina a oposição binária com arranjos
bém porque seu valor semântico admite uma triádicos, organizando díades em pontos (lógi-
variação lógica, desde quando eles se podem cos) simétricos, a partir de um eixo que lhes
ordenar em diferentes blocos de cifras e porque serve de referência.
cada um deles representa um bloco per se:Xangô O modelo do euê jokó pode ainda ser des-
(o teônimo Xangô), por exemplo, tanto designa dobrado numa configuração em que (como o sis-
um deus "individualizado" no horizonte de de- tema divinatório de Ifâ), consta de dezesseis
terminados mitos ou liturgias., quanto uma clas- simbolos (Orixás + vegetais associados). Neste
se divina: o povo do candomblé diz que "há caso, evidentemente, a célula do setenário é am-
muitas qualidades de Xangô". pliada com a inclusão de um conjunto eneádico.
De acordo com o contexto mítico-ritual, o Isso exige uma breve explanação de cer-
alcance desses símbolos pode ser modificado. Isso tos elementos estruturais do rito enfocado (o rito
tem a ver com a variação dos mitos, mas também nagô do candomblé, observado nos terreiros
com a diferenciação das estruturas que eles são onde foi feita a pesquisa).
chamados a descrever, e que obriga a alterar-lhes Quando se estuda a cosmologia nagô, o
(em alguma medida) a sintaxe hierárquica. Um primeiro dado que salta à vista é a organização
(signo-) orixá pode ter, num determinado con- dual, que ordena, aparentemente, todo o uni-
texto, uma função equivalente à desempenhada verso através do confronto de pares de opostos,
por outro da mesma natureza num contexto di- em esquemas binários. O universo é concebido
verso: isto permite fazer entre eles uma associação como dividido em duas dimensões: o ayê, o
passível de desdobrar-se em vários níveis, ligan- mundo fisico, e o orun, que o transcende. Fica-
do também, por homologias, os planos conside- se logo tentado a ler assim a estrutura do siste-
rados nos contextos distintos. Isso faculta variações ma, caracterizando-o como simplesmente
enriquecedoras na construção do modelo dualista. Mas seria um equívoco. De fato, a opo-
"cosmológico'. Às vezes, substituições dessa or- sição "contrapolar" de campos e sua replicação
dem são claramente indicadas no discurso mítico. vêm a ser procedimentos fundamentais na gra-
O panteão básico dos orixás alinha mática do sistema nagô, tanto na construção dos
dezesseis divindades, invocadas no xirê (no or- modelos de realidade que concernem à
dinário da liturgia do candomblé); mas nem to- cosmogonia e à mântica, quanto no domínio dos
das elas se vêem referidas na estrutura mais arranjos taxionômicos que também compõem
elementar do sistema de Ossairi. Esta estrutura esta cosmo-lógica. Mas quando se aprotunda a
compreende sete grupos, que se distinguem análise, logo se vê que o esquema binário resul-
pelos patronos divinos, aos quais se relacionam ta insuficiente. Nos discursos "cosmológicos" das
as folhas consideradas "de maior importância" comunidades do candomblé nagô, os arranjos
na celebração do euê jokó, realizada no contex- diádicos freqüentemente encobrem outros, em
to dos ritos iniciáticos. Na forma expandida, po- tríades. Uma confirmação disto se acha na con-
rém, o cânon fixo do euê jokó chega a ter tínua e explícita referência à divisão do univer-
dezesseis elementos. so em nove partes. Os nove espaços do cosmo
A ordem se mio lógica deste cânon traduz envolvem o mundo físico: segundo uma expla-
a estrutura do sistema etnofarmacobotânico do nação bem conhecida, trata-se, na verdade, de

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dois conjuntos de quatro espaços (um superior, dos sexos: fala de uma disputa entre homens e
e o outro inferior à terra), mais um intermediário, mulheres. Conta que no começo estas prevale-
correspondente ao ayê (mundo físico). ão exis- ciam sobre os parceiros, pois tinham o segredo
te contradição efetiva entre essa representação de ritos de mistério. Eram chefiadas por Oiâ,
e os esquemas que recorrem à divisão binária uma deusa guerreira. O poder das mulheres foi
(simples ou quadripartite) do mundo, ou de sua contestado por Ogun, que duelou com Oiá. No
dimensão "superior": a enéade é uma forma ló- duelo, a deusa dividiu Ogun em sete pedaços, e
gica de articulação de um esquema diádico com ele a dividiu em nove. A vitória de Ogun (invo-
um arranjo triádico: por exemplo, na base de cado também como Mejejê, o "Sétuplo") deter-
uma composição 4 - 1 - 4, como na "cosmo- minou a supremacia masculina no mundo
grafia" evocada. (Bastide, 1958; Morton-Williams, humano. Ora, Oiá é mais conhecida no Brasil
1964; Woortman, 1978; Becker, 1995; Serra, 1999). por uma epiclese que refere a sua divisão: lansà
É possível encontrar a confirmação do va- [(>"lya Mesan), a "Senhora Novena"].
lor fundamental da tríade em muitos discursos Ela é considerada uma Soberana dos Mor-
míticos e rituais correntes no mundo do can- tos e uma Grande Mãe (fya Nlâ), com poderes
domblé. Nos enunciados (teo)cosmológicos da sobre o domínio da fecundidade. Enquanto se-
religião nagô um conjunto representado como nhora dos mortos, tem a ver com as profundezas
binário pode exigir a operação lógica de três da terra; mas governa também a ventania (ar), e
campos de representação, ou conceptualização: rege águas caudalosas; por fim, com seu esposo,
assim, a oposição de orun e ayê (ou, no ayê, de Xangô, ela comparte o fogo. Em suma, ela tem
céu x terra) remete à oposição de Obatalá e uma feição "cósmica". Isso a qualifica para assu-
Odudua (as metades de Oxalá, o criador, cujo mir, no contexto da cosmogonia social", um pa-
simbolo plástico equivale a uma representação pel decisivo, exprimindo, na oposição a outro
do mundo); no entanto, esta oposição se con- "termo" divino, a situação de um todo em crise.
fronta de imediato com a afirmação de uma uni- O mito do duelo de Ogun e Oyá indica também a
dade que a transcende (Oxalá = Obatalá e possibilidade de representar a diacosmese segun-
Odudua). do dois esquemas: embora assinale a vitória do
Há outras vias que conduzem logicamente Sétuplo, nao exclui a figura oposta.
ao arranjo triádico no sistema. A oposição cons- Quem estuda a etnofarmacobotânica nagô,
tantemente feita entre Oxalá e Exu traduz-se vê-se logo confrontado com uma espécie de
(também) na oposição par x ímpar. Ora, consi- "modelo ideal" que distribui de forma ordena-
derada de um ponto de vista lógico, esta oposi- da, paritária e simétrica, com um desenho lógi-
ção, que em princípio se diz em linguagem co constante, os elementos do universo dasfolbas.
binária (P x I), encerra em si mesma a potência Os especialistas dos terreiros estão conscientes
da tríade. do fato de que este modelo não representa uma
Na cosmologia nagô são utilizadas como "tradução" completa dos dados empíricos
alternativas equivalentes, ou esquemas passíveis verificáveis no mundo vegetal, que eles não con-
de combinar-se, a divisão estrutural em nove e sideram plenamente conhecido. Acreditam que
em sete. Um mito nagô muito conhecido na Bahia podem mapeá-Io com as categorias de que dis-
permite captar a correspondência profunda en- põem, mas consideram que elas se aplicam, an-
tre o arranjo setenário e a enéade, embora co- tes de mais nada, a um conjunto limitado, a um
mece por uma oposição de metades de um repertório que exploram de forma sistemática.
cosmo (social): ele tem a ver com a distribuição Os pontos de referência que tomam para a cons-
de poderes na sociedade humana, entre seus trução de seu sistema estão dados sempre numa
componentes separados pela divisão elementar liturgia das folhas. A liturgia estabelece valores

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que são combinados a funçoes (religiosas e te- pêutico as folhas às quais se atribui o poder de
rapêuticas), explorando correspondências entre controlar estados de perturbação que em si mes-
os distintos domínios do cosmo. mos não são malignos, mas que podem, se não
Os especialistas do candomblé entendem forem limitados, causar dano ao sujeito: elas
a terapia de uma forma abrangente: a cura com "controlam" o transe, por exemplo, ou limitam
emprego de vegetais pode ser obtida, segundo crises e distúrbios cuja remoção imediata não
admitem, pela operação simbólica dos ritos e/ seria possível (ou mesmo desejável: a crise as-
ou-pelo efeito 'medicinal" das plantas. Eles dis- sim tratada pode ser considerada uma passagem
tinguem de forma explícita entre o valor necessária ao desenvolvimento da pessoa, e be-
terapêutico-simbólico e o correspondente à efi- néfica, se controlada). Entre asfolhasque se apli-
cácia fisica dos itens, mas servem-se dos cam de forma direta ao corpo do paciente, muitas
parâmetros litúrgicos para ordenar seus conhe- têm sua ação relacionada de forma particular a
cimentos fármacológicos. um órgão ou região anatômica, cujo bom funcio-
Da perspectiva do candomblé nagô, en- namento elas -são consideradas capazes de pro-
fermidades e infortúnios se equiparam na medi- mover ou restaurar, agindo de forma curativa.
da em que causam desconforto, considerado Outras são estimadas capazes de estimular fa-
passível de tratamento. As folhas permitem re- culdades ligadas a determinados órgáos, re-
mover esse desconforto. (Podem também cau- movendo barreiras que limitam a percepção e a
sar danos. Têm a eficácia ambígua de fárrnacos). expressão: são reveladoras, permitem que se
O povo-de-santo nagô caracteriza e ordena as amplie o poder da visão, da audição, da fala.
folhas em função desses valores. Elas podem O que acabei de fazer no parágrafo acima
ser usadas em terapias nas quais funcionam atra- foi uma breve indicação de registros utilizados
vés de uma ação direta - quando o corpo do no candomblé de rito nagô para ordenar o re-
paciente as absorve (por iogestão ou aplicação, pertório das folhas segundo uma grade "funcio-
etc.) - ou de modo indireto, isto é, quando se - nal". (Na indicação, por economia, vali-me de
considera que o contacto não leva à absorção rótulos breves que escolhi arbitrariamente, em
fisica e (em certos casos) até pode ser vez das locuções que indicam esses agrupamen-
dispensado: basta a proximidade ... As folhas que tos no dialeto dos terreiros). No pouco tempo,
se usam no candomblé como recursos de uma no enxuto espaço de que disponho, mesmo re-
terapia "indireta" são consideradas eficazes em ceando que tanta concisão a torne críptica, não
dois sentidos principais: no sentido aversivo, visto posso ir além desta apresentação sinóptica do
como se supõe que afastam o mal, o infortúnio, modelo "etnofarmacobotânico" estudado. Tam-
a doença, impedindo que perturbações atinjam bém não é este o lugar apropriado para dar-lhe
a pessoa. São apotropaicos, em suma. Outras, corpo numa análise detida... O meu objetivo,
embora não ajam de forma direta sobre o corpo aqui e agora, é assinalar alguns tópicos da peri-
do paciente, atraem para ele, se conservadas na pécia analítica que sugerem considerações teó-
sua cercania, o bem-estar, a saúde, a fortuna, ricas de caráter mais geral.
propiciando o orixá. Para dizê-lo numa palavra, No curso do Projeto Ossain, foram assina-
são propiciadoras. O alcance da ação direta das ladas correspondências entre a taxionomia tra-
folhas sobre o corpo do paciente pode ser limi- dicional e a classificação botânica vigente no
tado a certos órgãos ou ainda ser difuso, agir mundo científico, e exemplares da coleta siste-
sobre ele todo. Neste último caso estão as fo- mática foram estudados do ponto de vista
lhas que 'limpam o corpo ,que "purificam a pes- farmacognósico, levando em conta as indicações
soa exercendo um efeito catártico e profilático terapêuticas feitas pelos especialistas tradicionais
geral; também têm este amplo alcance tera- para a pesquisa de princípios químicos ativos.

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Este, porém, nunca foi o objetivo único e "defi- Há qualquer coisa de órfico na composi-
nitivo" do estudo. ção desse texto cosmológico.
Vale a pena esclarecê-Io, pois a grande A relação entre o "código de Ossain" e o
maioria das pesquisas etnobotânicas, etnofar- "código de Ifá", ou seja, entre o "alfabeto" litúr-
macológicas, se resume a essa meta. Então tudo gico das folhas e o do jogo divinatório dos búzios
se passa como se o resultado das verificações (que sistematiza narrativas, e as "reescreve" num
farmacognósicas, além de corresponder a um processo estocástico, em coreogramas de caurís,
interesse prático decisivo, levasse a termo, isto para a efêmera lição mântica), corresponde a
é, elevasse ao patamar da verdade científica, se- um outro aspecto do mesmo concerto simbóli-
parando-o de uma escória simbólica (mística etc) co, cuja audição exige diuinatio, pois sempre se
o que de fato existe de válido nos sistemas tra- revela sujeito a disrupções, ao ataque ruidoso
dicionais assim abordados (válido para o saber de uma entropia constante. A procura da
tecnocientífico autorizado, segundo um crivo de musicalidade (lógica, cosmo-lógica) sempre
eficácia situado no horizonte inquestionável da ameaçada é um vetor dessa tberapeia que não
natureza, no plano dos valores químicos). se pode desprezar.
Ora, ainda que dê resultados muito inte- Não creio que seja possível transpor o
ressantes a pesquisa dos fármacos do candom- código da, digamos, "etnofarmacobotânica do
blé feita por esse ângulo, reduzir a isso a candomblé em termos já ab initio disponíveis
investigação seria muito empobrecedor, limita- no arsenal de nossa ciência, de nossa etnologia.
ria de modo estreito a compreensão da tberapeia Neste ponto, quero reportar-me ao velho
dos terreiros. problema da tradução. Segundo lembra Hannerz
Para melhor compreendê-Ia, é preciso levar (993), declarada ou veladamente a tradução
em conta seu grande investimento significativo. contínua sendo um inveterado paradigma do tra-
De começo, chega a ser intrigante a idéia balho antropológico: a analogia que aproxima o
de uma classificação botânica toda ela depen- antropólogo do tradutor tornou-se já um clichê.
dente de uma terapêutica; mas logo se adverte, Pois bem: acredito que esse paradigma ainda
quando a pesquisa avança, que essa terapêuti- pode ser útil, se for considerado de forma nova,
ca, por sua vez, só pode ser "lida" a partir da sem a ingenuidade clássica. Sim: parece-me
cosmologia que a sustenta. E há qualquer coisa mesmo que o desafio da etnologia é, de fato,
de musical nessa farmácia "cósmica". efetuar uma tradução. Mas, inacabável, ensaia-
Não me refiro apenas ao fato de que a da sempre de novo numa língua que ainda não
coleta e o preparo das folhas no candomblé existe, e que ela se esforça por criar diante do
exigem, entre outros, o conhecimento de uma desafio dos códigos confrontados na experiên-
música apropriada, de cânticos especiais que cia transcultural. Um vocabulário e uma gramá-
também ordenam, em outro nível de arranjo, o tica herdados de outros aventureiros servem de
universo botânico; quero aludir ainda a outra ponto de partida; mas cada esforço do "tradu-
coisa: às relações complexas que arranjam as tor" modifica o idioma em cuja fábrica ele se
folhas de acordo com cifras (os símbolos-orixás) envolveu, sujeitando-o, a cada passo, à pressão
suscetíveis de leitura "harmônica" (com oposi- de uma nova, dilacerante metáfora nele
ções, correspondências e "intervalos" a ligar- introduzida, para escândalos dos significados
lhes ou separar-hes nos mitos, nos ritos os anteriores. (Penso aqui em "metáfora" na acepção
"campos" de manifestação) e capazes de ligá4as consagrada por Davidson, 1984; cf Rorty, 1999).
a diferentes taxionomias - visto como orixás Assim entendido, o estudo antropológico
também "classificam" pessoas, animais, fenô- merece ser aproximado da ciência - mas tam-
menos diversos. bém da poesia.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Cosmology and Cult Organization ofthe Oyo Yoruba."
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Outros. R. J. : Relume Dumará.
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GELLNER, E. 1997. "Cultura, Limite e Comunidade". (orgs.): Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Ja-
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HANNERZ, U. 1993. "Mediations in the global WOORTMAN, K. 1978. "Geomancia e Cosmologia:


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