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Relacionamento a Distância

Copyright © 2018 Rafael Santos


Capa: Lucas Freitas/Nicholas Macedo
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Relacionamento a Distância
Olá, meu amor. Bom dia!
Karin se revirou na cama ao ouvir o som do celular na
cabeceira. Era uma manhã fria de segunda-feira. Entre as nuvens,
os primeiros raios de sol invadiam timidamente o seu quarto. Ela
rolou mais uma vez na cama, adiando o inevitável. Agora que o
sono já a abandonara, saiu do calor reconfortante do edredom.
Quando o celular tocou novamente, abandonou qualquer esperança
de manter-se deitada e inclinou o corpo na direção do smartphone
para checar suas mensagens.
Me desculpe pela ausência... — era ele! Ela sentou-se num
salto.
Bom dia, meu céu! Saudades de você, amor! — ela
respondeu entusiasmada. — Por que sumiu? — quis saber.
Fui obrigado! Me perdoe, tive alguns problemas, tive que me
afastar da internet — respondeu Pedro.
Está tudo bem? — ela indagou.
Agora está! A fé age de formas misteriosas e sempre põe
alguém em nosso caminho quando mais precisamos.
Amém! — ela respondeu de maneira natural, tentando conter
a curiosidade iniciada por uma ponta de ciúme.
Foram dias confusos e nebulosos, mas agora posso dizer
que está tudo em paz! Precisava me desculpar por desaparecer
assim... E sabe... me despedir.
Karin sentiu um baque, uma solidão opressiva que apertava
seu coração e enchia de lágrimas os seus olhos, enquanto lia a
última mensagem. Não teve forças para responder, as palavras
fugiram da mente, enquanto o líquido salgado e quente lhe escorria
pela face. Abandonou o celular e se levantou, o rosto lavado pelo
choro estava cálido e rubro. Percorreu o pequeno espaço entre o
quarto e o banheiro, perdida num turbilhão confuso e interminável
de ideias e sentimentos oscilantes e indizíveis. Precisava de um
banho gelado! Despiu-se diante do espelho observando criticamente
imperfeições criadas e ampliadas pela rejeição. A banheira enchia
morosamente e, quando o banho ficou pronto, afundou suas
lágrimas, seus pensamentos e seu coração na água enregelante.
Ela gostaria de emergir com o coração congelado após outra
decepção, mas tudo que conseguiu foi se levantar e sentir o vento
frio arrepiando-lhe a delicada tez. O banho, ao menos, lhe dera
coragem para seguir em sua rotina. O trabalho a esperava, então,
tentando desviar-se dos pensamentos cruéis que circundavam,
cuidou de si, da pele e do cabelo, se maquiou e perfumou, encarou
mais uma vez o espelho. Estaria radiante se os lindos olhos de mel
não se encontrassem sem o costumeiro brilho e revelassem, sem
filtros, a dor de sua alma.
Respirou fundo, o dia seria longo. Pegou sua bolsa, as
chaves do carro e, inconscientemente, deixou o celular por último,
encarando-o com o coração cheio de pesar, um sentimento
sufocante. Reuniu coragem e o pegou da cama com grande esforço,
o peso do vazio. Checou uma última vez suas mensagens, não
havia nada novo e o pesadelo daquela última mensagem não
desaparecera.
Não compreendo, estava tudo certo! Você disse que viria, eu
estava esperando por você... Criamos expectativas, fizemos
planos... Você sumiu de repente e agora vem com isso! Por quê? —
ela estava destruída e escreveu com mãos trêmulas a mensagem,
antes de jogar o celular na cama e sair.
O restante do dia de Karin passou em flashes: o carro em
alta velocidade com o vento secando suas lágrimas, a infinidade de
papéis em sua mesa no escritório, a miríade de sorrisos forçados
distribuídos aos colegas. Mais um dia atarefado cumprindo sua
função de manter a mente cheia e o coração vazio. Ela não resistiu
ao ímpeto de pegar o celular, mesmo com a certeza de que as
lágrimas viriam. Diversas vezes procurou por ele na bolsa, em
alguns momentos poderia até jurar que o ouviu tocar. Certamente foi
melhor deixá-lo em casa, desse jeito seu trabalho fluiu e seu dia
transcorreu o melhor que poderia. O expediente enfim terminou e a
noite trouxe consigo uma garoa melancólica no caminho de volta ao
seu apartamento vazio.
Quando chegou ao seu condomínio, a chuva havia se
intensificado e, mesmo com o guarda-chuva em mãos e ensaiando
uma corrida da garagem ao ar livre até a portaria do seu prédio,
Karin ficou completamente ensopada. O elevador em manutenção
há semanas a fez subir os exaustivos cinco andares de escada e, a
cada degrau vencido, o coração era apertado ainda mais pela
angústia. Estava chegando a hora de enfrentar o que vinha adiando
o dia inteiro. Chegou, finalmente, ao seu apartamento, abandonou a
bolsa e as roupas pesadas numa cadeira na sala e se fechou no
quarto. Depois de cair pesadamente na cama, olhou para o celular.
O LED piscava frenético, notificando novas mensagens. Karin
desviou o olhar, passou a encarar o teto com um olhar vazio e
perdido, como se buscasse coragem ou alguma resposta para seu
dilema, tomou fôlego e decidiu acabar de vez com a procrastinação
angustiante. Finalmente pegou o celular para checar suas
mensagens. Pedro havia respondido.
Me perdoe, eu queria mesmo ir, mas infelizmente não vai ser
mais possível, coisas aconteceram comigo... E eu não sei como te
explicar, mas você vai ficar melhor sem mim... Pra mim é algo difícil
de dizer, mas tenho que seguir meu caminho... Não foi uma escolha
minha sair da sua vida, eu só não quero te fazer sofrer...
As lágrimas caíram copiosamente. Karin viu passar por sua
cabeça todas as conversas, os planos de meses que haviam feito
juntos e foram postos em prática na última semana. Pedro viria para
a cidade e finalmente iriam se encontrar, ele tinha diversas
entrevistas de emprego marcadas no decorrer da semana e ficaria
hospedado em sua casa, era a chance de que precisavam para
levar o relacionamento ao próximo nível. Ele viria para morar com
ela! Os dois estavam tão animados, sabiam que estavam no
caminho certo... Ela não desistiria agora!
Se não quer que eu sofra, então vamos continuar o que
planejamos, nossos caminhos estão juntos, se não escolheu sair,
então não saia! Preciso de você comigo! — ela desabafou.
A mensagem foi enviada e lida no mesmo instante.
Viu, meu céu... Nossa ligação é forte, parece que você
pressentiu minha mensagem — ela complementou.
Não faz assim comigo, eu preciso seguir adiante... — ele
respondeu, mas ainda continuava digitando. — Nossa conexão é
algo único que eu nunca vou esquecer, mas o que faço é pensando
em você — concluiu.
Pedro, eu preciso de você! Por favor, não me deixe! Preciso
de você aqui comigo! — ela escreveu aos prantos.
Quanto mais você me chama, mais difícil é partir...
Então não vá! Não parta! Venha, vamos ficar juntos para
sempre! — as lágrimas de Karin caíam na tela do celular.
EU QUERO VOCÊ! — foi a resposta dele no momento que
um trovão ribombou.
Karin se encolheu de medo, o pavor que ela tinha de trovões
fez sua expressão congelar, aquele fora sem dúvida o mais alto que
já ouvira em sua vida.
Não precisa mais chorar, meu céu — Pedro continuou com
carinho. — Seque suas lágrimas e tire essa roupa molhada.
Karin se assustou e olhou intuitivamente ao redor. As luzes
do apartamento oscilaram e um vento gélido encontrou passagem
pela porta que dava para a varanda do seu quarto.
Pedro? Como você sabe... — Karin estava intrigada.
Vem, amor, seu banho está pronto... — ele respondeu.
Ela arregalou os olhos, o som que estava ouvindo... Não era
possível! A água que caía não era apenas a chuva lá fora, aquele
barulho... O ruído de água estava vindo... Do seu banheiro! Seu
corpo estremeceu, o coração acelerou e as luzes do apartamento
oscilaram novamente. Karin levantou da cama num salto e pegou,
na gaveta do seu criado-mudo, uma pistola Taurus 738, que
comprou para sua defesa, desde que se viu morando só naquele
apartamento. Com as mãos trêmulas de nervosismo e medo, ela
avançou vagarosamente em direção ao banheiro empunhando sua
pistola e abriu com cautela a porta. O ranger incomum da dobradiça
fez um arrepio percorrer seu corpo. Entrou no banheiro e acendeu a
luz. Não havia nenhuma torneira aberta, nem sequer gotejando. O
som que imaginou ouvir já não estava presente, mas a visão da
banheira cheia a manteve tensa e alerta. Ainda com a arma
estendida à sua frente, percorreu o cômodo. Ela observou o boxe e
a banheira, certificando-se de que não haveria ninguém escondido
ali, respirou mais aliviada ao garantir que estava sozinha. Talvez
houvesse deixado a banheira cheia ao sair, transtornada, pela
manhã, apenas esquecimento... Ou talvez... Karin enrijeceu de
tensão novamente. A janela do banheiro estava aberta. Era algo
improvável dados os cinco andares de altura, mas ela jamais
conseguiria ficar tranquila se não olhasse. Em silêncio se aproximou
da janela, pôs a arma na cintura, apoiou o pé na borda da banheira
e as mãos na base da janela e, com um leve impulso, pendurou-se
e projetou a cabeça para fora do maxim-ar, apenas para sentir
respingos da chuva e o vento gélido da noite tempestuosa. Não
havia nada lá fora, apenas a altura vertiginosa.
O clarão de um relâmpago rasgou o céu e o som que o
acompanhou não fora o imponente e temido ruído do trovão, mas
um rumor que veio imediatamente atrás dela. Assustada, ela perdeu
o apoio do pé, o que a fez escorregar da borda da banheira, os
braços não firmaram rápido o suficiente e seu corpo desceu. O
queixo bateu no peitoril de mármore branco na base da janela e ela
caiu sentada no chão, atordoada, ao lado da banheira, que havia
acionado a hidromassagem.
Karin se recompôs. A boca estava carregada com o gosto
amargo e férrico de sangue. Se levantou e desligou a
hidromassagem, furiosa com o susto que o som do motor lhe
causou. Imergiu o braço na água a fim de drená-la, mas a
estranheza proporcionada pela temperatura a paralisou e fez o
coração acelerar mais uma vez... Estava morna...
Estarrecida, Karin se afastou da banheira. O medo de não
estar sozinha retornou e ela sacou mais uma vez sua Taurus 738.
No quarto, o celular começou a tocar. Cruzou lentamente a porta do
banheiro, mas interrompeu-se na soleira ao perceber, com horror
inefável, a porta do quarto escancarada. Recuou novamente para
dentro do banheiro, endireitou-se, pôs a pistola à frente do corpo e
permaneceu em silêncio, concentrada em ouvir algum barulho.
Quando a música que usava como toque do celular chegou ao efeito
da distante trovoada, um novo relâmpago irrompeu em sincronia,
desta vez muito mais perto, e o som avassalador do trovão
ribombou, estremecendo as vidraças e acabando de vez com a
energia elétrica. O medo e o nervosismo tornaram-se um desespero
irracional. Seu corpo inteiro tremia de pavor e, na escuridão
opressiva, a lágrima quente escorria sem pudor ou testemunha. Ela
precisava de ajuda, precisava chegar até o celular, tinha certeza de
que era ele que estava ligando, tinha que ser ele, somente Pedro
poderia acalmá-la. Respirou fundo, segurou o soluço do choro
incessante, reuniu toda a coragem que ainda lhe restava e voltou
para o quarto. O telefone tocando sobre a cama era sua única fonte
de luz e a foto dele na chamada insistente era sua esperança.
Pedro! — atendeu ela num grito vacilante. — Pedro, acho
que tem alguém aqui! Estou com medo!
Alô... Fic... alma! Eu... ou aqui! — respondeu quase
inaudível!
Pedro, você está ouvindo? A ligação está muito distante! —
ela já gritava desesperadamente!
Te escuto... — outra falha de sinal.
Vem pra cá, por favor! Estou com medo! — Karin suplicou à
beira de um ataque de nervos.
ESTOU AQUI! — ele respondeu claramente.
Um vento cortante e gelado invadiu o quarto, fechando a
porta com violência. Karin deu um salto para frente e tropeçou na
cama completamente perturbada. O celular escapou-lhe e se perdeu
na escuridão, mas ela ainda pôde ouvir claramente.
Estou aqui, meu céu, fique calma! Eu cheguei, finalmente! Eu
vim te buscar! — a voz dele estava próxima, estava no quarto, mas
na escuridão tenebrosa ela não conseguia encontrá-lo.
Foi então que um relâmpago deixou o quarto claro como o
dia e Karin finalmente pôde vê-lo, Pedro estava na varanda,
vestindo seu sorriso mais amável, com os braços abertos,
esperando-a para o tão sonhado abraço. O vislumbre do seu amado
findou com seu terror, em seus braços ela estaria protegida. Ela
soltou a arma e correu ao seu encontro.
No lugar do calor, o frio... Ao invés de amor, vazio... As gotas
pungentes de chuva pareciam capazes de perfurar a pele. O vento
gélido que acariciava seu rosto secava suas últimas lágrimas
enquanto o chão se aproximava rápido demais para que toda sua
vida passasse diante de seus olhos. A descomunal chuva de
novembro lavou da calçada seu sangue rubro.
No dia seguinte, na portaria do condomínio, João abriu seu
jornal como de costume. Em destaque, a notícia do horror que ele
presenciou noite passada. Karin, uma mulher solitária de 34 anos,
se atirou da varanda do seu apartamento no quinto andar. A perícia
confirmou o suicídio e disse que ela havia tentado tirar a própria vida
de outras maneiras naquela mesma noite: a banheira fora
encontrada cheia e uma arma carregada estava no seu quarto
apenas com suas digitais. No celular de Karin, também encontrado
no quarto, um número desconhecido havia enviado uma mensagem
pouco antes da fatalidade. A mensagem trazia a foto de um recorte
de jornal que noticiava um grave acidente de trânsito dias antes. O
jovem Pedro Oliveira Reis, de 31 anos, foi socorrido ainda com vida.
Segundo relatos, apesar do estado crítico no qual foi encontrado, o
rapaz insistia para que encontrassem seu celular. Pedro não resistiu
aos ferimentos e morreu a caminho do hospital. O celular do rapaz
foi encontrado com o endereço de Karin num aplicativo de trânsito.
Karin e Pedro nunca foram vistos juntos, mas acredita-se
que a ciência sobre a morte do rapaz foi o principal motivo para o
suicídio de Karin. Suspeita-se que eles tinham algum tipo intenso de
relacionamento a distância.
O conto Relacionamento a Distância integra a antologia
Expresso 666 – Contos sobrenaturais, De Suspense e De Terror da
Editora Andross publicado em 2018.

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