Artigo: Nietzsche e o corpo: para além do materialismo e do idealismo
Autor: Miguel Angel de Barrenechea
(p.177)
A perspectiva nietzschiana que considera o corpo como “fio condutor”
interpretativo para desvendar todas as questões filosóficas apresenta-se como uma tese original que merece ser reavaliada, repensada. Pretendo, para tanto, discutir como esta valorização do corpo, que questiona uma tradição idealista milenar, não leva Nietzsche a afirmar a materialidade do corpo. Ao contrário, ele se coloca para além do materialismo e do idealismo, mostrando que o homem, enquanto indivíduo corpóreo, não é matéria, nem espírito, nem qualquer tipo de entidade ou forma substancial.
Na ótica nietzschiana, o homem é entendido como um jogo de forças em
contínuo dinamismo, um conjunto de impulsos em constante devir, um processo de criação permanente, gerido pela vontade de potência.
No prólogo de A gaia ciência, Nietzsche pergunta: “se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo”.
Nietzsche, ao contrário, sublinha a existência de uma relação subliminar, oculta, até
negada, pela tradição, entre corpo e filosofia. Para ele, toda filosofia pretendeu refletir sobre “idéias puras”, sobre “verdade” e sobre outras supostas entidades ideais.
(p.178)
Nietzsche mostra que os sentidos, os instintos e os afetos nos permitem habitar e
compreender nitidamente a realidade. O corpo é um fenômeno muito mais conhecido, mais evidente e melhor determinado que uma suposta “entidade” não material, como a alma ou o espírito. A partir dos instintos, das pulsões geramos todos os pensamentos. Até a criação do utópico além, da suposta alma ideal, nasceu de estados corporais, de sintomas de saúde. Lembremos as palavras de Zaratustra quando conclama a fidelidade à terra e a valorização do corpo: “Eu vos rogo meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acredite nos que vos falam de esperanças ultraterrenas. Envenenadores, são eles, que o saibam ou não”. (p.181)
Contrapõe-se à rejeição do corpo e do mundo, a glorificação corporal e a fidelidade à
terra, postulada por Zaratustra. A beleza da vida é redes coberta; a plenitude dos instintos e sentidos é afirmada novamente. Não há mais culpas, mas alegria e prazer no mundo. Uma ética da afirmação, da celebração, vem ultrapassar séculos de repressão corporal e auto-punição. O corpo deixa de ser estigmatizado como responsável pelas dores e doenças, ao contrário, torna-se motivo de exaltação, fonte de orgulho, maravilha das maravilhas: “O corpo ensinou-me uma nova altivez - disse Zaratustra -, que ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra!”.