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Ficha do livro: O que pode o corpo

Autor: Daniel Lins (org)


Ano: 2009

Artigo: Nietzsche e o corpo: para além do materialismo e do idealismo


Autor: Miguel Angel de Barrenechea

(p.177)

A perspectiva nietzschiana que considera o corpo como “fio condutor”


interpretativo para desvendar todas as questões filosóficas apresenta-se como uma tese
original que merece ser reavaliada, repensada. Pretendo, para tanto, discutir como esta
valorização do corpo, que questiona uma tradição idealista milenar, não leva Nietzsche
a afirmar a materialidade do corpo. Ao contrário, ele se coloca para além do
materialismo e do idealismo, mostrando que o homem, enquanto indivíduo corpóreo,
não é matéria, nem espírito, nem qualquer tipo de entidade ou forma substancial.

Na ótica nietzschiana, o homem é entendido como um jogo de forças em


contínuo dinamismo, um conjunto de impulsos em constante devir, um processo de
criação permanente, gerido pela vontade de potência.

No prólogo de A gaia ciência, Nietzsche pergunta: “se até hoje a filosofia, de modo
geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do
corpo”.

Nietzsche, ao contrário, sublinha a existência de uma relação subliminar, oculta, até


negada, pela tradição, entre corpo e filosofia. Para ele, toda filosofia pretendeu refletir
sobre “idéias puras”, sobre “verdade” e sobre outras supostas entidades ideais.

(p.178)

Nietzsche mostra que os sentidos, os instintos e os afetos nos permitem habitar e


compreender nitidamente a realidade. O corpo é um fenômeno muito mais conhecido,
mais evidente e melhor determinado que uma suposta “entidade” não material, como a
alma ou o espírito. A partir dos instintos, das pulsões geramos todos os pensamentos.
Até a criação do utópico além, da suposta alma ideal, nasceu de estados corporais, de
sintomas de saúde. Lembremos as palavras de Zaratustra quando conclama a fidelidade
à terra e a valorização do corpo: “Eu vos rogo meus irmãos, permanecei fiéis à terra e
não acredite nos que vos falam de esperanças ultraterrenas. Envenenadores, são eles,
que o saibam ou não”. (p.181)

Contrapõe-se à rejeição do corpo e do mundo, a glorificação corporal e a fidelidade à


terra, postulada por Zaratustra. A beleza da vida é redes coberta; a plenitude dos
instintos e sentidos é afirmada novamente. Não há mais culpas, mas alegria e prazer no
mundo. Uma ética da afirmação, da celebração, vem ultrapassar séculos de repressão
corporal e auto-punição. O corpo deixa de ser estigmatizado como responsável pelas
dores e doenças, ao contrário, torna-se motivo de exaltação, fonte de orgulho, maravilha
das maravilhas: “O corpo ensinou-me uma nova altivez - disse Zaratustra -, que ensino
aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas, sim, trazê-la
erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra!”.

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